O fraco som da chuva misturava-se com o som do ginásio.
Ao perceber isso, parei de cantar. Os colegas perto de mim olharam na minha direção. Em silêncio, eu observei as letras acima da plataforma, as quais diziam Cerimônia de Formatura; sou o único que está quieto.
É uma pequena cerimônia para a classe de formandos do ensino médio da ilha, mesmo que só tivesse apenas dez de nós.
Em reflexão, tamanha foi a rapidez que os anos voaram. Agora, a nossa hora de partir está em mãos. Passar bem.
Os meus colegas usavam os seus uniformes pela última vez hoje. Enquanto choravam ao cantar a música de formatura, eu ainda estava de boca fechada, ouvindo apenas o som da chuva.
Quando deixei a escola, o ar cheirava à primavera.
Com a caixa em formato de tubo do meu diploma em uma mão e com o guarda-chuva na outra, caminhei ao longo da estrada costeira. Agora há pouco, o vento marítimo estava tão frio que parecia um tapa na minha pele, mas, agora, misturou-se com algo mais suave. Vários barcos estavam flutuando no mar, deslizando lentamente, de volta da pescaria da tarde. Flores amarelo-brilhantes se abriam ao lado da rua, e flores rosas estavam desabrochando nas árvores cerejeiras.
A primavera chegara mais uma vez.
Eu não consigo acreditar nisso, de certa forma. Olhei para a vista da ilha, a mesma que sempre foi. Por que a primavera estava ali de novo, como se nada tivesse acontecido? Por que as estações ainda mudavam? Por que as pessoas lidavam com seus assuntos como sempre?
Afinal de contas, tem chovido constantemente desde então.
Enquanto observava os pescadores descarregarem suas cargas no porto, pensei: Mesmo assim.
Desde aquele dia, houve uma sutil mudança no rosto de todas as pessoas. É muito pequena, não mais do que uma gotinha de tinta em uma enorme piscina. Cor, gosto e cheiro não têm mais diferença, e eu não ficaria surpreso em descobrir que as próprias pessoas não perceberam. Eu posso ver, no entanto. O rosto delas e os seus corações definitivamente não são mais como eram há três anos.
— … Morishima!
Quando me virei diante do grito repentino, duas garotas de séries mais baixas desciam a colina na minha direção. Eu sabia quem eram, é claro — só tem uns trinta alunos em toda a escola —, mas nunca dissemos mais do que um olá. Os nomes delas são, uh — não consigo me lembrar. As garotas pararam na minha frente, e uma delas, nervosa, começou a falar.
— Hm, há algo que queremos te perguntar…
— É verdade que você está indo para Tóquio? — perguntou a garota de tranças.
Quando eu lhe disse sim, a garota de cabelo curto ao seu lado lhe deu uma cotovelada.
— Então, viu só? Eu te disse: hoje é a sua última chance.
Nós estávamos debaixo de uma pérgula ao lado da estrada, de frente um para o outro. Os sons da chuva e das ondas se misturavam.
— Vai lá; só pergunte, é agora ou nunca! — A garota de cabelo curto avisou, com um sussurro, e a de tranças balançou a cabeça, ficando vermelha.
Sem chance, pensei comigo mesmo, em choque. Ela está prestes a dizer que gosta de mim…?
— Hm, Morishima! — Juntando sua coragem, a garota de tranças olhou para mim com olhos lacrimejantes. — Há algo que eu sempre quis te perguntar!
Whoa, minha nossa. Não vi essa vindo. O que eu faço? As palmas das minhas mãos começaram a suar.
— Hm, então, ouvi dizer que em Tóquio…
Oh, droga. Como eu dou um fora nela sem a ferir? Me ajude, Mestre Nagi.
— … você é procurado pela polícia. É verdade?!
— Huh?
As duas garotas mais novas ficaram me observando com rostos animados e cheios de expectativa.
— Não sou, não.
— O quê? Mas… Eu sei que você não apresenta isso, mas dizem que tem um boletim e tudo mais! Dizem que tem conexões com a Yakuza em Tóquio!
Me senti um idiota; o que eu estava esperando? Fiquei um pouco aliviado e lhe dei uma resposta honesta, até porque não era como se eu estivesse tentando esconder aquilo.
