Reconstruir o Mundo – Vol. 01.1 – Cap. 09 – Um Verdadeiro Caçador

 

Após a excitação de matar os caçadores desonestos e resgatar Elena e Sara, Akira voltou à sua rotina de treinamento ou coleta de relíquias. O encontro com os bandidos e as mulheres nada fez para alterar sua vida, afinal.

Os rumores sobre relíquias facilmente acessíveis já haviam diminuído. Em primeiro lugar, Alfa agora podia dizer quais relíquias poderiam ser vendidas sem chamar a atenção; ela fez com que Akira escondesse a maioria dos tesouros que encontrou, especialmente os mais valiosos, em vez de trazê-los para o posto de trocas. Akira também havia melhorado substancialmente seu equipamento, para que não provocasse mais histórias de uma criança mal armada vendendo relíquias. E, claro, nenhum caçador encontrou o suposto tesouro de relíquias. Em pouco tempo, então, o fluxo de caçadores interessados nas ruínas da cidade de Kuzusuhara havia cessado.

Como resultado, a caça às relíquias de Akira estava indo bem, mas suas finanças pioraram. Ele teve que rebaixar seu quarto de hotel que custava vinte mil auruns por noite para um que custava apenas quatro mil: um quarto simples e apertado, cujo único luxo era um chuveiro. Naturalmente, seu conforto fez com que dormir nas ruas fosse uma vergonha, mas Akira se viu sentindo falta da opulência de seu quarto anterior. Resmungou que queria voltar logo para um quarto com uma banheira.

Alfa alegremente replicou que poderia voltar à vida com uma banheira assim que pudesse vender relíquias de alto custo sem levantar olhares. Isso acendeu um fogo sob ele. Alfa observou a mudança em sua motivação, enquanto analisava cada detalhe por trás de seu sorriso.

Nada quebrou essa rotina até o dia em que Akira completou sua décima venda no posto de trocas. Estava prestes a receber seu pagamento e ir embora quando Nojima o parou.

— Espere. Tenho isso para você hoje. — disse o funcionário, entregando a Akira um cartão de plástico e um mapa em papel. Este último dava instruções para um destino perto da muralha da cidade. — Você tem alguma burocracia para lidar. Basta mostrar esse cartão para os funcionários de lá. Boa sorte, Ajira.

— Meu nome é Akira. — murmurou o menino.

Nojima caiu na gargalhada.

— Você é “Ajira” no banco de dados. Eu não sei quem te registrou, mas com certeza fizeram um trabalho meia-boca. Você pode consertá-lo enquanto estiver lidando com essa burocracia, então vá em frente.

Nojima não disse mais nada, mas parecia estar de bom humor enquanto observava Akira.

 

As muralhas ao redor do distrito central da cidade de Kugamayama eram tão resistentes que, se um ataque de monstros reduzisse tudo do lado de fora a cinzas, tudo dentro das muralhas permaneceria intocado. As fortificações sólidas e imponentes eram uma barreira física, econômica e social entre aqueles que viviam dentro e aqueles que estavam fora. Ver sua vastidão de perto pode tirar o fôlego.

O Edifício Kugama era um enorme arranha-céu que havia sido construído nas próprias muralhas. Servia tanto como um elo econômico entre as cidades internas e externas quanto como a sede do governo local. Também continha uma grande filial do Escritório dos Caçadores. Havia um mundo de diferença entre essa instalação de última geração, que supervisionava toda a atividade de caçadores em Kugamayama, e o posto avançado degradado onde Akira havia se registrado pela primeira vez.

Akira vacilou quando olhou para o edifício. Tinha sido construído como um monumento ao poder político, financeiro e militar que abrigava, e facilmente oprimia a criança das favelas. A marca em seu mapa apontava diretamente para a filial do Escritório dos Caçadores em seu interior.

— Este é o lugar, certo? — perguntou.

— Isso mesmo. — respondeu Alfa. — Vamos entrar. Sim.

Alfa entrou no prédio com indiferença e Akira a seguiu nervosamente. Sem a cutucada dela, teria ficado ali muito tempo tentando reunir coragem para entrar.

Quando se aproximaram do Escritório dos Caçadores no primeiro andar, Akira olhou com admiração para os muitos caçadores no grande saguão, verdadeiros caçadores. Desde veteranos em trajes motorizados de primeira linha até ciborgues com pele de aço, todos eram mundos à parte de novatos como Akira.

