Um silêncio solene que parecia rejeitar até mesmo uma única tosse se espalhou pelo salão gelado.
Dobrei minhas pernas na posição de lótus e descansei as costas das minhas mãos nos meus joelhos. Balancei meu corpo um pouco para ajustar minha postura. Então sentei-me absolutamente ereto, como se minha coluna fosse um mastro que conectava a terra aos céus.
Calmamente fechei meus olhos para o grande salão do templo.
Minha visão foi desligada. Meus sentidos de audição, tato, olfato e paladar também estavam recebendo pouca estimulação.
Eu expirei lentamente e inspirei não muito profundamente. Contei esse ciclo como “um”.
Um, dois, três, quatro, cinco… Me concentrei apenas na contagem. Sempre que um pensamento desnecessário entrava em minha mente, começava de novo desde o início.
— O estado de desconsciência não é sobre não pensar. Isso levará a um ciclo infrutífero de pensar sobre como não pensar. Você não pode alcançá-lo brincando com palavras e pensamentos abstratos.
— Alcançar desconsciência, estar verdadeiramente sem pensamentos, é focar intensamente no “agora” como ele existe. Expulse suas lembranças do passado e sua imaginação do futuro. Pense apenas no agora que existe diante de você.
— Deite-se diante de Deus. Não o seu eu passado, nem o seu futuro eu. Seu eu atual, pequeno e insignificante, como você existe, aqui neste momento. Não há truques escondidos para isso. Faça isso e somente isso, a sério. Pense no agora, concentre-se nele e se jogue. Isso é tudo que existe para “rezar sem mente”.
As palavras de Maria passaram pela minha cabeça. Eu contei respirações, e logo elas sumiram.
Um, dois, três, quatro, cinco… Mais e mais, eu simplesmente me concentrei em contar.
Eu não pensei em mais nada.
Eu ouvi o vento. Um pássaro cantava longe.
Eu podia sentir as sensações na minha pele quando me sentei no chão.
Mais e mais, eu contei.
Senti o ar sendo respirado, o ar sendo expirado, o som da minha respiração e as batidas do meu coração.
De novo e de novo, eu contei.
Eu contei.
Contei.
Mais fundo.
Sempre mais profundo.
Eu senti como se estivesse mergulhando nas profundezas do oceano azul.
Para baixo.
Para baixo.
Sempre para baixo.
Quanto tempo eu passei “mergulhando”?
O badalar alto e agudo de um sino me trouxe de volta à realidade.
Abri minhas pálpebras depois de muito tempo mantendo-as fechadas. A paisagem do templo voltou. Parecia incrivelmente vívido.
A noite já havia caído e meus arredores estavam iluminados por uma lâmpada. As esculturas dos deuses, iluminadas por chamas oscilantes na escuridão gelada, eram profundamente fantásticas e encantadoras.
Nós humanos realmente nos acostumamos facilmente com as coisas. Quando nos acostumamos a ver algo, não prestamos muita atenção na próxima vez que o vemos. Nos acostumamos a ouvir algo e não prestamos muita atenção da próxima vez que ouvimos. Tocar, cheirar e provar tudo funciona da mesma maneira.
É a maneira como aprendemos a reagir aos estímulos de maneira eficiente. Mas por outro lado, isso também entorpece nossa sensibilidade e nos faz esquecer nossos sentimentos.
Por esses motivos que eu amo esses momentos de despertar da oração profunda. Tudo o que via e ouvia parecia fresco, como se eu tivesse acabado de renascer. Era um sentimento estimulante, como se eu tivesse acabado de limpar meu corpo de uma sujeira aderida a todos os meus sentidos.
Eu desfrutei do sentimento por um tempo, e então lentamente movi meu corpo para fora da posição de lótus. Eu estava na mesma pose há algum tempo. Meu corpo todo doía.
— Muito bem, Will. — Maria esperou que eu me movesse antes de falar. Ela estava segurando o sino que usou para sinalizar o fim da adoração. — Isto conclui o rito de cinco dias da oração silenciosa.
— Ob… obrigado…
Eu tinha treze anos pelo cálculo deles agora. Cinco anos se passaram desde que queimei meus braços.
De fato, poderia tê-los curado sem deixar vestígios por uso adicional de bênção, desde que eu estivesse preparado para que Maria se transformasse em uma tocha novamente. Ela se ofereceu para fazer isso por mim, mas recusei. Bem, em parte, pois eu não achava que as queimaduras eram ruins o suficiente para ela fazer algo como aquilo, e em parte porque Sanguinário me disse que elas eram um distintivo de honra.
