Naquela noite, depois que adormeci em minha casa em Porto da Tocha, tive um sonho.
Era um sonho da cidade dos mortos, da qual eu tinha boas lembranças.
— Ouça-me com atenção, Will. O quê, de fato, os feéricos são? — Gus, com seu corpo azul claro, falou lentamente enquanto acariciava o queixo. — Em um tempo além do tempo, o Deus da Criação falou as Palavras, gravou os Sinais, fez o sol e a lua, separou o dia da noite e juntou água para separar os oceanos e a terra. O fogo nasceu, o vento nasceu, as árvores nasceram. Foi antes dos deuses e antes das pessoas.
Sanguinário também estava lá, apoiando seu corpo esquelético contra a parede, ouvindo a aula de Gus, mas sem prestar atenção. Era um momento de paz à tarde.
— Dentro da água, da terra, do fogo, do ar e das árvores moram as grandes Palavras do Primeiro Deus. Eram mais do que fenômenos naturais; possuíam uma vontade individual.
— Fenômenos com mente própria?
— Pode ser difícil para você imaginar… Hmm, especialmente porque não tem elementalistas aqui. Se tivesse, eu poderia pedir que fizessem as sílfides dançarem ou algo do tipo; isso deixaria a explicação mais fácil. Bem, não importa. — Gus balançou a cabeça.
Quanto ao “não importa” não significa “não importa de qualquer maneira”, ao contrário, significava “você encontrará um logo, logo, então você precisa manter isso em mente”. E, na verdade, conheci Menel logo depois e agora pude entender o que Gus quis dizer com “fenômenos com vontade individual”.
— Devido ao fato de que eles tinham vontade própria, esses feéricos se dividiram em dois tipos após sua criação. O primeiro em um modo de existência de longa vida, passado agarrado a fenômenos instáveis junto com os lacaios menores, ou seja, as fadas e os elementais. Se um elementalista fosse para uma montanha de fogo, ainda hoje ele deveria ser capaz de ver um grande feérico conhecido como o Lorde do Fogo lá, com elementais de fogo obedecendo a sua vontade. Nas profundezas dos vastos oceanos, haveria um Lorde do Mar à deriva, e nas profundezas de um mar de árvores um Lorde da Floresta ficaria em silêncio.
Gus fez uma pausa.
— Elementalistas, aliás, são aqueles que podem perceber e se comunicar com os feéricos e fadas que existem no mundo invisível sobrepondo-se ao nosso transitório. Em outras palavras, Xamãs.
Enquanto ouvia Gus, assenti e fiz anotações. Não havia melhor maneira de lembrar das coisas do que ouvir, pensar e escrever.
— No entanto, o outro grupo escolheu um caminho diferente.
— Outro caminho?
— Não a nebulosa existência feérica, onipresente nos fenômenos, algo que às vezes existe, às vezes não, talvez vivo, talvez morto, e em algum ponto indistinto demais para que se perceba. Em vez disso, escolheram uma existência cristalina e uma morte cristalina. Em outras palavras, o modo de vida humano.
Achei um pouco engraçado que Gus, um fantasma, fosse quem estava dizendo isso para mim. Ele parecia estar ciente disso e deu de ombros.
— Eles se apaixonaram pela humanidade.
Sua frase estranhamente romântica fez com que Sanguinário fizesse um som como se estivesse cuspindo uma bebida. Gus queria que uma pequena pedra voasse em sua direção.
— Ai! Para que isso, velhote?!
— Você sabe!
Depois de resmungar irritado, Gus continuou.
— Dos elementais que ansiavam pela vida com um corpo de carne, aqueles que pertenciam ao ar, à água e às árvores trouxeram o assunto à tona com a deusa da floresta, Rhea Silvia. Ela era uma caçadora de prazeres, impulsiva e inconstante, mas era por isso que ela era capaz de ver os fenômenos em constante mudança que os feéricos eram.
E a deusa achou por bem conceder aos feéricos o que desejavam.
— Assim, os elfos nasceram como servos da deusa Rhea Silvia. Eles eram uma raça com vidas tão longas quanto as árvores, tão velozes quanto um vendaval e tão graciosos quanto uma nascente que flui. Aquela deusa que viveu para o amor levou em consideração a admiração dos feéricos pelos humanos, e fez com que as duas raças fossem compatíveis. Diz-se que esta é a razão pela qual humanos e elfos podem produzir crianças mestiças.
