Qualidea de um Traste e uma Moeda de Ouro

Qualidea de um Traste e uma Moeda de Ouro – Capítulo 02

 

 

Haruma

O curto período da aula funciona como um bloco inicial. Ao sinal que anuncia o fim das aulas, os corredores dentro da sala de aula fazem sua jogada.

No entanto, nem todos aqui reunidos foram escolhidos e criados para a ocasião. Eles variam de cavalos velozes a éguas, de cavalos de carga a jumentos, leitões a cães-guaxinim. Havia raposas, gatos, Monte Fuji, falcões, berinjelas— bem, você entendeu1Uma superstição japonesa afirma que é boa sorte sonhar com o Monte Fuji, um falcão e uma berinjela em sua primeira noite após o Ano Novo.. A sala de aula era um lugar onde diferentes tribos lutavam em um jogo de tronos. Entre aquelas vozes barulhentas e tagarelas, reverberando pela sala como pequenas ondulações, podia-se distinguir o relincho de um cavalo, o uivo de um lobo e até o coaxar de um sapo. No meio de todo esse coaxar e coaxaaar, eu também estava gritando há algum tempo.

Entre os frequentadores do clube escolar, os frequentadores do cinema / karaokê e os preguiçosos- idiotas-que-inventariam-algo, todos tinham seus planos após as aulas em mente enquanto prestavam atenção no que a professora dizia.

— Ultimamente, tem havido relatos de jovens desaparecidos. Todos vocês estão cientes disso? — perguntou a professora Kuriu em um tom de voz calmo que também pode ser descrito como brando.

— Tenham cuidado ao ir para casa tarde por causa das atividades do clube e tudo mais. Não façam desvios ou saiam depois de escurecer.

Enquanto falava, ela ergueu um dedo severo e olhou lentamente ao redor da sala para cada um dos alunos, não que eles estivessem gostando. As reclamações jorraram deles como gritos de um bando de leitões.

— Aii!

— Isto cheira mal!

O barulho aumentou para um concerto de meninos e meninas, enchendo toda a sala de aula. O único que não ficou rebelde foi basicamente a pessoa que ignorou toda a conversa em favor dos tópicos de notícias da internet – eu.

A professora Kuriu bateu palmas levemente em um esforço para abafar as vozes discordantes.

— Entendo que vocês querem se divertir. Mas se algo acontecesse, eu ficaria muito triste… então, por favor, me mostrem seus rostos felizes amanhã. Tudo bem, isso termina a aula de hoje. Adeus a todos.

No momento em que ela pronunciou essas palavras gentis de despedida, o inferno desabou entre os  alunos.

Houve alguns que saíram para fora da sala de aula, outros que ficaram conversando em grupo e outros que acenaram para cá ou para lá. Todos e cada um deles foram libertados por aquela dobra do tempo conhecida como “as horas pós-escola”.

Essas pessoas podem ser classificadas em três grandes categorias.

Em primeiro lugar, existem os frequentadores de clube certinhos. Alguns se dedicam às atividades do clube dia e noite, enquanto outros relaxam e se divertem. De modo geral, entretanto, todos eles passam a maior parte de sua vida escolar fazendo atividades de clube.

Em seguida, temos o grupo popular. Eles estão profundamente cientes da ligação entre trabalho e escola e, portanto, vivem suas vidas principalmente em busca da diversão após as aulas: karaokê, boliche, dardos, bilhar e, por último, mas não menos importante, assuntos relacionados ao amor. A quintessência do ensino médio transborda de brilho juvenil.

Eles são basicamente o tipo de pessoa que tende a usar frases como “Noite inteira”, “bebendo” e “ficar muito bêbado”.

Finalmente, não vamos esquecer as pessoas do tipo “meu lugar é a estrada” que vivem por seus hobbies. Com toda a probabilidade, seus animes, mangás e jogos foram rejeitados no passado.

Embora ainda possam ser vistos como reclusos sociais no mundo de hoje, eles não vivenciam esse destino nesta escola. Ambos os sexos estão igualmente entusiasmados com a atual temporada de anime e seu dublador favorito. Esses jovens têm muita influência nesta classe.