Recebi tratamento, inclusive pela magia de Gus, e depois de muito sofrimento, fiquei com a pele descolorida das palmas de minhas mãos até certa parte nos braços, como era esperado. Eles me disseram que tive muita sorte. Eu realmente estava me preparando para as queimaduras se transformarem em cicatrizes horrivelmente inchadas, então fiquei me sentindo um pouco como “Oh, isso é tudo?” Mas mesmo agora, meu distintivo ainda estava em torno de ambos os meus braços.
Desde então, cresci em altura. Estava agora ao nível dos olhos de Maria, e chegando bem perto de Gus também. Eu ainda tinha que olhar para cima para conseguir enxergar o rosto do Sanguinário, mas ele me elogiou uma vez sobre o quão viril eu estava ficando.
Quando renasci neste mundo, não tinha exatamente trazido uma régua comigo. Eu só podia adivinhar a minha altura em “figuras antigas”, mas provavelmente eu tinha mais de 160 cm neste momento.
Este mundo utilizava principalmente unidades de medida antrópicas. Como se, se você fizer uma arma com o polegar e o indicador, a distância entre os dois é de cerca de quinze centímetros. Eu não pude deixar de converter em métrica. Deve ter sido a influência das memórias da minha vida passada.
Deixe-me retornar à situação atual.
Nos últimos cinco dias, eu estava tirando uma folga das minhas aulas com Gus e Sanguinário para realizar o ritual da oração silenciosa. Era um rito religioso rigoroso realizado no inverno em mosteiros para Mater, a Mãe-Terra. Maria já havia passado por isso várias vezes enquanto estava viva.
O rito era… muita coisa.
Do nascer ao pôr do sol, cinco dias depois, você era proibido de pronunciar sequer uma única palavra, exceto no caso de emergência. A comunicação só poderia ocorrer através de um sino, e além do tempo gasto dormindo e assim por diante, que deveria ser reduzido ao mínimo, virtualmente todo o restante do tempo deveria ser dedicado à oração de consciência-única.
Levante-se, ore. Sente-se, ore. Quando seu corpo começar a ficar rígido e dolorido, levante-se e caminhe e, enquanto caminha, ore. Quando você se sentir de volta à forma, sente-se e ore. Quando for hora de dormir, antes de dormir, ore. Haveria orações de agradecimento enquanto comiam refeições, orações de diálogo enquanto olhavam para si mesmo, orações de petição para desejar proteção, orações de louvor a Deus.
E depois de realizar aquele repertório de todo tipo de oração sob o sol, o rito deveria ser concluído com aquelas longas horas de desconsciência.
Quando ouvi pela primeira vez o que estava fazendo, também fiquei incrédulo. Mas é bastante aterrorizante e surpreendente o que os humanos são capazes de fazer quando tentam.
Aliás, Maria, me disse que ela era fisicamente incapaz de orar por tanto tempo sem se reduzir a cinzas. Ela me ajudou em vez disso. Eu entendi, claro.
Perguntei-me, por um breve momento, se eu poderia ser abençoado com bênção depois de toda essa oração, mas não havia sinais de que isso aconteceria. A julgar por isso, parecia que a bênção realmente exigia uma forte afinidade com seu deus. Maria havia me dito que muitos crentes profundamente devotos nunca são abençoados com a arte. Percebi que era assim mesmo.
De qualquer forma, os ensinamentos de Maria sobre a oração foram certamente uma provação, mas…
Havia algo realmente pior.
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O rito de silêncio era pior que as lições de Maria, de longe. Normalmente, elas eram muito mais de boa: como fazer sapatos, costurar roupas, cultivar vegetais, se comportar com decência e assim por diante. Elas eram… sabe, calmantes. Comum.
As lições de Gus, por outro lado, estavam ficando um pouco fora de controle recentemente.
Eu era grato por ele me ensinar, apesar de seu rosto me dizer mais alto do que suas palavras que ele realmente não queria se incomodar. O problema era o conteúdo, que se tornou cada vez mais avançado. Também era muito mais denso em termos de quanto me ensinaria de uma vez.
Eu estava seriamente sobrecarregado.