Gus deu de ombros.
— Mas há um velho ditado: “O trigo do vizinho parece mais maduro.” Às vezes, uma coisa só pode ser admirada à distância. Mesmo que alguns elfos se misturassem ativamente com os humanos, também havia aqueles que ansiavam pelo tempo em que eram feéricos.
Ele continuou:
— Aqueles elfos dos tempos antigos, que viviam com paixão e se misturavam com as pessoas, desapareceram naturalmente com o tempo devido ao seu sangue misturado e expectativa de vida natural. Mesmo agora, de vez em quando, um meio-elfo nascerá de dois pais humanos, um remanescente daqueles elfos antigos. Enquanto isso, os elfos que ansiavam pelos dias de feéricos, e escolheram viver nas profundezas da floresta e isoladamente entre sua própria espécie, preservaram sua pureza.
— Uhh, eu não…
— Não estou tentando dizer que um é melhor do que o outro ou fazer algum tipo de ponto aqui. Estou simplesmente dizendo que tinha dois grupos, cada um fazendo escolhas diferentes. Só isso.
Parecia um assunto sobre o qual eu podia me ver mergulhando em pensamentos, mas Gus parecia relativamente contente em deixá-lo de lado.
— Sim, então, por causa de tudo isso, os elfos que existem agora são muito antissociais. Eles são bons se você os conhecer, mas isso pode demorar um pouco. — Sanguinário adicionou à explicação de Gus. — Eles são magros, mas rápidos, e são bons caçadores e lutadores. Muitos deles também têm o que é preciso para ser elementalistas. Afinal, eles eram feéricos. Uh, a lição aqui é, não entre em uma briga com um elfo na floresta. Porque isso é assustador para um caralho.
Sanguinário então me disse que havia aparentemente até mesmo alguns que ele não tinha ideia do que fazer, que tinham dominado o elementalismo até seus limites extremos e podiam descartar seu corpo de carne e voltar a ser um feérico.
— Essas histórias não são confiáveis… — Gus disse. — Mesmo que, se houvesse um ser capaz de tal coisa, duvido que seria qualquer outra coisa senão um elfo. Eles são os servos da deusa da floresta, e as coisas mais próximas que existem dos feéricos. Eles são próximos aos humanos, e longe disso também. Uma grande raça.
Com isso, Gus encerrou sua conversa sobre os elfos.
— Mas também tinha alguns que conseguiram corpos de carne e osso de uma maneira diferente: os feéricos da terra, rocha e fogo. Terra e rocha comandam o atributo de imutabilidade, enquanto o fogo controla a destruição e a criação. Esses eram muito próximos da deusa Rhea Silvia, e também não desejavam o estilo de vida humano.
— Sério? Então por que conseguiram corpos físicos?
— O objeto de sua admiração era a tecnologia humana. Eles acharam incrivelmente fascinante a maneira como extraímos o minério da terra, aquecemos com o fogo, o refinamos e o transformamos em metal. Diz-se que feéricos e fadas geralmente não gostam muito de metais e dinheiro, esses eram estranhos. — Ele deu de ombros. — Eles caminharam para ver Blaze, deus do fogo e do artesanato. Blaze era teimoso e falava pouco, preferindo criar e remendar, mas ele também era um deus da batalha e da raiva que, uma vez enfurecido, traria terrível destruição. Ele trocou breves palavras com o feérico que tinha mostrado interesse nas artes industriais, e assim que teve certeza da força de sua determinação, ele acenou com a cabeça sem palavras, e concedeu-lhes corpos físicos como seus próprios servos.
Gus comentou que até agora isso era igual aos elfos.
— E então a raça dos anões nasceu como servo do deus do fogo, Blaze. Os anões eram tão inflexíveis quanto terra e pedra. Eles viveram uma vida longa, podiam ver através da escuridão como se seu caminho fosse iluminado por fogo e eram hábeis no uso da fornalha. Mas estavam destinados a negociar com os metais que os feéricos não gostavam, e então sua natureza começou a divergir da pureza dos feéricos, e as fadas mantiveram distância. Devido a isso, não há elementalistas entre eles comparáveis aos elfos.