— Essa coisa sobre a Yakuza não é verdade, mas eu fui, sim, preso. Tive uma audiência em Tóquio.
— Eeeeeee!
As duas pegaram as mãos uma da outra e deram pulinhos, alegres.
— Isso é tããããooo maneiro! Você é tipo um herói de filme!
— Obrigado — Eu disse com um sorrisinho sem graça.
Debaixo do céu chuvoso de março, o longo apito sinalizava que a balsa estava deixando o porto.
O meu bilhete era para a cabine da segunda classe, a mais próxima da parte inferior da embarcação. A viagem até Tóquio levaria mais de dez horas, e nós chegaríamos à noite. Esta é a segunda vez na minha vida que eu estou fazendo esta viagem, nesta mesma balsa. Levantei-me, indo em direção à plataforma do convés.
Me lembro daquele verão de dois anos atrás.
Quando acordei no telhado, na chuva, a polícia me prendeu naquela hora. Hina ainda estava dormindo debaixo do torii, e a polícia a pegou e a levou para algum lugar. Na delegacia, o Topetudo me disse que ela abriu os olhos logo depois, que não havia nada de errado fisicamente com ela e que, talvez, lhe deixariam viver com o seu irmãozinho de novo.
Do pequeno quarto para o qual me levaram até o escritório do promotor público, descobri que eu estava sob a suspeita de múltiplos crimes. Lei de Controle de Porte de Armas Brancas e de Fogo, artigo 3: violação da proibição contra o porte de uma arma de fogo. Código Penal, artigo 95: obstrução da execução de serviço público. “Disparando em alguém com uma arma” caiu sobe os artigos 199 e 203 do Código Penal, tentativa de homicídio. Correr na ferrovia dos trilhos foi uma violação do Ato de Operação dos Trilhos, artigo 37.
No entanto, a sentença dada a mim pelo Tribunal de Família foi, inesperadamente, liberdade. Eles levaram em conta o fato de que eu não tinha a arma de propósito e, sendo assim, determinaram que a gravidade de todo o incidente era baixa e que a minha inclinação à delinquência era pequena.
Quando me deixaram sair da detenção juvenil e eu finalmente voltei para a ilha, três meses já tinham se passado desde que eu fugi. Antes que eu percebesse, o verão tinha ficado para trás, e um traço de outono tomava conta do ar. Quando voltei desajeitadamente para casa, os meus pais e a minha escola me deram as boas-vidas de maneira estranha, mas calorosa. Eu me sentia tão acorrentado pelo meu pai e pela escola antes, mas, depois de voltar, o lar e a escola pareciam lugares naturais para se viver. Eu não era perfeito, nem os adultos. Todo mundo vivia dessa forma, com imperfeições e tudo, bruscamente batendo um no outro de vez em quando. Em algum momento ao longo do caminho, parei de ter problemas em aceitar isso.
E assim a minha vida de colegial na ilha começou mais uma vez.
Aqueles foram anos estranhamente silenciosos. Eu passava por cada dia como se estivesse andando sobre a superfície do oceano ou em algum lugar longe do chão. As palavras que as pessoas me diziam não chegavam até mim tão bem, e o que eu dizia não parecia alcançá-las também. Algumas coisas eu costumava ser capaz de fazer de maneira automática, mas agora já não conseguia mais. Adormecer sem ao menos perceber, comer cada refeição como se não fosse grande coisa, até mesmo apenas caminhar — por algum motivo, eu não conseguia fazer nada disso mais. Se não estivesse prestando atenção, eu quase colocaria a mão e o pé direito para frente ao mesmo tempo quando caminhava. Tropeçava nas ruas, esquecia o que me perguntavam na aula e congelava durante as refeições enquanto segurava os pauzinhos várias vezes. Toda vez que alguém me avisava sobre isso, eu colocava um sorriso no rosto e oferecia uma resposta calma:
— Desculpa, só fiquei distraído por um momento.