Ele me fez memorizar vários tipos de Palavras, e combinar Palavras para fazer frases e sentenças. Fazia-me praticar vocalização e pronúncia, de modo que eu pudesse falar e recitá-las corretamente. Ele me ensinaria tudo de uma vez, de geometria e aritmética à retórica e argumentação. Havia geografia histórica, direito, astronomia, engenharia civil, construção, medicina, economia e administração de negócios… e depois de me ensinar, me diria para memorizar tudo.
No dia seguinte, haveria um teste, seguido de mais estudos, seguido de outro teste, e uma vez a cada dez dias, haveria uma revisão do que havíamos abordado. “Estudo” era uma palavra muito tranquila para a quantidade ofensiva que ele lançava contra mim.
Honestamente, comecei a me perguntar se ele estava secretamente esperando que eu jogasse a toalha.
Naturalmente, as memórias de minha vida passada eram úteis para geometria e aritmética. Eu era muito bom em matemática, então por um tempo, estava usando isso para me dar um pouco de espaço para respirar. No entanto, até mesmo isso estava se tornando difícil, porque quando Gus julgava que eu estava entendendo alguma coisa, ele pulava direto sobre aquela parte, como se eu tivesse acabado de passar de série, e também encontrava algo extra para me ensinar.
Uma parte de mim queria que eu o tivesse enganado um pouco mais. Ainda assim, decidi levar esta vida a sério. Queria fazer tudo sem parar. Felizmente para mim, este corpo ainda era jovem e tinha uma boa memória, de alguma forma ainda estava aguentando.
E, tendo aprendido muito, finalmente percebi que não apenas o conhecimento de Gus era extremamente amplo, mas profundamente insondável também.
Sanguinário uma vez me disse que Gus costumava ser exaltado como “O Sábio Errante”. Eu podia ter a sensação de que ele realmente vagou pelo mundo e esteve em todos os lugares, e aprendeu com a experiência e com o conhecimento factual.
A civilização deste mundo era menos avançada do que na minha vida anterior, supondo que você descontasse as magias. Ainda assim, se Gus falava sobre a anatomia dos animais ou sobre o procedimento para construir um edifício, ele falava pragmaticamente e com clareza. Nem um único momento era gasto nos tipos de ideias fantasiosas que os eruditos medievais do meu velho mundo falavam.
Mesmo quando Gus falava sobre meio-humanos e bestas míticas, que na minha vida passada não eram nada mais que invenções da imaginação, não havia a menor hesitação em seu discurso. Ao ouvi-lo falar sobre essas coisas, depois de aparentemente tê-las encontrado, comecei a perceber que não estava sendo esperto ou inteligente, duvidando constantemente de sua existência. O conhecimento de minha vida passada não poderia ser aplicado a este mundo, e eu estava começando a me sentir estúpido por pensar que isso poderia acontecer. Afinal, a pessoa à minha frente era indiscutivelmente um fantasma.
De qualquer forma, as lições de Gus eram executadas em um cronograma incrivelmente apertado. Eu estava desesperadamente tentando acompanhar, mas era questionável quanto tempo duraria. Gus, irritado, não hesitaria em interromper a aula se eu começasse a reclamar, por isso nem me foi permitido resmungar. Simplesmente tinha que trabalhar duro e mostrar que poderia realizar o imenso número de tarefas que ele estava passando para mim.
Era cansativo. Eu poderia ser perdoado por chamá-lo de um pouco descontrolado. Mas as lições de Gus, apesar das minhas reclamações, ainda eram apenas a segunda pior.
As lições de Sanguinário estavam fora de controle, mesmo em comparação com as de Gus. Não era apenas “um pouco” descontrolada, era seriamente uma loucura.
Mudamos nossa forma de lutar, e eu estava praticando com espadas de madeira e lanças de madeira mais realistas, e aprendendo técnicas e forma. Isso tudo era suave. Como uma extensão de nossa caça, aprendi como montar armadilhas, pegar presas, como derrubar grandes animais e como sobreviver por dias na floresta. Isso também fazia sentido. E as corridas de treinamento arregimentadas e o treinamento muscular que Sanguinário tinha começado a impor a mim enquanto meu corpo começava a tomar forma também não eram nada surpreendentes, e obviamente de acordo com seu pensamento.
O equipamento real começou: espadas reais, lanças reais e armaduras de couro genuíno. Eu não tinha ideia de onde ele tinha conseguido tudo isso, mas era natural que você os mantivesse escondidos e fora do alcance de uma criança. Ele me fez correr por aí usando essas coisas e praticar meus balanços e técnicas. Considerei tudo isso uma parte completamente natural da educação de um guerreiro.
