O Começo Depois do Fim

O Começo Depois do Fim – Cap. 69 – Cripta da Viúva V

 

— Posso ficar com isso? 

Percebo que minha palma está sangrando de segurar o fragmento do chifre com muita força. 

— Pft! 

A mulher elfa, apesar de sua condição, soltou uma gargalhada após minha pergunta, me pegando de surpresa. Levantando uma sobrancelha enquanto inclino minha cabeça, não pude deixar de me perguntar o que se passava em sua mente e admirar sua capacidade de ainda ser capaz de rir, considerando a situação que ela estava enfrentando. 

— Você provavelmente está olhando para mim como se eu tivesse enlouquecida, certo? 

Seu rosto não está voltado diretamente para mim, mas ela parece saber onde estou. 

— … Eu não diria exatamente enlouquecida. 

Essa foi a única coisa que consegui resmungar depois que ela aparentemente leu minha mente. 

— Você também é estranho, perguntando a um soldado moribundo se pode ficar com algo assim. Fique. Não terá nenhum valor para mim de qualquer maneira. 

Ela solta um suspiro e, de repente, seu rosto parece ter 20 anos pela expressão que ela faz. 

— Eu nem sei o seu nome, garoto, mas eu vou morrer em breve. Não há necessidade de tentar ser sensível sobre esse fato. 

A guerreira elfa, com uma expressão séria, me encara diretamente quando afirma isso. 

— Meu nome é Arthur, e sim, infelizmente, não parece haver nenhuma maneira de eu salvá-la. Eu sinto muito. 

Coloquei o fragmento preto dentro do meu anel dimensional. 

— Suspiro… acho que não tem muito o que fazer. Como não tenho muito tempo, direi tudo o que sei. 

Meu peito ficou pesado quando ela tão facilmente deixou de lado suas esperanças e aceitou seu destino. 

— Meu nome é Alea Triscan, como você percebeu, sou uma dos membros das Seis Lanças e essas eram minhas tropas. Cada Lança está no comando de um batalhão composto por alguns dos principais magos. 

Ela solta outro pesado suspiro, e pela primeira vez, estou feliz por ela não ser capaz de testemunhar a cena de massacre horrível que transformou este lugar outrora belo em uma sepultura de cadáveres mutilados 

— Após o início das Seis Lanças, alguns meses atrás, temos treinado para trabalhar em equipe para limpar masmorras e outras áreas desconhecidas. As Seis Lanças raramente vão em missões juntas, a menos que tenhamos que explorar uma masmorra classe S ou superior. 

Ela continua depois de recuperar o fôlego. 

— Pela direção de seus passos antes, parece que você veio de uma entrada diferente. Na verdade, este lugar está conectado a três masmorras. De qual masmorra você veio, Arthur? 

Alea luta para se apoiar mais confortavelmente na parede. 

— Eu vim, com meus colegas e a professora, da Cripta da Viúva. Todo mundo conseguiu voltar, mas acho que não tive tanta sorte. 

Sento-me contra a parede ao lado de Alea enquanto estudo a carnificina exibida diante de mim. Sou capaz de imaginar vagamente o que aconteceu pela forma como os corpos estão posicionados e onde eles foram feridos. 

— Provavelmente é realmente horrível, não é? Não tenho certeza de quantos anos você tem Arthur, mas ninguém deveria ter que ver algo assim. 

Alea interrompe depois de um momento de silêncio. 

— Minha idade provavelmente não se correlaciona muito bem em situações como esta, mas você está certa. Ninguém, independentemente da idade, deveria ter que ver algo assim. 

Não posso ajudar, mas soltei um suspiro também. 

— … 

— Minhas tropas e eu viemos de uma masmorra de classe A chamada Mandíbula do Inferno. Fomos designados a investigar a masmorra após obter relatos de avistamentos inconsistentes dentro dela. Os Aventureiros que voltaram vivos eram aqueles que frequentavam a masmorra para treinamento. Os que conseguiram voltar mal estavam vivos e todos eles falaram sobre como as bestas que residiam dentro de repente se tornaram mais fortes e ferozes. Esse foi o caso da masmorra de onde você veio também? 

