O Começo Depois do Fim

O Começo Depois do Fim – Cap. 511 – Urgência crescente

 

POV ARTHUR LEYWIN

 

 O tempo escorria como água passando por entre meus dedos. Eu estava deitado de costas no musgo, olhando para a pequena abóboda formada pela copa das árvores no pequeno bosque de Virion. Tessia estava aninhada no meu braço, com a cabeça apoiada no meu peito, enquanto seus dedos traçavam a linha do meu esterno, sobre o meu núcleo. A sensação enviava arrepios quentes pelos meus braços de uma maneira que eu achava agradavelmente estimulante.

— Consigo sentir o seu núcleo — disse ela suavemente, enquanto seus dedos paravam o movimento constante. — A pressão é como… um cobertor pesado. — Senti seu sorriso contra meu peito. — Na verdade, é bem aconchegante.

Deixei escapar uma risada surpresa.

— Então todo o meu trabalho valeu a pena.

Ela me deu um tapa de leve, brincando.

— Estou falando sério.

Puxei-a para mais perto, esfregando minha bochecha em seus cabelos.

— Eu também…

Ficamos assim por mais um ou dois minutos antes que o silêncio e a paz fossem interrompidos por uma voz em minha mente. 

Consegui convencer Seris e os lordes anões a esperarem por sua chegada em Lodenhold — comunicou Sylvie. — Mas só por enquanto. Diria que você tem cerca de dez minutos antes que eles invadam o bosque para te encontrar.

Devo ter ficado tenso, pois Tessia se afastou, apoiando-se no cotovelo para examinar meu rosto.

A voz de Regis veio em seguida:

— Gideon e o resto do seu grupo de inventores malucos também estão a caminho. Wren Kain não está aqui, aparentemente. Ele foi embora no momento em que o grande buraco no céu se formou.

— Hora de voltar ao trabalho? — Tessia perguntou com um pequeno bico. Assenti, e ela se levantou graciosamente, retirando alguns fios de musgo da roupa. Mesmo com as vestes simples de alguém que trabalhou a terra nas últimas semanas, ela estava deslumbrante. Ao olhar para mim, suas sobrancelhas se ergueram e seus lábios se torceram em um sorriso irônico. — Não diga que precisa ir embora e depois fique me olhando desse jeito, Arthur Leywin.

Senti meu rosto corar, limpei a garganta ao me levantar e esfreguei a nuca.

Tessia segurou minha mão, rindo.

— Todo o poder do mundo, mas você ainda cora como um colegial no primeiro ano. — Com um puxão, ela me guiou de volta em direção à árvore central e à pequena casa entre os galhos.

Chegamos na metade do caminho antes que Virion aparecesse, descendo as escadas e vindo ao nosso encontro.

— Bairon acabou de avisar que estão nos esperando — resmungou, secando as mãos molhadas nas calças manchadas de terra. — Mas fico feliz que vocês dois pombinhos tenham tido um minuto ou dois sozinhos. Agora, Arthur, antes de descermos: o que, nos confins do abismo, está acontecendo no céu?

Deixamos o Bosque de Elshire e começamos a descer a longa série de escadarias em zigue-zague que nos levariam diretamente ao Palácio de Lodenhold. Enquanto isso, contei a Virion e Tessia tudo o que havia acontecido.

— Droga — murmurou Virion, baixinho. — Francamente, eu esperava que Seris estivesse errada. Então, tudo isso, e Agrona definitivamente ainda está por aí… e com algum tipo de arma que nem podemos compreender. — Embora ele não dissesse, senti os pensamentos de Virion se voltarem para Elenoir e para a técnica asura que a destruiu. — Me pergunto por que ele esperou tanto para usá-la.

— Tenho a impressão de que isso não era exatamente o plano dele — respondi, depois de pensar bastante no assunto. — Parece desesperado. Um último recurso.

Continuamos discutindo os detalhes até chegarmos a Lodenhold Bairon e Varay já nos aguardavam.

Bairon me deu um aceno sério.

— Arthur. Todos estão compreensivelmente… ansiosos para ouvir o que você tem a dizer.

— Espero que não estejam esperando boas notícias — respondi com naturalidade.

