O Tempo Com Você

O Tempo com Você – Cap. 01 – O Garoto que Deixou a Ilha

Para começar, pensei em perguntar online.

Abri o Yahoo! Respostas no meu celular, olhei ao redor — só por precaução — e digitei a minha pergunta.

Sou um cara no meu primeiro ano do ensino médio. Procuro por um emprego de meio período que pague bem em Tóquio. Há algum lugar que te contrate mesmo que não tenha uma identidade de estudante?

 

Hmm, será que assim vai funcionar? A internet podia ser dura, e eu tinha a sensação de que acabaria sendo enganado feio. Mesmo assim, uma pesquisa poderia te levar tão longe, e eu não tinha ninguém mais para perguntar. Justo quando estava prestes a clicar no botão de “Postar”, um anúncio de bordo começou.

“Uma chuva extremamente forte está prevista sob o oceano. Se estiver no convés, para sua própria segurança, por favor, volte para dentro. Repito, uma chuva extremamente pesada está prevista…”

— Yessss — murmurei para mim mesmo. Agora eu poderia ter o convés todo só para mim. Já estava ficando cansado de continuar sentado na cabine de segunda classe, a qual era literalmente uma dor na bunda, e eu queria sair para o convés, antes que outros passageiros voltassem, e ver o começo da chuva. Enfiei o meu celular no bolso das minhas calças jeans e me dirigi até as escadas, correndo.

Essa balsa até Tóquio tinha cinco andares, e o meu bilhete de segunda classe, que era mais barato, me reservava um lugar em um quarto no nível mais baixo, onde o barulho do motor era mais alto, e todo mundo tinha que dormir espalhado no piso de tatame. Observando as cabines da primeira classe, as quais pareciam confortáveis, com o canto do olho, subi dois andares pela escadaria interna, então saí em um corredor que percorria a parede externa da embarcação. Uma multidão de pessoas estava acabando de voltar do convés, pelo menos foi o que assumi.

— Disseram que vai ter mais chuva.

— Justo quando estava finalmente começando a ficar claro…

— O verão anda meio louco nos últimos dias. Está sempre chovendo.

— Mesmo fora da ilha, os tufões são quase constantes.

Todos reclamavam. Enfiando a cabeça e dizendo “com licença”, abri caminho até em cima por entre a multidão no corredor estreito.

Quando cheguei no último jogo de escadas e estiquei a cabeça para ver o terraço do convés, um vento forte me atingiu no rosto. O convés largo já estava deserto, brilhando com a luz do sol. Bem no centro, um poste de cor branca estava apontando para o céu como um poste de sinalização. Com a minha ansiedade aumentando, atravessei o convés vazio e olhei para cima. Nuvens cinza se aproximavam, cobrindo o azul.

Plish. Uma gota de chuva caiu na minha testa.

— Aí vem ela! — gritei, antes que pudesse me conter.

De uma só vez, inúmeras gotas caíram do céu, direto nos meus olhos, e, logo depois, gotas grandes despencavam com rugidos trovejantes. O mundo iluminado pelo sol de agora há pouco foi rapidamente colorido por uma pintura monocromática em tinta nanquim.

— Uaaaauuu!

A chuva engoliu tão bem o meu grito que nem mesmo eu pude ouvi-lo. Eu estava aproveitando cada segundo. O meu cabelo e roupas estavam ficando pesados e encharcados, e até mesmo os meus pulmões estavam sendo preenchidos por umidade. Comecei a correr e pular o mais alto que podia, como se o céu fosse uma bola de futebol e eu estivesse tentando levá-lo até o gol. Abri meus braços e girei para criar um redemoinho. Abri bem a minha boca e bebi a chuva. Enquanto corria como um lunático, coloquei a minha alma para fora e gritei todas as palavras que estavam presas na garganta. Todas foram lavadas pela chuva, sem serem vistas nem ouvidas. Um calor surgia no meu peito. Meio dia após ter fugido furtivamente da ilha, enfim estava vivenciando uma sensação genuína de liberdade. Olhei para a chuva, ofegante.

O que havia sobre a minha cabeça era uma chuva muito maior do que uma massa de água.

Eu não conseguia acreditar no que via. Uma inundação inteira estava caindo do céu, como se uma piscina gigantesca tivesse sido virada de ponta cabeça. Está se retorcendo, quase como um dragão, eu pensei, quando um impacto violento me derrubou no convés. Parecia que eu estava debaixo de uma cachoeira enquanto um dilúvio pesado batia em minhas costas.

A balsa gemia, mexendo-se sem parar. Oh, droga! Quando o pensamento veio a mim, eu já estava escorregando em direção à água, e o ângulo do convés estava ficando cada vez menor. Estendi a mão, tentando me agarrar a algo, mas não havia nada em que eu pudesse me segurar. Não pode ser, vou cair. Naquele momento, alguém segurou o meu pulso e fez com que eu parasse. A balsa começou a se endireitar devagar.

— O… — Eu voltei aos meus sentidos — Obrigado…

Foi por pouco, algo vindo direto de um filme de ação. Levantei os olhos, passando pelo meu pulso, até aquele que o segurava, e vi um homem: alto, esguio, eriçado e de meia-idade. Sorrindo fracamente, ele soltou a minha mão. A sua camisa era de um vermelho brilhante diante da luz do sol que aparecia de novo.

— Essa foi uma chuva forte — murmurou ele, aparentando não se importar muito.

Tinha sido assombroso, mesmo. Eu nunca vi uma pancada de chuva tão grande como essa antes.

Vários raios de luz passavam pelas nuvens agora.

Eu já tinha ouvido aquela música antes. Era clássica, e eu tinha quase certeza de que era uma música de fundo de algum jogo antigo. Você controlava um pinguim e tentava pegar um peixe enquanto você escorregava sobre o gelo. Ah, é mesmo, às vezes focas esticavam a cabeça por buracos no gelo para ficar no caminho do pinguim. Se não calculasse o tempo certo do pulo, o pinguim tropeçaria…

— Sabe, isso aqui é algo bem saboroso.