Fiz o máximo que podia para passar pela vida da maneira que devia, para que assim não preocupasse ninguém, para que eles pudessem ficar tranquilos. Isso aumentou apenas coisas como ser proativo quando se tratava de limpeza e ouvir com seriedade durante as aulas, e não evitar as pessoas — em outras palavras, se comportar muito como um aluno do fundamental obediente — e, mesmo assim, antes que eu percebesse, as minhas notas aumentaram, e eu fiz mais amigos. Adultos conversavam comigo com maior frequência também. Todas essas coisas eram apenas efeitos colaterais, no entanto; não era isso o que eu estava almejando. À noite, além do vidro da janela molhada, e de manhã, além do oceano cinza, eu continuava tentando sentir a presença dela. Continuava procurando o som da chuva, pelas batidas distantes daquela noite de verão.
Desta forma, eu estava cuidadosamente segurando a respiração até o dia da minha formatura. As minhas entrevistas com o oficial de detenção juvenil acabaram logo antes do fim do meu último ano de escola, e, então, a minha punição tinha acabado, deixando apenas o simples risco de falsificar o histórico pessoal se eu escrevesse Sem premiação/punição no meu currículo.
Quando o pôr do sol estava perto e os apitos das balsas passando uma pela outra ficaram mais frequentes, subi até o terraço do convés novamente. Respirei fundo, bebi do vento e da chuva fria. No horizonte, as luzes cintilantes de Tóquio estavam começando a aparecer.
Dois anos e meio, hein?
Murmurei as palavras alto, como se estivesse checando as divisões em uma escala. Muito tempo se passou, e quanto mais pensava naquele verão, mais as coisas que aconteceram se pareciam com uma ilusão. O que vi era lindo demais para ser verdade, mas os detalhes eram muito fortes e claros para serem uma ilusão. Estou ficando confuso de novo. Porém, a vista que finalmente apareceu me dizia que não era invenção da minha imaginação.
A paisagem de Tóquio mudou.
A Ponte do Arco-Íris está debaixo da água, e apenas quatro pilares apareciam do oceano, torres que deviam ter alguma significância. Os vários quadrados espalhados sobre a superfície da água, como se fossem blocos, eram todos prédios que não foram completamente submergidos. Esta é a nova aparência da Planície de Kanto, onde as chuvas persistentes causaram inundações por todo lugar. Agora, um terço da área de Tóquio estava debaixo da água.
Ainda assim, a cidade permanecia a capital do Japão. A vasta área baixa oriental estava abaixo do nível do mar, para começo de conversa; as suas funções de drenagem convencionais não foram capazes de aguentar as chuvas sem fim, e, aos poucos, por mais de dois anos, afundou no oceano. Durante este tempo, as pessoas se mudaram para o oeste, e, até agora, grandes diques ao redor de bacias de controle de inundação estão sendo construídos dos Rios Arakawa e Tone, os quais transbordaram. Mesmo quando o clima mudara tanto assim, as pessoas continuavam vivendo na área, como se essa fosse a coisa normal a se fazer.
Eu também estava de volta aqui.
Voltei com tudo que aconteceu naquele verão dentro de mim. Agora que completei dezoito anos, vou ficar aqui para sempre. E a verei mais uma vez.
O que Hina tem sentido enquanto vive aqui?
Enquanto eu observava a cidade se aproximando, considerava se há algo que eu podia fazer por ela.
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Me mudei para um apartamento perto da universidade.
Eu tinha apenas duas caixas de papelão cheias para me mudar, e as levei para o apartamento colocando-as em um carrinho e viajando por um bom tempo em um trem. Ouvi dizer que a pressa para se mudar para o oeste nos últimos dois anos aumentou o aluguel nesta área, mas um apartamento velho como este parecia acessível mesmo para mim, isso se eu trabalhasse em dois empregos de meio período. Esta área ficava perto do centro do Planalto Musashino, e a inundação quase não tinha a afetado.
Ouvindo a chuva, eu limpava o quarto e arrumava as minhas coisas sozinho. Quando terminei a minha refeição de macarrão instantâneo, o céu tinha começado a escurecer. O rádio via Internet estava dando a previsão do tempo para a região de Kanto para as próximas semanas. Era esperado que chovesse o tempo todo. A máxima estava projetada para ser em torno de quinze graus célsius. Já que a chuva não estava caindo com força, devíamos ser capazes de aproveitar as cerejeiras desabrochando por um tempo…
Deixando a reportagem entrar em um ouvido e sair pelo outro, pesquisei em um site de empregos no meu celular. O mundo está transbordado de empregos. Mas… Eu ainda não achei, pensei.
