O Paladino Viajante

O Paladino Viajante – Vol. 02 – Cap. 02.1

 

Na manhã seguinte, depois de passar a noite sob a hospitalidade deles, despedi de Tom, John e os outros aldeões e parti para recuperar a aldeia.

Guiado por Menel, fomos para o nordeste. Depois de uma distância razoável, encontrei uma ramificação do rio, passei por ela e segui pela floresta. Pisando em folhas mortas e troncos musgosos de árvores caídas, segui Menel com um nível apropriado de cautela.

Eu me acostumei rapidamente a seguir sua trilha. Essa floresta tinha uma visibilidade tão ruim que eu estava quase perdendo o rumo, mas Menel seguiu em frente sem hesitação. De tempos em tempos, ele chamava as fadas, e as moitas e arbustos saíam do caminho.

Sanguinário uma vez me disse para nunca entrar em uma briga com um elfo em uma floresta, e agora entendi claramente o porquê: as chances eram tão grandes que você nem sequer teria uma “briga”; você seria apenas espancado e morto.

Fazendo pausas periódicas, avançamos pela floresta muito rapidamente.

— Vamos acampar aqui, — o meio-elfo disse.

O sol começou a se pôr. Disseram-nos que era cerca de um dia de distância da aldeia vizinha, por isso o nosso destino provavelmente era muito próximo.

— “Povo de verde, me conceda um abrigo da noite. Um leito de grama e telhado de árvores, e paciência para com um convidado repentino.” — Ele conjurou um feitiço para chamar as fadas, e as árvores ao nosso redor se curvaram em uma cúpula. A grama macia cresceu a nossos pés, e os arbustos se aglomeraram no exterior para nos proteger.

— U…Uau, incrível! — Era digno de ser chamado de tenda de árvores. Como as técnicas elementares eram, isso deve ser bem difícil, não é?

— Não é tão impressionante assim. Vá dormir.

— Não precisamos de alguém vigiando?

— Nós vamos deixar isso para as fadas. Se alguma coisa acontecer, elas vão nos alertar.

A quantidade de esforço que eu tive que fazer para acampar até agora parecia ridícula.

Menel era um caçador habilidoso e um especialista elementar. Como inimigo, ele era assustador, mas como aliado, era um grande trunfo. Agora, se ele se abrisse um pouco mais para mim…

— Hmph. — Lá vem ele de novo.

— Eu fiz alguma coisa errada?

— Eu sou o que você chama de mal-educado, acho. Não gosto de caras como você, que parecem ter uma boa educação. Pagarei minhas dívidas e farei meu trabalho adequadamente, mas isso é o máximo possível.

Tão inacessível, pensei.

— Estaremos na aldeia amanhã de manhã. Estou te guiando e isso é tudo. Não planejo ajudar você a espancar demônios.

— É, eu sei.

Menel tinha um olhar triste no rosto. Tivemos a sorte de nos conhecer e, embora tivéssemos cruzado espadas, queria que nos entendêssemos. Mas não estava fácil.

Um tempo depois que nós dois ficamos em silêncio, Menel estava preguiçosamente olhando na direção que nós estaríamos indo amanhã. Depois de ver seu olhar doloroso, não consegui me intrometer e perguntar sobre o relacionamento que ele teve com as pessoas daquela aldeia.

Ficamos deitados em silêncio no macio leito de grama e lentamente adormeci. O toldo mágico da folhagem parecia muito reconfortante.

 

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Na manhã seguinte, uma névoa espessa preencheu o ar gelado; talvez fosse porque estávamos ao lado de um rio. A maneira como a névoa branca como leite flutuava lentamente entre as árvores parecia como se eu tivesse entrado em um lugar que não era deste mundo.

Enquanto eu seguia em frente seguindo Menel, as fundações de um antigo muro de pedra apareceram.

— Uma ruína?

— Sim. Nas proximidades.

Devido a fatores como a disponibilidade de água e transporte, os locais mais adequados para estabelecer um assentamento não eram muito diferentes agora do que no passado. E se houvesse uma antiga ruína próxima, ela poderia ser desmontada e suas pedras reaproveitadas. Era uma maneira inteligente de construir uma aldeia.