Em silêncio, eu o ouvi falar. Era uma história interessante e gratificante de ouvir. Pensei nos elfos e anões, raças que pareciam humanas, mas não eram, e me perguntei se algum dia os encontraria no mundo exterior.
— Em vez disso, eles colocaram sua fé na divindade Blaze, que foi seu antepassado. Eles pesquisaram as Palavras antigas e as combinaram com as habilidades da metalurgia e da gravura. Quando se trata da arte de infundir Palavras em objetos, ou seja, gravar os Sinais, você não encontrará artesãos mais talentosos. A maioria dos anões vive em minas, preferindo viver no subsolo devido às suas origens como feéricos da terra e da rocha. Eles são baixos, talvez relacionados com o lugar onde vivem, e têm o peito de barril. Bebem muito, são fisicamente fortes e a maioria tem barba. E além de serem artesãos altamente talentosos, também são excelentes guerreiros.
Quando ouvi isso, meus olhos naturalmente foram direto para Sanguinário.
— Sim, — ele disse, e acenou com a cabeça. — Esses caras são bem fortes.
Fiquei chocado. Eu poderia dizer pela voz de Sanguinário que era um elogio genuíno.
— M-me fale mais sobre eles!
— Mais? Uh, vou tentar. Hmm… — Sanguinário pensou um pouco. — São pessoas simples, honestas e… entendem o significado de lutar, e o que é coragem. Eles têm seus corações mais decididos do que qualquer pessoa jamais teve.
Não houve resposta sarcástica de Gus, não desta vez. Em vez disso, com olhos gentis, ele o ouviu falar.
— Uma coisa está sempre em suas mentes, dia após dia.
— E o que é?
— A questão de saber o que vale a pena dar à vida. Qual é a razão para lutar. — Os fogos-fátuos azuis pálidos rugiram nas órbitas dos olhos de Sanguinário. — E quando encontram… — Ele fez uma pausa. — Vão para a batalha com suas almas queimando com o fogo da coragem, e nunca temem a morte.
Tive arrepios. Se eles podiam fazer Sanguinário de todas as pessoas dizer isso, esses anões tinham que ser incríveis, verdadeiros guerreiros.
— Eu saúdo os guerreiros anões. Aqueles que conheci, pelo menos, e que lutaram ao meu lado, eram verdadeiros campeões.
Eu estava ansioso pelo dia em que os encontraria. Fiquei imaginando como seriam seus rostos, suas costas retas, suas barbas trançadas, seus machados brilhantes, seu olhar orgulhoso e direto. Imaginei todas essas coisas e fantasiei o dia em que lutaria ombro a ombro com eles.
— Quanto a mim, não gosto muito deles, — Gus disse mal-humorado.
Fiquei surpreso ao ouvi-lo dizer isso.
— Sério?
— Mm… Claro, eu admito que eles têm conhecimentos e habilidades maravilhosas. Admito que são guerreiros com determinação, — ele disse, e suspirou. — Mas eu nunca conheci um bando tão obstinado e avarento em toda a minha vida! Eles são inacreditáveis!
Eu fiquei lá, piscando sem palavras por um momento, então olhei para Sanguinário e o vi encontrando meu olhar com um olhar que dizia “Você acredita nesse cara?”
Gus claramente sentia repulsa por sua própria espécie.
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Acordei com pouca luz. Eu podia ver o teto de tábuas acima de mim. Tive um sonho muito nostálgico.
— Ah…
De alguma forma, tive a sensação de que agora entendia o verdadeiro motivo de ter ajudado aqueles anões naquela época: me senti triste. E não foi porque minha imaginação foi traída; não era porque eles não tinham costas retas, barbas trançadas, machados brilhantes e olhares orgulhosos e francos. E sim porque Sanguinário, o único Sanguinário, reconheceu esta raça como guerreira, e eles olharam para mim com nervosismo, cautela, submissão, coberto de sujeira e lama, com braços e pernas finas, e seus olhos piscando, cheios de insegurança. E vê-los era terrível, insuportavelmente triste.
Não é isso que você é, tive vontade de dizer a eles. Só não são. Na verdade, todos vocês… são incríveis. Você é… muito, muito mais…
Claro, estava apenas empurrando a imagem que tinha dentro da minha cabeça para eles sem perguntar. Eu sabia. Mas, mesmo assim, não pude evitar. Queria que eles recuperassem o orgulho, abandonassem aquele olhar submisso e nervoso, erguessem a cabeça e estufassem o peito para fora. E por isso fiquei tão feliz que puderam viver com orgulho aqui nesta cidade.