Esses três grupos se misturaram, apenas ocasionalmente se separando em panelinhas claramente definidas. Eles foram tecidos na própria estrutura da vida escolar. Até o frequentador de clubes mais  diligente se apaixona, e os jovens populares leem a Weekly Shonen Jump. Os otakus saem em grupos mistos para cantar no karaokê no caminho da escola para casa. Na verdade, problemas amorosos complicados eram casos relativamente comuns no círculo otaku. Especificamente, é estranho quando tantas pessoas feias se beijam em público.

Jovens de hoje em dia — eles são controlados por seus hormônios. Suas vidas estão cheias de confraternizações ilícitas. Cara, eles se misturam tanto com espécies alienígenas que me faz pensar se querem trabalhar para a NASA. Leva apenas uma hora para dizerem: eu estarei bem aqui.

Castas e grupos podem variar, mas todos oferecem as mesmas coisas: amizade, amor, hobbies e uma maneira de viver a juventude.

No entanto, para compensar, estamos de pés e mãos atados pelo tempo, compromissos e obrigações sociais.

Que triste situação…

Normalmente, controlar o tempo e os planos das pessoas é o que um soberano faria, mas mesmo isso está além de suas capacidades… Ahaha! Que pena! É chato ser eles! Entre eu e eles, é óbvio quem merece pena!

Haruma

Como a situação era realmente muito triste, corri para fora para estudar na biblioteca. Agora que era Maio, praticamente passava todo o meu tempo assim. Eu não tinha dinheiro nem pessoas com quem sair, tampouco atividades de clube. A única razão pela qual não tinha ninguém com quem sair era porque eu não gostava de idiotas e perdedores. Mas o fato de não sair com pessoas inteligentes ou bonitas era um grande dilema!

Como chegou a isso?!

Basicamente, a única coisa que eu tinha a meu favor era o tempo. Fiz um ótimo uso do que tenho, como deveria.

Além de ler e estudar, de vez em quando brincava com meu celular e jogava jogos nele. Como vivia pelo princípio de nunca pagar um centavo em jogos, sempre que ficava sem pontos de ação em um jogo, eu apenas estudava e lia até recarregarem.

Ok, eu estava bem. Realmente fiz um excelente uso do meu tempo. Estudar bastante vem a calhar no futuro, então eu não estava desperdiçando minha vida de colegial. Estou bem, sim. N-Não há problema aqui, pessoal…

Lancei meu olhar para a janela em uma tentativa de rejuvenescer meus olhos cansados e pesados. Já  era noite.

O prédio da escola provavelmente já estava desocupado. Perfeito. Hora de fazer aquelas atividades do clube de serviço que a Amane empurrou na minha garganta na hora do almoço. Quero dizer, realizar uma atividade tão visível ao ar livre significaria morte na selva. A mesma coisa acontecia com a selva de concreto.

Saí da biblioteca e caminhei pelo corredor. Enquanto eu subia as escadas — primeiro andar, depois segundo, depois terceiro — as vozes do terreno tornaram-se cada vez mais distantes. A presença humana também diminuiu. Dizem que o ar fica mais rarefeito em lugares altos, mas não é porque o ar é muito denso no solo?

Eu venho, leio, e fujo. Quando o ar está denso, é ainda mais sufocante. Isso me faz pensar coisas idiotas, como ter seguido um caminho evolutivo diferente ou algo assim. Bem, você sabe o que dizem sobre tolos e lugares altos. Só idiotas conseguem informações, ao que parece.

Ainda assim, quem foi que teve a ideia de menosprezar as pessoas que têm grandes ambições?

Obviamente, alguém que não conseguia alcançar o céu. Eles provavelmente só poderiam ter satisfação em olhar para baixo para aqueles que subiram a lugares altos que eles próprios nunca poderiam alcançar.

Por esse motivo, não gostei da ideia de me aproximar do céu, um andar de cada vez. Assim, poderia permanecer fiel à minha convicção de que desligar-me do mundo é a coisa certa a fazer.