Arqueólogos do meu mundo anterior provavelmente teriam deplorado o desmantelamento de uma ruína, mas felizmente (ou talvez infelizmente), não havia ninguém neste período da história que lamentasse a perda.

Constantemente nos aproximamos da aldeia, mantendo-nos escondidos atrás das velhas paredes de pedra da ruína e dos prédios em ruínas. Eu podia ouvir várias criaturas se movendo.

— São eles, — Menel disse calmamente.

Eu assenti.

— Eu vou fazer reconhecimento. Espere aí, — ele disse e avançou com passos completamente silenciosos. Ele havia aperfeiçoado isso a um nível que deixaria os exploradores mais experientes envergonhados.

Sanguinário me ensinou as técnicas de reconhecimento até certo ponto, mas a julgar isso, sim, Menel provavelmente era melhor do que eu. Como regra geral, os treinados são melhores que os não treinados em qualquer campo. Isso era óbvio demais.

Com a lança na mão, esperei na sombra de uma das paredes da ruína. Depois de pouco tempo, Menel retornou.

— Eles estão fazendo algum ritual estranho nos restos do templo do lado de fora da aldeia.

— Como é o templo? Como os demônios são?

— O templo é algo assim. — Menel começou a desenhar o esboço no chão com um galho. — Não tem mais teto, e as paredes desmoronaram em vários lugares. Eles estão no meio aqui realizando o ritual. Dois comandantes, parecem lagartos. Como eles eram chamados mesmo?

— Vraskuses? Com escamas e uma cauda espetada?

— Sim, assim mesmo.

Eu lutei contra um vraskus quando peguei a Lua Pálida, a lança que eu estava segurando. Então, havia dois deles, e…

— O que mais?

— Tem alguns soldados circulando fora do templo. Consegui localizar uma besta lá dentro, mas pode ter mais.

— Algum detalhe sobre a besta?

— Seu rosto parecia uma espécie de pessoa. Tinha um corpo como um leão, asas de morcego e um corpo do tamanho de um cavalo.

— Isso é uma manticora.

Bestas com caudas espetadas perigosas. Ouvi Sanguinário falar uma vez que elas eram “um pouco perigosas”… “um pouco” para Sanguinário às vezes seria meu “razoável” ou “considerável”… então eu teria que me preparar.

Menel estava olhando para mim com uma expressão confusa.

— O quê? — Perguntei.

— Você sabe muito sobre isso.

— Aprendi muita coisa.

Gus fez um grande esforço em suas aulas de história natural, e Sanguinário adorava contar histórias sobre quando ele estava vivo. Ambos me disseram que, ao ir contra um monstro, era importante ter conhecimento prévio sobre suas fraquezas e métodos de ataque. Os inimigos desconhecidos eram os mais mortais.

— Bem, tudo bem, — eu disse. — Estou feliz que é só isso que estamos lidando.

— Só isso?

Eu tinha experiência em lutar contra demônios, mas nenhuma contra aqueles classificados como Generais ou superiores. Se eu tivesse que lutar contra um desses, teria ficado preocupado com o risco. Mas se fossem apenas dois Comandantes acompanhados por Soldados com uma besta, tendo a vantagem de conhecer a situação de antemão, havia muitas maneiras de acabar rápido.

— Vamos esmagá-los.

 

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Eram os restos de um pequeno templo envelhecido. O teto havia caído e o espaço interior era do tamanho das salas de aula que eu conhecia no meu mundo anterior.

Alinhados na parte de trás do prédio, havia estátuas dos deuses, entre eles o deus do relâmpago, Volt, e a Mãe-Terra, Mater. Seus rostos foram raspados. Provavelmente foram os demônios que fizeram isso.

Era preciso muito esforço para destruir uma estátua; arranhar seus rostos ao invés de transformá-las em “ninguém” era algo que eu também encontraria na história do meu mundo passado.

Louvores aos deuses, que certamente deveriam estar presentes na parede, também foram apagados. Em seu lugar havia muitas Palavras escritas grande e sinistro. Aquelas Palavras, escritas em sangue negro, eram elogios a Dyrhygma, o deus das dimensões adorado pelos demônios. Esticada e esmagando as flores sob o brasão de Dyrhygma, que exibia braços segurando o ciclo eterno, estava a manticora que Menel mencionou.