Percebo Alea começando a falar um pouco mais devagar. 

— Sim. Apenas no primeiro andar, um exército de Minion Snarlers nos deu as boas-vindas. Os lacaios não eram ruins, mas duas Rainhas Snarlers apareceram. Uma das Rainhas, depois de comer a outra Rainha, ficou preta e sua força aumentou algumas vezes. Suspeitei que essa fosse a causa. 

— O que você quer dizer com suspeita?! Você está dizendo que já viu aquele demônio antes? Alea de repente se endireita e olha em minha direção, surpresa evidente em sua voz. 

— Não tenho certeza se é o mesmo, mas sim. 

Respondo francamente. 

— O mesmo? Você acha que há mais de um? 

O rosto já pálido de Alea fica ainda mais branco quando me pergunta isso. 

— Não tenho provas definitivas, mas suspeito que aquele que você viu, Vritra, é apenas um dos demônios com chifres por aí em algum lugar. 

Respondo com o que ainda me lembro daquela noite em que me separei de Sylvia. O demônio negro com seus chifres curvados para baixo disse algo sobre lhes causar problemas. Era apenas uma especulação, mas suspeitei que provavelmente houvesse mais deles. Minha mente começa a girar enquanto penso em todas as diferentes possibilidades e razões pelas quais eles estão fazendo isso. Isso tudo é pela Sylvie? Lembro-me de quando Sylvia me deu a pedra que eu tinha que protegê-la a todo custo. Aquela “pedra” acabou por ser um ovo, e nada menos que de um dragão. Sylvie era uma existência tão importante que os demônios com chifres iriam tão longe? 

— O que você está pensando, Arthur? 

Alea solta uma tosse tensa quando um pouco de sangue fresco escapa da ferida selada onde seu núcleo de mana estava. Sempre achei intrigante que, embora os núcleos bestiais fossem capazes de ser colhidos e usados como ferramentas para aumentar a mana, os núcleos de mana de humanos não eram. Quando um mago morre, seu núcleo de mana se quebra e a mana acumulada dentro se dispersa. Era porque coletamos mana da atmosfera que isso acontecia? Parecia haver um significado mais profundo quando penso em como os humanos não precisam de seus núcleos de mana para sobreviver, enquanto nossos núcleos de mana dependem de estarmos vivos. Este mundo parece girar em torno de você ser um mago ou não, e se você for, quão forte você é. Sinto que o Deus deste mundo quer nos dizer que a vida é mais importante do que a magia, o que deveria ser uma afirmação óbvia, mas uma afirmação que parecemos ter esquecido. Antes que eu me perca mais profundamente no aspecto de um ser superior, a respiração irregular de Alea me traz de volta à realidade. 

— Você está bem? 

Essa foi uma pergunta idiota. Claro que ela não está bem. 

— Quando minha equipe chegou ao primeiro andar da Mandíbula do Inferno, não havia nada de estranho nisso; as bestas de mana eram as mesmas que foram registradas. Foi quando chegamos ao último andar, onde o chefe da masmorra fez sua toca. A Serpente de Hades, que era uma besta de mana classe AA, deveria ser algo que eu poderia vencer facilmente. 

Não havia nenhum traço de orgulho ou excesso de confiança em seu tom. Era apenas um fato para ela. 

— A Serpente de Hades, que era conhecida pelo fogo azul jorrando ao longo de sua espinha, parecia diferente. No início, ficamos confusos porque não parecia ter nenhuma chama, mas quando olhamos mais de perto, a razão de não podermos ver as chamas contra as paredes pretas da caverna era porque as chamas em si eram pretas. Parecia uma fumaça densa tremulando descontroladamente ao longo da espinha da serpente de trinta metros. Essa Serpente de Hades em particular, também tinha um chifre preto saindo de sua testa enquanto suas escamas, que foram registradas como sendo de uma cor cinza fosco, eram pretos lustrosos… 

Respirando fundo, noto Alea tremendo. 