Levantei a cabeça. O cara de meia-idade que se sentou à mesa em minha frente estava alegremente aproveitando uma refeição de galinha Nanban. Ele usava uma camisa vermelho-brilhante apertada e tinha um rosto fino e estreito, olhos inclinados com pálpebras únicas. O seu cabelo ondulado e barba por fazer o marcavam como um óbvio espírito livre, exatamente como eu imaginava que um — ligeiramente esboçado — adulto de Tóquio seria. O homem estava enfiando a comida em sua grande boca com enormes garfadas, chupando a sopa de misso de porco e pegando pedaços de galinha com seus pauzinhos descartáveis. Os meus olhos foram atraídos pelos pedaços de carne frita cobertos pelo molho tártaro.

— Garoto, tem certeza que não quer um pouco?

— Tenho. Não estou com fome. — respondi, forçando um sorriso, mas então o meu estômago roncou bem alto. Eu fiquei vermelho, mas…

— Oh, sério? Eu me sinto mal por deixar você pagar a conta. — disse o homem, mesmo que a forma com que ele enfiava o frango na boca indicasse o contrário.

Nós estávamos sentados de frente um para o outro no restaurante da balsa. O cara de camisa vermelha estava comendo um almoço de luxo, enquanto eu me concentrava na música ambiente do restaurante na tentativa de afastar a minha mente do estômago vazio. Me ofereci para lhe pagar uma refeição para agradecer por ter me salvado, mas esse tempo todo fiquei pensando que escolher o item mais caro do cardápio — 1.200 ienes — tinha sido desnecessário. Adultos não deviam ser um pouco mais discretos em situações como esta? Decidi permitir a mim mesmo um limite de quinhentos ienes por dia em comida, e, graças a isso, já estava seriamente no vermelho logo no primeiro dia. Mas mesmo quando esses pensamentos passaram pela minha cabeça, tentei responder com educação:

— Não, não, não se sinta mal! Você salvou o meu traseiro lá atrás e…

— Sim, nem me fale. — O Camisa Vermelha praticamente me interrompeu, apontando os seus pauzinhos para mim — Aquilo lá podia ter ficado bem feio, garoto… oh.

O Camisa Vermelha encarou o nada, ponderando sobre algo com um olhar muito complicado no rosto. Devagar, mostrou um sorriso largo.

— Ei, parando para pensar, essa é a primeira vez que salvei a vida de alguém!

— Hm… — Eu tinha um mal pressentimento sobre isso.

— E me parece que também tem cerveja no cardápio, né?

— Quer que eu vá pegar?

Largando mão de tudo, fiquei de pé.

Todas as gaivotas de cauda preta estavam gritando ao mesmo tempo, circulando tranquilamente a uma distância tão pequena que eu poderia tocá-las se estendesse o braço. Distraído, eu as observava de um corredor da balsa enquanto mordiscava uma barra de proteína da CalorieMate que era o meu jantar, fazendo-a durar.

— Não acredito que tem um adulto vivendo às minhas custas…

O chope tinha sido um belo 980 ienes de cair o queixo. Me dê um tempo, pensei. Era tão superfaturado que parecia surreal. Eu tinha saído de casa naquele mesmo dia, mas já havia usado um equivalente de quatro dias do meu orçamento com um velhote que eu sequer conhecia.

— Tóquio é assustadora. — murmurei, mas essa era a realidade. Enfiei a embalagem vazia da CalorieMate no bolso e peguei o meu celular, abri o Yahoo! Respostas novamente e postei a pergunta que digitei antes. Eu precisaria de um trabalho de meio período, não importasse o quê. Qual é, Melhores Repostas.

Plip. Uma gota de chuva caiu na tela do meu celular. Quando olhei para cima, uma chuva dispersa estava caindo mais uma vez. Além dela estava Tóquio, onde as luzes da noite estavam começando a aparecer. A Ponte do Arco-Íris estava coloridamente iluminada e se aproximava aos poucos, como o título de abertura de um jogo. Naquele momento, minha frustração com o homem estranho e as minhas preocupações com o dinheiro desapareceram, sem deixar traços. Enfim eu estava ali.

Estremeci de euforia. Eu tinha conseguido. A partir desta noite, estaria vivendo naquela cidade da luz. Mal podia esperar um segundo sequer pela vida que me esperava lá, e o meu coração estava batendo cada vez mais rápido.

— Aí está você, garoto.

De repente, ouvi uma voz indiferente, e a minha alegria se esvaiu como um balão perdendo todo o ar. Quando olhei para trás, o Camisa Vermelha tinha acabado de aparecer no corredor. Ele ondulou a cabeça com preguiça e olhou para as luzes da cidade.

— Quase lá, até que enfim — disse ele. — Ei, você é da ilha, né? O que vai fazer em Tóquio? — perguntou, se aproximando de mim.

Engoli em seco, mas não tinha uma resposta pronta.

— Uh, estou visitando parentes.

— Em um dia de semana? E a escola?

— Oh! Um, é, a minha escola dá início às férias de verão mais cedo…

— Oh, é mesmo?

Por que ele estava sorrindo? O Camisa Vermelha olhou direto para o meu rosto de maneira rude, como se tivesse encontrado um inseto estranho, e eu desviei os meus olhos.

— Bem, ouça, se encontrar algum problema na cidade… — Ele me entregou um pedacinho de papel. Um cartão de visitas. Por reflexo, aceitei. — Só entrar em contato. A qualquer hora.

K&A Planejamento (Ltd.). Diretor Executivo Keisuke Suga, era o que dizia. Quando olhei para os caracteres, respondi em silêncio: Não pode ser verdade.

 

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Nos últimos dias que se passaram, eu não sabia dizer quantas vezes sussurrei para mim mesmo que Tóquio era assustadora — as pessoas estalavam a língua para mim, fazendo com que eu começasse a suar frio e ficasse vermelho de vergonha.

A cidade era vasta, complicada, desconcertante e indiferente. Me perdi na estação de trem; peguei o trem errado; me esbarrava nas pessoas não importava onde andasse; ninguém me respondia quando eu pedia por direções; outras pessoas me abordavam enquanto tentavam me recrutar para sabe-se lá o quê; eu estava assustado demais para ir às compras em locais que não fossem lojas de conveniência; fiquei chocado ao ver uma aluna do ensino fundamental, usando o uniforme da escola, deslocando-se de trem sozinha. E toda vez que eu me lembrava do quão oprimido eu estava, me dava vontade de chorar.