Ainda não achei.
Ainda não sei.
Durante os últimos dois anos e meio, depois de esgotar o meu cérebro com a dúvida, decidi passar o meu tempo na universidade no Departamento de Agricultura. Eu queria estudar algo que seria necessário nessa área agora que o clima mudou. Apenas ter um objetivo, por mais vago que fosse, parecia deixar as coisas um pouco mais fáceis para respirar. Eu ainda não tinha encontrado a coisa mais importante, no entanto. Eu queria saber o meu motivo para ir vê-la e o que podia fazer por ela.
— Oh.
Fiz um pequeno som surpreso. Durante a procura de emprego, parte do meu cérebro se lembrou de algo de repente. Falando em empregos de meio período, o site ainda está de pé? Tentei colocar a URL.
— Ainda está aqui!
A tela do meu telefone mostrou a imagem de um sol e as palavras Sol para você! com letras coloridas. Um sapo rosa em uma capa de chuva amarela dizia Garota 100% Sol! em um balão de diálogo.
É o site que fizemos para o negócio da Garota Sol. Quando digitei a senha para fazer login como administrador, ouvi um sino eletrônico.
Você tem um pedido, me dizia a tela. Surpreso, cliquei para ver o que era.
É um pedido de trabalho para a Garota Sol de quase dois anos atrás.
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— Minha nossa, você veio sozinho?
Quando ela me viu de pé do lado de fora da porta da frente, a Senhora Tachibana pareceu confusa.
— Onde está a Garotinha Sol? — perguntou ela, um tanto decepcionada, e eu expliquei, apressado:
— H-Hm, ela não é mais uma garota sol. Eu só queria te avisar…
— Você veio só para me dizer isso? Todo o caminho até aqui?
— Sim…
Claaaang, claaaang. O som de casas sendo construídas ecoava pelo corredor do complexo residencial. Esta área ficava perto do Rio Arakawa, e ainda que não tivesse sido submersa, eles estavam construindo um enorme dique nas proximidades.
— Bem, a minha casa não é tão grande, mas entre um pouco.
O apartamento da Senhora Fumi tinha cerca do dobro do tamanho do meu, mas ainda era significantemente menor do que a casa tradicional japonesa que visitamos antes. Havia uma combinação de sala de estar e de jantar com cerca de 140 pés quadrados, com apenas um quarto no estilo japonês ali perto. Eu conseguia ver o dique que eles construíam através da janela de alumínio; os pedaços amarelos de equipamento pesado que se moviam ao redor daquilo pareciam miniaturas.
Havia várias fotografias na sala. Um homem idoso, que provavelmente é o seu falecido marido. Uma foto alegre de família. O casamento do seu neto. Apenas o cheiro de incenso vindo do pequeno altar budista é o mesmo que o daquela vez durante o Obon.
A Senhora Fumi colocou uma bandeja cheia de doces na minha frente.
— Oh, por favor, não se incomode!
— Não precisa ser acanhado; você é jovem — disse ela, sentando-se na minha frente, do outro lado da mesa. Eu vim para visitá-la, mas não consigo pensar em nada para conversar. Mesmo assim tentei manter a conversa seguindo.
— Hm, você se mudou, não é? O local que visitamos era mais na direção de Shitamachi…
— Sim. Aquela área inteira está debaixo da água agora — disse a Senhora Fumi, como se não fosse grande coisa para ela.
— Sinto muito… — pedi desculpas, sem pensar.
— Por que está se desculpando?
Ela parecia intrigada, mas não consegui olhar direto para ela; abaixei os meus olhos e vacilei:
— Não, é…
Que direito eu tenho de falar? Comecei a querer confessar tudo: Fui eu que roubei o céu azul de Tóquio. As pessoas perderam suas casas por minha culpa; foi a minha decisão egoísta que tirou o sol de todos. Mas o que de bom viria se eu contasse? Sei que só a confundiria.