Mais à frente, no centro do templo, no chão de pedra, com grama crescendo em suas rachaduras, havia uma pilha de corpos humanos.

Com os cadáveres, a besta e a crista diante deles, os dois demônios, uma mistura selvagem de humanos e crocodilos, conjuravam Palavras blasfemando os deuses virtuosos em vozes severas e sonoras. Eu poderia dizer que era algum tipo de ritual, mas não sabia exatamente que tipo. Isso não era surpreendente, dado que mesmo o conhecimento de Gus não cobria os detalhes intrincados desses tipos de cerimônias sombrias. Por enquanto, tudo o que eu sabia era que não podia deixar isso continuar.

Escondendo o som dos meus passos, eu rastejei para frente, preparei minha lança e simplesmente a empurrei no pescoço de um dos vraskuses. Assim, a criatura desmoronou e virou pó.

— …■■■?! — Surpreendido, o outro vraskus gritou algo no idioma demoníaco, sacou sua espada curva e girou ao redor.

Sua reação ao ataque surpresa foi mais rápida do que eu esperava. O grande movimento que tive que fazer para evitar sua lâmina quebrou o efeito da Palavra que lancei em mim: a Palavra da Invisibilidade. Ela joga truques na percepção visual do usuário, tornando-o extremamente eficaz ao emboscar inimigos que dependem da visão.

Usei essa magia para escapar de ser visto pelos Soldados do lado de fora e ir direto para o local do ritual. Eu não queria entrar em uma situação em que tivesse que lidar com dois vraskuses totalmente preparados e uma manticora enquanto eu estava lidando com Soldados. Isso realmente seria perigoso. Em vez disso, eu estava usando o método que Gus e Sanguinário me ensinaram: surpresa, iniciativa e divisão.

Cadere Araneum. — Enquanto a manticora estava prestes a avançar, eu a acertei com uma teia para restringir seus movimentos e entrei em combate com o vraskus.

Eu desviei o corte horizontal de sua espada com o meu escudo e apunhalei repetidamente com minha lança. Levando em conta as escamas duras do vraskus, a pele emborrachada e os músculos grossos, mirei em suas articulações, infligindo de maneira eficiente uma ferida após ferida.

Nessa altura, os Soldados do lado de fora pareciam ter notado minha intrusão também.

— Currere Oleum.

Coloquei graxa perto da entrada do templo para me comprar um pouco de tempo. Quando o rabo do vraskus veio em minha direção de um ponto cego, eu o cortei com a lâmina da minha lança sem nem olhar, e com o balanço de retorno cortei sua garganta. Dois já foram pro saco.

Segundos depois, a manticora rasgou a teia e rugiu.

— Acceleratio!

Saltei e mirei a lâmina da lança em seu pescoço.

A manticora, soando como se estivesse engasgando, atacou furiosamente com os braços, tentando resistir. Aumentei minha pressão, forçando a lâmina e prendendo a besta na parede do templo. Um golpe de suas garras descontroladamente se arrastou através da minha cota de mithril. Ainda presa, tentou balançar a cauda espetada em mim.

Tendo mirado em seu corpo, conjurei a Palavra “Vastare” e explodi um vórtice de destruição diretamente nela. O rugido da explosão combinou com o rugido da besta, quando suas entranhas se transformaram em polpa. Finalmente, ambos desapareceram e ficou tudo em silêncio.

Um ataque mágico grande e vistoso como aquele vinha com riscos, então eu não queria muito usá-lo, mas a manticora estava lutando muito. Tentar acabar com apenas uma lança teria demorado demais.

— E isso só deixa…

Permanecendo vigilante, puxei a lança para trás e a segurei. Restavam apenas alguns. Eles podem ser apenas Soldados, mas eu tinha que manter o meu juízo sobre mim até que terminasse. No entanto, enquanto estava pronto para lutar, não havia sinal dos inimigos entrando no templo.

Confuso, eu saí para ver os Soldados se transformando em poeira e se espalhando. Flechas brancas estavam saindo de seus peitos e pescoços.

— Oh! — Execução perfeita como sempre, mas…

— Pensei que você não ia se envolver? — Perguntei.

