O meu mundo passado, o mundo de onde vim, ainda costumava vir à minha mente. Foi uma vida de isolamento para mim, mas não era como se eu detestasse cada momento dos meus quase quarenta anos lá. Gostei especialmente de visitar os orfanatos e brincar com as crianças. Claro, a maioria dos meninos considerava a luta com espadas e o treinamento do ki como sua forma de jogo, então sempre que eu ia, acabava passando horas ensinando-os. Lembro-me de um dia bem explicitamente, quando um menino no orfanato – ah, certo, Jacob era o nome dele – me fez uma pergunta. “Irmão Grey, você acredita em Deus?” Perguntou ele, olhando para cima enquanto puxava minha manga. Nunca acreditei em Deus, ou em qualquer ser mais elevado em que algumas pessoas acreditassem. Como pode haver um deus em um mundo onde seu nível de força marcial determina como você pode viver sua vida?
Os pais que deram à luz bebês fisicamente fracos ou aleijados foram considerados humilhações, muitas vezes ridicularizados por outras pessoas pelas costas. Esses bebês, mesmo que crescessem e vivessem além da adolescência, nunca seriam capazes de chegar a nada. Eles teriam tanto reconhecimento quanto uma mosca zumbindo na cara de alguém: irritante, melhor morto, que inútil. Mesmo uma mulher, não importa o quão bonita e carismática ela seja, seria apenas uma prostituta de classe alta se não tivesse pelo menos a força mínima necessária para ser considerada “medíocre” entre os praticantes. Mesmo aqueles velhos bastardos do Conselho, que ficavam sentados em cima de sua bunda o dia todo e usavam todos como peões, já foram grandes lutadores e figuras famosas. Como um deus poderia existir em um mundo assim? Mesmo se um deus ou divindade existisse no meu mundo anterior, ele certamente não era muito misericordioso ou amoroso, muito menos justo.
Quando aquela criança, Jacob, me perguntou se eu acreditava em Deus, não pude responder. Essas crianças acreditavam, como eu uma vez, que havia um poder superior cuidando deles… protegendo-os.
Novamente, neste mundo, uma pergunta semelhante me foi feita, mas por alguém muito mais velho do que eu. Eu acreditava em divindades… algum tipo de poder superior que estava acima de nós e inalcançável?
— …
— Não tenho certeza. Existem divindades?
As palavras “… neste mundo?” quase escaparam da minha boca.
— Haha! Eu tenho feito essa pergunta toda a minha vida, mas comecei a pensar que ainda podem existir divindades.
Virion soltou uma gargalhada.
— O que o fez mudar de ideia?
Inclinei minha cabeça com curiosidade.
— Ela.
Achei que Virion apontou o dedo para Tess, mas percebi que era a Sylvie adormecida que ele estava olhando.
— Espere, Sylvie? Você acha que Sylvie é uma divindade?
Quase engasgando com minha saliva, direcionei meu olhar de volta para vovô.
— Pirralho, as divindades são diferentes do que os livros religiosos dizem sobre os deuses. Divindades são seres que são capazes de ascender do que consideramos seus corpos mortais e se harmonizar totalmente com a mana. Dragões, pelo menos o que li sobre eles, são seres que podem naturalmente se tornar divindades. Eles não podem ser classificados apenas como bestas de mana classe S ou SS. Se você comparar com os núcleos de mana, as divindades seriam o nível que alguém alcançaria depois de sair do estágio de núcleo branco.
Vovô Virion olhou para suas próprias mãos enquanto dizia isso, deixando escapar um escárnio.
— Aqui estamos, elfos, humanos, e anões da mesma forma, no máximo, mal conseguindo acessar o poder de um núcleo de mana do estágio branco. Mesmo assim, pode haver seres ainda existentes que podem facilmente nivelar montanhas e vales inundados… Haaa~
Mais uma vez, o vovô Virion tinha aquele olhar distante. Ele fecha os olhos por um tempo antes de abri-los lentamente de novo, seu olhar se voltando para mim.