Varay respondeu com o esboço de um sorriso; o que seria equivalente a um enorme sorriso em seu rosto normalmente inexpressivo:

— Estão esperando que a Lança Godspell, Regente de Dicathen, acene com as mãos e conserte o mundo, é claro.

Levantei uma sobrancelha e fiz um gesto para que as duas Lanças seguissem na frente.

— Como está se adaptando à Integração? — perguntei.

Varay flexionou a mão de gelo conjurada que servia como prótese no lugar do braço que ela havia perdido lutando contra Taci. Eu podia sentir a mana fluindo por ela, infundindo todo o seu corpo, circulando constantemente por seus canais e veias, mesmo sem um núcleo.

— Não sei se devo ou não me considerar sortuda por não ter passado por esse processo no meio da guerra — disse ela, com ironia. — Acho que nunca me senti tão fraca quanto nas semanas seguintes, e ainda assim…

Assenti, entendendo.

— Aqui está você, com todo esse novo poder e controle, e a guerra acabou.

— Será mesmo? — Virion perguntou logo atrás de nós. — Ainda pode haver motivo para usar essa força em serviço de Dicathen, Lança Varay.

Chegamos à porta que dava acesso ao Salão dos Lordes, guardada por vários magos anões em armaduras. Mica estava com seus primos, Hornfels e Skarn. Ao ouvir nossa aproximação, ela se ergueu do chão para me olhar nos olhos. Fez questão de me observar de cima a baixo antes de comentar:

— E eu esperando que você já tivesse pele roxa, chifres ou asas agora, Lorde Arthur. — Embora seu tom fosse frio e distante, seu olhar inicial se transformou em uma expressão passiva após alguns segundos, e ela se virou e voou para a câmara à nossa frente.

Eu segui atrás, mas perdi o passo ao virar a esquina para o salão, surpreso ao encontrá-lo completamente cheio.

Como sempre, o local da reunião em si estava no topo de uma laje flutuante de cristal, alcançada ao caminhar sobre uma série de lajes menores flutuantes, como pedras sobre um rio calmo. A mesa onde os lordes anões normalmente se reuniam havia sido reduzida, abrindo espaço ao redor para uma segunda fileira de cadeiras.

Talvez fosse a tensão, ou apenas o meu humor, mas o cristal colorido do interior da enorme geoda não parecia brilhar com o mesmo vigor de sempre.

Seris já estava se aproximando, marchando pelo caminho flutuante sem se importar com a altura, mesmo enquanto as lajes se moviam levemente sob seus pés.

— Arthur. Fico feliz que finalmente conseguimos sua atenção — disse ela.

— Seris. Qual é a gravidade da situação?

— Maior do que gostaríamos — respondeu ela com um leve aceno de cabeça. Na luz sobrenatural da geoda, seu cabelo brilhava com um tom ametista, e sua pele alva refletia as cores das formações cristalinas ao redor. Ela usava um vestido de batalha preto que cobria seu corpo do pescoço aos pés. Seus chifres brilhavam.

— O povo está sofrendo, sem liderança. Agrona enviou uma mensagem pouco antes de atacar a fenda. Mesmo que temam o que ele fez, a demonstração de força atraiu muitos de volta para sua causa.

Atrás dela, na câmara lotada, Cylrit e Sylvie flutuavam no ar aberto ao lado da mesa central e da plataforma. Mica, Bairon e Varay se moveram para o outro lado da câmara, enquanto Chul e uma mulher fênix — Soleil, uma das curandeiras que ajudaram após a quase morte de Chul — pairavam na extremidade da plataforma, atrás de Carnelian Earthborn, que estava sentado. O pai de Mica estava à cabeceira da mesa, enquanto os Silvershales — Daglun, Durgar e Daymor — estavam à sua direita. Alguns outros representantes de clãs anões poderosos também estavam presentes, assim como Gideon, Emily e Claire Bladeheart, que no momento não estava dentro de sua exoforma quimera.

Lyra Dreide ocupava um assento próximo ao deixado vago por Seris. Do outro lado da mesa, Saria Triscan, uma elfa de meia-idade, havia deixado alguns lugares livres, provavelmente para Tessia e Virion.

— Só posso presumir que você voltou porque pretende ir atrás dele — continuou Seris. — Parece que seu objetivo maior não exige que nem Epheotus nem este mundo permaneçam intactos. Ele está queimando seu próprio povo como combustível. 