Eu tinha uma vaga ideia de que Shinjuku era o centro de Tóquio, por isso fui para lá para procurar por um emprego. Quando finalmente cheguei, uma tempestade forte me deixou encharcado. Juntei coragem para entrar em um mangá café, pois eu queria tomar um banho, mas o funcionário fez um tsk para mim e me disse para não deixar o piso molhado. Ainda assim, decidi ficar naquele café.

Tentei procurar por trabalhos de meio período em um computador de dentro de um cubículo que fedia a algo podre, mas não havia nenhum anúncio que dizia “Identidade não requerida”. A maioria das respostas no post do Yahoo! — O meu último recurso — eram coisas como: “Isso é um insulto aos trabalhos”, “Eu acho que temos um fugitivo aqui lol lol lol lol” e “Esta é uma violação do Artigo das Leis Trabalhistas. Morra”.

Entre as zombarias, encontrei uma informação de verdade:

“Você não precisa de uma identidade para trabalhar como um garoto de recados em um sex shop”

Então, no desespero, fui em busca de várias lojas dessas e marquei entrevistas, mas, quando chegou na hora, um cara relativamente jovem, mas de aparência severa, apenas gritou para mim:

— Só sonha! Por que contrataríamos alguém sem identidade?! Acha que somos o quê, punk?

E eu voltei correndo ao café, quase chorando. Na realidade, estava tão assustado que chorei um pouquinho.

E, antes mesmo que percebesse, cinco dias se passaram.

Isso não vai dar certo. Não posso me virar desse jeito. Em meu estreito cubículo do mangá café, chequei o caderno que eu usava como caderneta de gastos. O custo para passar a noite naquele lugar era de dois mil ienes, e somando com deslocamento e gastos com alimentação, já tinha usado mais de vinte mil ienes desde que saí da ilha. Uma semana atrás, o meu fundo de fuga de cinquenta mil ienes parecia quase infinito para mim; agora eu estava furioso com o meu eu do passado por ser tão imprudente.

— Tudo bem, só tem uma forma de lidar com isso! — Eu disse bem alto, fechando o caderno. Minhas costas estavam escoradas contra a parede, então comecei a juntar os meus pertences espalhados pelo cubículo e os enfiei na minha mochila. Eu estava saindo do café. Precisava guardar dinheiro. Até encontrar um trabalho de meio período, não passaria a noite em um local fechado. Era verão, e dormir na rua por três noites não devia ser complicado. Me apressei para sair de lá antes que a minha decisão enfraquecesse. Atrás de mim, a TV presa na parede do café avisava, sem ânimo:

O número de chuvas fortes superou a alta histórica do ano passado por uma grande margem, e é previsto que sejam ainda mais frequentes em julho. Quando for sair, seja para ir às montanhas, à praia, ou até mesmo às áreas urbanas, tome bastante cuid—”

Eu precisava de um local onde pudesse ficar abrigado da chuva e, com sorte, passar a noite. Havia pérgolas nas praças e espaços debaixo dos viadutos dos trens, mas outras pessoas já tinham chegado neles primeiro. Fiquei vagando pelas ruas por mais de duas horas, com a mochila pesada nas costas, a qual tinha tudo o que era meu, debaixo da minha capa de chuva. Havia passado das nove da noite, e as confortáveis lojas de departamento, livrarias e lojas de CD, onde eu poderia ficar um tempo, já estavam fechadas. Se eu me instalasse junto a uma parede de estação de trem ou de uma loja de varejo de eletrônicos, os guardas de segurança me colocariam para correr na mesma hora. Isso não me deixou outra opção a não ser encontrar um lugar para ficar na rua, e parecia não haver nada disponível em lugar algum. Por outro lado, ir muito longe da estação me deixava desconfortável, então, no fim, continuei dando voltas e mais voltas ao redor da mesma área.

Como resultado, esta já era a quarta vez que eu passava pelas luzes espalhafatosas do portão para Kabuki-cho. Eu já estava ficando muito cansado com toda aquela caminhada, e os meus pés estavam dormentes. Eu suava, o que tornava úmido e nojento debaixo da capa de chuva. A minha fome era intensa.

— Com licença — De repente, alguém bateu no meu ombro, e eu me virei para ver o policial ali. — Você já estava andando por aqui antes também, não estava?

— Huh…?

— O que está fazendo a essas horas? Está no ensino médio?

Fiquei pálido.

— Ei, espere aí!

Ouvi um grito atrás de mim. Os meus pés começaram a correr antes que eu pudesse pensar direito. Corri pela multidão, sem olhar para trás. Sempre que me batia em alguém, eles gritavam para mim:

— Isso dói, maldito!

— Vá para o inferno!

— Pare aí mesmo! Garoto de merda!

Eu passei correndo ao lado de um enorme cinema, na busca de um lugar com menos iluminação pública quase que por instinto. Com o tempo, as vozes foram desaparecendo à distância.

Clink. O fraco som de uma latinha vazia rolando no chão chegou até o local em que eu estava sentado, encolhido, e levantei a cabeça, então vi um par de olhos verdes redondos brilhante em meio ao breu. Pertenciam a um gato, que era magro e de pelugem maltrapilha. Nós estávamos a um local bem longe da rua principal, com uma série de edifícios conectados por beirais baixos. Vários restaurantes estavam lado a lado, e suas luzes, apagadas. As portas já tinham desaparecido da entrada, e eu estava sentado dentro de uma das entradas estreitas. Em algum momento, caí no sono.

— Venha aqui, gatinho. — sussurrei, e ele respondeu com um miado rouco. Parecia que era a minha primeira conversa decente com alguém há eras, e só isso já foi o suficiente para fazer com a parte interna do meu nariz formigasse. Peguei minha última CalorieMate do bolso, quebrei em duas e entreguei uma das metades para o meu novo amigo. O gatinho esticou o nariz para frente, cheirando-a. Quando coloquei a comida no chão, ele olhou para mim firmemente por um momento, quase como se dissesse obrigado, então começou a devorá-la. Ele era preto, como um pedaço da própria noite, exceto pelo branco ao redor dos seus pés e do seu nariz, o que me lembrava meias e máscara. À medida em que olhava o gatinho, coloquei o resto da CalorieMate na minha boca e mastiguei lentamente.

— Tóquio é assustadora…

O gatinho estava focando em sua refeição, por isso não respondeu.

— Mas não quero voltar para casa… Não importa o quê.