— Você tinha tudo na palma da sua mão. Só economizei tempo. — Menel apareceu das sombras, deu uma olhada ao redor e franziu a testa. — Tenho certeza que você não pode simplesmente entrar e bater em caras como esses sozinho… normalmente…

— Sim. As condições eram perfeitas. Se eu tivesse investido e tentado lutar contra tantos inimigos de frente, uma batalha muito próxima e desesperada seria inevitável. Observe primeiro o oponente, surpreenda-o e extermine-o sem permitir que ele use suas forças. Tudo isso fazia parte das táticas de batalha de um guerreiro.

— Não, mesmo com isso, esse tipo de força não é normal. Você fez algo especial?

— Uh… Comi um monte de pão sagrado? — Maria orou por um pão para me dar algo para comer, então havia uma chance de ter mudado minha constituição. O deus da morte disse algo do tipo também.

— Comer pão não faz isso, irmão.

— Eu acho que não. — Menel estava certo. Você não pode construir músculos apenas comendo muito pão sem fazer nenhum treinamento.

— Seja o que for, pão não é suficiente. Templo limpo. Acha que é seguro presumir que você eliminou a maior parte deles?

— Vamos dar uma passada pela aldeia, limpar o que tenha sobrado, e seguir em frente, eu acho.

Se iríamos enterrar os corpos ou procurar a área para ver se havia mais sobreviventes, seria difícil em um lugar onde os inimigos ainda pudessem estar à espreita. Pensei que nós estávamos provavelmente bem agora, eu não podia sentir mais demônios, mas nós precisaríamos passar pela aldeia uma vez para ficarmos a salvo.

Eu rezei pelos corpos empilhados no templo, e então nós dois caminhamos em direção à aldeia.

De qualquer forma, nós vencemos. Vencer a batalha era a nossa maior fonte inicial de preocupação, por isso, embora ainda houvesse muitas razões para ficar apreensivo, achei que Menel e eu estávamos aliviados.

— Espero que tenha pelo menos alguém que ainda esteja bem, — Menel disse, parecendo ansioso.

— Yep.

Mas, naquele momento, ouvimos uma voz débil e infantil.

— Men… el…

A expressão de Menel congelou.

 

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Eu olhei na direção da voz. Havia algum tipo de cabana pequena, talvez um galpão, e alguma coisa estava rastejando para nós.

— Menel…

Era o cadáver de um menino, queimado e seus ossos parcialmente expostos. Apenas a parte superior do corpo foi deixada; tudo abaixo da cintura foi cortado ou queimado.

— Foram demônios, eles atacaram a aldeia. — O cadáver olhou para Menel com as órbitas vazias. Menel ainda estava congelado no lugar.

— Eu estava me escondendo como você me disse… Não fiz nada perigoso… — Rastejou para mais perto, arrastando-se para frente com seus cotovelos. — Estava quente, mas aguentei e não fiz nenhum barulho… Porque…

Menel estava tremendo. Suas mãos e mandíbula estavam cerradas.

— Eu sabia que você viria. — O cadáver sorriu; era uma visão horripilante e grotesca, e ainda assim estava quente. — E você voltou. Obrigado.

Com um olhar assustadoramente feliz em seu rosto, o cadáver estendeu a mão para Menel. Menel tentou pegar, mas ele hesitou por apenas um segundo. Eu não sabia dizer se era por causa de sua repulsa ao cadáver, desconfiança dos mortos-vivos, arrependimento por não ter conseguido chegar a tempo, ou consciência culpada. Qualquer que seja o caso, o cadáver sentiu sua rejeição e seu rosto se encheu de desespero.

— Hã…? Espere… Por quê? Eu sou…

Eu sabia que não havia um momento a perder. Eu caí de joelhos, peguei o cadáver enegrecido e abracei o menino com força.

— E…ei…! — Menel olhou para mim, desconcertado.

Tudo bem, Menel, pensei. Abraçar o morto-vivo não é nada para se ter medo.

— Você fez um ótimo trabalho, — eu disse. — Estamos muito orgulhosos de você.

— Hã? Quem é você, senhor? — Ainda em meus braços, o garoto inclinou a cabeça. Flocos de pele queimada caíram.

— Eu sou amigo de Menel. Desculpe-me por Menel. Ele está um pouco cansado. Ele não está bem com isso. Por favor, perdoe-o.

— Okay. — O menino assentiu.

