O feitiço de Veruhn puxou a água do oceano, que subiu em um único fluxo semelhante a um tentáculo. Esse tentáculo de água se enrolou em si mesmo, girando no sentido anti-horário até que uma massa turbulenta de água viva pairasse no ar diante de nós. A água foi se tornando cada vez mais clara, até que parecia um espelho. Entre uma respiração e a próxima, o espelho se torceu de uma maneira estranha, transformando-se em uma janela.
Em vez de olharmos para nós mesmos, estávamos vendo algum outro lugar.
Veruhn Eccleiah, sorrindo de forma alegre e um tanto excêntrica, fez um gesto para que eu fosse o primeiro a atravessar o portal.
Olhei para trás, para a comitiva que nos seguiria. Minha mãe e irmã estavam logo atrás de mim, junto com Sylvie e Regis. Atrás deles, estava Zelyna, flanqueada por uma dúzia de leviatãs de alta posição dentro do clã Eccleiah.
Respirei fundo para acalmar os nervos e dei um passo através do portal.
O sal e a maresia de Ecclesia deram lugar ao cheiro de fumaça e ao doce aroma de flores montanhesas. Um coro de vivas se ergueu de uma multidão ao nosso redor.
Antes que eu pudesse perceber qualquer outro detalhe do ambiente, meu olhar foi imediatamente atraído pela cena à minha direita. Estava em uma sacada alta, e um corrimão de bronze era tudo o que me separava de um penhasco que parecia descer sem fim. O solo distante era apenas um borrão verde e marrom, desprovido de detalhes ou senso de profundidade.
— Lorde Leywin. — Novis do Clã Avignis, líder da raça fênix, estendeu a mão e segurou a minha.
Instintivamente, dei um passo à frente, adotando um sorriso político e olhando ao redor para a fonte das aclamações.
A cidade Ninho Passo de Pluma e seu povo eram uma visão assombrosa.
Dezenas de fênix em suas formas humanoides se reuniam em sacadas e em pontes de corda que ligavam várias plataformas e edifícios. A maioria vestia roupas vibrantes da cor do fogo, adornadas com penas e folhas. Alguns usavam máscaras de penas e agitavam fitas coloridas. Gritos selvagens e cantos pontuavam as saudações, e rajadas de chamas cruzavam o céu como fogos de artifício.
A cidade em si fora construída diretamente na encosta do penhasco, em meio a uma floresta de árvores retorcidas que pareciam brotar direto da rocha e alcançar o sol. Algumas moradias eram como ninhos nas árvores, encaixadas nos galhos, enquanto outras estavam esculpidas na face do penhasco ou cuidadosamente assentadas entre as dobras de pedra.
Minha mãe saiu do portal atrás de mim, seguida imediatamente por Ellie. As duas ficaram boquiabertas de surpresa. A multidão se aquietou apenas um pouco, enquanto cabeças se inclinavam e dedos apontavam para minha família.
Rai do Clã Kothan, líder dos basiliscos, estava ao lado, com uma comitiva de nobres fênix e basiliscos. Ele me cumprimentou de maneira semelhante enquanto Lorde Avignis se aproximava de minha mãe e Ellie, e depois de Sylvie, que vinha logo atrás delas. Todo o nosso grupo foi integrado à procissão de nobres. Uma jovem fênix de olhos alaranjados e cabelos trançados e esfumaçados segurou meu braço, e fomos todos conduzidos por entre fileiras de espectadores empolgados.
— Certamente não esperava uma recepção tão… vocal — murmurei, olhando ao redor e acenando.
— Ninguém vivo se lembra de uma época em que uma nova raça foi nomeada para a família asura — disse a jovem, sorrindo para mim.
Novis me deu um tapinha nas costas.
— Minha filha fala a verdade, mas devo admitir, eu tinha um plano em mente. — Ele sorriu amplamente enquanto estendia as mãos para cumprimentar alguns fênix que se comprimiam junto ao corrimão à nossa direita enquanto passávamos. — Até onde sei, você só experimentou o lado perigoso de Epheotus, tanto na selva quanto na sala de conferências. Eu queria que você visse quem realmente somos, Arthur. Quem você é, agora.