— Você sabia disso…? — perguntou a Senhora Fumi, de repente, a sua voz foi gentil, e eu levantei a cabeça. Enquanto ela continuava, tirou uma Choco Pie da bandeja e a abriu. — Parte de Tóquio costumava ser um oceano. Até o período Edo… faz pouco tempo.
— Huh…?
— Na época em que chamavam essa cidade de Edo, a cidade em si era uma enseada do oceano, sabia? “Entrada da Enseada”. Tóquio era a entrada para a enseada. As pessoas e o clima mudaram a terra, pouco a pouco.
A Senhora Fumi me entregou a Choco Pie que abriu. Por algum motivo, parecia como se ela estivesse me entregando algo importante junto.
— Então, sabe, no fim, as coisas apenas voltaram ao normal. Pelo menos é isso o que penso às vezes.
Enquanto falava, ficou olhando para o dique do outro lado da janela, e a sua expressão estava bastante saudosa. Sem conseguir encontrar as palavras certas, eu observava o seu perfil enrugado.
Apenas voltou ao normal…?
Me pergunto o que um certo alguém diria sobre isso. Eu decidi que queria descobrir.
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— O que há com você? Esteve pensando sobre aquela coisa esse tempo todo? Você até pode já estar começando a faculdade, mas ainda não passa de um garoto.
Enquanto falava, o homem de meia-idade na minha frente batia num teclado em uma demonstração dramática do quão ocupado estava.
— O que quer dizer com “aquela coisa”…? — protestei.
Eu pensei que esse cara pudesse entender, pelo menos, por isso fui em frente e contei. E ele está apenas fazendo pouco de mim.
— Esses jovens de hoje em dia. Vocês se tornam mais incorrigíveis a cada ano. Acho que o Japão já não tem mais salvação.
— Bem, quero dizer, naquela vez nós…
— Você acha que as coisas estão assim hoje por causa de vocês? Está dizendo que vocês mudaram o mundo para sempre?
Revirando os olhos, ele enfim os tirou da tela e focou em mim. Puxando os seus óculos da moda — Embora, tenho certeza de que tenham lentes com prescrição. — para cima da cabeça, estreitou os olhos pequenos e normalmente frívolos.
— Mudaram merda nenhuma, idiota. Se recomponha logo.
Era o Senhor Suga, usando a mesma camisa velha apertada e me insultando com a sua voz preguiçosa.
— Pare de ficar fantasiando e abra os olhos para a realidade, pode ser? Vida real. Ouça, vocês parecem ter a ideia errada. Não importa quanto tempo passe pensando e olhando para o próprio umbigo, você não vai descobrir nada aí dentro. Toda a coisa importante está do lado de fora. Não olhe para si mesmo; olhe para as outras pessoas. Você acha que é tão especial assim?
— Não, não era isso que eu…
O telefone do Senhor Suga tocou, e ele o pegou.
— Ei — disse ele. Então o empurrou na minha direção, mostrando-me a tela.
— Veja só! Eu tive um encontro de pai e filha um tempinho atrás!
— Uou…! — exclamei.
A foto na tela era uma selfie borrada do Senhor Suga com a Moka ao seu lado; ela tinha crescido muito. O Mestre Nagi e a Natsumi também estavam lá; ambos estavam com poses de lado fazendo o sinal de paz e amor. Nagi era um garoto impressionante para começo de conversa, mas agora ele estava mais alto e magro, era a imagem de um príncipe de verdade. Ele já estava na escola secundária. Natsumi sempre foi bonita, mas agora o seu sorriso maroto parecia mais maduro, e a sua aparência estava ainda mais devastadora e extraordinária.
— Natsumi e Nagi foram juntos também, não que alguém tenha pedido para que fossem. Esses dois são bem amigos agora, embora eu não saiba te dizer o porquê…
Mesmo enquanto resmungava, o Senhor Suga parecia feliz. Ele e a sua filha ainda não estavam vivendo juntos, mas a relação com os pais da sua esposa não era ruim, e parecia que havia boas chances de ela ser capaz de viver com ele em um futuro próximo, dependendo de como o seu trabalho se saísse. A K&A planejamentos se mudou para um quarto em um prédio de apartamentos, e era uma agência de edição decente agora, com três funcionários. O fato de que o seu presidente, o Senhor Suga, parecia ocupado podia não ser completamente uma atuação também.