Mas depois disso, começou a ficar uma loucura. Seriamente uma loucura.
— Tudo bem. Então, a partir de hoje, vou começar a te colocar em batalhas reais.
O quê?
— Deixe-me avisá-lo, o cara que você estará lutando não vai ter nada em sua mente, exceto matar você.
Quê?
— Vamos lá. Vou supervisionar, claro, mas se houver um acidente, você vai morrer feiamente. Então, tente não acabar morto.
QUEEEEEEEEEEEEEEE?!
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Eu vou dar um spoiler sobre o final. Tive um tempo terrível.
Entrando nos detalhes, Sanguinário me deu uma longa espada e escudo circular, e me fez lutar até a morte contra um morto-vivo fraco que ele capturou em algum lugar.
Era o cadáver seco de um monstro. Não tinha nariz nem orelhas, mas tinha um olho e uma boca que se abria em um sorriso perturbador em forma de lua crescente. Seu corpo não era muito diferente do meu. Quando Sanguinário liberou-o, fui imediatamente para cima, enquanto ele balançava suas garras lascadas e rachadas.
Oh sim. Eu estava apavorado.
Isso pode surpreendê-lo depois de ouvir todo o meu treinamento. No entanto, o treinamento e a coisa real eram mundos separados.
Foi horrível enfrentar um adversário que pretendia me matar. Como eu poderia descrever esse horror?
Havia uma sensação de segurança que vinha com o treinamento. Tinha restrições, combinadas pelos participantes, de modo que o risco de acidentes ou ferimentos graves fossem reduzido o máximo possível. Se o seu oponente assumisse o risco e o surpreendesse com um movimento que você não conseguia lidar, você não acabaria gravemente ferido e não morreria. O mesmo aconteceria se você tentasse uma ação arriscada e ousada de sua preferência.
O custo a pagar pelo ato de assumir riscos era baixo. Era isso que permitia que você experimentasse todos os tipos de comportamentos diferentes, investigasse seus prós e contras e os reduzisse a um ou dois que fossem realmente eficazes. No meu mundo anterior, também, as artes marciais desfrutaram de grande popularidade e avanço técnico como resultado do estabelecimento de um formato seguro para a luta.
Mas em uma batalha real, todas as ações viriam com risco. Se você sofresse um único golpe forte, se seu pé escorregasse apenas uma vez, só isso poderia ser o seu fim. Morte: o último beco sem saída.
Eu estava agora em uma batalha real, e cada ação que tomei tinha a possibilidade de levar a algum nível de risco. Minha mente ficou em branco e comecei a perder a confiança no que deveria fazer.
Claro, lembrei-me de ter tido uma outra vida, mas meu sentimento intuitivo era de que era uma ocorrência extremamente rara, e eu não tinha nenhuma expectativa de conseguir outra. Mesmo se tivesse, não faria diferença alguma a aversão biológica à morte que estava borbulhando dentro de mim.
E as feridas fatais não era a única coisa que me assustava. Se eu tivesse meus olhos arrancados, não conseguiria mais ver. Se um tendão fosse cortado, eu perderia o movimento naquele membro. Minha traqueia poderia ser esmagada. Poderia perder meus dedos. Perguntei-me se havia alguma verdade naquele boato que ouvi em minha vida passada, que se você cortasse seu nariz, o muco sairia pelo buraco na sua cara.
A intenção assassina do meu inimigo me forçou a confrontar todas essas possibilidades horríveis de uma só vez.
Eu fiquei com visão em túnel. Meu coração disparou. Minha respiração ficou irregular, meu corpo começou a tremer, todo o pensamento cessou, e como se nada disso importasse, me movi para cortar meu inimigo com um único golpe.
Quando o monstro morto-vivo balançou suas garras para mim, eu as empurrei para longe de mim com o meu escudo e pisei na diagonal. Ao cruzarmos, cortei com minha espada horizontalmente em direção ao seu torso. Ajudado pela inércia rotacional da minha parte inferior do corpo bem treinada, meus ombros e músculos do braço empurraram a espada para dentro.
Senti uma resistência reconfortante quando a lâmina acertou.
Eu coloquei distância entre nós novamente. Quando olhei em seguida, o corpo seco e morto da criatura morta-viva havia sido cortado em dois e estava desmoronando.