— Bom garoto. Vamos lá, Menel. — Eu levantei o braço do menino para Menel.

Desta vez, ele não hesitou. Ele apertou a mão carbonizada do menino.

— Sinto muito por não chegar mais cedo. — Sua voz estava tremendo.

— Tudo bem.

— Você deve estar cansado. Vá dormir.

— Boa ideia… eu me sinto realmente… com sono…

— Bons sonhos.

— Kay…

Mesmo enquanto tremia, Menel não desviou o olhar.

— Gracefeel, deus da chama. Repouso e orientação.

Era a bênção da Tocha Divina. Quando o menino fechou os olhos em sono tranquilo, a chama elevou-se suavemente no ar e tomou sua alma, juntamente com as de tantos outros à deriva nas proximidades, com ela em direção aos céus.

Menel ficou olhando até que não pudesse mais ser visto e, depois de algum tempo, falou:

— Ei, uh…

— Sim?

— Sinto muito.

— Pelo quê?

Houve silêncio enquanto Menel escolhia suas palavras.

— Eu estava desprezando você e você não merecia isso. Pensei que você fosse um garoto rico e musculoso que violou a proteção dos deuses e desapareceu. Apenas um bom samaritano sem um guia. — Ele suspirou. — Desculpe-me.

— Não é nada de mais. — Dei-lhe um sorriso.

Apesar da profunda angústia em seu rosto, ele me deu um leve sorriso de volta.

 

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Nós dois caminhamos juntos pela aldeia.

Menel não hesitou mais depois do que aconteceu. Ele segurava as mãos dos mortos-vivos que ainda tinham sua inteligência e razão, e se despedia. Aqueles que não tinham mais razão e inteligência, aqueles que foram tomados pelo ódio e pela loucura, eu os purifiquei usando o poder da proteção da deusa do fluxo.

— Gracefeel, deus da chama. Repouso e orientação.

Tocha Divina era uma técnica eficaz contra os mortos-vivos, mas não era toda-poderosa. Se os mortos-vivos resistissem à técnica, se ela teria um efeito, seria uma disputa entre a força da proteção do usuário e a fixação dos mortos-vivos. Por exemplo, se um morto-vivo de alto nível a par de Gus, Sanguinário ou Maria tentasse seriamente resistir, era duvidoso se eu seria capaz de guiar suas almas com minhas orações. Se eu pudesse me tornar um usuário tão avançado de bênçãos quanto Maria, seria possível, é claro.

De qualquer forma, por essa razão eu estava um pouco preocupado que pudesse ter algumas pessoas nesta aldeia que estavam além das minhas habilidades, mas felizmente ninguém aqui se tornou um morto-vivo tão poderoso.

O corpo espectral saiu da mulher enlouquecida que estava na minha frente, brandindo um cutelo. Confuso, seu espírito deu uma olhada ao redor dela e logo entendeu a situação. Coloquei minha mão sobre o coração e como se fizesse uma promessa, disse:

— Deixe o resto comigo. — A mulher sorriu, acenou com a cabeça e mais uma alma retornou ao ciclo eterno.

— Hmm. — Eu chequei os arredores. Era difícil dizer por causa do nevoeiro, mas achei que tínhamos passado pelos lugares óbvios.

— Menel, existem mais casas?

— Mais uma… Siga-me. — Menel seguiu em frente, pisando na terra nua.

A casa, localizada no fundo da aldeia, foi completamente queimada até o chão. Parecia que já fora um prédio bastante grande, com talvez três ou quatro quartos. As outras casas tinham apenas um ou dois quartos grandes, além de um galpão e um curral, na melhor das hipóteses.

Menel olhou para a casa por um tempo. Ele respirou fundo e soltou lentamente. Então, apertando com força a mão em um punho, ele gritou.

― Yo! Você está aqui, Marple?

— Oh? — Um espectro apareceu, atravessando um pilar coberto de fuligem. — É você, Menel. — Ela era uma mulher velha que parecia ter vivido por um bom tempo. Mas as costas dela não estavam curvadas, e ela ainda parecia cheia de vigor e vitalidade.