Ele abruptamente passou a me dar uma lição de moral:
— Garoto, pare de ficar se preocupando com coisas que não pode mudar e vá ver aquela garota, já. Você disse que não a vê desde aquele dia? Então o que diabos tem feito?
— Bem, então, sabe… Eu estava em liberdade vigiada o tempo todo, por isso não podia causar problemas para ela, e mesmo que tentasse entrar em contato, ela não tem um celular. Além disso, sobre encontrar ela, eu meio que estou, tipo, nervoso, ou quero uma razão para isso, e não sei realmente o que dizer…
Então um sino tocou. Eu conhecia esse som. Sem chance, pensei, o meu coração acelerou e, em seguida, uma bola preta e branca entrou caminhando devagar. Ele lentamente subiu na mesa do Senhor Suga com a ajuda da cadeira, se sentou com força e olhou para mim.
— Chu… Chuva? Cara, você cresceu…
Era o Chuva, ainda que fosse um gatinho na última vez que o vi. Quando me encontrei com ele pela primeira vez naquela viela, ele era apenas um pouco maior do que um smartphone, mas agora estava enorme, tipo um lutador de sumô. Ele parecia estar pesando cerca de trinta libras, e os seus olhos preguiçosos e de aparência irritada eram idênticos ao do Senhor Suga.
O Senhor Suga tirou os olhos de mim, então voltou a digitar. Ver aquelas expressões lado a lado me pareceu as de um pai e um filho.
O Senhor Suga balançou a mão para mim, me mandando sair.
— Vai lá. É melhor ir agora. Simplesmente vá até a casa dela logo; você está atrapalhando as operações aqui!
— Me desculpe por incomodar — Eu lhe disse.
Enquanto eu saía do escritório, os outros membros da equipe me disseram:
— Venha de novo qualquer hora dessas, pode ser?
Eu comecei a querer lhes perguntar se eles vão ficar bem trabalhando com um chefe como ele.
— Ei.
Justo quando eu estava prestes a abrir a porta e sair, o Senhor Suga me chamou, então me virei. Ele exalou com um sorriso sem graça e olhou direto para mim.
— Só… não deixe isso te abalar, cara.
— Huh?
— Sabe, o mundo… sempre foi zoado.
De certa forma, eu podia ver que dizer isso tirou um grande peso dos ombros dele.
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Depois de deixar o escritório do Senhor Suga, eu entrei na Linha Yamanote na Estação de Shinjuku. Não era mais um círculo; agora tinha o formato em C, interrompida pela área alagada. As extremidades do C eram a Estação de Sugamo e a de Gotanda, e táxis aquáticos saíam de cada uma. Eu queria pegar o caminho mais demorado, por isso desci na Gotanda, atravessei o píer e me transferi para um barco de dois andares. O segundo andar do barco ficava a céu aberto, e, como eu, alguns passageiros estavam cobertos por capas de chuva, olhando para a água.
As conversas diárias passavam pelos meus ouvidos: “O que você quer para o almoço?”, “Há uma nova loja aberta” e “Estou ansiosa pela festa de observação das flores neste final de semana”. Uma chuva leve como seda estava caindo uniformemente por todo o mar interior. Talvez pelo fato de o lado leste da rota ter sido um distrito residencial no passado, os telhados de vários edifícios ficavam à mostra sobre a superfície da água. A vista me lembrava um rebanho de ovelhas dormindo em um pasto espaçoso. Liberados do seu longo serviço respeitoso, os vários telhados pareciam, de certa forma, aliviados.
“Próxima parada, Tabataaa, agora parando em Tabata”
Ouvi uma voz tranquila fazendo o anúncio de bordo. Para lá da chuva, eu conseguia ver a rua de ladeira que levava até o apartamento da Hina.
Eu tirei a minha capa de chuva, abri o guarda-chuva e caminhei ao longo da rua estreita e escorregadia.