Ponderei suas palavras em silêncio enquanto a procissão continuava. O som de harpas nos acompanhava, seguido por uma melodia que se elevava no ar, conforme primeiro dezenas, depois centenas de vozes se uniam em canção. Não havia palavras, mas a música transmitia um sentimento de harmonia e união tão eficazmente quanto se tivesse letras.
A procissão nos levou até uma enorme plataforma semicircular que se estendia de uma fortaleza feita de madeira trançada, pedra escura e telhas acinzentadas, que subia pelo penhasco. Uma gigantesca fogueira estava preparada em um círculo de pedras negras com seis metros de diâmetro.
Ao nos aproximarmos, a jovem que me guiava sorriu e apontou para a estrutura cônica de madeira escura.
— Por favor, acenda a fogueira, Lorde Leywin.
Olhei ao redor em busca de algum tipo de ferramenta, mas percebi rapidamente que os fênix não teriam muito uso para esse tipo de instrumento. Esperavam que eu fosse capaz de acender a fogueira com mana.
Ativei o Realmheart, invocando runas ametistas ao longo do meu corpo e sob os olhos. Senti meu cabelo flutuar, saindo do couro cabeludo. Tomado por um momento de teatralidade, deixei meu corpo flutuar para fora do chão também, soltando-me da leve pegada da jovem. Virei-me para encarar a multidão que cantava e nos acompanhara pela cidade.
— Obrigado por uma recepção tão calorosa e acolhedora — disse, minha voz ecoando clara mesmo através de tanto ruído. — Minha família… meu clã, e eu estamos honrados por estarmos aqui em sua bela cidade. Embora a inclusão da raça arconte na família asura seja inédita, também será a prosperidade que virá para todos os asuras.
A multidão explodiu em vivas. Ergui as mãos para os lados, e atrás de mim, partículas invisíveis de éter estavam se envolvendo ao redor da densa mana de atributo fogo na atmosfera. Com o éter, puxei a mana para o centro da fogueira apagada, compartilhando minha intenção. A mana se condensou, aquecendo-se até que…
A fogueira rugiu de volta para a multidão com uma explosão de calor e luz.
Meus pés tocaram a madeira lisa e escura que formava a plataforma. Os lordes Avignis e Kothan, junto com seus séquitos, aplaudiram educadamente, encorajando ainda mais os aplausos das multidões.
Segundos após a fogueira ser acesa, mais asuras começaram a sair da fortaleza. Mesas e cadeiras levitaram até se posicionarem ao redor da fogueira, enormes bandejas e potes de comida foram dispostos nas mesas, barris de vinho colocados em suas extremidades, e, em questão de poucos momentos, um banquete colossal foi servido.
— Por favor, comam e celebrem! — Novis anunciou ao seu povo. — Hoje marca o início de uma nova era de unificação entre as raças asuras!
Sorrindo, ele liderou o caminho para dentro da fortaleza, cujas portas pesadas de madeira carbonizada eram mantidas abertas por fênix armados e protegidos por armaduras. Sua filha segurou meu braço novamente e me guiou atrás dele.
— Parece que você arranjou uma admiradora — Sylvie pensou, provocante.
— Eu pensava que os opostos se atraíssem… — disse Regis, quase explodindo de empolgação. — Mas o que essa princesa atrai mesmo são outras princesas, não é?
Tentando ignorá-los, decidi admirar a fortaleza. Embora imponente por fora, o interior era quente e acolhedor. Arcos e vigas de madeira natural sustentavam a construção, enquanto as paredes eram de pedra encrustada de cristais. Tapetes espessos cobriam o chão do grande salão, que fora organizado com uma única mesa longa no centro. Um fogo ardente crepitava na lareira, e vários atendentes já estavam a postos.
Novis sentou-se à cabeceira da mesa. Rai ocupou o assento à sua esquerda, enquanto sua filha me acompanhou até o assento à sua direita. Sentei-me, e ela fez uma reverência respeitosa antes de ir encontrar sua própria cadeira.