Ela respirou fundo, focando-se momentaneamente em seus próprios pensamentos. Quando seu olhar voltou para mim, ela me deu uma expressão que não me lembrei de já ter visto antes, nem mesmo quando quase se sacrificou para barrar as forças de Agrona nas Relictombs. Senti uma nítida sensação inversa ao nosso primeiro encontro, há muito tempo, quando ela salvou minha vida de Uto.

— Ele não está louco, Arthur. Ele só faria isso…. — ela gesticulou vagamente para cima — se soubesse que não apenas sobreviveria, mas também que isso avançaria seus objetivos.

Seris voltou para o seu assento, e permiti que Virion e Tessia passassem por mim e ocupassem os seus lugares. Antes que eu pudesse falar, o som de passos rápidos se aproximando veio das portas abertas atrás de mim. Virei-me para ver Curtis e Kathyln Glayder sendo conduzidos por Hornfels. Kathyln lhe deu um agradecimento formal, depois adentrou a câmara.

Eu flutuei para longe dos cristais e abri caminho para eles.

— Bem, a turma realmente está toda aqui — falei calorosamente. Apesar da tensão que cresceu entre os Glayders e eu após a guerra, fiquei feliz em vê-los. — Por favor, sentem-se. Estávamos prestes a começar.

— Arthur — disse Kathyln. Ela manteve sua habitual postura contida, mas havia um brilho em seus olhos e um tremor em sua assinatura de mana que falavam mais do que suas palavras jamais falariam.

Curtis franziu a testa e fez uma leve reverência.

— Arthur. Já faz um tempo, velho amigo.

No entanto, não havia tempo para gentilezas, e os líderes de Sapin tomaram seus lugares. Não perdi mais tempo.

— A barreira que separa Epheotus do nosso mundo está rompida. O espaço de bolso moldado que contém o mundo deles está entrando em colapso. É isso que vocês veem no céu.

Houve um clamor de vozes em pânico, mas eu exigi silêncio, e eles coletivamente obedeceram.

Lancei um olhar longo e severo aos líderes de Dicathen. Lanças e lordes, príncipes e princesas.

— Quero deixar algo claro — continuei. — Não há tempo para pânico. Seus instintos podem, neste momento, estar exigindo que vocês garantam o melhor para si e para o seu povo, mas quaisquer objetivos individuais que tenham agora não significam nada. Até que isso seja resolvido, trabalharemos juntos, fazendo tudo o que pudermos para garantir a sobrevivência não apenas deste mundo, mas também de Epheotus.

O Salão dos Lordes ficou em completo silêncio. A mandíbula de Saria Triscan se moveu silente, e a sobrancelha de Mica ergueu-se ligeiramente, mas o restante apenas me observava com atenção.

— Seris, o que pode nos dizer sobre como isso foi feito?

Todos os olhos se voltaram para ela. Seu olhar firme permaneceu distante, através da casca interior cristalina da gigantesca geoda.

— Taegrin Caelum tem sido inacessível desde que o corpo falso de Agrona foi derrubado aqui em Dicathen. Não houve como verificar nada com certeza, mas desenvolvi uma teoria plausível.

Ela fez uma pausa, esperando ver se alguém a interromperia. Como ninguém o fez, continuou:

— O Taegrin Caelum é enorme e cheio de lugares onde ninguém, exceto Agrona, pode chegar. Durante meus anos de investigação, descobri bolsões de maquinário que percorrem o núcleo e que acredito se estenderem profundamente até as raízes da montanha. Agora está claro que esses artefatos e dispositivos fazem parte do mecanismo que ele utilizou para extrair poder de todos os magos de Alacrya. 

“Não vou fingir entender exatamente como ele realizou esse ato aparentemente impossível de magia, mas posso dizer que ele teve tempo mais que suficiente para dissecar e recriar todos os tipos de tecnologias antigas dos djinn. Suspeito que essa tecnologia e magia foram usadas para alimentar uma arma e atingir a fenda, que ele anteriormente não conseguiu controlar.”

— Ele tem um tipo de remanescente ou personalidade djinn abrigada dentro de seu relicário — acrescentou Tessia, olhando de Seris para mim. — Ela controla várias coisas, pelo que pude entender a partir das memórias de Cecilia. 