Eventualmente, a escada de vidro tingida do pôr-do-sol terminava no degrau em frente ao telhado. Havia uma porta que levava direto para o telhado, mas estava sempre trancada, então os alunos não podiam entrar e sair livremente.

Este tinha que ser o lugar de que a Amane estava falando.

Olhando ao redor, pude ver que realmente estava um pouco sujo. Montes de poeira haviam se acumulado nos cantos e baldes espalhados por todo o lugar. Ah, e a porta do armário da limpeza apresentava um amassado enorme, como se alguém a tivesse chutado.

Quando tentei abrir o armário, ele não se mexeu, então decidi enfrentar o problema com força. E naquele momento—

— Aaaaaaaargh!

Um grito horripilante ecoou. Com um barulho frenético que pareceu sacudir todo o telhado, a porta que levava ao telhado se abriu.

Uma aluna saltou como um macaco na gaiola. Achei que íamos colidir, mas de alguma forma saí do caminho e a garota desceu as escadas com um salto, sem sequer olhar para trás.

— …O que foi isso?

Achei que colidir com outra pessoa levaria a um lindo romance. Mas aquele grito de agora era um  nível totalmente novo de estranheza, inédito na vida diária… E puta merda, ninguém tem controlado a  entrada no telhado? Me perguntei enquanto olhava para o telhado com ansiedade.

A porta ainda estava entreaberta, tendo sido escancarada. Além dela, ficava o solo de argamassa levemente encardido, perfeitamente nivelado e isolado.

Confrontado com uma cena desconhecida, meus pés avançaram por conta própria. Um vermelho, céu vermelho.

O brilho do pôr-do-sol era assustadoramente bonito, o suficiente para fazer meu cabelo se arrepiar. A paisagem urbana parecia estar em chamas, e os arranha-céus de 60 andares pareciam lápides pingando sangue.

Completamente abalado, fui até a cerca. Lá, parada em um canto que estava fora da minha visão até  que eu me aproximei, estava uma garota.

Suas bochechas vermelhas brilhantes foram tingidas com o brilho do sol, e seu cabelo preto como azeviche era como as penas de um corvo, dissolvendo-se na escuridão da noite. A garota estava no precipício entre dois mundos, recebendo a luz do sol à sua frente e da noite atrás dela.

Yuu Chigusa estava olhando para o pôr-do-sol com olhos tristes enquanto uma única lágrima rolava por sua bochecha pálida.

Instintivamente, eu sabia que não deveria falar com ela. Por um lado, não tinha ideia do que dizer a uma garota chorando.

Na verdade, eu não tinha ideia do que dizer a uma garota em geral.

Mais do que tudo, não suportava interromper aquela cena absolutamente magnífica de uma linda garota chorando ao pôr-do-sol.

Enquanto eu recuava silenciosamente na tentativa de deixar o telhado, Chigusa se virou como um  flash e me notou.

Silêncio.

Chigusa olhou para mim com uma expressão vazia e perplexa, como se tivesse acabado de descobrir  uma civeta de palmeira mascarada no meio da cidade2As civetas de palmeira mascarada são mamíferos do tamanho de um gato, encontrados principalmente nas áreas rurais do Japão, embora cada vez mais tenham sido descobertos em áreas urbanas nos últimos anos. Uma série de confrontos recentes de destaque entre civetas mascaradas e humanos em Tóquio transformaram os animais em uma espécie de meme da Internet..

Enquanto isso, as lágrimas continuavam a escorrer do canto dos olhos.

— E-Ei…

Fazer contato visual com alguém e não dizer nada geralmente é uma má ideia. Dito isso, falar formalmente com uma pessoa mais jovem é ainda pior. No entanto, falar como um francês (“O que a aflige, mademoiselle? Um coração chorando estraga este maravilhoso pôr-do-sol.”) é igualmente estúpido. Espere, pode ser assim que um italiano fala. No final, a única coisa que saiu da minha boca foi um grunhido tão desprovido de significado que me fez querer rastejar para dentro de um buraco e morrer.

A expressão da Chigusa não hesitou. Nenhuma reação. Ela continuou a olhar para mim como se eu  fosse uma espécie de besta exótica.

Um silêncio pairou no ar entre nós.