— Relaxe. — disse Alfa. — Não são inimigos e não vão atacá-lo.

— Eu sei disso — Akira disparou.

— Eu gostaria de acabar com estas formalidades, e você aí parado em silêncio não está ajudando. Você sabe o que fazer?

— Não, eu não sei.

— Então siga-me.

Alfa habilmente guiou o garoto de rua através dos procedimentos desconcertantes. Com o cartão de Nojima, foi a um terminal para retirar uma senha; a máquina cuspiu um bilhete, que levou para um canto tranquilo para esperar. Quando chegou a sua vez, foi até o guichê apropriado e apresentou seu bilhete e cartão para a mulher atrás do balcão.

— Eu supostamente deveria lhe mostrar isto? — disse ele.

A surpresa brilhou no rosto da funcionária quando viu o cartão, mas rapidamente recuperou seu sorriso profissional.

— Claro. — disse ela, pegando o cartão e escaneando-o em seu computador.       — Você poderia, por favor, confirmar que você é o Sr. Ajira?

— Ah, sim. Quero dizer, não. — Akira respondeu nervosamente. — Meu nome é Akira, e, hum, eu disse certo, mas foi registrado errado.

A funcionária curvou-se educadamente.

— Minhas sinceras desculpas. — disse ela. — Então, Sr. Akira, permita-me parabenizá-lo por sua promoção ao posto de caçador de nível dez. Vamos confirmar seu registro e reemitir sua ID de caçador. Você precisa que eu explique os procedimentos ou qualquer outra coisa relacionada à sua visita hoje?

— Huh? Ah, sim, por favor.

Vendo que Akira parecia completamente perdido, a funcionária deu-lhe um sorriso amigável.

— Muito bem. — respondeu. Ela conhecia bem seu trabalho e começou a explicar a Akira os meandros do processo de registro.

O Escritório classificava os caçadores com um sistema de classificação padronizado, começando do nível um. Geralmente, a organização considerava os caçadores mais capazes à medida que sua classificação aumentava. Um caçador pode aumentar sua classificação de várias maneiras, como vendendo relíquias ou atendendo a solicitações emitidas pelo Escritório e suas afiliadas.

Os caçadores eram promovidos se seu trabalho beneficiasse a Liga Oriental das Corporações Governamentais, ou LOCG.

A LOCG depositava considerável confiança nos caçadores de alto nível, e o Escritório lhes dava tratamento preferencial. Esses caçadores tinham acesso imediato aos distritos de elite da cidade e podiam caçar relíquias em ruínas restritas, que as grandes corporações monopolizavam. Tinham prioridade ao aguardar consultas ou serviços. E também tinham acesso a certas armas e equipamentos. Modelos que eram particularmente caros, raros ou poderosos, que o Escritório dos Caçadores limitava a venda a caçadores de baixo nível. Podiam até mesmo escolher missões do Escritório e de suas afiliadas que os caçadores com classificação inferior não estavam autorizados a aceitar ou, em alguns casos, até mesmo a conhecer. Dados estes benefícios, para não mencionar o respeito e a fama, não era de se admirar que muitos caçadores estivessem obcecados em subir na hierarquia.

A atual classificação de caçador de Akira era dez. Em outras palavras, tinha um documento de identidade válido e uma miscelânea de equipamentos decentes. Era, em suma, o posto de um iniciante.

Ao contrário dos novatos de melhores origens, os moradores de favelas e outros que não tinham cartões de identificação corporativos ou municipais eram registrados como caçadores de nível um. Existiam no sistema meramente como nomes em folhas de papel. Uma vez que vendessem relíquias suficientes, o Escritório os promoveria a um nível superior, mas nos bastidores, sem divulgá-las ao caçador. Quando atingissem o nível dez, o Escritório os informaria, como Nojima havia dito a Akira. E poderiam então se juntar aos caçadores considerados como tendo potencial real.

A carta de Nojima era a prova de que Akira havia subido a partir do nível um. A maioria dos caçadores das favelas desistiu ou morreu antes de chegar tão longe, mas os poucos que o fizeram foram recompensados com benefícios modestos como não ter que pagar a primeira vez que suas identificações foram reemitidas.