— A luta foi horrível. Perdi cinco dos meus homens para a Serpente de Hades. A luta durou várias horas, mas consegui matá-la. Quando tentamos recuperar o núcleo da besta, porém, ele não estava lá. 

Tendo outra crise de tosse, eu corro em direção ao lago e mergulho o que sobrou do meu uniforme dentro. Depois de enxaguar, permito que o tecido absorva o máximo de água possível antes de caminhar até onde Alea estava. 

— Abra sua boca. — instruo. 

Ela hesita por um momento, mas abre a boca. Enquanto aperto suavemente meu uniforme encharcado sobre sua boca, a água sai e entra em sua boca. 

— Ah. 

Ela solta um pequeno grito antes de engolir ferozmente a água que provavelmente não é a mais higiênica. Sussurra um pequeno obrigado antes de continuar com sua história. 

— Embora estivéssemos tentados a voltar à superfície, não conseguimos descobrir nada até agora, então começamos a procurar por pistas lá dentro. Um dos meus homens usou um feitiço e descobriu que havia um túnel escondido sob uma fina camada de terra. Depois de cruzar o túnel, chegamos aqui… 

Enquanto a voz de Alea tremia com suas últimas palavras, lágrimas misturadas com sangue escorreram pelas pálpebras fechadas onde seus olhos costumavam estar. 

— E-ele estava aqui… quando chegamos a esta caverna. Ainda me lembro da maneira como olhou para nós. Aqueles olhos escarlates… 

Depois de soltar um suspiro trêmulo, ela continua. 

— Minha equipe e eu… ninguém sabia o que era aquele monstro, então fizemos o que nossos instintos nos disseram a fazer. Nós levantamos nossas armas… esse foi nosso primeiro erro. Ainda posso imaginar isso tão claramente. Sua pele cinza pálida. Seu rosto… ainda era bestial, parecia quase… humano. Ele olhou para nós e sorriu, expondo suas presas afiadas. O que nos surpreendeu foi quando ele falou… 

Ela sussurra agora, sua voz ficando mais fraca. 

— Mm. 

Respondo, apenas para que ela saiba que ainda estou aqui. 

— Ele nem mesmo ficou surpreso em nos ver lá. Vritra, ele… aquela coisa, tinha acabado de olhar para nós antes… 

— Antes? 

Sento-me ereto enquanto sua última declaração chama minha atenção. 

— … Ele nos deu duas opções. 

Lágrimas e sangue correram por seu rosto uma vez lindo novamente, enquanto desejava terminar o que estava prestes a dizer. 

— E-ele olhou diretamente para mim, como se soubesse instantaneamente que eu era a líder, e me disse que me deixaria sair ilesa se eu… 

— … 

— … ele riu, me dizendo como queria me ver desmembrando cada um dos meus companheiros de equipe, um por um, na frente dele. 

Alea tremia de raiva enquanto sua única mão estava cerrada com firmeza. Essa proposta ridícula teria enfurecido qualquer um, mas olhando para o estado em que Alea estava agora, não tenho confiança para dizer que ela tomou a decisão certa. Talvez seus companheiros de equipe quisessem que ela os matasse rapidamente, em vez de ser torturado do jeito que foram. 

— Qual foi a sua outra escolha? 

Pergunto gentilmente, enquanto envolvo minhas mãos em seu punho cerrado. 

— Ele apenas… zombou de nós e disse: 

—… ou você pode tentar e lutar… 

Suas lágrimas misturadas com sangue mancharam os restos rasgados de suas roupas enquanto continuava a chorar baixinho. Incapaz de encontrar as palavras para confortá-la adequadamente, eu apenas mantive minhas mãos em volta de seu punho cerrado. 

— … 

Os momentos se passaram apenas com o som de água corrente e os soluços silenciosos de Alea quebrando o silêncio mortal. 