…Eu reconheço isso. Eu reconheço esse clima! É como quando a Amane chora em casa!

Sempre que você fala com uma garota chorona, ela diz: — Estou bem, então me deixe em paz. — No entanto, se as deixar em paz, elas dizem: — Por que não está perguntando nada? — E se você realmente perguntar o que as está incomodando, vão dizer alguma merda que ninguém se importa.

Elas começam a choramingar e acabam tagarelando — não se deixe levar pelas lágrimas de uma garota.

Em uma tentativa de ir embora antes que as coisas ficassem complicadas, dei a ela meu melhor  sorriso manso, me curvei educadamente em sua direção e me virei.

Só então, eu senti alguém agarrar a manga do meu casaco.

Quando lancei um olhar de canto, Chigusa estava se agarrando à minha manga com sua mãozinha.

— …………

Seus dedos possuíam uma movimentação silenciosa, mas firme, segurando depressa minha manga com firmeza.

 

 

 

— Hum… — Murmurei enquanto tirava os dedos da Chigusa de mim lentamente. Fiquei surpreso com o quão longos, bonitos e finos seus dedos eram, mesmo assim afastei aquele movimento brusco que estava sobre mim.

Em momentos como este, não se deve responder muito.

Quer dizer, as mulheres são criaturas delicadas. Devem ser manuseadas com extremo cuidado, elas são literalmente feitas de vidro. Mesmo se fizerem algo errado, não se deve tratá-las como um empecilho. As mulheres são sensíveis sobre a forma como são tratadas, então ficam histéricas desnecessariamente — são literalmente de porcelana.

No entanto, Chigusa, implacável, reuniu força em seus dedos mais uma vez e me agarrou ainda mais forte. O jeito que ela olhou para mim com aqueles olhos marejados quase parou minha respiração.

Seus ombros magros tremiam de ansiedade, e um suspiro quase imperceptível escapou de seus lábios atraentes. Chigusa e eu estávamos tão perto que ela nem precisaria dar um passo à frente para cair em meus braços.

…Eu não estava prestes a cair nesse truque, no entanto. Havia estudado por dezessete anos no curso “História de Terror da Vida Real: A Verdadeira Natureza de uma Garota” da minha irmã. Não que valesse algum crédito.

— Hum… você pode me soltar. — eu disse o mais calmamente que pude, o tempo todo me preparando para fugir deste lugar.

Mas então uma lágrima escorreu pelo rosto da Chigusa mais uma vez.

— Er, hum… — ela proferiu. — S-Sabe… minha amiga não atende minhas ligações há tempos… não sei o que fazer…

— Hum, isso não é…

O que diabos ela estava falando? Ela estava realmente bem em dizer tudo isso? Mesmo assim,  Chigusa continuou como se minha voz não tivesse conseguido alcançá-la.

— Já se passaram três dias e ela não atendeu minhas ligações…

Uau, isso é pouco. Ei, já se passou mais de um mês desde a última vez que fiz contato com meus  colegas. E estamos na mesma classe, droga…

— Talvez ela esteja resfriada, ou com gripe, ou talvez com problemas de família…

— Se fosse esse o caso, ainda teria atendido minhas ligações… ela sempre atendeu até agora… então por que agora…? — Chigusa parecia estar se contendo, mas ainda deixou escapar um soluço abafado.

— Entendo. Sei como é. Sim. Isso com certeza pesaria em sua mente.

Do jeito que a Chigusa estava falando sobre isso, não parecia que sua situação se resolveria, então me lembrei dos ensinamentos da minha irmã e decidi ouvi-la por enquanto. Se o caso da Amane fosse

alguma indicação, uma garota estaria no meio de seu discurso neste momento. A outra metade da conversa com certeza seria reclamar pelas costas da amiga, sim! Droga, garotas são assustadoras!

No entanto, é assim que parece ser quando se trata de amigos e melhores amigos. Quando você perde contato com eles, isso pesa em sua mente e acaba discutindo com eles…

Para ser sincero, acho difícil de entender.