Soleil falou de onde pairava perto da parede da geoda:

— Eu senti o golpe, a magia e a energia utilizadas. Elas carregavam a mesma ferocidade e perturbação de mana que a técnica do Devorador de Mundos dos panteões quando atingiu Elenoir.

Vi Virion, Tessia e Saria se enrijecerem ao ouvir a menção da técnica asura que destruiu Elenoir.

— Parece provável que ele tenha baseado essa arma em um princípio semelhante à técnica secreta dos panteões. — Soleil concluiu nervosamente. 

— O que significa que, se ele a direcionar para alguma de nossas cidades, pode ser o fim de Sapin ou Darv num piscar de olhos! — exclamou o filho mais novo dos Silvershale, com o rosto vermelho e os olhos arregalados de terror. — Deveríamos ter marchado contra Alacrya semanas atrás, dissemos a vocês! Avisamos que…

— É hora de nos mobilizarmos — interrompi o jovem lorde. — Apenas os alacryanos que escolherem ativamente ficar ao lado de Agrona são nossos inimigos, mas não espero encontrar muitos deles. Vou atacar Taegrin Caelum diretamente, e o mais rápido possível. Gostaria de contar com todas as forças que Dicathen ou Alacrya puderem reunir.

— Você já tem o Batalhão de Quimeras, obviamente — disse Gideon imediatamente, batendo a mão na mesa. — Conseguimos colocar mais algumas dezenas de unidades em funcionamento, e os pilotos já estão treinados o suficiente para não se matarem ao operar as exoformas.

— Que inspirador… — murmurou Curtis Glayder.

Seris foi a próxima a falar:

— Caera Denoir está, neste momento, organizando as forças que temos. Devido à repetida drenagem de mana do povo alacryano, nossa força de combate será limitada. Além disso, fomos informados sobre refugiados bajuladores tentando atravessar as Montanhas Presas do Basilisco a pé para chegar a Taegrin Caelum, mas não posso afirmar com certeza o que encontraremos ao chegar lá. Pelo menos, eles estarão igualmente enfraquecidos pelos pulsos.

Soleil limpou a garganta.

— Lorde Arthur, perdoe-me por não dizer isso imediatamente, mas Mordain decidiu que é hora de o Asclepius oferecer sua ajuda também. Há cerca de uma hora, ele estava reunindo todos os dispostos a lutar e se preparando para deixar o Santuário. Você terá fênix apoiando esta missão, mesmo que Epheotus não envie ajuda.

Pisquei, surpreso.

— Isso é uma excelente notícia, Soleil. Obrigado.

Era arriscado para Mordain deixar o Santuário e se expor, mas fiquei feliz por contar com sua assistência.

Foquei em Kathyln, na esperança de que ela se pronunciasse. Apesar de termos nos distanciado nos últimos anos, ela já havia sido uma amiga próxima e confiável. Mesmo um apoio simbólico da parte dela já representaria uma diminuição da tensão crescente.

Contudo, antes que ela respondesse, um tremor horrível sacudiu a própria mana que impregnava o ar e o solo ao nosso redor.

O salão dos lordes se transformou em um coro de gemidos, gritos de desespero e de dor. Mãos pressionavam cabeças e peitos, enquanto o tremor arranhava o núcleo de todos como unhas em um quadro-negro. A plataforma flutuante inclinou-se abruptamente para a direita, e as cadeiras começaram a deslizar por sua superfície. A mesa balançou, batendo no lado de Gideon da plataforma e ameaçando levar uma dúzia de pessoas para a borda.

Com um flash de relâmpago etéreo, usei God Step para ir abaixo da plataforma e a segurei por baixo, impedindo que inclinasse ainda mais. Saria Triscan despencou à minha frente, e eu a agarrei no ar. Ao mesmo tempo, senti a gravidade do ambiente vacilar quando Mica tentou contrabalançar as ondas de distúrbio mágico.

— Para fora! Todos para fora! — gritava Carnelian.

Senti o peso oscilante e o martelar de passos apressados acima de mim e ouvi o estrondo das pequenas lajes de pedra caindo no chão e se quebrando entre as protuberâncias cristalinas abaixo. A mana se condensou, e vinhas irromperam das paredes, rachando a geoda ao se entrelaçarem para formar uma ponte.

— Vamos! — gritou Virion.