Enfiei a cara entre os joelhos novamente. Eu conseguia ouvir os sons baixinhos do gatinho comendo, o da chuva batendo contra o asfalto e uma sirene de ambulância ao longe, tudo misturado. A dor nos meus pés devido à caminhada que tive enfim tinha passado, e eu adormeci de novo.

— Eek! Tem alguém aqui!

— Huh, é sério? Uou, tem mesmo!

— Agh, qual é a desse garoto? Acho que ele está dormindo!

Um sonho…? Não, não era; alguém estava logo à minha frente.

— Ei, você aí!

Uma voz intensa soou sobre a minha cabeça, e os meus olhos se abriram. Um homem loiro, de terno e com uma orelha furada, olhava friamente para mim. A entrada agora estava acesa, e o homem acompanhava duas garotas que revelavam a maior parte das costas e ombros. O gatinho tinha ido embora.

— Você tem assuntos aqui?

— S-Sinto muito!

Fiquei de pé e abaixei a cabeça. Justo quando passei por ele, perdi o equilíbrio. Ele chutou o meu tornozelo com a ponta do pé, e, por impulso, agarrei-me à lata de lixo ao lado da máquina de vendas e acabei a derrubando junto comigo no asfalto molhado. A tampa saiu, fazendo com que latas se espalhassem por toda a rua.

— Ei, você está bem?! — Uma das mulheres perguntou, mas o homem loiro e de brinco colocou um braço ao redor dos ombros dela.

— Deixe-o. Como eu estava dizendo, vocês farão um trabalho excepcional no nosso estabelecimento. Entrem, eu vou explicar, pode ser?

Com isso, o loiro correu com as duas garotas para dentro do edifício e desapareceu atrás delas. Ele sequer olhou para mim.

— O que diabos está fazendo? Saia do caminho, garoto!

Notoriamente estalando a língua com raiva, um casal passou por mim, perto de onde eu estava sentado na rua, chutando latas vazias para o lado.

— Sinto muito…!

Com pressa, coloquei a lixeira de volta no lugar, então rastejei pelo chão molhado, desesperadamente juntando os itens espalhados. Não havia apenas latas no lixo, também havia caixas de bento vazias e restos de comida. Os transeuntes não tinham vergonha de me fazer entender que eu estava no caminho deles. Eu queria sair dali o quanto antes, mas tinha que limpar tudo antes disso, então juntei freneticamente o frango frio mole e bolinhos de arroz meio comidos com as mãos. Lágrimas surgiram em meus olhos e escorreram pelo meu rosto junto com as gotas de chuva.

Havia um saco de papel mais pesado entre o lixo. Tinha quase o tamanho de um livro de capa dura e tinha várias voltas de fita de empacotamento ao redor.

 

Ka-tunk.

À medida em que eu retirava a fita de empacotamento, o saco de papel molhado rasgou, e o que havia dentro caiu no chão do restaurante. Depois de um tilintar metálico, estendi a mão em direção aos meus pés mais do que depressa.

— Huh?!

Aquela coisa se parecia com uma arma. Nervoso, peguei-a e enfiei-a na minha mochila. O frio ameaçador do metal permanecia em minha mão enquanto eu olhava ao redor.

Eu estava em um McDonald’s que atendia até tarde, o qual ficava entre uma estação de trem e um salão de pachinko. Este lugar era familiar, pois ficava perto do mangá café em que eu estava, e eu já tinha o visitado diversas vezes. Os trens tinham parado durante a noite, e não havia muitas pessoas no restaurante. A maioria deles estava focada nos seus celulares, em silêncio, e os únicos conversando era um par de mulheres.

Eu continuo me apaixonando por ele cada vez mais, mas sou a única que… Ele ignora as minhas mensagens na maioria das vezes…”

A conversa das mulheres chegava a mim como sussurros muito sérios. Ninguém olhava na minha direção.

Exalei, sentindo-me aliviado.

— Deve ser um brinquedo. — Eu disse em voz alta, tentando convencer a mim mesmo.

Depois de limpar as latas vazias, lavei bem as mãos em um banheiro público, então me lembrei deste lugar e vim para cá. Eles provavelmente não me deixariam ficar até a manhã com um pedido de sopa, mas eu queria estar em algum lugar onde pudesse me sentir seguro até me recuperar o bastante para caminhar do lado de fora, pelo menos.

Recompondo-me, sentei-me em minha cadeira. Remexi no bolso das minhas calças, em seguida, coloquei um pedaço de papel amassado na mesa.

K&A Planejamento (Ltd.)   Diretor Executivo   Keisuke Suga

O cartão de visitas que peguei do Camisa Vermelha na balsa tinha um endereço escrito nele com letras bem pequenas. Tóquio, Distrito de Shinjuku, Yamabuki-cho. Distrito de Shinjuku? Coloquei o endereço no Google Maps. Ficava a vinte e um minutos dali de ônibus. Mais perto do que eu esperava.

 Envolvendo as minhas mãos ao redor do copo de papel de sopa, lentamente bebi o resto. Do lado de fora da janela havia uma enorme e brilhante TV de propaganda, embaçada pela chuva. O alvoroço de Kabuki-cho vinha até mim pelo vidro da janela, como som escapando de fones de ouvido. Se eu for até este endereço… pensei. Quais são as possibilidades? Diretor Executivo é o mesmo que “presidente de empresa”, né? Será que ele me indicaria para algum trabalho? Mas se é o tipo de cara que suga o dinheiro de um aluno do ensino médio, a sua empresa provavelmente não esteja lá essas coisas. E… Espere aí. Se ele tem uma empresa própria, é bem provável que tenha dinheiro para se virar. E ainda me fez pagar 2.180 ienes pela comida dele! Era tarde demais para ficar irritado com isso, mas mesmo assim fiquei. Então eu estava pagando a conta para um presidente de empresa? A refeição tinha sido um obrigado, por isso era inevitável, mas uma cerveja de 980 ienes não era um pouco demais? Eu não devia explicar a situação e fazer com que me pagasse de volta, pelo menos? Não seria a coisa mais bonita que eu já teria feito, mas às vezes é necessário sacrificar um pouco para não perder muito. Quando soubesse do problemão em que eu estava metido, até mesmo um pão-duro como ele poderia ser surpreendentemente rápido para me devolver o dinheiro.

Porém… Eu me debrucei sobre a mesa.