Manter contato próximo com um amigo e, em seguida, começar uma briga por insegurança, ou de  outra forma chorar por causa disso — tais ações têm uma maneira de assumir o controle da vida de uma pessoa, fazendo “melhores amigos” pouco mais do que uma formalidade. Estou inclinado a pensar nessas ações como altamente calculadas — ritualísticas, até.

Francamente, acho que é feio. E ainda—

Essas lágrimas eram lindas.

Independentemente de sua intenção, a visão daquelas lágrimas derretendo no pôr-do-sol era cativantemente bela.

— Bem, tem uma coisa.

Foi isso que consegui pensar depois de me atrapalhar com minhas palavras. Isso levou Chigusa a inclinar a cabeça e olhar para mim.

— Que coisa?

O que realmente tem? Não pergunte algo assim com um rosto tão bonito, droga. Esta não era uma questão de literatura moderna em que você tenha que dizer a resposta correta, sabe…

Mesmo assim, tive muita experiência em momentos como este.

— Espere mais um dia e se ela ainda não ligar para você, venha falar comigo novamente.

Certo, essa foi a “Hein? Quer trocar números de telefone? …Ohh, uh, a bateria do meu celular  está descarregada agora, então vou mandar uma mensagem para você mais tarde, ok?” — estratégia que aprendi desde o primeiro dia de aula. Como exatamente essa garota planejava me enviar uma mensagem quando ela não sabia meu número…?

No entanto, mesmo essas palavras evasivas não pareceram deter Chigusa. Seus olhos brilharam.

— Uau… T-Tudo bem?

— Sim. Até logo. — Eu sorri brilhantemente e acenei, levando-a a balançar a cabeça ansiosamente. Ahh, que garota legal.

Se eu pudesse falar, você entenderia. Palavras tão bonitas. O Primeiro-Ministro que disse isso foi sumariamente assassinado, pois dialogar é inútil. Talvez o cara que o matou fizesse parte da facção  dos gatos. Ele realmente não se daria bem com o pobre Senhor Inukai3Essa piada tem duas partes. A primeira parte é uma referência ao incidente de 15 de Maio de 1932, quando onze jovens oficiais da Marinha Imperial Japonesa atiraram no Primeiro-Ministro Inukai Tsuyoshi. As últimas palavras de Inukai foram aproximadamente: Se eu pudesse falar, você entenderia, ao que seus assassinos responderam que dialogar é inútil. Este evento ajudou a estimular o militarismo do Japão, o que levou à eventual Segunda Guerra Sino-Japonesa. A segunda parte da piada é que o ‘inu’ em ‘Inukai’ significa cachorro. No Japão, os amantes de cães ou gatos se identificam como parte da “facção dos cães” ou da “facção dos gatos”, respectivamente, e essas duas facções estão supostamente em guerra uma com a outra..

Quando a garota na minha frente abaixou a cabeça, eu rapidamente me despedi.

Jamais nos encontraríamos de novo. Uma jovem beleza pura e doce como Yuu Chigusa não tinha nada em comum com um lobo solitário como Haruma Kusaoka.

Entrei no prédio da escola, fechando a porta do telhado suavemente atrás de mim.

Yuu

Se eu tivesse que citar uma coisa que detesto em relação ao entretenimento, seriam histórias que retratam conflito.

Esse pensamento sempre me ocorre sempre que assisto a dramas, ouço óperas ou leio um romance. Por mais sofisticado que seja o tema, fico enojada sempre que os personagens se entendem mal de maneira desajeitada.

Nosso tempo é finito. Nenhuma pessoa pode viver para sempre. Não importa quão grande seja um  ser humano — mesmo que essa pessoa seja um deus perfeito e onisciente ou uma forma de vida superior de virtude equivalente, abençoado com boa aparência e intelecto incomparável — a vida humana é predeterminada.

O que está à nossa frente é um doce desespero.

A severa extinção da própria consciência. Um pesadelo que se estende pela eternidade. Uma armadilha que atinge o vazio.

Cada dia que vivemos, damos um passo mais perto da morte. Não há garantia de que viveremos  para ver o amanhã.

Cada vez que assisto uma história que desperdiça tempo com mal-entendidos, tenho vontade de gritar. Eles realmente têm tanto tempo de sobra em suas vidas?