— Você leu sobre a guerra entre as três raças, bem como a guerra mais recente entre os humanos e os elfos, mas em comparação com essas duas guerras, este continente era muito mais caótico e perigoso nos tempos antigos. As três raças eram nômades naquela época, sempre fugindo de bestas de mana. Os humanos, elfos e anões viajavam separadamente devido a conflitos de aparência e cultura, mas sempre que qualquer uma das raças se encontrava, ficavam em bons termos… tínhamos que estar. Trocamos informações e recursos brutos que adquirimos ao longo do caminho. Isso agora é conhecido como a Era Bestial, onde as bestas de mana eram desenfreadas e governaram o continente.
— Não entendo. Por que não usamos magia para afastar as bestas de mana? Eu poderia entender talvez evitar bestas de mana classe A e acima, mas não vejo por que éramos tão indefesos.
Minhas sobrancelhas franziram em confusão.
— Não é que não usamos, é que não podíamos. Pirralho, você já notou a pintura no salão principal do Palácio Real de Elenoir?
De repente, ele mudou de assunto.
— Você quer dizer aquela pintura enorme na sala de estar? Quer dizer, eu percebi no começo, mas não consegui entender, então simplesmente ignorei.
Soltei uma risada estranha, coçando minha cabeça.
— Cada um dos três Palácios Reais tem uma pintura semelhante a esta. É a representação de uma divindade poderosa nos presenteando com a ferramenta para vencer as bestas de mana e acabar com a Era Bestial.
Não poderia dizer como Virion estava se sentindo quando disse tudo isso, sua expressão ainda era uma mistura de várias emoções. Não importa o quão ridículo isso soasse para mim, o tom do vovô me mostrou que ele não estava brincando quando disse isso, então fiquei quieto e o deixei continuar.
— Esta divindade apareceu na frente de três pessoas, e eles eram os antepassados do que agora são as três famílias reais. Ele concedeu aos nossos ancestrais seis artefatos, que foram distribuídos igualmente entre os três ancestrais que foram escolhidos pela divindade para se tornarem reis. Para os humanos, o chefe da família Glayder na época recebeu dois. Os anões, o chefe da família Greysunders receberam dois e, por último, para os elfos, o ancestral da minha família Eralith também recebeu dois.
Virion não pode deixar de sorrir depois de olhar para a minha expressão.
— Huh? Por que essa assim chamada “divindade” simplesmente daria às três raças esses tesouros?
Gaguejei incrédulo, sem conseguir segurar.
— Deixe-me chegar lá, pirralho. — repreendeu.
— Lembre-se, isso foi muito antes de eu nascer. Este conhecimento é passado de rei para rei e meu palpite é que as informações podem ter sido exageradas ou distorcidas em certas direções ao longo do caminho, mas isso é o que me ensinaram. Os três reis não deveriam usar os três pares de artefatos concedidos pela própria divindade, mas, em vez disso, deveriam ser conferidos a seus dois súditos mais poderosos sob um juramento de alma por meio de uma espécie de cerimônia de cavaleiro. Com esses artefatos poderosos dados a seus guerreiros mais fortes, as três raças deveriam usar o poder dos artefatos para se proteger, bem como para ganhar vantagem no domínio das bestas de mana, bem como de outros monstros antigos da época. — explicou.
— Eu presumiria que dar a três raças artefatos superpoderosos é apenas implora por caos e guerra, ao invés de proteção. Eu não tenho tanta certeza sobre os elfos, mas se você pelo menos olhar para alguns dos humanos, a ganância não é exatamente uma coisa rara.
Gargalhei, balançando minha cabeça.
— Bem, engraçado você dizer isso porque foi o que aconteceu. Os artefatos realmente permitiram que elfos, humanos e anões trabalhassem juntos durante esse período para expandir ainda mais sua área de domínio. Muitas das bestas de mana foram mortas ou expulsas para o que agora é conhecido como Clareira das Feras, colocando um fim à Era Bestial. No entanto, pouco depois, a ganância se apoderou dos três reis e seus súditos. Além do incrível poder que os artefatos deram aos seus portadores, deu-lhes ideias sobre como utilizar a fonte de energia que constitui o mundo, que agora chamamos de mana. Com isso, os usuários dos artefatos ensinaram aos que julgavam aptos, dando origem assim ao primeiro lote de magos. Bêbado de poder, o conceito de harmonia diminuiu e logo levou a conflitos internos devido à ganância.
Virion olhou para mim com um sorriso doloroso antes de continuar.