Lutar em uma batalha real era aterrorizante. Eu poderia dizer sem dúvidas que estava com medo. Meus músculos, no entanto, que foram treinados desde tenra idade, eram fiéis e corajosos. Eles se mexeram por conta própria, deixando meus pensamentos covardes para trás. A melhor resposta para qualquer ataque já estava impressa neles como uma ação reflexa.
No meu mundo anterior, soldados e combatentes que tinham passado por muitos treinamentos para a batalha eram às vezes chamados de “máquinas de matar”. Agora eu entendia o quanto essa descrição era apropriada. Guerreiros adequadamente treinados poderiam matar seus inimigos como uma resposta mecânica, deixando todo o seu medo e repulsa para trás, assim como Sanguinário me disse uma vez.
— Phew!
O monstro que eu acabei de cortar provavelmente era um demônio, um dos subordinados do deus maligno das dimensões, Dyrhygma. A menos que eu estivesse enganado, o demônio que acabei de matar era um dos mais baixos e mais fracos. Ganhei esse conhecimento das lições de história natural de Gus, então tinha certeza de que estava certo.
Mas, eu estava um pouco surpreso. Demônios eram seres de outra dimensão, e ouvi que, quando derrotados, eles simplesmente desapareciam. Não tinha ideia de que pudessem se tornar mortos-vivos também. Talvez esse fosse especial, foi o que pensei, enquanto eu estava de pé olhando o monstro se transformar em poeira.
Eu acabei de matar algo que parecia uma pessoa. Claro, era um monstro morto-vivo, mas ainda achei estranho como não sentia emoção. Não estava me sentindo animado, em pânico ou confuso. Se outro do mesmo tipo de inimigo fosse me atacar, tinha certeza de que poderia cortá-lo da mesma maneira. Minha falta de hesitação em tirar uma vida era provavelmente o resultado de quão proficiente todo o meu treinamento foi.
Depois de me certificar de que ele tinha virado poeira, olhei para Sanguinário, cujo rosto parecia estupefato. Sua expressão esquelética não era diferente do habitual, é claro, mas sua boca estava entreaberta e ele estava olhando para mim.
— Sanguinário, eu ganhei. O que há de errado?
— Uh… Certo. Sim, bom trabalho. Tudo bem, considerando que foi sua primeira batalha. — Ele tentou agir como se não fosse nada, mas sua voz não convencia muito. Ele parecia satisfeito.
A impressão que eu estava tendo era que Sanguinário pensava que o que mostrei era muito bom, mas não queria que isso subisse para a minha cabeça, então ele estava me dizendo para ir com calma.
Bem, bem, bem. Eu suavemente ri pelo meu nariz. Aprender isso me fez feliz. Fiz uso do que Sanguinário me ensinou. Estava me sentindo muito orgulhoso de mim mesmo. Agora, então…
Eu disse no começo que tive um tempo horrível. Você está pensando “isso não foi tão ruim”, certo? É, não foi. Foi aí que tudo deu errado.
— E-ei! Não fique convencido. Tudo bem, eu disse, tudo bem.
— Vamos, desista. Apenas diga, eu sou um gênio! — Claro, estava brincando. Eu estava preparando ele para fazer uma piada às minhas custas. Só que não foi isso o que ganhei.
— Gênio, huh. Sim… Talvez você seja. — Por alguma razão, Sanguinário respondeu à minha piada em um tom relativamente sério. E então, mudando para um alegre, ele disse algo absolutamente horripilante. — Tudo bem, gênio, por que não tentamos algo mais difícil?
Sério?
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A cidade arruinada sempre foi algo que eu via de cima da colina do templo. Nunca fui autorizado a passar por lá, pois era muito perigoso, e então, por causa disso, nunca soube que também tinha uma parte subterrânea complexa.
Antes de entrarmos, Sanguinário me disse que essa cidade já foi habitada por humanos e anões.
Os anões eram baixinhos, mas poderosos, e se destacavam em metalurgia, engenharia e construção. Familiarizados com a terra, eles preferiam viver em cavernas subterrâneas, e este lugar não era exceção. Eles construíram uma grande cidade para eles.
Nos dias de hoje, a cidade subterrânea abaixo das ruínas era um lugar perigoso, mortos-vivos selvagens e estúpidos vagavam pela cidade, Sanguinário havia capturado um deles anteriormente. A razão pela qual fui proibido de me aproximar da cidade em ruínas era porque criaturas mortas-vivas como aquela ocasionalmente saíam do subterrâneo.
Esse subterrâneo era onde eu me encontrava agora.