Eles não têm nada em comum? Então, por que fazem isso? Eles podem inventar sentimentos e arranjar encontros, mas no final tudo gira em torno de si mesmos.

Em vez de prestar atenção à pessoa que entenderam mal, se concentram apenas em sua própria história.

Existe realmente algo neste mundo mais terrível do que morrer por falta de algo melhor para fazer?

Yuu

— Então, você poderia, por favor, parar com as ameaças…? — Reclamei com toda a emoção que pude  reunir.

Duas sombras compridas se estendiam pelo telhado. O ar de Maio preenchido pelo crepúsculo estava limpo, mesmo bem acima do solo, e tênues ilusões caíam sobre os arredores. Mesmo para meus próprios ouvidos, minha voz soava como se estivesse murchando com o vento, fraca e frágil. Achei que algo devia ter acontecido porque o chão tremeu sob meus pés, mas então percebi que minhas pernas tremiam como geleia.

— Morrer, matar. Por favor, não diga palavras mortificantes tão casualmente…

— O que você disse?!

A garota na minha frente — Maria — ergueu a voz com raiva quando ela me lançou um olhar furioso. Era um olhar terrível.

Ela me apoiou contra a cerca e abriu bem a boca, como se estivesse ameaçando me comer naquele minuto. Ela parecia uma espécie de rã-touro hipertrofiada.

Lamentei não trazer nenhum equipamento de gravação. Se eu tivesse posse das partes deploráveis de sua fala que, poucos momentos atrás, incluíam o uso liberal de palavras indizíveis, imagino que a linguagem obscena seria refreada com bastante rapidez e eficácia.

Claro, eu realmente não faria isso. Mesmo agora, ainda pensava nela como uma amiga. Trair uma amiga era a única coisa que eu não queria fazer.

— Por favor, acalme-se… — eu disse, recuando. Infelizmente, isso foi como jogar óleo no fogo.

— Chigusa! Você acha que está em posição de dizer isso?!

Maria bateu o punho contra a cerca, respirando descontroladamente. Seu Soco do Sapo teve um  impacto tão explosivo que ameaçou abrir meus ouvidos4O Soco do Sapo é um dos golpes finais de Masaru Aoki no mangá de boxe Hajime no Ippo..

Quase me enrolei como um tatu ao som disso.

Ela tinha razão: quando alguém comparava nossa classificação relativa, eu não tinha o direito de reclamar. Não importa o quanto os valores sociais mudem, os fracos só podem seguir cegamente os  fortes.

E ainda assim…

— Eu só quero saber onde a Shia está…

Tentei conversar sobre as coisas.

Se eu pudesse falar, você entenderia — essas são palavras famosas. Elas deveriam ser um princípio  humano universal. Isso vale para todos:

Primeiros-Ministros e assassinos, editores e romancistas que escrevem o início de suas histórias bem depois prazo, cobradores e uma pessoa endividada à beira da falência.

Afinal, não temos razão para não entender depois de conversarmos sobre as coisas.

— Se ela não me ligar, terei problemas… Meu dinheiro…

— Essa é a única coisa que sai da sua boca — dinheiro, dinheiro, dinheiro! Não tem outra coisa que é importante para você?! — ela gritou comigo, fazendo-me recuar mais uma vez. Isso não soou como as palavras de alguém que alegremente pegaria emprestado o dinheiro de outra pessoa.

Eu cometi um erro? O que foi essa “outra coisa importante” que ela mencionou? Achando que era melhor fazer um balanço da situação, olhei ao redor.

Além do aglomerado de edifícios do centro da cidade elevando-se sobre os arredores como uma  floresta de brotos de bambu, um sol excepcionalmente grande da tarde derretia no horizonte.

Hoje, o mundo estava pintado de um tom de vermelho mais escuro que sangue fresco. Embora alguns possam alegar que a vermelhidão profunda e escura é arrepiante, para mim ela brilhou intensamente, como um diamante lapidado. Não é muito para me gabar, mas a vista do telhado da minha escola é, sem dúvida, uma daquelas coisas que não podem ser compradas com dinheiro.