Com isso, a funcionária entregou à Akira um panfleto impresso em papel premium.

Em sua capa estavam os logotipos da LOCG e do Escritório dos Caçadores, e dentro continha um relato mais detalhado do que acabara de lhe dizer, além de outras informações de interesse para os caçadores.

Em seguida, começou o processo de registro.

— Sr. Akira — disse ela formalmente —, você solicitou uma revisão do seu nome registrado. Por favor, repita o nome revisado que você deseja registrar.

— Akira. — ele respondeu, um pouco perturbado.

A funcionária continuou, toda profissional.

— Sr. Akira, este processo atualizará seu status de registro provisório para registro permanente. Fazemos isso principalmente para adicionar quaisquer dados relevantes aos nossos arquivos. No entanto, uma vez que o seu nome foi incorretamente registado devido a um erro da nossa parte, aceitaremos uma alteração ao seu registo. Por favor, entenda que quaisquer alterações futuras terão que ser revisadas e podem ser rejeitadas dependendo das conclusões do processo de revisão.

Em outras palavras, não será tão fácil mudar sua identidade no futuro. Ela acrescentou:

— Seu nome é um dos pontos de dados que o Escritório dos Caçadores usa para identificá-lo. Representa quem você é como indivíduo. Os nomes às vezes incluem a linhagem, a casa, a nacionalidade, a identidade cultural ou a classe de uma pessoa. Você tem certeza de que deseja se registrar simplesmente como “Akira”?

Akira estava perplexo. Não pertencia a lugar nenhum. Não tinha família, nem qualquer memória de uma. Tinha vivido nas favelas da cidade de Kugamayama desde que se lembrava, mas não sentia apego a elas, só tinha ficado porque não tinha como sair. Tampouco pertencia a nenhuma das inúmeras gangues das favelas. Sempre agiu sozinho: ele era simplesmente “Akira”. Se mudasse de nome, ninguém se importaria. Ninguém nunca o chamou pelo nome, de qualquer maneira, até que conheceu Alfa.

Depois de um breve silêncio, olhou para a funcionária e disse:

— Akira. Meu nome é Akira. Por favor, registre-o. Se eu quiser mudá-lo, vou lidar com isso no futuro então. E se não puder, sinto que isso significaria que não deveria, de qualquer maneira.

— Como você quiser. — A funcionária inseriu algo em seu computador e entregou a Akira sua nova identificação de caçador. Akira olhou para o plástico rígido, tão diferente do pedaço de papel barato que se acostumou. Sentiu que a mudança do papel para o plástico também representou uma transformação mais profunda.

— Por favor, tome cuidado para não perder sua identidade. Não pode ser reemitido sem uma taxa e uma investigação. Na pior das hipóteses, você pode perder todos os registros de suas realizações e ser tratado como um novo registrante.

A funcionária deu-lhe um sorriso agradável e curvou-se. Ela estava simplesmente sendo profissional, ou havia uma pitada de respeito em relação ao seu novo status como caçador oficial?

— Seu registro está concluído. Estou sinceramente ansiosa para trabalhar com você, Sr. Akira.

 

Do lado de fora do Edifício Kugama, Akira não conseguia tirar os olhos de sua novíssima identidade de caçador.

Alfa riu alegremente.

— Você finalmente é um caçador, Akira. — disse ela. — Parabéns.

— Obrigado. — respondeu. — Espere, eu já não era um caçador?

— Apenas no nome, até agora. Lamento dizer que outros caçadores teriam rido de você se tivesse se apresentado com aquele pedaço de papel.

— Você provavelmente está certa.

Akira parecia satisfeito enquanto estudava sua identidade. Ele leu seu nome no cartão, escrito corretamente desta vez, e sorriu.

— Então, eu posso finalmente me chamar de caçador. — disse a si mesmo.

Sua nova identificação de caçador também serviria como sua identificação pessoal daqui para frente. Isso não lhe faria muito bem, para a maioria das empresas, só o marcaria como um caçador novato, mas ainda era um grande passo. Não era mais um menino sem documentos das favelas, essa vida havia ficado para trás. Algum dia seria capaz de apresentar sua identidade, e isso significaria algo, e naquele dia, teria feito isso como um caçador.

Como Akira não parecia inclinado a parar de olhar para sua identidade tão cedo, Alfa o agulhou.