Deram-me roupas, sapatos, armadura de couro, uma espada longa, uma adaga, um escudo circular e, finalmente, a bolsa nas minhas costas, que continha pão, carne seca e um odre cheio de água. Sanguinário me deixou aqui, no fundo da cidade subterrânea. Eu deveria sair daqui com apenas as coisas que me deram.
A profunda escuridão estava diante de mim. Não era apenas escuro. Eu não conseguia ver minha mão na frente do meu rosto. Esse era um verdadeiro breu, sem o menor traço de luz, brincando até mesmo com meu senso de equilíbrio.
Como você deve ter notado, uma fonte de luz não foi incluída entre os equipamentos que me foi dado. Sanguinário me trouxe aqui através da escuridão. Ele, é claro, não tinha mais globos oculares humanos, e parecia usar algum outro método paranormal para perceber seu entorno. Claro, eu não consegui memorizar o caminho que tínhamos pego para chegar até aqui. Então, ele tinha acabado de sair, sem sequer me dar uma luz, deixando-me no meio deste covil de mortos-vivos. Aqui estava eu.
As coisas não pareciam boas, para dizer o mínimo, e eu ainda não tinha começado. Dito isso, o pânico não ia resolver nada. Essencialmente, este era um exame prático. Supostamente, esta era uma situação da qual eu poderia sair, se fizesse bom uso de tudo que me foi ensinado até agora.
Respirei profundamente e, como se expandisse meu senso de toque para fora dos limites da minha pele, senti a mana circundante e sincronizei com ela. Desembainhando minha adaga, cuidadosamente gravei a Palavra Lumen, que significava “luz”, no meu escudo.
O escudo se iluminou e, com sua luz mágica, pude ver a área ao redor, até cerca de dez metros, detalhadamente. A luz não oscilava como uma chama, e era mais brilhante também, era quase o mesmo brilho de uma lâmpada fluorescente do meu velho mundo. Ela acabaria em algumas horas, mas uma vez que isso acontecesse, poderia acendê-la novamente, atraindo a mana circundante para a Palavra gravada.
Olhei meus arredores com a luz. Eu parecia estar em uma pequena sala, ou algo do tipo. Havia uma entrada, e onde minha luz não alcançava era um profundo breu. Podia ouvir o uivo baixo de vento soprando de algum lugar.
Não tinha ideia de quanto tempo a fuga iria levar. Descansar será o problema, passou pela minha cabeça. Eu não tinha ninguém aqui para ficar de guarda. Descansar em circunstâncias como esta exigia nervos fortes e vários preparativos.
Você nunca teve problemas em ficar sozinho em seu quarto antes, pensei amargamente. Nos últimos dez anos, Sanguinário sempre esteve lá, Maria e Gus também.
— Estar sozinho te faz tão solitário e… ansioso, — eu murmurei. Tinha esquecido disso.
Sanguinário provavelmente estava testando minhas habilidades práticas: a força física robusta necessária para suportar as circunstâncias intensas de uma batalha real, a flexibilidade para encontrar a técnica certa para lidar com qualquer tipo de situação e a força mental para permanecer composto em constante solidão e perigo.
Garantir que eu pudesse fazer uso de tudo o que aprendi com os três, mesmo quando nenhum deles estivesse por perto. Esse era o objetivo deste exercício.
Eu tinha treze anos, em breve, quatorze. Quinze anos era considerado adulto neste mundo, então o tempo para eu conseguir andar sozinho estava próximo.
Eu queria que eles me vissem no meu melhor. Queria que os três soubessem que as coisas que eles me ensinaram estavam se concretizando, que tinha valido a pena o tempo deles. Se possível, queria que eles se sentissem orgulhosos por eu ser aprendiz deles.
Resolvido a fazer pleno uso das minhas capacidades, entrei no labirinto.
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Usando meu escudo, desviei a cauda cheia de espinhos que estava balançando perto de mim.
— Tacere, os! — Sem vacilar, falei as Palavras para impor o silêncio. A mandíbula do monstro esquelético na minha frente se fechou, e as Palavras que estava tentando emitir foram interrompidas.
Não pretendendo perder minha chance, fui em direção a ele, mas uma tempestade de balanços selvagens de sua lança curta me forçou a parar subitamente, seguido por uma retirada. Olhei para o breu congelante em suas órbitas oculares, e pareceu olhar de volta.