Isso seria realmente patético. Além disso, ele tinha me salvado, e eu me ofereci para pagar pela cerveja. Será que vim até Tóquio apenas para ser egoísta e mesquinho? Não tinha dinheiro, objetivo nem um lugar para ficar, e o meu estômago estava tão vazio que doía. O que diabos eu estava fazendo ali? O que esperava encontrar na cidade?

Então eu me lembrei daquele dia. Eu estava pedalando o máximo que podia, tentando anular a dor do local em que ele me acertou. Estava chovendo na ilha, também. Nuvens de chuva espessas agitavam-se no céu, mas vários raios de luz passavam pelos espaçamentos na camada de nuvens. Eu estava indo em busca da luz. Queria pegá-la, entrar nela, e andei de bicicleta pela estrada costeira com tudo o que podia. Por apenas um momento, pensei que tinha conseguido! Porém eu estava na beirada de um penhasco beira-mar, e a luz do sol fluiu para longe, além do mar.

Algum dia, entrarei naquela luz, me decidi naquela vez.

Um fraco vento passou por mim, gentilmente balançando o meu cabelo. Não era do ar condicionado do restaurante, mas sim um vento de verdade, do tipo que carregava o cheiro de grama sob um céu distante… Mas ali dentro? Levantei a cabeça que tinha colocado sobre a mesa.

Uma caixa de Big Mac estava logo à minha frente.

Perplexo, olhei por cima do ombro.

Uma garota estava lá, usando o uniforme do McDonald’s: uma camisa azul-escuro, um avental preto e uma boina cinza em seu par delicado de rabos de cavalo. Eu supus que tínhamos provavelmente a mesma idade. Ela tinha olhos largos e pupilas grandes, e parecia estar irritada com alguma coisa enquanto olhava para mim.

— Hm, eu não… — protestei, querendo dizer: eu não pedi isso.

— É para você. Não diga nada. — disse ela, a sua voz era tão delicada quanto o cheiro de pequenas flores.

— Huh? Mas… por quê?

— Você tem comido isso aí no jantar por três dias seguidos — disse, severa, olhando para a minha sopa, então se foi.

— Uh, espere… — Eu comecei, mas a forma com que ela se virou foi como uma mão gentil tapando a minha boca. A linha apertada dos seus lábios ficou menos tensa de repente, e ela deu uma breve risadinha. As cores ao meu redor ficaram mais claras, como se o sol tivesse passado pelas nuvens, ou era o que parecia para mim. Sem dizer nada, a garota virou suas costas mais uma vez e desceu as escadas correndo.

— …

Eu acho que fiquei lá, sentado e aturdido, por dez segundos inteiros antes de voltar a mim com um salto. A caixa do Big Mac foi colocada na mesa como um presente especial. Levantei a tampa e fui saudado pelo aroma saboroso de carne e pelo inchaço macio de um pão espesso. Quando o peguei, percebi que estava pesado. Queijo brilhante e alface podiam ser vistos por entre as rodelas de carne.

Durante todos os dezesseis anos em que estive vivo, este foi, sem sombra de dúvidas, o jantar mais delicioso que já tive.

 

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— Ô droga, estamos quase na parada de ônibus! Ouça, quando podemos sair de novo?

— Deixe-me ver. O que acha de depois de amanhã? Tenho treino, mas estarei livre à tarde.

— Oba! Encontrei um café que tem boas reviews no Tabelog que eu gostaria de visitar. Talvez eu faça reservas lá!

Era de tarde, e eu estava ouvindo àquela conversa enjoativamente doce no ônibus por um tempo. As vozes vinham do banco detrás. Eu estava olhando pela janela; me sentia um pouco estranho para olhar para eles. Enquanto eu observava as gotas de água escorrendo para trás em padrões complexos, fiquei estranhamente impressionado: Então casais têm mesmo conversas desse tipo. Nunca entendi muito bem a demanda por aplicativos de comida antes, mas, ao que tudo indicava, o Tabelog era mesmo algo importante para os moradores da cidade. Eu não sabia que era possível fazer reservas em cafés também… Os meus olhos se dirigiram para o celular. O meu ponto azul estava se aproximando do ícone de bandeira vermelha no meu destino. Estaria lá em dez minutos, então estava ficando um pouco nervoso.

Ding-dooong. Uma campainha eletrônica soou, e o monitor ao lado do assento do motorista mostrou as palavras “Parada Solicitada”. — Okay, Nagi, até mais! — disse alguém. Quando vi a garota de cabelo curto, que estava descendo do ônibus, tive que esfregar os olhos. Ela estava usando uma mochila de escola na qual estava escrita Segurança no Trânsito. Ela ainda estava no ensino fundamental. O quê, é sério? Tóquio é cheia de surpresas. Alunos do ensino fundamental leem o Tabelog?

­— Ohh, que sorte! — Uma garota de cabelos compridos, também no ensino fundamental, entrou no ônibus e pegou o lugar da primeira garota. — Eu pensei que pudesse conseguir te ver, Nagi! — disse ela, correndo alegremente até o assento do fundo.

Os meus olhos a seguiram involuntariamente.

— Mas o quê—!?

O garoto no assento do fundo, com as pernas cruzadas — de calção —, não parecia ter mais de dez anos.

— Oi, Kana — disse ele, acenando elegantemente para a garota. Então pegou a mochila dela, com um sorriso, parecendo um cavalheiro escoltando uma dama. Tinha um short bob sedoso, olhos afiados e características de uma criança, mas simétricas; parecia muito esplêndido. Este garoto tinha uma namorada para cada parada de ônibus?

O ônibus partiu de novo, e eu tirei os meus olhos deles. Atrás de mim, pude ouvi-los flertando.

— Hmm? Kana, você cacheou o cabelo?

— Oh, você notou? Sim, só um pouquinho. Ninguém mais percebeu hoje, mas é claro que você iria, Nagi! E aí? O que achou? Ficou bom?

— Sim! Está perfeito, parece mais adulta, como uma aluna do ensino médio.

A garota dava risadinhas. Eu fiquei envergonhado apenas ao ouvir o quão feliz ela estava e comecei a me sentir dolorosamente estranho. Este garoto estava no ensino fundamental, mas era provável que tivesse múltiplas namoradas, e, além disso, essas garotas faziam reservas nos cafés do Tabelog. Os caras que pegam todas as garotas começam tão jovens. É isso o que eles chamam de capital cultural?