— Pare de olhar para essa coisa e guarde-a. Você quer fazer as pessoas suspeitarem?

Akira apressadamente guardou-a. Mais guardas de segurança patrulhavam ao redor do Edifício Kugama do que na maior parte do distrito inferior, e chamar a atenção levaria a muito mais problemas do que em outros bairros.

— Tudo bem. — Alfa anunciou. — Agora que você é um caçador totalmente registrado, vamos comprar para você o equipamento que todo caçador precisa para um conjunto completo.

— Do que você está falando?

— Um terminal de dados.

E com isso, Alfa o levou em direção a uma loja de terminais nas proximidades.

 

A internet era uma fonte inestimável de informação para um caçador. Aqui você pode trocar, compartilhar, comprar e vender todos os tipos de inteligência: locais de ruínas, suas estruturas internas e detalhes sobre os monstros que as habitavam, para citar apenas alguns exemplos. Quanto mais os caçadores faziam uso desse conhecimento, mais bem-sucedidos eles provavelmente seriam, e seu sucesso alimentava o fluxo de relíquias para o Oriente e revigorava sua economia.

A rede de informação deveu-se, em parte, à ampla disponibilidade de terminais de dados. A Tatsumori Indústrias Pesadas produziu modelos em massa que equilibravam alto desempenho com preços acessíveis, e agora todo caçador respeitável tinha um. A influência de longa data e substancial de Tatsumori nos mercados que atendem aos caçadores a lançou a alturas recordes, tornando-a uma corporação governamental cujo alcance se estendia por todo o Oriente. Sob a influência da Tatsumori, a LOCG empregou terminais de dados como parte fundamental de sua estratégia para conquistar a região. Isso levou a uma produção maior e preços ainda mais baixos, até que alguém como Akira pudesse pagar por um.

À medida que os caçadores se tornavam cada vez mais dependentes de terminais de dados, também passaram a usá-los para encontrar empregos em corporações e no Escritório dos Caçadores. Em suma, graças a uma variedade de motivos, os terminais eram agora considerados indispensáveis para a caça.

 

Na loja, Akira comprou o terminal de dados que um funcionário recomendou. Custou quase todo o dinheiro que lhe restava.

Enquanto estava lá, o funcionário passou pelo processo de configuração do dispositivo. As várias configurações e opções não significavam nada para o menino, ele teria ficado perdido por conta própria. Mas quando o funcionário disse que precisava de um ID de caçador se fosse configurar o terminal para a caça de relíquias, Akira ficou satisfeito por ter a oportunidade de usar seu novo cartão tão cedo.

 

Sua euforia com sua nova identificação e terminal não durou muito. De volta ao seu apertado quarto de hotel, Akira refletiu melancolicamente sobre suas preocupações mais imediatas.

— Alfa. — disse — Eu não posso nem mesmo pagar um quarto amanhã à noite depois de comprar este terminal. Isso vai ser um problema? — Passou a confiar em Alfa, esperando que o tranquilizasse.

— Claro que sim. — declarou alegremente. — É por isso que vamos voltar para as ruínas amanhã.

Akira a olhou com reprovação; ela encontrou seu olhar com um sorriso silencioso. Estava cansado de caminhar pelas ruínas. Mas Akira sabia que não era páreo para Alfa em uma discussão, e que se a pressionasse, provavelmente o convenceria com sua opinião. Além disso, o terminal provavelmente valia o que havia gasto. Suspirou e desviou o olhar.

De qualquer forma, se estivesse fazendo outra viagem no dia seguinte, imaginou que seria melhor chegar cedo do que se preocupar com argumentos inúteis. Ainda tinha perguntas, mas não as fez.

— Não teremos que nos preocupar com munição. — acrescentou Alfa. — Ainda temos algumas sobrando.

— Eu acho que sim. — Akira respondeu mal-humorado.

— A partir de amanhã, você estará usando seu terminal de dados quando explorarmos as ruínas. Ajude-me a configurá-lo agora.

— Huh? Não fizemos isso na loja?

— Essas configurações eram para caçadores. — comuns, explicou Alfa. — Estamos prestes a configurá-lo para você. Vou me esforçar para reprogramá-lo para que eu possa ajudá-lo melhor. Mas eu não posso acessá-lo ainda, então eu vou precisar que você faça os primeiros passos para mim.