Eu estava em uma área ampla e aberta da cidade subterrânea. A coisa na minha frente era um esqueleto que pertencia a um demônio. Para resumir sua aparência em poucas palavras, era uma mistura de humano e crocodilo.
Tinha cerca de dois metros de altura e seu crânio lembrava um dinossauro. Tinha uma espinha dorsal espessa para combinar com seu físico, com uma série dramática de projeções ósseas que percorriam seu comprimento, e sua cauda estranha tinha espinhos no final. Ele estava segurando uma pequena lança de metal, intocada pela ferrugem, em suas mãos humanas.
Lembrei-me de ter aprendido sobre esse demônio com Gus. Era chamado de vraskus.
Disseram-me que uma mordida de suas mandíbulas poderia esmagar armaduras de metal, enquanto os golpes de sua cauda eram como os de um assassino, vindo de ângulos inesperados. Era de um nível relativamente alto, sendo proficiente no uso de todos os tipos de armas e até capaz de manejar as Palavras da Criação.
Dizia-se que suas escamas duras, pele emborrachada e músculos grossos frustravam seus oponentes no mesmo grau que um conjunto de armaduras de guerreiro. Felizmente, como agora era um esqueleto, essa proteção não existia mais. Eu me senti um pouco sortudo.
Gus tinha me dito durante as lições que se você enviasse dez guerreiros para lutar contra esse demônio, acabaria com nada além de dez cadáveres. Talvez ele possa ter exagerado um pouco. Afinal, esse cara era muito lento comparado a Sanguinário.
Esperei o momento certo e diminuí a distância entre nós o mais rápido possível. Enquanto empurrava a sua lança curta para a frente, desviei-a com meu escudo. Ouvi o escudo e a lança rasparem um contra o outro. Desviei bem perto. O vraskus veio até mim com as mandíbulas que não podiam mais usar magia, tentando me morder. Estava antecipando esse movimento também. Eu me abaixei e rolei para frente para evitá-lo, pulei e empurrei a ponta da minha espada longa em algum lugar ao redor do cóccix. Imediatamente girei com força. A cauda estava vindo em minha direção novamente de um ponto cego. Destruí a parte que a conectava com o resto do corpo e senti a força e o colapso.
O vraskus parou por um instante, aparentemente surpreso.
Eu não ia desistir. Levantei meu escudo redondo e tentei dar uma escudada.
Todos sabem disso, mas normalmente, um menino de 1,60 m nunca seria capaz de agitar uma enorme besta de dois metros de altura apenas atacando-a. Mas meu oponente era apenas ossos, e a perda de sua longa cauda perturbou seu equilíbrio. Eu bati meu corpo e o protejei com toda a força que pude reunir. Houve um impacto forte e, no instante seguinte, o vraskus caiu no chão.
Eu pisei na lança.
Mas o vraskus foi rápido em pensar e agir. Ele soltou a lança imediatamente e pulou em mim com os braços estendidos, tentando me morder.
Assim como pensei que seria.
Eu já tinha minha espada nas duas mãos, erguida acima da cabeça, esperando interceptar o ataque.
— Y-yaaaaaaghhh! — Enquanto o vraskus ia direto para minha traqueia, esmaguei minha espada em seu crânio com toda a minha energia. Fragmentos de ossos voaram por toda parte, e o enorme esqueleto caiu de cara no chão.
A ponta quebrada da minha espada girou rapidamente no ar. Bateu contra o chão e rolou até parar no canto da sala.
— Ah…
O vraskus começou a virar pó, mas eu estava mais preocupado com o estado da longa espada de confiança que nunca tinha dado um nome. Como se em troca de derrotar aquele inimigo forte, agora estava impressionantemente quebrada.
Senti meu sangue gelar.
Isso era ruim.
Os mortos-vivos estavam rondando este lugar, e eu estava aqui sem uma arma principal. Isso era muito ruim.
Fiquei muito abalado, mas imediatamente me distraí. Logo vi a lança curta que o vraskus estava segurando. Não estava se transformando em poeira. Peguei-a e dei uma olhada. Não parecia demoníaca. Se fosse alguma coisa, era uma lança anã.
Cantarolei pensativamente. Talvez fosse um dos trabalhos dos anões que viviam aqui?
Mas nesse caso, como poderia ter durado tantos anos sem enferrujar? Pensando nisso, inspecionei-a mais de perto e notei que as Palavras da Criação foram gravadas em vários lugares. De acordo com Gus, na época dos deuses em guerra, os deuses gravavam todos os tipos de Sinais em todos os tipos de itens e criavam muitas espadas divinas e tesouros lendários. Os anões herdaram em parte essas habilidades e possuíam uma técnica secreta para imbuir suas armas com as Palavras.