— Tóquio é mesmo algo grande. — murmurei, enquanto descia do ônibus na minha parada. Abri o guarda-chuva e, mantendo o olho no Google Maps, passei por uma zona comercial de operários. Quando dobrei à direita, como foi instruído pelo Google Maps, a atmosfera da rua mudou abruptamente. Várias empresas pequenas de impressão estavam em fila em uma rua de subida, e o fraco cheiro de tinta misturava-se com a chuva.

— É este o lugar, né…?

O endereço no cartão de visitas acabou pertencendo a um edifício pequeno e decrépito, que se parecia uma loja. Uma fachada, notoriamente antiga, projetava-se da frente; a palavra Lanche estava escrita em letras que já tinham desaparecido, indicando que este era um daqueles bares de acompanhantes discretos. Chequei o endereço do cartão novamente no Google Maps. Era ali. Quando dei uma olhada mais de perto para a placa, percebi que o nome da loja estava coberto por fita em vários lugares. O tecido dela, as letras e a fita estavam igualmente gastas, por isso eu não tinha notado à primeira vista, mas esse lugar não era mais um bar de lanches. Uma placa enferrujada que dizia K&A Planejamento (Ltd.) estava presa a uma cerca ao lado do acostamento da estrada, e, ao lado do nome da empresa, havia uma flecha apontando para baixo. Notei que o edifício tinha um meio-porão, onde um conjunto estreito de escadas de concreto levava para baixo até uma porta.

Pelo que parecia, o local era, na realidade, uma empresa, mas eu hesitei, incerto do que fazer. O edifício era bem superficial e não parecia ter dinheiro algum por ali. “Diretor Executivo” é a minha bunda. Mesmo assim, eu não tinha mais lugar algum para tentar. Reuni a minha coragem, dobrei o meu guarda-chuva e comecei a descer as escadas estreitas. Elas não tinham nem três pés de largura.

Click.

Eu tinha certeza de que apertei a campainha, mas não pude ouvir som algum.

Coloquei o ouvido contra a porta, então tentei a campainha mais uma vez. Silêncio. Estava quebrada? Bati, mas ainda assim não recebi resposta.

Só para checar, tentei a maçaneta, e a porta se abriu com facilidade.

— Com licença! Sou Morishima; liguei para você antes!

Olhei para dentro. Quando liguei para o número no cartão de visitas há algumas horas, o próprio Camisa Vermelha me disse que estaria esperando e que era para mim vir. Nervoso, dei um passo para dentro. Havia um pequeno balcão de bar logo na entrada, mas estava cercado por pilhas misturadas de livros, papéis e caixas de papelão, enquanto o chão estava repleto de garrafas de saquê, panfletos e roupas. Era impossível dizer se o local era uma loja, uma casa ou um escritório. Era como se o próprio aposento dissesse: Meh, não é como se importasse.

— Senhor Suga, está aqui?

Dei mais alguns passos e vi um sofá do outro lado de uma cortina de contas perto do fundo do aposento. Havia uma protuberância sobre ele, enrolada por um cobertor.

— Senhor Suga?

Pernas longas, brancas e despidas estavam esticadas para fora da ponta do sofá. Quando me aproximei, vi unhas pintadas em azul-celeste brilhante, pés em robustas sandálias de salto alto e um rosto que pertencia a uma jovem mulher. O seu longo cabelo liso estava dependurado como um véu, e eu conseguia ouvi-la respirando suavemente em sono profundo.

— Senhor… Suga…?

Eu já sabia que ela não era quem eu procurava, mas, por algum motivo, não conseguia tirar os meus olhos dela. O seu short jeans era muito, muito curto. Eu conseguia ver os seus cílios através do seu cabelo, e eles eram incrivelmente longos. Podia ser que ela tinha saído de um mangá. Estava usando uma camisola roxa, e o seu busto subia e descia devagar com cada respiração. De maneira lenta, agachei-me até que o seu peito estivesse no nível dos olhos.

— Nah… não está legal. Para ninguém.

Voltando aos meus sentidos, olhei para o lado — Oh, bom dia. — justo quando alguém falou de repente comigo.

— Waaaaugh! — gritei, levantando-me involuntariamente. Os olhos da mulher tinham se aberto.

— Uh, hm, sinto muito, eu—!

— Sim, eu ouvi do Kei — A mulher respondeu, despreocupada, então sentou-se. — Ele disse que um novo assistente estaria vindo.

— Hm? Não, eu não—

— Eu me chamo Natsumi, prazer em conhecê-lo. Aaaah, finalmente não vou ficar mais presa com os biscates!

 A mulher se espreguiçou, confortável. Olhando para ela mais uma vez, percebi que era linda. Era branca, magra, lisa, fina, elegante e belíssima, tipo alguém da TV ou de um filme.

— Entãããoo… — A mulher que se apresentou como Natsumi estava virada de costas para mim enquanto falava.

Atrás do balcão de bar havia um espaço de quase 180 pés quadrados que, aparentemente, servia como o escritório da empresa. Eu me sentei em uma cadeira, encarando as omoplatas de Natsumi conforme ela preparava bebidas para nós na pequena cozinha.

— Sim?

— Eu quero perguntar…

— Uhum.

— Você estava olhando para os meus peitos naquela hora, né?

— Não estava, não! — A minha voz falhou.

Alegremente cantarolando uma musiquinha, Natsumi colocou um café gelado na minha frente.

— Qual é o seu nome, garoto? — Ela se sentou na minha frente. A sua voz era suave e musical.

— Hodaka Morishima.

— Hodaka?

— Hm, é escrito com os caracteres de vela, tipo em um navio, e alto

— Oh, é sério? Uau, que nome formidável.

O meu coração acelerou. Esta pode ter sido a primeira vez na minha vida que alguém me chamou de formidável.

— Você trabalha neste escritório, Senhorita Natsumi?

— Oh, você está perguntando sobre a minha relação com Kei?

Eu me lembrei que o primeiro nome do Senhor Suga era Keisuke.

— Hm, sim.

— Haha! Você é hilário!

Hein? Eu disse algo estranho? Depois de Natsumi ter rido por um tempo, os seus olhos se espreitaram de repente em um sorriso. Ela olhava para mim pelas sombras sob seus cílios.