— Quer dizer que vai facilitar o uso? Tudo bem.

— Nós não terminaremos até a meia-noite, pelo menos, então espere aí.

— O quê?! — Akira olhou para Alfa incrédulo. Mas seu sorriso nunca mudou, e uma vez que percebeu que ela estava falando sério, seu semblante mudou. De repente, sentiu-se mais exausto do que nunca.

 

Sob a orientação de Alfa, Akira tocou na tela sensível ao toque do terminal. Figuras estranhas, símbolos e o que poderiam ter sido letras piscavam, substituídas por mais do mesmo, nenhuma das quais significava nada para ele. Executou as ordens de Alfa mecanicamente, não entendendo nem o que estava fazendo nem por que estava fazendo isso. Se suportasse essa tortura entorpecedora da mente por muito mais tempo, sentia, isso esmagaria sua mente completamente.

As tarefas simples e monótonas que não entendia começaram a levar os pensamentos de Akira a canais estranhos. O que estava fazendo? Isso estava realmente configurando um terminal de dados, ou era um daqueles rituais ocultos que tinha ouvido rumores sobre? Estava, sem saber, prestes a invocar alguma entidade sobrenatural?

Como Alfa o havia avisado, seu trabalho se arrastou pela noite. Akira continuou sem pensar mexendo em seu terminal até que finalmente terminou.

— Akira, isso é o suficiente. — disse Alfa.

— Finalmente está feito? — perguntou.

A configuração não está, estritamente falando, mas você fez a sua parte. Eu assumo a partir daqui, portanto, descanse um pouco.

Vendo que já passava da meia-noite, Akira sentiu a exaustão esmagá-lo. Ele caiu na cama, deixando seu terminal de dados no chão próximo, e cedeu ao seu cansaço. Enquanto dormia, o terminal continuou trabalhando a noite toda.

Na manhã seguinte, a voz de Alfa o acordou como de costume. Mas quando olhou em sua direção, não estava em nenhum lugar à vista.

— Alfa? — perguntou.

— Aqui embaixo. — disse ela, soando diferente de alguma forma.

Intrigado, Akira olhou de onde sua voz tinha vindo e a viu acenando alegremente da tela de seu terminal. Isso é o que era diferente: realmente tinha ouvido a voz dela, não apenas recebido sua mensagem telepática. Não ajudou o fato de o terminal ter alto-falantes bastante baratos.

Pegou o terminal e olhou Alfa em sua tela nos olhos. Ela lhe deu um sorriso orgulhoso.

— O que você acha? — disse. — Eu assumi esse terminal de dados! Legal, né?

— Huh? Bem, eu acho.

Alfa franziu a testa, claro, tinha acabado de acordar, mas esperava uma reação maior mesmo assim.

— Você não parece entusiasmado. Eu pensei que você ficaria mais surpreso.

— Em comparação com uma mulher que eu posso ver, mas não tocar, ou ser capaz de ampliar as coisas que eu vejo? Na verdade, não. — respondeu. — Além disso, você vai me fazer falar com você através dessa coisa a partir de agora?

— Se preferir. Você quer?

Akira considerou. Fingindo ser indiferente, respondeu:

— Volte a como você era antes. Olhar para o meu terminal de dados toda vez que conversamos fica chato.

— Está bem. — Alfa desapareceu da tela do terminal de dados e ficou ao lado de Akira como de costume. Ela tinha uma presença muito maior nesta forma e aproximou o rosto do dele, com um sorriso travesso.

— Então. — disse sedutoramente. — Você prefere me ter perto de você assim do que naquela pequena tela?

— Sim, eu prefiro. — Akira respondeu de improviso, não encontrando seu olhar. Ela ficou satisfeita em vê-lo corar.

Akira estava no deserto do lado de fora das ruínas da cidade de Kuzusuhara, se preparando mentalmente. Se sentiu muito motivado, não porque esta fosse sua primeira expedição como um verdadeiro caçador, mas porque a compra de um terminal de dados o havia deixado sem dinheiro para alugar um quarto para a noite.

Agora que era um caçador totalmente licenciado, tinha outras opções para ganhar dinheiro, se quisesse. Poderia aceitar trabalhos que as cidades e outros clientes emitissem através do Escritório dos Caçadores, ou assumir trabalhos de segurança como o patrulhamento da periferia da cidade.