Saria se agarrou a mim com medo. A expressão a fazia parecer mais jovem do que realmente era, e de repente vi a semelhança com Alea, a jovem Lança que encontrei morta há tanto tempo, antes mesmo de sabermos da existência de Alacrya.

As assinaturas de mana coletivas dos presentes escaparam da sala no momento em que algo acima se partiu. Senti o ar se mover quando o teto da geoda desabou.

— Ar… —

O éter me envolveu, e puxei Saria para os caminhos etéreos, aparecendo no corredor externo, alguns metros à frente da multidão.

— …thur!

Sylvie virou a cabeça ao sentir meu movimento, parecendo aliviada, enquanto a poeira se espalhava pelo corredor vindo do arruinado Salão dos Lordes. Em vez de olhar para trás, seu olhar se voltou para o alto.

— O que foi isso? — perguntou Lorde Silvershale, olhando ao redor como se alguém ali tivesse a resposta.

Não dei atenção a ele, mas baixei Saria ao chão e chamei Sylvie, Chul, Tessia e Seris para perto de mim. Seris, em particular, olhou para mim com alguma confusão, mas então ativei God Step novamente e nós cinco fomos puxados pelos caminhos etéreos. Normalmente, eu precisava ver para onde estava indo, mas com minha nova runa divina ativa, minha percepção do espaço ao redor havia aumentado drasticamente. Num instante, estávamos de pé sobre as dunas aquecidas pelo sol.

— Pelos Chifres de Vritra… — murmurou Seris, levando a mão à boca.

— Não gosto nem um pouco do que estou vendo — disse Chul simplesmente.

Olhei para o céu, a boca entreaberta, a mente momentaneamente em branco.

A ferida estava se rasgando nas bordas, o espaço se desfazendo como carne sob força excessiva. A aurora vermelho-sangue escorria grotescamente ao redor dela enquanto as bordas se alargavam. Tardiamente, busquei meu controle sobre o espaço dobrado que a mantinha contida, mas os vínculos haviam desaparecido. Eles colapsaram à medida que a ferida se expandia.

— Porra… — murmurei. Então, enquanto as palavras ainda saíam da minha boca, o chão pareceu sumir sob meus pés.

Um pedaço de terra — uma densa floresta cheia de árvores semelhantes a salgueiros cobertas de folhas salpicadas de rosa — surgiu através da ferida como um estilhaço de osso quebrado saindo da pele rasgada.

— Não… — sussurrou Sylvie, com o pulso acelerado.

A terra de Epheotus começou a se despedaçar e, como uma chuva de meteoros entrando na atmosfera, caiu brilhando em direção a Dicathen.

Era difícil avaliar a escala. A ferida agora dominava quase todo o céu, estendendo-se de horizonte a horizonte. Conforme os pedaços gigantes de rocha, terra e floresta se separavam, alguns pareciam cair como meros pontos à distância, muito além das Grandes Montanhas, enquanto outros cresciam cada vez mais.

— Olhem! — apontou Tessia, segurando minha mão e apertando-a com força. Seu dedo estendido indicava uma série de sete ou oito fragmentos de terra claramente prestes a cair no deserto ao nosso redor.

O chão tremeu enquanto, ao meu lado, Chul se lançava no ar. Sua forma brilhava em um laranja flamejante enquanto se lançava em direção ao maior dos pedaços quebrados de terra. Seris começou a conjurar um vento cortante de magia do vazio, girando rapidamente em um tornado imponente. Tessia lançou um feitiço, e as plantas de outro pedaço de solo de Epheotus explodiram para fora, rastreando pelo ar e desacelerando a ascensão do meteoro. Regis saltou de mim, seu corpo pulsando enquanto se expandia, asas se abrindo em suas costas, e então sua forma imponente e irregular de Destruição disparou no ar, chamas ametistas se acumulando em seu peito enquanto ele se preparava para obliterar outro dos pedaços de terra que caíam.

Uma ondulação atravessou o éter, e o tempo desacelerou até quase parar. Olhei para Sylvie; apenas nós dois e Regis não fomos afetados, enviei um pensamento rápido, então, com God Step e Gambito do Rei fortalecidos, transformei meu éter em uma lâmina, alinhei meu golpe e balancei a arma em um arco amplo.