— É exatamente o que você pensa que é. — disse Natsumi, com uma voz enrouquecida e sexy, apontando o dedo mindinho para cima.

— Oi?! — Eu a encarava, chocado.

É sério isso? Sem querer, deixei o amargo café gelado escorrer pelo canto da minha boca. Eu nunca tinha visto uma amante antes…

Então, ouvimos a porta se abrir…

— Ei, vejo que chegou. — disse uma voz descontraída.

Eu me virei e vi o Camisa Vermelha — Senhor Suga — aproximando-se de nós, uma sacola plástica de supermercado estava em sua mão.

— Faz um tempo já, garoto… Hmm? Você perdeu peso? — Ele jogou uma lata para mim, a qual peguei, então vi que era de cerveja. Por um momento, fiquei confuso, me perguntando por que diabos ele deu aquilo para mim, e Natsumi a tirou da minha mão prontamente.

— Uh, com licença? Você estava jogando pachinko? — perguntou Natsumi, puxando o lacre da lata em quase perfeito uníssono com o Senhor Suga, e os dois começaram a beber o líquido como se isso fosse normal para eles. O que está acontecendo? Está me dizendo que essas pessoas começam a beber logo no almoço?

O Senhor Suga caiu pesadamente no sofá baixo ao lado da mesa.

— Então, garoto, está procurando por um emprego, certo? — Ele parecia estranhamente feliz. Puxando uma revista de uma pilha debaixo do sofá, a ergueu para que eu a visse. — É nisto que a nossa empresa está trabalhando no momento: uma encomenda para escrever artigos para uma revista com uma história longa e influente!

A capa da revista, que tinha Mu escrita nela, possuía a ilustração de uma pirâmide, um planeta e um enorme olho misterioso. Folheei as páginas, pois não havia dúvidas de que era isso que ele queria que eu fizesse. “Contato Finalmente Realizado! Um Residente do Ano 2062”, “Cobertura Especial Completa: Tempestades Irregulares Causadas Por Arma do Clima!”, “Segredos do Estado Obtidos: Tóquio Protegida Por Horda de Sacrifícios Humanos”. Cheios de atitude, eles eram tipo assim: Estamos discutindo artigos de piadas online, mas levando cinquenta vezes mais a sério. Tem algum problema com isso?

— O próximo trabalho é sobre lendas urbanas. — O Senhor Suga parecia rir fracamente — Se encontre com algumas pessoas, entreviste-as sobre o que viram ou pelo que passaram, então transforme isso em um artigo. Boom, tudo feito.

— Huh…

— Moleza, né?

— Hm… Hein? Espere, quer dizer que eu vou fazer isso?!

— Assunto livre, qualquer coisa serve. Tipo, pessoas sendo assombradas, profecias, círculo de traficantes de humanos sombrio. Vocês jovens estão ligados nessas coisas, não estão?

Com isso, o Senhor Suga pegou o seu celular. Havia uma longa lista de artigos nele: “Peixe do Céu”, “O Clã Tokugawa e a Moeda Virtual”, “Trump é Uma IA”, “CD Encontrado na Superfície de Marte”, “Ative os Chakras com Celulares”, “Elevador Para Um Mundo Secreto”, etc, etc…

— O que acha desse? É perto de casa — disse ele, apontando para um item da lista — A fábula da “garota cem por cento sol”. Pelo menos é o que diz a internet, né.

— G-Garota sol?

— Eu sou a garota sol! — Natsumi levantou a mão, alegre.

O Senhor Suga a ignorou.

— Tem chovido o tempo todo ultimamente. Na TV, estão dizendo que temos um novo recorde para o número de dias chuvosos em sequência. Estou achando que a demanda vem daí, não acha?

— Uh… — Eu não tinha certeza de como responder.

— Qual é a sua? Não é muito do empreendimento, né? — disse o Senhor Suga, sem muito ânimo.

— E nós também acabamos de agendar uma entrevista para esta tarde, então é perfeito. — disse Natsumi — Vá em busca desta história.

— Hein? Eu? Agora mesmo?!

Natsumi bateu as mãos.

— É tipo um test drive do trabalho antes de entrar! — disse ela, animada.

— Você quer dizer que ele é um estagiário — corrigiu o Senhor Suga.

— Parece divertido, não acha?! Eu vou junto!

— Não, por favor, espere um minuto; isso é totalmente repentino demais, e eu não posso—

 

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— É claro que mulheres do sol existem.

O entrevistado com quem conversávamos estava tão claro sobre isso que a alternativa quase não parecia possível.

— Eu sabia!

Natsumi inclinou-se para frente, a sua voz efervescia de euforia. A mulher bonita que se sentou na nossa frente tinha cabelo chanel, e era difícil saber se era jovem ou velha. Os acessórios grandes e coloridos que usava da cabeça aos pés faziam com que se parecesse com algum tipo incomum de animal.

— Mulheres da chuva também existem. Mulheres do sol são possuídas pelos espíritos da natureza em harmonia com a deusa Inari, enquanto as mulheres da chuva são possuídas pelos espíritos em harmonia com o deus dragão.

— Hm… o quê?

E agora eu não tinha mais ideia do que estávamos falando. Perto de mim, conseguia sentir o entusiasmo crescente de Natsumi. A nossa entrevistada… Bem, era um escritório de vidente em um edifício de utilização mista, então acho que ela era a vidente que trabalhava aqui e não uma dessas “mulheres do sol”. De qualquer maneira, ela continuou, tão tranquila como se estivesse lendo de um pedaço de papel invisível:

— Aqueles em harmonia com o deus dragão são distinguidos, antes de mais nada, por tomarem bebidas em grandes quantidades. Tentam encontrar água inconscientemente, sabe. O comportamento típico de um dragão.

Bebidas?

— Tipos deus dragão têm bastante força de vontade e se sobressaem em competição, mas tendem a ser descuidados e negligentes com suas responsabilidades.

Agora estamos falando sobre personalidades? Isso estava fugindo muito da intenção de uma entrevista, era o que eu sentia, e eu estava prestes a interromper, quando—

— Hmm? Meio que parece eu… — murmurou Natsumi, solene, e eu olhei para ela.

— Os tipos Inari são diligentes e têm rápido sucesso nos negócios, mas também são tímidos e pouquíssimo adequados para posições de liderança. Por algum motivo, muitos deles são extremamente atraentes, tanto homens quanto mulheres.