Ao contemplar aquela vista espetacular do pôr-do-sol, pensei comigo mesma: nesta existência humana efêmera, o que é mais importante?

Dinheiro, é claro.

Não há nada que não possa ser comprado com dinheiro. No caso improvável de que algo inestimável existisse, não valeria um mícron nesta sociedade capitalista, então é o mesmo que não existir. Não é realmente nada para se gabar.

Um diamante lapidado? Nossa sociedade acredita mais em dinheiro vivo e frio do que jóias, então  esse tipo de coisa é bastante duvidosa.

Sim, eu tinha quase certeza de que não havia cometido um erro.

Sentindo-me aliviada, voltei-me para Maria.

— Se você não pode me dizer, eu realmente terei problemas. Estarei afundada em problemas até o pescoço. Fugir com dinheiro emprestado é uma ofensa grave no mundo de negócios de hoje.

Hoje em dia, mais e mais jovens estão desaparecendo à noite. Pessoas com muitos sonhos — ou, para ser franca, aquelas que desejam seriamente qualquer tipo de plano para suas vidas — são os principais alvos para empréstimos de dinheiro, embora recentemente tenham atrasado seus

pagamentos a uma taxa incomum. Só posso presumir que elas se juntaram nos bastidores e fugiram com minhas finanças.

Eu também fui menosprezada. Esta seria a única vez que uma garota que parece tão delicada e linda por fora quanto eu seria tão reprovadora.

— C-Como eu disse, é a Encruzilhada Aleatória!”

— Uhum.

— Com certeza ela desapareceu por causa daquela lenda urbana!

— Já ouvi o suficiente. — suspirei, sacudindo minha mão fracamente.

Maria tinha uma amizade muito forte com aquela garota sem rumo, e agora ela queria usar minhas finanças para si mesma.

Mesmo quando ela ganhava a vida como um sapo, tinha sonhos irrealistas de se tornar um cisne, portanto, ela contava com o dinheiro de outra pessoa.

Afinal, sapos são sapos. Ribbit, ribbit, ribbit. Eles cantam sua canção habitual, o artefato da existência simples e fácil que devem aspirar.

Todo aquele que não seja eu, deveria se tornar um sapo. Dito isso, se o mundo fosse um vilarejo de  cem sapos, eu o trocaria instantaneamente por um vilarejo humano.

É preciso ser um para conhecer o outro: um sapo para conhecer um sapo, e uma pessoa atolada em dívidas para conhecer o processo de pensamento de uma pessoa atolada em dívidas.

Assim, chamei e tentei falar com ela, apenas para ouvir que era por causa de alguma lenda urbana.  A chamada Encruzilhada Aleatória.

A cena: um cruzamento em uma área residencial, brilhando com a luz laranja de um espelho de  trânsito convexo. Se você descer o caminho à meia-noite de mãos dadas com seu namorado, uma quarta estrada aparecerá no final do cruzamento. Se escolher o caminho errado, nunca poderá voltar.

— Que assunto insignificante…

Não sei sobre aleatoriedade ou interlúdios românticos, mas prefiro ficar por dentro dos significados, mesmo quando se trata de como sou insultada. É normal ficar assustado com ocultismo até a escola primária. É bom pensar em encontros e ligações até que você esteja no ensino médio. Está tudo muito bem, mas prefiro ter meu dinheiro de volta.

— Maria, se não quiser ser franca comigo, posso ou não aumentar a taxa de juros do seu  empréstimo.

— Não acredito em você…! Morra! Desapareça!

Mais uma vez, ela usou um vocabulário mortificante. Minhas pernas tremeram sob mim.

Simplesmente não podia morrer e deixar as coisas como estavam, não quando não consegui receber o retorno médio de duzentos por cento do dinheiro que emprestei.

— Além disso, eu só peguei emprestado trinta mil. Por que chegou a cinquenta, não, cem mil?

— Foi de quarenta mil para quinhentos mil, para ser mais precisa.

— Isso é uma fraude!

— Eu expliquei a você sobre a taxa de juros quando emprestei. No momento em que estava colocando seu selo na promissória em branco, nada iria influenciá-la.