Então esta lança não tinha ferrugem e era uma arma mágica, feita pelos anões que tinham povoado esta terra.
Como regra geral, esses tipos de armas eram extremamente duráveis e poderiam ter efeito até em espectros como Gus, que não podia ser tocado por ataques físicos normais. Havia até algumas que tinham poderosos efeitos adicionais, como lançar fogo ou atordoar o oponente com uma onda de choque. O único problema era que eu não tinha como determinar isso aqui. Eu estava com medo de empunhar uma lança cujos efeitos mágicos não conhecia.
Mas estar sem uma arma principal era ainda mais assustador.
Já que o vraskus estava balançando-a perfeitamente, percebi que o que quer que essas Palavras fossem, elas provavelmente não eram prejudiciais ao usuário. Decidi fazer com que Gus avaliasse mais tarde, e emprestasse sua força por enquanto.
Segurei o cabo e pratiquei alguns golpes e estocadas para ter uma ideia. Era maravilhosamente fácil de usar, como se estivesse agarrada à minha mão.
— Certo.
Vamos ver se não posso fazer algo com isso, pensei, e logo que coloquei o pé para a frente, um calafrio percorreu minha espinha.
Eu me virei. Gus estava lá. Ele estava olhando para mim e seus olhos pareciam os de um assassino.
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— Gus? É… é você, certo? — Não pude evitar de checar. Sua aura dava esse pressentimento.
Eu conhecia Gus como um velho fantasma teimoso e ligeiramente excêntrico que era inteligente e sabia de tudo, e tinha um nariz curvo e olhos hostis. Ao contrário de Sanguinário e Maria, ele mantinha uma pequena distância em suas interações comigo, mas se eu lhe pedisse repetidamente para me ensinar e tivesse uma atitude séria sobre, ele era honesto o bastante para não me dispensar de imediato.
Esse era o Gus usual. Eu acreditava que, no fundo, ele era uma pessoa muito boa e gentil. Mas ele não estava assim agora. Havia uma intenção nitidamente assassina em seu olhar penetrante, e suas mãos, mantidas em uma posição firme, pareciam cheias de mana, provavelmente suficientes para usar alguma magia consideravelmente forte.
A parte de trás do meu pescoço se arrepiou, como se alguém tivesse soprado um ar gelado.
Gus não disse nada.
Ele era como uma pessoa completamente diferente. Apenas um olhar ameaçador e uma pose ameaçadora faziam dele tão assustador?
Não me parecia que isso fosse algum tipo de ilusão ou disfarce. Definitivamente era Gus. Mas o que o deixou tão irado? Por que ele estava aqui?
— Ah…
— Vou supervisionar, claro, mas se houver um acidente, você vai morrer feiamente. Então, tente não acabar morto.
Eu me lembrei das palavras de Sanguinário.
Dizendo: “Vou supervisionar, mas há o perigo de morte acidental”, significava que provavelmente não morreria a menos que um acidente ocorresse. Em outras palavras, não importava o quão árdua a lição fosse, ainda era uma lição. A menos que eu desse de cara com um inimigo despreparado, e de alguma forma morresse instantaneamente, ou cometesse algum erro horrível, poderia esperar que a ajuda viesse se a situação se tornasse mais do que eu pudesse suportar.
Como eles conseguiriam essa ajuda para mim? Se alguém fosse encarregado de me ajudar aqui, nesta cidade subterrânea, certamente seria Gus, que, como um espectro, poderia atravessar paredes. O trabalho de me seguir seria impossível para Maria e, sem dúvida, muito difícil mesmo para Sanguinário. Gus quase certamente estava constantemente me observando enquanto eu vagava por essa cidade subterrânea, lutava e procurava a saída. Que significava…
— Isso faz… parte da aula? — Perguntei gaguejando. Talvez essa fosse outra parte da lição, onde Gus seria meu oponente. Eu queria acreditar que era.
Meu instinto estava tocando todas as sirenes de alerta no volume máximo, gritando para mim que eu estava errado.
— Está certo? Você vai me dizer o que eu sou…
Ele começou a desenhar uma Palavra no ar no lugar de uma resposta. Eu poderia dizer olhando para ele. Era uma Palavra de ataque.
Tradução: Erudhir
Revisão: Merciless
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