— Agora sim sou eu! — Ela soava como uma criança que recebera uma resposta satisfatória.

— Pelo fato de o clima estar fora de equilíbrio ultimamente, é mais fácil para as mulheres do sol e da chuva nascerem. A homeostase de Gaia, por assim dizer.

— Entendo!

— Mas elas devem ter cuidado…! — De repente, a vidente baixou a voz, inclinou-se para frente e olhou para cada um de nós. — O ato de influenciar a natureza inevitavelmente carrega um preço alto. Você sabe o que pode ser, jovenzinha?

— Não — disse Natsumi, engolindo em seco.

A voz da vidente ficou ainda mais baixa.

— Dizem que se você usar demais as habilidades do clima, perderá o espírito e se tornará uma com Gaia! É por isso que dívidas, falência pessoal e desaparecimentos são comuns entre mulheres do sol e da chuva!

— Uau… — As sobrancelhas de Natsumi se juntaram — Terei cuidado!

Quando estávamos saindo, Natsumi comprou algo da vidente para um boost para a vida toda em sua sorte financeira.

— Então…? O que achou?

Ao invés de suspirar, peguei os meus fones de ouvido e olhei para a tela do MacBook. O Senhor Suga estava me olhando de cima, iluminado pelas luzes fluorescentes do escritório logo atrás.

— Essa vidente, que soava como uma Vocaloid, falou sem parar de um monte de coisa que saiu direto de uma Light Novel. Algo sobre pessoas desaparecendo se usarem poder demais.

Eu estava no meio da digitação de um manuscrito para a história da vidente baseada nas minhas anotações e na gravação que fiz.

— Então era mesmo uma daquelas, hein? — O Senhor Suga estava sorrindo.

O quê, ele já sabia desde o começo? Pensei, frustrado.

— O clima não tem nada a ver com deus dragão, Inari, Gaia, personalidades e pessoas bonitas, tem? É apenas a natureza fazendo o seu trabalho; frentes frias e quentes, mudanças de pressão, ou qualquer outra coisa. Mulheres do sol e mulheres da chuva eram apenas padrões que pessoas viam onde queriam ver, né? Elas não existem de verdade, não tem como! — Eu pesquisei vários argumentos sólidos online.

— Tudo bem, ouça — disse o Senhor Suga, eriçando-se de repente. — Sabemos disso tudo; nós estamos fornecendo diversão. Os leitores também sabem. Não aja como se entreter as massas está abaixo de você.

Eu engoli de volta o que estava prestes a dizer. O Senhor Suga espiou a tela do MacBook, lendo o rascunho em que eu estava trabalhando.

É isso então? Na realidade, fiquei um pouco impressionado. “Sabemos disso tudo. Não aja como se entreter as massas está abaixo de você.

— É só isso que tem? Minha nossa, está aproveitando o seu tempo.

O Senhor Suga levantou a cabeça, e eu, por reflexo, pedi desculpas:

— Sinto muito.

— A sua transcrição não está ruim, no entanto.

O cumprimento murmurado foi como um doce, e eu era o garotinho animado para recebê-lo. Sempre gostei de escrever sobre ficção desde o ensino fundamental — embora nunca tenha dito para ninguém nem tenha completado um único livro até agora —, e eu gostava de pensar que era bom nisso. Dito isto, quando eu estava junto com esse cara, as minhas emoções subiam e desciam como uma montanha-russa.

— Tudo bem, garoto, você está contratado!

— Huh… Como assim?! Espere um minutinho aí, eu nunca disse que faria—

Eu ainda não tinha ouvido nada sobre os requisitos para contratação, salário, nem exatamente o que estaria fazendo. Era verdade que eu estava procurando um emprego, mas esse lugar suspeito não era—

— Você pode viver aqui, no escritório.

— Huh?

— Refeições inclusas.

— E-Eu aceito! Por favor, deixe comigo! — Me inclinei para frente involuntariamente. Era como encontrar um saco de surpresas cheio apenas com coisas que eu queria, e, de repente, não tive intenção alguma de entregar a ninguém.

O Senhor Suga bateu nas minhas costas, alegre.

— Oh, é sério? É bom ouvir isso! Então, qual era o seu nome mesmo?

— Hein? — O meu entusiasmo esfriou rápido. Whoa, espere aí, está contratando alguém que você sequer se lembra do nome?

— Ha, você é hilário, Kei! — Natsumi olhou para nós da cozinha, rindo. — É Hodaka, — disse ela, trazendo a comida.

— Oh, eu vou ajudar! — Eu disse.

Havia um prato cheio de frango frito, acompanhado por uma quantidade generosa de cebolinha verde picada e daikon ralado. Uma salada de tomate, abacate e cebolas. Sushi enrolada à mão, com carne, aipo e atum aparecendo.

E então fiquei faminto.

— Aqui — disse o Senhor Suga, me entregando outra cerveja, e então pensei em não dizer nada e apenas troquei por uma lata de refrigerante. — Isso aí, em celebração ao nosso novo funcionário, Hodaka—!

O Senhor Suga e Natsumi puxaram os seus lacres ao mesmo tempo, e eu, com pressa, abri o meu refrigerante.

— Um brinde!

Clink, clink, clink. As três latas bateram-se uma contra as outras.

Enquanto eu mastigava o meu frango frito, percebi que fazia muito tempo desde que tinha comido com outra pessoa, mesmo que embora eu quisesse revirar os olhos para o quão intrometidos eles eram. Junto a isso e como o frango estava saboroso, chorei um pouco.

O Senhor Suga e Natusmi beberam cerveja com muito gosto e, é claro, não demorou tanto para que acabassem bêbados. Estavam se divertindo ao trocar fofocas online, reclamar dos seus editores e fazer com que eu lhes contasse sobre a minha vida. Era um sentimento estranho, como ter alguém constantemente fazendo cócegas em uma parte em que eu não sentia — como uma mão gentil esfregando a minha nuca, por exemplo. Não era nem um pouco desagradável. Eu tinha a estranha sensação de que, pelo resto da minha vida, mesmo no futuro distante, quando fosse velho o bastante para ter netos, a memória desta noite chuvosa voltaria até mim quando eu menos esperasse.

E foi assim que os meus novos dias em Tóquio começaram.

 


 

Tradução: Taiyo

Revisão: Taiyo

 

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