Eu lentamente me levantei da cama. Era feito de fardos de palha com um lençol branco por cima. Era muito melhor do que dormir diretamente sobre pilhas de feno, porque agora a palha não arranhou meu corpo. Abri lentamente a porta, saí para o corredor e para o poço no meu quintal.
A casa em que morava atualmente ficava perto do centro da cidade. Uma mansão em ruínas reformada que conseguira manter sua estrutura comparativamente bem. Eu não estava especialmente procurando uma casa grande para morar, mas se eu tivesse recusado uma casa grande, isso teria feito todo mundo se sentir estranho. Além disso, sugeriram que era uma boa ideia, porque muitas vezes eu tinha visitantes e convidados que precisavam de um lugar para ficar.
Como resultado, acabei empregando alguns funcionários, especificamente, criadas. Eu tinha memórias das novels do meu mundo anterior, então o som das palavras “empregar criadas” fez meu coração palpitar um pouco, mas…
— Ah. Bom dia!
— Ahh, bom dia, jovem mestre William.
— Pffhaha, não fique olhando! Vá e arrume seu cabelo, querido!
As que se inscreveram foram senhoras mais velhas que moravam nas proximidades. Essa é a realidade.
Claro, isso à parte, elas fizeram um ótimo trabalho com a limpeza, cozinha e lavanderia, por isso era muito útil tê-las por perto. Graças a elas, tive muito mais tempo livre para dedicar ao meu treinamento. Gus havia mencionado para mim antes que o dinheiro pode ganhar tempo até certo ponto, e era exatamente isso que ele queria dizer.
Usei um balde para pegar um pouco de água no poço. Ao puxar o balde para cima, pensei em como seria útil ter uma bomba manual. Achei que me lembrava de usar uma válvula direcional e pressão para puxar água… mas não conseguia me lembrar de todos os detalhes. Mas pensando nisso com mais cuidado, não poderíamos nos dar ao luxo de desperdiçar tanto metal. Eu poderia ser capaz de recriar o design, mas não conseguiríamos difundi-lo, então concluí enquanto lavava meu rosto e enxaguava minha boca que não daria muito certo.
— Beleza.
Eu tinha uma cabeceira de cama, então coloquei água para dar um jeito. Não funcionou.
— Huh? — Molhei meu cabelo um pouco mais e me certifiquei de que estava do jeito que eu queria. Boing. Meu cabelo arrepiou novamente. — Grr… — Passei a mão mais uma vez, desta vez tomando muito cuidado para arrumá-lo direitinho.
— Agora sim!
Voltou mais uma vez. Estava sendo teimoso.
Arrumei de novo. Arrepiou. Arrumei mais uma vez. Voltou.
— C-certo. Desta vez consegui. — Boing. — Gaaahh!!
Eu joguei o balde de água todo sobre minha cabeça.
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— É por isso que sua cabeça está tão molhada?
Menel e eu estávamos no quintal. Enquanto ria da minha estupidez, Menel continuou pressionando minha cabeça em uma direção, enquanto eu resistia e empurrava de volta contra ele. Estávamos treinando o pescoço.
Treinar os músculos do pescoço é modestamente importante. Se você leva um soco na cabeça ou tem as pernas arrancadas, são os músculos do pescoço que protegem a cabeça. Se forem fracos, é relativamente fácil se machucar seriamente.
— Vai! Nove… dez!
— Gnnngh…
Enquanto ele pressionava com toda a sua força, expirei lentamente e resisti com todas as minhas forças, empurrando sua mão para trás.
— Beleza. Troca.
Respirei e relaxei.
E continuamos assim, treinando músculos básicos e fazendo exercícios de alongamento. Braços, pernas, abdômen, costas, a cada dia, o lugar em que me concentrei era diferente, mas fiz questão de treinar cada parte do corpo que uso na batalha. Ter um corpo flexível e forte sustentava tudo, e eu iria perdê-lo se não continuasse meu treinamento e consumisse comida suficiente.