Houve lampejos de luz violeta nos pedaços mais próximos da massa terrestre que caía e que ainda não estavam sendo alvejados pelos meus companheiros. Por um instante, nada aconteceu, então o tempo voltou a correr, e meia dúzia de pequenas ilhas arborizadas explodiram no ar, transformando-se em escombros em vez de colidir com o deserto com toda a força de sua massa.

O vento de Seris agarrou, desacelerou e dilacerou uma grande massa. O martelo de Chul, ardendo com fogo laranja, colidiu com a base de um pedaço espiralado de pedra, solo e raízes de árvores, despedaçando-o. Regis queimou outro até não restar nada com um jato de fogo infundido com Destruição.

A noventa metros de distância, outra massa de floresta colidiu com as areias do deserto, levantando uma coluna imensa de pó dourado.

Mais adiante, a muitos quilômetros de distância, vimos outras colisões. Nuvens de poeira e destroços subiram ao ar em uma dúzia de lugares, lembrando-me subitamente e de forma visceral de bombas sendo lançadas de aviões na Terra, durante a longa guerra que supervisionei…

Pelo canto do olho, notei Seris franzir o cenho e alcançar um bolso oculto em seu vestido. Ela desenrolou um pequeno pergaminho, no qual letras flamejantes estavam sendo escritas naquele momento. 

— O que foi? — perguntei, embora já suspeitasse da verdade a partir das poucas palavras que consegui distinguir.

— Outro pulso vindo de Taegrin Caelum. — Ela ergueu o olhar para o rasgo no céu, o vermelho se refletindo em seus olhos. — Caera está relatando baixas em massa desta vez.

Eu estremeci. — E suas forças de combate?

Ela suspirou, um lampejo de culpa cruzando seus traços de porcelana. — A maioria está protegida no primeiro nível das Relictombs, aguardando ordens. Eles estarão prontos para lutar.

— Arthur!

Levantei o olhar para encontrar Tessia focada na massa terrestre que seu paraquedas de plantas havia trazido lentamente ao chão. Por um momento, pensei que as vinhas e folhas largas que ela conjurou estivessem se movendo, mas foi só por um momento.

Eu dei um God Step, aparecendo a três metros do monte desmoronado, exatamente quando uma besta de mana, semelhante a uma cobra de três cabeças e com pernas, saltou da vegetação. Uma lâmina já estava em minha mão, e eu a girava antes mesmo que as patas da criatura tocassem a areia, mas ela ainda conseguiu se torcer para longe do meu ataque, duas cabeças se lançando para a esquerda para ganhar impulso enquanto a outra mergulhava para baixo e atacava em minha direção.

Levantei o joelho para acertá-la no queixo enquanto girava, e a cabeça de serpente, junto com o longo pescoço, balançou para trás. A lâmina de éter desceu pelo pescoço, decepando a cabeça, que voou pelo ar. Um jato de líquido venenoso e verde arqueou de suas presas, respingando no meu pescoço. Soltei um silvo de dor, recuando, e perdi o ataque da segunda cabeça, que avançou e cravou em minha panturrilha.

Pelo canto dos olhos, vi uma segunda dessas bestas saltar, mas as vinhas espessas chicotearam e se enrolaram ao redor dela, arrastando-a de volta para a área florestal.

Com um movimento rápido da lâmina, decepei o segundo pescoço da criatura com quem lutava. Girei para escapar do ataque da terceira cabeça e a cortei também. O corpo em si, semelhante ao de uma cobra inchada que havia comido um gato selvagem, cujas pernas então explodiram de sua barriga, cambaleou para frente e para trás por um momento antes de cair no chão.

Chul despencou do alto, liderando com sua arma.  A cabeça redonda brilhava com fogo de fênix enquanto esmagava a espinha da segunda besta de Epheotus, matando-a instantaneamente. 

Levei a mão ao pescoço, onde a pele havia derretido devido ao cuspe ácido. Quando dei um passo, cambaleei, sentindo o veneno ardente tentando dissolver minha perna por dentro.

Os outros finalmente me alcançaram. Tessia olhava para meus ferimentos horrorizada, mas os demais já tinham me visto em condições bem piores. O éter já estava correndo para os ferimentos, expulsando o veneno e curando o tecido danificado, mas se tivesse sido outra pessoa…

Varri o horizonte com o olhar e encontrei movimento. A quatrocentos metros de distância, uma fera semelhante a uma serpente de mana se arrastava para fora de outro ponto de impacto.