Mas Alfa disse que reunir relíquias e treinar era a maneira mais eficaz de desenvolver suas habilidades, no momento, e ele confiava em seu julgamento .

Isso não mudou o fato de que estava quase falido. Se voltasse de mãos vazias, voltaria a dormir nas ruas das favelas. Estava agora tão acostumado a luxos que até mesmo seu atual quarto de hotel parecia apertado, e estava ansioso para evitar outra noite no chão muito menos confortável de um beco.

Respirou fundo e se preparou. Parecendo determinado, se preparou para avançar para as ruínas.

— Tudo bem. — disse ele. — Vamos lá.

— Espere um segundo. — Alfa o deteve.

Akira voltou-se para ela, irritado.

— Para quê? — Talvez tenha soado muito confiante, porque suas próximas palavras o abalaram.

— Agora você sabe muito bem como lidar com uma arma. A partir de hoje, vamos nos concentrar em algo novo. Vou ensiná-lo a lidar consigo mesmo decentemente sem o meu suporte. Portanto, não espere que eu aponte inimigos para você uma vez que você entre nas ruínas agora.

Akira estava visivelmente abalado. A habilidade de Alfa de apontar inimigos era sua salvação, e tinha uma boa ideia de como se sairia sem ela.

— E-eu vou ficar bem? — perguntou, obviamente inquieto.

Não. — Alfa sorriu inocentemente. É por isso que você precisa de treinamento.

— Eu entendi mas…

De repente, o olhar de Alfa ficou sombrio, parando as palavras na boca de Akira.

— Quando você crescer como caçador. — disse ela — você terá mais oportunidades de trabalhar em outras ruínas. Afinal, há limites para o quanto você pode ganhar em Kuzusuhara. Mas lamento dizer que o meu suporte será muito menos eficaz em qualquer outro lugar.

— Quanto menos, exatamente? — Akira perguntou hesitantemente.

— Na pior das hipóteses, posso perder a capacidade de localizar as ameaças.

Akira não pôde deixar de fazer uma careta. Sabia o quanto isso seria fatal em seu estado atual.

— Continuarei a apoiá-lo o melhor que puder, é claro. — acrescentou Alfa. — Mas não posso fazer muito. É por isso que eu quero que você aprenda a navegar em uma ruína agora. Você entendeu?

— Sim. — Akira concordou relutantemente. — Mas isto é apenas treinamento, então é melhor me avisar se eu estiver em perigo real.

E o sorriso característico de Alfa estava de volta.

— É claro. Mas eu quero que você esqueça isso e leve o treinamento à sério. Você não aprenderá nada de outra forma.

— E-Entendi.

Vá em frente, sinta-se à vontade para fazer o que quiser lá dentro. Vou avisá-lo se você estiver em perigo ou estragar tudo. Agora, comece.

Akira respirava profundamente para manter seus nervos firmes. Embora soubesse que Alfa ainda estaria à frente e que este era apenas um exercício de treinamento, a ideia de continuar sem sua orientação fez com que as ruínas de repente parecessem muito mais ameaçadoras.

Na verdade, estava em perigo ainda maior do que imaginava; a presença de Alfa tinha apenas entorpecido sua consciência disso. Ele havia se sentido seguro nas ruínas porque podia contar com o apoio dela, não porque realmente compreendia as ruínas em si. Mas apesar de ter uma ideia disso, estava determinado a seguir em frente.

— Pare. — Alfa ordenou. Ele tinha estragado tudo, e ainda nem estava nas ruínas.

— Já?

— Primeiro, aponte seus binóculos para as ruínas. Verifique se há monstros. Quando você detectar um, pergunte-se se você pode vencê-lo, se há uma rota mais segura e se você deve voltar atrás. Pense cuidadosamente antes de decidir.

Isso pareceu razoável à Akira. Ele sorriu, envergonhado de como ainda era imaturo em negligenciar tais medidas básicas de segurança. Observando através de seus binóculos, não viu monstros. Podem estar escondidos, mas apenas sabendo que isso o tornava mais seguro do que quando nem sequer havia checado.

— Parece que está tudo bem. — disse ele.

— Agora verifique seu terminal de dados. — Alfa o aconselhou.