De volta à cidade dos mortos, pude treinar todos os dias, mas quando comecei a trabalhar e precisei estar em movimento, não era tão fácil. Tendo finalmente estabelecido uma base central, recentemente fui capaz de treinar o suficiente de novo e, sem isso, provavelmente não teria sido capaz de dominar fisicamente os cernunos. Sanguinário fez bem em manter tanta força muscular enquanto era um viajante. Fico me perguntando se ele usou algum tipo de truque. Deveria ter perguntado a ele.
— Beleza, então o próximo é…
— Balança, — eu disse, e peguei o que eu estaria praticando. Não era uma espada, mas algo cerca de três vezes mais pesado: um longo e grosso bloco de madeira com um cabo preso. Dei um teste de balanço para começar. Ele fez um som satisfatoriamente baixo ao abrir um caminho no ar.
Sanguinário me disse que ser capaz de usar um equipamento de treinamento mais pesado do que uma arma era a melhor indicação de que você seria capaz de usar sua arma real no calor da batalha. Também não vi falhas nesse argumento.
Menel soltou uma risada curta e incrédula.
— Força ridícula. Você nunca saberia olhando para você.
Sendo um descendente dos elfos, Menel tinha um corpo esguio, agilidade incrível e era capaz de entrar em ação com uma rapidez incrível. Mas isso não era tudo; ele tinha sua própria força também.
— Mas eu queria que as pessoas soubessem só de olhar para mim! — Eu disse.
Claro, mesmo com a aparência do meu corpo agora, as pessoas estavam tendo a impressão de que eu malhei. Isso era bom. Mas por alguma razão, eu não estava sendo como Sanguinário. Ninguém me descreveria como “um homem comandante e de aparência heroica!” ou “um gigante de músculos!” Minha estrutura esquelética e esse tipo de coisa provavelmente faziam parte do problema, mas eu também estava começando a suspeitar que, neste mundo, a massa muscular e a força muscular não eram totalmente proporcionais. Talvez mana ou algum fator como esse tenha algo a ver com isso.
Em qualquer caso, eu queria mais a imagem de um “cara durão”, mas tanto meu corpo quanto minha personalidade estavam achando muito difícil completar a transformação, e achei isso uma tremenda vergonha.
— Pessoas como você. Por que mudar?
— Olha, as pessoas anseiam pelo que não têm, tá?!
— Aprenda a ficar satisfeito…
Depois da breve discussão acalorada, começamos a praticar nossos balanços, Menel com uma haste de treino mais fina que a minha. Praticamos balanços para baixo e cortes para cima continuamente, contando as repetições. Movemos nossas pernas, torsos, braços e espadas com um propósito, certificando-nos de mantê-los trabalhando juntos para que o movimento que começou com as pernas fosse transmitido até a ponta da lâmina.
Verifique o estado atual de seus movimentos e direcione-os para o futuro.
— Hm…?
Eu senti o olhar de alguém em mim. Reystov e outros aventureiros às vezes vinham se juntar ao meu treinamento matinal, e às vezes crianças que moravam nas proximidades também vinham para espiar o que estávamos fazendo.
Mas tive a sensação de que não era bem isso.
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Desconfiado, procurei a origem do olhar, e lá estava. Do outro lado do meu pequeno jardim, alguém estava nos espiando por cima da cerca viva. Era alguém com cabelo preto. Não o reconheci.
— Menel, espere aí um pouco, — eu disse, e caminhei até lá.
Eu não me importava que olhassem, mas se continuassem fazendo isso sorrateiramente, outras pessoas poderiam confundir com um ladrão ou algo assim. Este mundo era muito difícil, então quando algo assim acontecia, às vezes resultava em gritos de raiva e possivelmente até em derramamento de sangue. Não havia necessidade de espiar; tudo o que essa pessoa precisava fazer era nos chamar, vir direto para o nosso quintal e observar. Nem Menel nem eu nos importamos muito.
— Bom dia, — gritei, e a pessoa atrás da cerca viva se encolheu de medo.
Tremendo, ele ergueu a cabeça.
Era um anão com costas curvadas e cabelo preto trançado. Era difícil dizer sua idade, mas sua barba era curta, então provavelmente ainda era jovem.
— O dia está ótimo, não está?
— U-umm … B-bom… di-a… — Ele se levantou, agitado.
Quando nos encaramos em pé pela primeira vez, percebi que ele era bem alto para um anão e tinha ossos grandes também. Mas por causa de seu comportamento curvado e nervoso, seu corpo não tinha a presença intimidante que eu esperava.