Pensei brevemente em Gus… e no instante em que percebi uma coisa e um calafrio percorreu-me. Isso era ruim. O fantasma dessa velha mulher chamada Marple provavelmente estava próximo de se materializar completamente. Onde os outros fantasmas eram indistintos e carentes de clareza, o corpo da velha era tão bem definido quanto o de Gus. Eu não podia dizer nada sobre sua capacidade de combate, mas tive a sensação, de alguma forma, de que sua alma seria tenaz. Se ela estivesse confusa ou perturbada e resistisse à minha bênção, era possível que a expulsão pudesse estar além de minhas habilidades. E isso significaria que eu poderia ter que usar uma arma que funcionasse em espectros, uma arma como Lua Pálida ou Devoradora, para cortar o fantasma da velha na frente de Menel…

— Heheh. Você não precisa se preocupar tanto, meu jovem.

Ela viu através do meu momento de hesitação…

Então ela sorriu.

— Eu não estou senil ainda.

A luz da sagacidade certamente residia em seus olhos.

 

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— Bom ouvir isso. Parece que você ainda tinha alguns negócios inacabados e ficou para trás. Não se preocupe. Olha, esse cara é um sacerdote de verdade. Conheci ele por acaso. — Menel começou a falar com o fantasma da velha. Ele estava falando bastante. — Ele pode enviar almas perdidas como você de volta para reencarnação, curar os feridos, ele é um gênio em todas essas coisas. Então nós dois faremos algo sobre a aldeia. Vá em frente, agradeça e vá em frente.

Eu sou um sacerdote de verdade? Ele estava realmente me zoando.

— Ou há algo mais? Alguma mensagem que você queria passar para alguém? Vou levar para a pessoa, então você…

— Menel. — Com uma única palavra, a velha acabou com a sua tagarela. Então ela suspirou. — Você tem se comportado mal novamente.

Eu não senti a contração nos ombros de Menel.

— N…não … De onde veio isso? Tem certeza de que não está ficando maluca?

— Eu posso ler você como um livro.

— Oh, sim? Como? — Menel fingiu ignorância, mas não estava funcionando. Marple continuou com convicção.

— Você é um péssimo mentiroso, querido. E uma criança difícil. Mas no fundo, você é uma pessoa escrupulosamente honesta e íntegra.

Menel parecia estar tentando dizer algo de volta, mas as palavras não saíam. A velha simplesmente sorriu. Eles meio que pareciam família. Um vivo e um morto-vivo. Os dias que passei em uma família de quatro pessoas passaram pela minha mente.

— Matar e roubar… Alguém como você não faz esse tipo de coisa.

Menel não respondeu.

— E é hora de você admitir isso. Pare de viver pelas influências. Desista desse modo de vida de sempre brigar com os outros. — Suas palavras não mostraram nenhuma restrição, cortando o estilo de vida de Menel no chão e o descartando tão casualmente quanto um açougueiro jogando fora partes indesejadas.

— Cale a boca… — A voz de Menel, em contraste, estava tremendo. — Cale a boca! Pare de falar comigo como se você tivesse todas as respostas! O que eu deveria fazer então?! — Ele estava gritando, à beira das lágrimas. — Você morreu, o resto da aldeia estava morrendo de fome e congelando! Que diabos eu poderia ter feito?! Minha força é a única coisa que posso contar! Ou você está dizendo que eu deveria ter orado a Deus?! Quando algum deus me ajudou?

Menel tentou agarrar o fantasma da velha, mas sua mão cortou o ar.

— Merda… Isso é… desgraça! — Menel caiu de joelhos e enterrou a cabeça neles.

Tudo que eu pude fazer foi assistir.

— Já tive o bastante… Deixe-me ir com você… — Enquanto o nevoeiro passava pela aldeia devastada, os tons tristes da bela voz do meio-elfo ecoaram por aí. — A vida de um mestiço é muito longa para mim…

Aqueles que herdaram sangue élfico viviam centenas de anos. Sua vida não terminaria tão facilmente. Mesmo depois de perder as pessoas e lugares importantes para ele, ele continuaria a existir. Que palavras eu possivelmente tinha para lhe oferecer? Eu não fazia ideia.

— Escute-me, Menel. Meneldor. — Marple levantou a voz, seu tom ficou sério. Menel olhou para cima. — Deus lhe deu mais uma chance. — Ela sorriu lentamente. — Uma última vez. Lave suas mãos deste modo miserável de viver.