*Hic* 

— Nós não… tínhamos chance. 

*Hic* 

— Odeio fazer você reviver a cena, mas preciso do máximo de detalhes possível, Alea. 

Eu gentilmente acaricio sua mão para tentar acalmá-la. 

— Ele tinha… *hic*… um chifre no meio da testa … que se curvava para trás acentuadamente. 

Ela tentou o seu melhor para falar com calma. 

— Um chifre? 

Então realmente havia mais de um demônio com chifres! Era uma família? Uma raça? Meu coração começa a bater descontroladamente só de imaginar uma raça inteira composta de demônios com chifres; apenas um deles poderia eliminar uma das Seis Lanças e sua equipe. 

— S-sim. Meu ataque de alvo único mais forte só conseguiu criar uma pequena lasca naquele chifre. 

Alea parecia querer me perguntar algo, mas continuou, sua respiração ficando mais curta. 

— Ele… é… Vritra, era capaz de usar magia, magia que parecia desafiar o senso comum de qualquer magia que eu já vi. 

Os lábios de Alea começam a tremer. 

— Que tipo de magia ele usou? 

— Metal. Metal preto. Ele foi capaz de conjurar instantaneamente pontas de metal, lâminas, qualquer tipo de arma do solo e dele mesmo. Eu nem sei como descrever direito. Acabou muito rápido. Metade da minha equipe estava morta na primeira onda de ataques que ele desencadeou com um simples movimento do pulso. Quando os que ainda estavam vivos o atacaram, ele nem se preocupou em se esquivar… placas de metal preto se materializaram instantaneamente e bloquearam qualquer ataque que conseguisse chegar perto dele. 

Senti meu rosto ficar tenso enquanto tentava visualizar como seriam os poderes de Vritra e, possivelmente, os poderes que toda sua raça possuía. Parecia uma ilusão, mas em um nível completamente diferente. A maneira como ela descreveu fez parecer mais com a manifestação ou mesmo a criação de certos fenômenos, em vez de afetar as partículas de mana já existentes. Como isso é possível? Eles são capazes de simplesmente pular etapas nas leis fundamentais da magia neste mundo, ou eles simplesmente tinham mais conhecimento e eram capazes de fazer isso por meio de uma habilidade especial? 

*COF* 

*COF* 

Minha cabeça imediatamente se virou para Alea enquanto o sangue jorrava de sua boca. 

— Vritra… ele foi embora depois de me deixar assim. Não tenho certeza se ele sabia que alguém viria, mas a última coisa que ele disse antes de ir foi seu nome… e que Dicathen seria uma zona de guerra… 

Enquanto o sangue escorria pelo canto de sua boca, ela virou a cabeça em minha direção. 

— Isso pode parecer absurdo, mas você pode me fazer um favor? 

Alea deixa escapar um leve sorriso, revelando seus dentes manchados de sangue. 

— Claro, qualquer coisa. 

Ela tinha algo para dar ao seu ente querido em casa? Ela queria transmitir uma mensagem para sua família? 

— Você pode me segurar? — resmunga. 

— … 

— Sempre pensei que não precisava de ninguém… contanto que fosse forte o suficiente. Nunca tive família ou amante… para depender…, mas sabe? Eu-eu realmente não quero morrer sozinha agora…

Alea desmorona enquanto morde o lábio inferior para se impedir de chorar. Sem dizer uma palavra, eu envolvo meus braços em volta do pescoço e cintura frágeis de Alea, trazendo seu peito para o meu. 

— … Estou com medo, Arthur. Não quero morrer… 

Fiquei em silêncio, rangendo os dentes enquanto, novamente, fui incapaz de encontrar palavras para confortá-la. Afagando suavemente a nuca de Alea, senti sua respiração tornar-se cada vez mais fraca e momentos depois, ela faleceu em meus braços.

 


 

Tradução: Reapers Scans

Revisão: Reapers Scans

QC: Bravo

 

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