— Você é muito bem-vindo para entrar e assistir, em vez de assistir daí. — Achei que ele era introvertido e falei da maneira mais calma e gentil que pude.
— U-uh… — Seu movimento inquieto dos olhos estava apenas começando a se acalmar, quando…
— Ei, Will, o que você está fazendo aí? — Menel parou de praticar seus balanços e se aproximou. Ele provavelmente estava se perguntando por que eu estava demorando tanto. — Hm? Quem é você? Não te vi por aqui antes.
Depois de ver que uma nova pessoa estava falando com ele, os ombros do anão se contraíram e ele soltou um pequeno grito assustado.
— Tudo bem, irmão, eu não vou te comer. Interessado? Venha assistir se quiser.
— N-não, eu…!
I
Menel falou com ele gentilmente, mas o erro já havia sido cometido. Se você falasse com alguém assim naquele tom de voz…
— Eu, eu estou bem, obrigado! Sinto muito por interromper seu treinamento! Tchau!
Ele abaixou a cabeça, apressado e ainda bem educado, e então saiu correndo, quase tropeçando em si mesmo. Meio que queria impedi-lo, mas havia uma barreira entre nós e nada realmente aconteceu para chamá-lo de volta.
— Mmgh… — Depois de vê-lo desaparecer em um piscar de olhos, lancei a Menel um olhar ligeiramente reprovador. Talvez tenha soado ofensivo, mas eu meio que senti como se um gato que estava começando a se acostumar comigo tivesse saído correndo…
— Tá… foi mal. — Menel ergueu a mão em um gesto de leve pedido de desculpas. Ele estava ciente. — Acontece que isso tem o efeito oposto em caras assim.
— Claro que tem.
— Não tenho certeza se ele estava interessado no treinamento ou em você.
Quando alguém vinha nos espiar, geralmente era um ou outro.
— O treinamento, você não acha? Afinal, os anões são uma raça de guerreiros.
— Aquele cara parecia que era um guerreiro para você? Minha aposta é que ele quer ver o paladino de quem todos falam.
Enquanto conversávamos, voltei a praticar, um pouco desapontado. Por alguma razão, senti que ele e eu poderíamos ter nos dado bem. Fiquei me perguntando se ele viria me ver treinar novamente.
Conforme me concentrei, esse sentimento lentamente derreteu dentro do meu coração e desapareceu.
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Os martelos tiniram e as serras rangeram. Eu ouvia teares tecendo tecidos, crianças brincando nas ruas e um chefe chamando seus aprendizes. E junto com eles, eu podia ouvir canções sendo cantadas para definir o ritmo de seu trabalho.
Depois de terminar o que tinha pra fazer, eu estava na entrada do Distrito dos Anões, nome comum para a área ao redor das ruas onde os anões viviam, ouvindo esses sons brilhantes e agradáveis.
Quando olhei em volta, percebi que várias extensões e modificações haviam sido feitas nas casas de pedra, e muitas delas agora pareciam mais oficinas. Varais de roupas estavam amarrados por toda parte e as roupas voavam com a brisa. Pensando comigo mesmo que este lugar sempre parecia vivo, entrei.
Enquanto eu estava descendo a rua, um dos barulhos ásperos cessou. Vários anões que estavam fazendo trabalhos de marcenaria na beira da estrada pararam, tiraram os chapéus e fizeram uma reverência profunda para mim. Eu conhecia um deles. Aquele anão ligeiramente rechonchudo e alegre com uma barba era…
— Obrigado pelo seu trabalho, Thori.
— Não seja ridículo! Bem-vindo, Paladino. Está sozinho?
— Ahaha. Não é nada que precise de um ajudante. Agnarr está por aí?
— Se é Agnarr que você quer, ele está em casa, provavelmente! Hodh, corra e diga a ele que o Paladino está aqui!
— Ai, — um anão mais jovem disse, assentindo. Largando suas ferramentas.
— Você não precisa fazer isso…
— Absurdo! Agnarr não se sentiria bem se nós ficássemos sentados e não dar as boas-vindas ao nosso lorde quando ele visita!
— Ai! — O anão mais jovem chamado Hodh acenou com a cabeça e saiu correndo antes que eu pudesse impedi-lo.