— De jeito nenhum… quero dizer, subiu tanto…

Sempre acontece assim. Os devedores são todos iguais. Quando pedem emprestado, o fazem com alegria, mas quando chega a hora de devolver o dinheiro, eles reclamam de tantas coisas triviais. Honestamente, isso me faz pensar se há um negócio em trair pessoas que emprestam dinheiro pela bondade de seus corações.

— Você pode consultar seus pais sobre o assunto. De minha parte, prepararei uma explicação sobre para que você planejou usar o dinheiro.

Maria havia pedido dinheiro emprestado para fazer uma viagem noturna com seu namorado secreto. Consegui salvar várias fotos do casal feliz na minha pasta de imagens — fotos que pareciam ter vários significados. Transmitir anexos de fotos do par de pombinhos amorosos seria uma questão simples.

—Ugh…

Maria, nervosa, agarrou-se à cerca e ficou imóvel.

Estava claro como o dia que nós duas estávamos bem acima do solo, até um macaco saberia disso. Se fosse um caso de tatu versus sapo, o tatu simplesmente rolaria e se espatifaria, seria o fim de tudo. Não demoraria nem três segundos para alcançar uma vitória fácil. E assim, mesmo que o fraco  só possa seguir o forte, estava disposta a chegar a um acordo por meio da conversa. Eu certamente apreciaria se Maria me ajudasse.

— Tudo que você precisa fazer é me dizer onde ela está. Tenho certeza de que não será nenhum  problema para você, Maria. Eu cuido do resto.

— Por que você está tão obcecada com a Shia…? Você já teve lucro o suficiente, então por que simplesmente não a deixa em paz…?

— Porque, você pergunta? Não somos amigas? — Eu disse com um sorriso.

Os devedores que devolvem dinheiro são bons amigos. No mínimo, eu os registro na minha lista de  amigos.

Por falar nisso, o princípio de “não os deixe viver, mas não os deixe morrer” é uma prática padrão na profissão conhecida como empréstimo de dinheiro. Só um tolo dispensaria amigos que produzem dinheiro. A amizade é bela quando é apoiada por uma realidade dura e fria, livre de ilusões frágeis.

— Você… — Me pergunto se Maria também se comoveu. Suas bochechas estavam ficando vermelhas.

Ela olhou para mim com olhos estreitos transbordando de emoção violenta e disse:

— Sua… puta!

De repente, um som soou, perfeitamente tonal e esteticamente agradável. Ela me bateu na bochecha. Ela me bateu.

No mesmo instante em que percebi esse fato, minha bochecha começou a doer.

— Er, uh… descul–

Maria parecia ter caído em si, pois apertou a palma da mão com que acabara de me bater de uma forma nervosa. Eu tinha certeza de que ela agiu por reflexo.

Ela deve ter sido uma garota pacífica antes. Entendi muito bem que ela não tinha intenção de começar uma briga. Ficou claro para mim que havia perdido toda a liberdade para negociação, então havia espaço mais do que suficiente em meu coração para levar em consideração as circunstâncias atenuantes.

Como eu era capaz de entender isso, fazer as pazes era fácil. Alguém que ficaria zangado com um  mero tapa não é uma pessoa decente, disso tenho certeza.

— Isso doeu.

— …Eek!

Enquanto eu acariciava minha bochecha, nossos olhos se encontraram e seu rosto ficou pálido.

Era como se ela estivesse olhando para um demônio odioso do inferno. Enquanto tremia de puro  medo, ela torceu o quadril como se fosse fugir.

Ela cambaleou para trás um passo e depois outro.

— Vamos ter uma conversa adequada, vamos?

— Aaaaaaaargh!

No momento em que estendi minha mão, ela soltou um grito e fugiu do telhado. O que diabos foi isso?

Não apenas ameaçada, mas também fui golpeada. Eu havia sido pisoteada. Fui

esmagadoramente a vítima aqui.

Eu realmente parecia a vilã?

Em pânico inacreditável, olhei para o céu noturno vermelho-sangue, que parecia algo de outro  mundo.

 


 

Tradução: Ouroboros

Revisão: n2ny

QC: Bruno.

 

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