Akira olhou para o dispositivo fixado em seu braço. Uma cinta robusta, projetada especificamente para caçadores, prendia-o firmemente no lugar onde pudesse vê-lo facilmente. Em sua tela, uma pequena Alfa estilizada apontava para um ícone. Ao pressioná-lo, um mapa preencheu o visor.

— Isso mostra as ruínas da cidade de Kuzusuhara. — explicou Alfa. — Mesmo que você não tenha um objetivo específico em mente, não deve apenas explorar ao acaso. Planeje com antecedência sua área de busca e rota de viagem.

O mapa só mostrava uma parte da periferia de Kuzusuhara, uma fração minúscula da enorme ruína.

— Identificar lugares onde é provável que você encontre relíquias é importante, mas planejar como você vai chegar lá é ainda mais vital. Esteja atento às rotas de fuga caso encontre monstros e ajuste seus planos rapidamente, se necessário.

— É fácil você falar  — Akira resmungou. —, mas como devo “estar atento” a tudo isso?

— Descobrir isso é parte de seu treinamento.

Akira olhou carrancudo para o mapa. A enorme quantidade de informações que exibia era impressionante, e não foi a primeira pessoa a achar assustador filtrar todos os dados e traçar uma rota. Mas fez o seu melhor.

Um grande número de edifícios estava desmoronando em meio aos escombros dos arredores de Kuzusuhara. Akira agora tinha muitas viagens aqui em seu currículo, mas o olhar em seu rosto naquele momento sugeria que as visitas anteriores tinham sido apenas um passeio no parque em comparação. Escolheu cautelosamente seu caminho, tentando observar seu entorno. Mas ainda era um amador, e quem sabe quantos perigos espreitavam do outro lado das janelas vazias e dos montes de entulho pelos quais passava?

Nunca chegaria a lugar algum se imaginasse inimigos em cada sombra, mas não teve tempo de verificá-los todos. E mesmo assim, ignorar uma ameaça oculta em uma luta real faria com que morresse. As ruínas estavam cheias de tais perigos, mas isso não impediu que os caçadores voltassem dia após dia. Continuariam colocando suas vidas em risco até o dia em que ganhassem uma recompensa que valesse os riscos que corriam, ou perdessem tudo.

Alfa o deteve com uma correção a cada poucos passos, algumas vezes a cada passo. Tinha tantas coisas a aprender: como caminhar sem deixar rastros; como dizer quais os caminhos mais seguros de uma emboscada; como encontrar rapidamente uma postura para contra-atacar em terreno instável; quais deveriam ser suas prioridades quando examinasse seus arredores; e muitos mais.

Levou uma hora para percorrer uma distância que normalmente poderia percorrer em poucos minutos. Não encontrou monstros, mas ficar tão alerta o cansava de qualquer forma. Alfa, vendo como estava cansado melhor do que ele próprio, decidiu terminar aquele exercício em particular.

— Acho que isso é suficiente por hoje. — disse ela. — Não há ameaças por perto, portanto, sinta-se à vontade para relaxar.

Liberando sua tensão, Akira soltou um suspiro longo e cansado. Então se virou para verificar seu progresso e viu a fronteira onde as ruínas encontravam o deserto não muito atrás. Suspirou novamente, desapontado consigo mesmo.

— Esse é todo o terreno que eu cobri? Parece que tenho um longo caminho a percorrer.

— Você se moverá mais rápido à medida que ganhar experiência. — respondeu Alfa. — E detectar inimigos ficará muito mais fácil quando você tiver scanners e outros equipamentos de última geração. Aprimore-se lenta e constantemente treinando e atualizando seu equipamento. Não se preocupe, você pode contar comigo!

A visão de seu sorriso reconfortante e confiante ajudou a restaurar o moral de Akira.

— Você está certa. — disse ele. — A pressa não me levará a lugar nenhum.

— Exatamente. Agora, vamos fazer uma caçada normal de relíquias. Farei o reconhecimento como de costume, então siga-me.

Akira continuou mais profundamente nas ruínas, confiando inteiramente em Alfa para detectar ameaças. Em poucos minutos, fizeram mais progressos do que havia conseguido na hora anterior.

Os edifícios desmoronados e outras obstruções haviam transformado as ruas outrora organizadas da cidade em um labirinto. Akira comparou o mapa em seu terminal de dados com seus arredores com um olhar de confusão.