Andei por aquela rua diversas vezes naquele verão. Havia uma fileira de cerejeiras no aterro à minha direita, com suas flores não desabrochadas por completo, e uma vista panorâmica abria-se sob mim na esquerda. Antes, era uma vista movimentada com ferrovias e prédios, mas, agora, era um mar interno, e ia até o Oceano Pacífico. Aqui e ali, topos de todos os tipos de edifícios apareciam acima da água. A elevada ferrovia do Shinkansen seguia em linha reta, quase como um enorme píer. Hera verde e uma floração de ervas daninhas se emaranhavam pelos vastos e limpos blocos de concreto, clamando a nova posse sobre eles.
— Era um oceano, para começo de conversa… — murmurei alto, olhando para a vista. — O mundo sempre foi zoado…
Eu ouvia a chuva atingindo a terra e os cantos dos pássaros da primavera. Motores dos táxis aquáticos e o barulho distante de carros e trens. Os meus próprios passos, os tênis sobre o asfalto molhado.
Tirei um anel do bolso e o examinei. Era pequeno e prateado, com a forma de uma asa.
Se eu a ver novamente… o que devo dizer?
— Ninguém tem culpa por o mundo estar assim — murmurei as palavras em voz alta, como um tipo de teste. Está tudo bem dizer isso? É o que ela vai querer ouvir? Tóquio começou como um oceano. O mundo sempre foi louco, desde o começo.
De repente, as aves aquáticas começam a voar, e os meus olhos as seguiram.
Então o meu coração pulou.
Ela estava lá, no topo daquele declive, sem um guarda-chuva, com as mãos juntas.
Ela estava rezando, os seus olhos, fechados.
Em meio à chuva sem fim, Hina encarava a cidade afundada e rezava por algo. Desejando por este algo.
Não, está errado, eu pensei, e foi como acordar de um sonho.
Estava errado; não era verdade. O mundo não começou louco. — Nós o mudamos. Naquele verão, lá no céu, eu fiz uma escolha. Escolhi Hina ao invés do céu azul. Escolhi a vida dela ao invés da felicidade da maioria. E nós fizemos um desejo. Não importava o que o mundo se tornasse, nós apenas queríamos viver nossas vidas juntos.
— Hina! — gritei.
Ela olhou para mim. Naquele momento, uma forte rajada de vento fez as pétalas de cerejeira voarem e tirou o capuz da cabeça dela. O seu longo cabelo preto, amarrado em maria-chiquinha, flutuou ao vento. Os seus olhos estavam cheios de lágrimas, e ela mostrou um sorriso enorme. Assim que o fez, o mundo mostrou uma cor brilhante.
— Hodaka! — gritou ela, e eu joguei o meu guarda-chuva de lado. Nós dois corremos ao mesmo tempo. O rosto dela se aproximava, balançando para cima e para baixo. Então, quando ficou bem na minha frente, ela pulou nos meus braços e se agarrou em mim. O impulso dela me surpreendeu, e eu girei com ela em meus braços para evitar que caísse. Depois, ficamos de pé, encarando um ao outro. Ainda sorrindo, recuperávamos o fôlego.
Os olhos grandes da Hina encaravam-me diretamente de uma altura diferente da de antes, e eu percebi pela primeira vez que eu tinha crescido. Ela estava usando o seu uniforme de colegial, e, naquele momento, me caiu a ficha de que ela realmente faria dezoito anos. De repente, preocupação fez-se presente no rosto dela, e os seus dedos tocaram a minha bochecha.
— Hodaka, qual é o problema? Está tudo bem?
— Huh?
— Você está chorando.
Eu percebi que lágrimas escorriam dos meus olhos como a chuva.
Quão extraordinária você é? Também está chorando.
E quão inútil eu sou? Eu que queria perguntar se você estava bem.
Eu sorri para ela, apertei suas mãos, tomei uma decisão extremamente firme, então falei:
— Hina, nós…
Não importa o quão encharcados ficamos pela chuva, nós estamos vivos. Não importa o quanto o mundo mude, nós viveremos.
— … Nós ficaremos bem.
O rosto da Hina brilhou, como se tivesse sido iluminado pelo sol.
Gotas de chuva caem sobre nossas mãos juntas em uma carícia suave e gentil.
Tradução: Taiyo
Revisão: Taiyo
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