Agora que um mensageiro fora enviado para informar Agnarr sobre minha visita, seria rude e um aborrecimento para ele se eu fosse até lá muito cedo. Afinal, o objetivo de enviar um mensageiro a alguém era dar-lhe tempo para se preparar. E como não ficava aqui com frequência, decidi passar um tempinho conversando com Thori antes de ir.
Muitos dos anões eram pessoas de relativamente poucas palavras, mas Thori era um falador e ria como se estivesse completamente feliz por ter nascido assim. Eu também o acho acessível e fácil de conversar.
— Como vai a vida? — Eu perguntei.
— Hahaha! É como noite e dia! Posso fazer o que eu quiser, vender o que quiser! Não preciso me preocupar de onde virá a refeição de amanhã! É uma verdadeira bênção.
— Fico feliz em ouvir isso. Teve algum problema na área, ou alguém na pobreza?
— Hmm, bem…
Thori deu alguns exemplos: reclamações sobre o barulho da ferraria, problemas causados por diferenças de estilo de vida entre anões e humanos e várias questões básicas. Peguei um instrumento de escrita de cobre que era uma combinação de caneta e tinteiro e anotei tudo o que ele disse no verso de um documento mal escrito. O papel era valioso demais para ser desperdiçado, então guardei um pouco comigo para uso em memorandos.
— Oh? Essa caneta portátil é bem feita.
— Eu pedi a Agnarr que fizesse para mim já tem um tempinho.
— Isso explica tudo. O trabalho de Agnarr é bom.
Um instrumento de escrita portátil era algo bastante difícil de fazer, mas Agnarr fez para mim logo quando pedi. Realmente havia muitos artesãos talentosos entre os anões.
— E… tem havido muitas pessoas se mudando para esta cidade recentemente, tanto humanos quanto anões. Não podemos reclamar, quer dizer, foi o que fizemos também. Mas isso não significa que sempre podemos encontrar empregos para eles…
— Você tem um ponto.
— Mas não é saudável para os jovens em forma ficar ociosos o dia todo sem trabalhar.
— Sim, pode até ter um efeito sobre o crime. — Concordei.
Era bom que mais pessoas estivessem vindo para esta área à medida que a notícia de seu desenvolvimento se espalhava, mas era óbvio que não seria fácil encontrar emprego para todos. Uma variedade foi criada: o embarque e desembarque de cargas no porto fluvial, a engenharia civil e a construção necessárias para transformar as ruínas em uma cidade, empregos no comércio e na indústria, o comércio de madeira e até mesmo serviços em restaurantes e tabernas. Porém, isso ainda não facilitou a criação contínua de empregos suficientes para sustentar dezenas de novas pessoas.
Ter um emprego é importante. O sentimento de contribuir para a sociedade traz autoestima para nós humanos, e se perdermos o emprego, a autoestima vai junto. Ao mesmo tempo, perder o emprego significa perder sua renda. Todos ficam em pânico e preocupados quando estão financeiramente inseguros e não têm ideia do que o amanhã trará. Pessoas com baixa autoestima, que estão cheias de ansiedade e se sentindo pressionadas, muitas vezes precisam apenas de um empurrãozinho para entrar para o mundo do crime. Eles meio que entram em um estado em que as desculpas para cometer crimes pareçam razoáveis.
Por exemplo:
— Eu fui empurrado para esta situação terrível, então o que você esperava?
— Eu não tenho escolha; estou fazendo isso para sobreviver.
— Não tenho mais muito tempo de vida, então vou me soltar e fazer o que eu quiser.
— Não tem mais nada que eu possa fazer. Não tenho mais futuro mesmo. Não sou o único culpado por isso; a sociedade e todos os outros que me empurraram até aqui são igualmente culpados. E mesmo que eu roube um pouco desse cara, não é como se isso fosse matá-lo. Vai, seja corajoso! Faça isso agora!
E por aí vai.
Você pode se perguntar como eu poderia pensar em algo assim. A resposta é que o terrível estado em que me meti no mundo anterior não contou para nada. Eu poderia prever aproximadamente os pensamentos das pessoas à beira do precipício e daquelas que não estavam longe.