— Merda — murmurei.

As opções começaram a se espalhar diante do Gambito do Rei como pergaminhos em um conselho de guerra.

Se a ferida se estendesse até Alacrya, esse novo pulso das máquinas de Agrona poderia tê-la perturbado, libertando-a do espaço dobrado e permitindo que se expandisse novamente. Mesmo com as forças de Kezess trabalhando para mantê-la no lugar do outro lado, Epheotus já começava a passar por ela.

Os detritos caindo eram um perigo por si só, uma massa grande o suficiente atingindo uma área populosa arrasaria uma cidade inteira. Se um lugar como Xyrus fosse atingido, toda a população poderia ser dizimada em um instante. Nós acabamos de provar que era possível evitar algumas colisões, mas quantos magos em Dicathen seriam capazes de derrubar essas massas do céu antes que causassem danos?

Os impactos físicos eram apenas metade do problema, no entanto. Essas bestas de mana de Epheotus eram quase universalmente de classe S ou mais fortes, pelo padrão de medição de força de Dicathen. Apenas algumas já poderiam se provar uma catástrofe se fossem soltas perto de áreas com pessoas. As feridas que eu já havia curado teriam incapacitado qualquer um, exceto os magos mais fortes, se não os matassem imediatamente. Mesmo um exército de anões e humanos lutaria para conter uma onda de tais criaturas. Dicathen precisaria de uma liderança imediata e firme, e de guerreiros capazes de se defender contra as bestas de Epheotus.

Ao mesmo tempo, a notícia de um terceiro pulso das máquinas de Agrona significava que ele provavelmente havia recuperado o poder gasto em seu golpe contra a fenda. Se isso fosse verdade, então era até possível que ele pudesse usar a arma novamente. Se ele atingisse a fenda uma segunda vez, que tipo de agravamento poderia ocorrer? Enquanto mais pedaços desmoronados de Epheotus caíam à distância, tentei imaginar todo o continente magicamente expandido de Epheotus de repente colidindo com as Grandes Montanhas, mas não conseguia compreender totalmente as proporções cataclísmicas de tal ato de destruição.

Eu não podia ficar e defender Dicathen, porque precisava enfrentar Agrona diretamente. Ele tinha que ser impedido de absorver mais poder ou de utilizar sua arma novamente, talvez mirando em Xyrus desta vez, ou Darv, ou Etistin. Independentemente de como ele a usasse, eu sabia que, se fosse permitido usá-la novamente, a destruição resultante tornaria quase impossível alcançar a visão do futuro que eu havia mostrado ao Destino.

Minha mente passou por todos esses pensamentos e mais, no espaço entre uma respiração e outra. Examinei os rostos daqueles presentes, considerando como melhor usar cada um dos soldados sob meu comando. 

Sylvie e Regis faziam parte de mim, e sua percepção natural de aevum e vivum poderia se provar necessária no conflito que estava por vir. 

Chul era um guerreiro de calibre inigualável, tanto em Dicathen quanto em Alacrya, e embora sua defesa das pessoas contra o desmoronamento de Epheotus fosse certamente impactante, eu sabia que ele não aceitaria nada menos do que lutar contra Agrona ao meu lado.

Eu precisava de Seris em Alacrya, é claro, ainda mais agora.

Finalmente, meu olhar pousou em Tessia. Se não fosse pela frieza racional do Gambito do Rei, eu teria sentido um gosto amargo na garganta. Como Ellie e minha mãe, eu não podia me dar ao luxo de colocá-la em um lugar seguro. Se isso fosse um tabuleiro de Guerra dos Soberanos, eu precisava usar todas as minhas peças da melhor forma possível, para aproveitar tanto minhas habilidades, quanto as deles.

Tessia havia permanecido consciente durante a maior parte de seu sofrimento em Alacrya. Ela passou mais tempo com Agrona do que até mesmo Seris, e viu muito do funcionamento interno do Taegrin Caelum. Nenhuma parte de mim queria levá-la para aquele lugar, mas eu sabia que nossas chances de sucesso eram melhores com ela do que sem.