— Alfa — disse ele —, parece que há muitos erros neste mapa.

— Claro que há. — concordou Alfa, como se nada pudesse ser mais natural.

— Sério? Por que “é claro”? — perguntou ele, assustado.

— Está disponível gratuitamente na internet, por isso é bastante impreciso. Se você precisar de um mapa melhor, você terá que comprar um de uma fonte confiável.

Akira gemeu enquanto estudava o mapa.

— Eles custam dinheiro, hein? Bem, isso não é muito surpreendente.

— Só para você saber, até mapas caros refletem informações de quando foram feitos. Portanto, não há nenhuma garantia de que correspondam à situação atual do terreno. Monstros poderosos podem causar tanta destruição que mudam o terreno, e caçadores às vezes acidentalmente derrubam edifícios inteiros enquanto tentam explodir através das paredes para chegar até as relíquias no interior.

Akira lembrou-se da máquina colossal que o havia atacado. Sua artilharia massiva havia demolido edifícios, transformando a paisagem ao redor. Tanta destruição poderia tornar inútil até mesmo o mapa mais detalhado. Acenou com a cabeça, aparentemente convencido.

— Muitas outras coisas podem causar enormes discrepâncias entre o que os mapas mostram e a realidade no terreno. — continuou Alfa. — Decidir o quanto confiar em seu mapa antes de executar seu plano faz parte de seu treinamento.

Alguns caçadores, conhecidos como topógrafos, ganhavam a vida fazendo e vendendo vários tipos de mapas das ruínas. Mapas detalhados de uma ruína particularmente perigosa, revelando suas estruturas, variedades de monstros e relíquias previamente desenterradas, algumas vezes vendidos por preços mais altos do que as próprias relíquias.

Akira ouviu com interesse a explicação de Alfa. Até então, havia pensado em caçadores de forma bastante simplista como pessoas que encontravam relíquias, lutavam contra monstros e de alguma forma lucravam no processo. As possibilidades da topografia vieram como uma revelação assombrosa.

— Eu nunca soube que você poderia ganhar dinheiro dessa maneira. — disse ele. — É o suficiente para viver?

— É muito mais provável que você consiga voltar vivo se entrar com um plano devidamente elaborado e bem pensado, em vez de avançar cegamente. — respondeu Alfa. — Tenho certeza de que muitos caçadores pagarão um bom dinheiro por essa segurança quando puderem.

— Então, estudar as ruínas com antecedência faz parte da habilidade de um caçador?

— Exatamente. Eu não precisaria lhe dizer como foi imprudente entrar nas ruínas da cidade de Kuzusuhara sem saber nada.

Akira sorriu arduamente, lembrando seu primeiro encontro com Alfa.

— Você tem razão. Isso era seriamente perigoso. Tenho certeza de que teria morrido naquela época se não tivesse encontrado você. Obrigado.

— Agradeça-me com suas ações. — disse ela, sorrindo corajosamente. — Termine o trabalho que eu lhe dei. Não que eu queira apressá-lo, é claro.

— Eu vou. Tente ser paciente. — respondeu Akira. Mas apesar de seu tom, ele quis dizer o que disse.

Tenho grandes expectativas em você. — Alfa também falou sinceramente, mas suas palavras não disseram de forma alguma tudo o que pensava.

Akira verificou suas descobertas antes de voltar.

— Alfa. — disse — é impressão minha, ou a carga de hoje é maior do que o normal?

— Aumentei um pouco a quantidade porque você é um caçador de verdade agora. — Alfa respondeu. — Continuaremos aumentando um pouco de cada vez a partir de agora, de acordo com sua capacidade, é claro. Você precisará ganhar mais para poder comprar melhores equipamentos e munições. Melhor treinamento, educação e relaxamento também. Você quer dormir em um quarto com banheira, não é mesmo?

— Pode apostar que sim. — Akira acenou com a cabeça enfaticamente. — Por falar nisso, você não acha que deveríamos trazer de volta apenas mais algumas relíquias? Olhou para ela com expectativa.

— Não.

Alfa esmagou suas esperanças com um sorriso indomável.

— Tudo bem.

Akira se arrependeu amargamente, sua cabeça se inclinando em decepção. Isso não desanimou Alfa nem um pouco.