Seu sorriso estava cheio de amor. Até me lembrava do Eco da Mãe-Terra Mater que eu vi uma vez. Ela pode não ser capaz de balançar uma espada ou usar magia, mas eu tinha certeza de que essa pessoa tinha algo muito mais incrível e precioso do que qualquer coisa que eu possuía, tal era o poder daquele sorriso.

— Você pode odiar Deus, mas Deus sempre amará você. Se você percebe isso ou não, Deus está sempre brilhando sobre você, incessante, incansável. — Através do silêncio da aldeia, a voz da mulher pereceu carregada de clareza, sussurrou como uma criança dizendo a sua amiga onde ela tinha escondido seus tesouros. — Agora, tudo depende de você. Tudo que você precisa fazer é ver a luz. — Ela sorriu. — Dê uma chance, e prometo que tudo vai dar certo.

Menel cobria o rosto e chorava silenciosamente, os ombros tremendo.

Então… a mulher se virou para mim.

 

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— Agora, Sacerdote, posso ter uma palavra?

— É claro.

— Eu poderia te pedir para cuidar desse garoto bobo? Ele não é uma pessoa má. Você… bem… se dá bem com ele?

Foi o último desejo de uma pessoa que partiu deste mundo. Eu assenti com firmeza. Marple deu um aceno satisfeito.

— Oh, sim… Sobre os demônios com bestas que atacaram a aldeia, parece que não foi um caso de demônios vagando por aqui por acaso. Eles têm um líder e uma base onde ele mora no meio da floresta, e ele envia subalternos para vários lugares de lá. Eu não sei os detalhes exatos, mas parecia que eles tinham algumas coisas ruins planejadas envolvendo domar bestas e atacar pessoas.

— Não me diga que você pode falar idioma demoníaco? — Nem mesmo Gus sabia muito sobre esse idioma. Talvez alguma pesquisa tenha sido feita em algum momento nos últimos duzentos anos?

— Bem… Essa é uma longa história de muito tempo atrás.

Que tipo de passado essa mulher tem?

— A julgar pela direção que eles estavam enviando seus familiares e assim por diante, eu suspeito que sua base é na direção das montanhas Rust, a capital caída dos anões.

Eu olhei para o oeste. Além do nevoeiro, pude ver vagamente uma cordilheira marrom-avermelhada à distância. Deve ser ali.

— Você não quer o fardo?

— Pelo contrário, você foi muito útil.

— Bom, — Marple disse com um sorriso. — Eu estava me sentindo culpada por não poder agradecer de alguma forma. Se te ajudou, Sacerdote, então estou feliz.

— Hum, seu negócio inacabado, poderia ser…

A velha rugiu de rir.

— Claro que foi! Como se eu pudesse levar isso para o túmulo! Alguém tinha que saber! — Ela riu por um tempo. — Então, isso é tudo. Espero que você não se importe, mas não precisarei da sua orientação. Deus, sabe, já está esperando por mim.

Eu vi uma chama fraca ao lado da velha. Ah… você está aqui, pensei.

— Com isso dito, vou indo, — Marple disse, e sorriu.

A situação no mundo exterior não era boa, assim como meus pais temiam. Mas havia pessoas aqui. Não era tão ruim assim.

— Menel, mantenha sua cabeça erguida. Este mundo está cheio de coisas que não podem ser desfeitas. Você não deve pensar nelas e deixar que elas o prendam. Levante-se, olhe para frente e faça o que precisa ser feito.

— Desgraça. Então você só vai dizer isso e ir embora, — Menel disse amargamente.

Marple riu.

— Olhe em um espelho, querido. Nós dois gostamos de fazer as coisas do nosso jeito. Que menino gracioso! — Ela sorriu, pés de galinha se formaram nos cantos dos olhos, colocando os braços incorpóreos em torno de Menel, esfregando as costas com as mãos que não podiam tocar.

— Tudo bem, — ela disse calmamente. — O resto, confio em você.

— Okay. — Coloquei minha mão sobre o lado esquerdo do meu peito, e retornei um voto. — Você pode deixar isso para mim.

Ela sorriu.

E outra alma retornou ao samsara.


 

Tradução: Erudhir

Revisão: Merciless

 

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