— Os três pares de artefatos concedidos tinham atributos diferentes e foram divididos entre os humanos, elfos e anões, respectivamente, segregando a todos nós ainda mais. As características distintas de especialização entre as três raças que temos hoje são supostamente devido aos artefatos. O que aconteceu então foi: Os anões, que raciocinaram isso por serem os seres mais próximos da terra, acreditavam que deveriam ser naturalmente os governantes do continente. Nós, elfos, raciocinamos que por sermos os mais próximos de todas as coisas vivas, deveríamos ser os governantes do continente, enquanto os humanos, que foram capazes de treinar e utilizar todos os quatro elementos principais, acreditavam que a divindade naturalmente queria torná-los governantes do continente.
Virion olhou de volta para Tess para se certificar de que ainda estava dormindo.
— A primeira guerra, que durou mais do que o tempo em que eles levaram as bestas de mana para a Clareira das Feras, foi o que levou à segregação das três raças, bem como à formação dos três reinos. A segunda guerra, com a qual você está mais familiarizado, aconteceu entre os humanos e os elfos. Então… voltando à questão de onde as Seis Lanças vieram, você pode adivinhar?
Testou.
— Espere… então aqueles seis artefatos que foram concedidos a seus ancestrais pela chamada divindade foram dados às Seis Lanças?
Minha mente disparou quando as peças do quebra-cabeça começaram a se encaixar.
— E os artefatos são a razão pela qual eles foram capazes de superar o estágio de núcleo prateado e se tornar magos de núcleo branco, e também sendo a razão pela qual eles não podem ir contra o Conselho, uma vez que estão ligados à alma, assim como os usuários anteriores que estavam ligados aos primeiros reis.
Exclamei após receber uma revelação quando tudo começou a se encaixar.
— As Lanças foram provavelmente escolhidas entre os candidatos que foram criados de perto pela família real de sua respectiva raça e, depois de serem considerados dignos, receberam o artefato junto com o juramento de alma que ligava suas vidas aos reis. — continuo.
— Exatamente. Eles foram criados secretamente como candidatos a cada um empunhar um artefato. No entanto, era assim até a descoberta de outro continente que as três raças decidiram que precisavam se unificar.
Vovô Virion tinha uma expressão distante no rosto enquanto explicava.
— Uma última pergunta. Então, os artefatos foram dados a figuras no passado também? Por que nunca ouvimos falar deles?
Estava sentado neste ponto, totalmente focado na conversa e inclinado para a frente como se assim fosse possível receber informações mais rapidamente.
— Sim, mas é a primeira vez que são divulgados. No passado, os detentores dos artefatos sempre protegiam o rei e sua família das sombras. É só agora, após a unificação do continente, que decidimos divulgar os detentores. Claro, ninguém mais sabe que eles conseguiram sua força por meio do poder dos artefatos. Se esse segredo fosse revelado, provavelmente causaria um golpe de estado. A ganância de numerosos magos do núcleo prata desesperados para superar seus limites não deve ser desprezada. Quem sabe até que ponto alguns podem chegar, talvez até destruindo toda a linhagem real na esperança de serem os novos mestres dos artefatos.
Virion fez uma pausa novamente antes de se virar para olhar para Sylvie novamente.
— Imagino que seu vínculo tem a capacidade de se tornar uma divindade. Não tenho certeza de quanto tempo isso levaria e se ainda estaríamos vivos quando isso acontecer, mas Arthur, você precisa ficar mais forte. Chame isso de minha própria intuição senil, mas sinto que as mudanças vão acontecer em breve… mudanças enormes. Só espero que eu esteja errado.
Esta foi a primeira vez que vi o vovô Virion com uma expressão tão preocupada no rosto. Minha mente voltou para a mensagem que Sylvia havia deixado dentro de mim depois de me teletransportar para a Floresta de Elshire. Sobre como eu teria notícias dela novamente quando chegasse ao estágio acima do núcleo branco. Estou começando a pensar que talvez essas chamadas divindades não eram tão fictícias quanto eu acreditava que fossem.
— Mmmm… o que está acontecendo? Por que estou dormindo no chão?
Tradução: Reapers Scans
Revisão: Reapers Scans
QC: Bravo
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