De qualquer forma, um aumento no número de pessoas assim significava mais crimes. Claro, certamente haveria pessoas que suportariam admiravelmente sua situação e não recorreriam ao crime, mas também existiriam pessoas perfeitamente comuns que não poderiam suportar e recorreriam a tais coisas. Como os dois grupos existiam em certa proporção, um aumento na taxa de criminalidade seria inevitável no momento em que aumentasse o número de pessoas ansiosas e desempregadas. E se você não pudesse evitar o aumento da criminalidade, a ordem pública se deterioraria, mais recursos teriam de ser gastos na repressão, e isso iniciaria um círculo vicioso. O problema precisava ser resolvido pela raiz.
As pessoas se mudando para cá era inevitável, então talvez a solução pedida aqui fosse, de alguma forma, criar empregos para manter a economia em movimento.
Se problemas como esse piorassem, as situações que poderiam surgir deles seriam realmente ruins. Conforme o número de pessoas vindo para cá aumentasse, as pessoas começariam a brigar pelos empregos simples que não exigiam nenhuma habilidade específica. A ordem pública iria se deteriorar. Um conflito irromperia entre os residentes originais e os migrantes. Problema iria começar.
Ele se desenvolveria dessa maneira, do que foi inicialmente uma batalha econômica para sentimentos discriminatórios contra um grupo específico. E uma vez que a economia e as visões discriminatórias começassem a se enredar, isso causaria sérios problemas que facilmente durariam vários séculos.
Essa situação era uma bomba-relógio, e se não pudéssemos desmontá-la aqui e agora, a explosão nas gerações posteriores seria horrível.
Mesmo nas memórias de minha vida passada, a aceitação ou restrição da imigração e refugiados era uma questão social incrivelmente grande. Agora que fui colocado na posição de resolver sozinho, entendi bem o quão difícil era realmente fazer isso. A economia precisava crescer certificando-se de que o dinheiro estava mudando de mãos e que havia empregos suficientes para todos. A menos que o problema fosse totalmente resolvido, poderia tornar-se algo sério como uma bola de neve. Igual o que Gus disse: era extremamente importante que o dinheiro circulasse e continuasse a circular. Minha cabeça estava começando a doer pensando nisso.
— Paladino, senhor? — Thori disse com uma voz preocupada, me tirando dos meus pensamentos.
— Ah, desculpe. Vou pensar em algum tipo de plano quando voltar.
Achei que o primeiro passo teria que ser conversar com Tonio para iniciar algum tipo de projeto de infraestrutura pública, talvez projetos de manutenção portuária ou de irrigação ou algo assim, e conseguir uma força de trabalho maior. Também achei melhor escolher quem sabe mais sobre essas coisas. Trabalhar honestamente e reunir um consenso de opiniões era fundamental para grandes projetos como este. Afinal, eu não queria causar distúrbios e isso significava que precisava estimular a economia antes que isso acontecesse. Também seria importante reduzir o atrito cultural.
Assim que terminei de organizar meus pensamentos, o jovem anão Hodh que havia fugido antes voltou com um timing perfeito.
— Ai. Ele disse que estará esperando.
— Tudo bem. Muito obrigado por se dar ao trabalho. — Eu sorri e me inclinei ligeiramente para ele.
Ele arregalou os olhos e acenou freneticamente com as duas mãos.
— Não, não! Não se curve diante de mim!
— Não, sério, foi uma grande ajuda. E você, Thori. Muito obrigado por hoje. Vamos conversar novamente.
— É uma honra ouvir isso de você, Paladino. Quando quiser conversar, é só chamar!
Eu me curvei para os dois e saí. Os dois responderam curvando-se em arcos profundos até eu sair de vista, o que achei meio desconfortável. Logo percebi que os outros anões da rua também devem ter me notado, porque também estavam se curvando.
Claro, meu lugar na sociedade era alto o suficiente agora que fosse natural que isso acontecesse, e recusar veementemente demonstração de respeito só os deixaria em uma posição incômoda. Não tive escolha a não ser aceitar, mas mesmo assim não pude deixar de me sentir um pouco inquieto. A razão tinha a ver com as memórias da minha vida anterior ou era apenas que eu ainda não estava acostumado com tudo isso?
Senti que precisava me acostumar com coisas assim e aprender a assumir um ar digno. Mas, por outro lado, a ideia de me acostumar completamente a ter as pessoas me reverenciando também me assusta um pouco, e me preocupa que algo precioso dentro de mim ficasse entorpecido.
Tornar-se importante não era fácil.
Tradução: Erudhir
Revisão: Merciless
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