Foi então que os outros finalmente chegaram à superfície. Cylrit voou para fora a partir de uma abertura distante escondida dentro de um desfiladeiro, seguido rapidamente pelas Lanças e então por Soleil. Mica e Varay carregaram a maior parte do conselho em placas de pedra e gelo. Eles não vieram até nós, mas pararam logo fora do desfiladeiro, observando coletivamente os detritos em chamas caindo da ferida e a própria ferida, que ardia e rugia.

Ao mesmo tempo, senti as poderosas assinaturas de mana vindo do leste. Raios de fogo alaranjado cegantes das fênix destruíram várias dezenas de massas caindo entre Darv e as Grandes Montanhas, e algumas dezenas de pontos apareceram à distância, crescendo rapidamente.

Um plano surgiu. Eu voei em direção a Gideon, ignorando perguntas em pânico gritadas pelos outros líderes.

— Envie o Batalhão de Quimeras. Mapeie os pontos de ataque e concentre-se em defender áreas povoadas. Se tivermos exoformas capazes de destruir as massas de terra antes do impacto, certifique-se de que elas estejam posicionadas em cidades. Quero dez; Claire Bladeheart e seus melhores soldados; prontos para partir para Alacrya imediatamente. Confio que você pode ativar um dos novos portais de longo alcance.

Minha atenção se voltou para os líderes.

— Reúnam suas forças. Precisamos de mensageiros para os assentamentos de Alacrya: Eles devem recuar para trás da Muralha. Envie a Guilda dos Aventureiros para assentamentos mais remotos. Muito depende de saber exatamente onde os destroços estão caindo. Se necessário, evacue civis para os túneis mais profundos em Darv, onde estarão protegidos dos piores impactos.

Eu me afastei, novamente ignorando os pedidos e perguntas subsequentes dos anões e elfos reunidos. Sentindo dentro de mim, agarrei a amarra etérea que Myre havia conjurado e enviei através dela:

— Kezess, se você pode me ouvir, precisamos de mais ajuda. Epheotus está atravessando, chovendo sobre Dicathen e provavelmente Alacrya. Bestas também. Todo o continente será obliterado por uma chuva de meteoros se não fizermos alguma coisa.

Houve um momento em que nada aconteceu. Observei enquanto os pontos distantes que marcavam Mordain e suas fênix corriam em nossa direção a uma velocidade incrível.

— Arthur. Estamos fazendo tudo o que podemos. Não posso arriscar deixar a ferida, nem enviarei ninguém através dela até que a estabilizemos novamente. Isso é obra de Agrona: encontre-o e mate-o. Agora.

Meu maxilar se apertou, e meus punhos se fecharam até doer.

Não era o suficiente, mas eu sabia que seria um desperdício de minha energia mental discutir com ele.

Em vez disso, subi ao ar e voei para encontrar Mordain. O fênix ancião, flanqueado por quase trinta de sua raça, chegou poucos momentos depois. A maioria das fênix não parou, mas se espalhou, continuando a destruir detritos caindo e caçando bestas de mana pelo chão do deserto.

— Arthur — chamou, seu rosto normalmente passivo e gentil agora torcido com ansiedade e indecisão. — Os Asclepius vieram para ajudar como pudermos. Wren Kain e o resto já se espalharam, indo para os cantos mais distantes deste continente. Alguns permanecem nas Clareiras das Bestas para ajudar a estabilizar a fenda deste lado.

Estendi minha mão e apertei a dele com gratidão.

— Seu timing não poderia ser melhor. Sei o risco que é para você, e agradeço por isso. O povo deste continente precisa de ajuda. Precisamos parar o máximo possível desses detritos.

Mordain me deu um sorriso fraco, mas a força que emanava dele era tudo menos fraca.

— Claro. Faremos tudo o que pudermos. — Seus olhos desviaram de mim para o céu. — Não há como desfazer isso, Arthur.

Descansei uma mão em seu ombro, seguindo seu olhar.

— Não, talvez não, mas o que quer que aconteça com Epheotus, tenho outro problema para resolver primeiro.

Mordain ficou em silêncio enquanto eu me virava de volta para meus companheiros, as peças do meu plano ainda se encaixando rapidamente.

— Preparem-se — falei simplesmente. — De uma forma ou de outra, este é o começo do fim.

 


 

Tradução: NERO_SL

Revisão: ***

 

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