— Desculpe, não perguntei seu nome — falei, querendo ser educado na frente dos outros lordes.
Ela sorriu amplamente com a pergunta.
— Naesia do Clã Avignis, ao seu dispor, Lorde Leywin. — Girou, rodopiando as saias vermelhas e douradas que vestia, e correu para onde outras jovens já estavam sentadas. Todas juntaram as cabeças e riram.
Sylvie sentou-se à minha direita, mamãe ao lado dela, e depois Ellie. Veruhn estava sentado em frente a nós, ao lado de Rai. Uma companhia mista de fênix, basiliscos e leviatãs preenchia o restante dos assentos ao longo dos dois lados da mesa.
Assim que a mesa estava completa, os atendentes entraram em ação para garantir um fluxo constante de comida e bebida. A fartura fazia o banquete do lado de fora parecer um almoço no orfanato. Fiquei satisfeito ao ver que também trouxeram uma bandeja cheia para Regis, que se deitava ao lado da lareira, focado em absorver éter da densa atmosfera.
Novis disse algumas palavras de saudação, então incentivou a todos a comer e festejar. O salão encheu-se de conversas e do som de talheres raspando nos pratos.
— Isso é impressionante — comentei, enquanto experimentava algumas pequenas frutas verdes. Elas estouraram na minha boca, liberando um suco agridoce que era, de alguma forma, delicioso.
Rai riu enquanto mastigava um pedaço de carne chamuscada.
— É lamentável que você tenha escolhido visitar esse velho avarento primeiro. — Apontou para Veruhn com o pedaço de carne em sua mão. — Suas visitas aos clãs distantes merecem uma certa dose de pompa, Arthur. Epheotus tem muito a oferecer a você e ao seu clã.
— Não seja tão duro com Veruhn. — Novis disse, lavando um bocado de comida com um gole de sua taça dourada encrustada de rubis. — Tenho certeza de que Arthur aprendeu mais sobre a mitologia de Epheotus em poucos dias do que nós em milênios.
A princípio, Veruhn parecia não estar ouvindo. Após alguns segundos, porém, ele disse:
— Aqueles que não aprendem sua história estão condenados a repeti-la, senhores. — Seus lábios se contraíram num sorriso contido, e seus olhos branco-leitosos se fixaram em mim por um breve instante antes de desviarem rapidamente.
Rai, que parecia bem mais relaxado do que quando o conheci no Castelo Indrath, continuou a conversar sobre as expectativas de ser membro dos Oito Grandes. Começou falando sobre o clã em geral, dirigindo-se principalmente à minha mãe e irmã, e depois voltou-se para o meu papel e expectativas.
— Sendo um novo clã, e uma nova raça, aliás, estabelecer alianças fortes e duradouras será essencial. — Ele parou para mastigar, e quando voltou a falar, sua voz estava mais baixa. — Seria perigoso assumir que todos os asuras vão recebê-lo de braços abertos. No momento, seu clã é pequeno e protegido apenas por você, seu lorde. No pior dos casos, vocês seriam um alvo fácil até para um clã fraco.
— Rai — disse Novis em tom de repreensão. — Talvez possamos introduzir a política traiçoeira aos poucos.
Afastei as palavras de Novis com um gesto.
— Não, está tudo bem. É por isso que estou aqui. Imagino que seja óbvio. Quero saber quais perigos realmente ameaçam meu clã. Também é perigoso adoçar a situação, o que impediria que eu me preparasse adequadamente.
Sylvie mordeu o lábio antes de perguntar:
— Isso é provável? Um ataque direto? Qual clã ou raça se atreveria a fazer tal coisa?
Rai passou a mão em um de seus chifres, nervoso.
— Isso é apenas um alerta, Lady Sylvie. — disse ele. — Sua presença, sua conexão com os Indraths, já lhes dá uma posição política contra qualquer ação agressiva. Talvez ninguém seja tão desesperado a ponto de atacar vocês de forma tão direta, tão evidente, mas não posso descartar o perigo completamente…
Mastiguei minha comida com calma. O Gambito do Rei estava parcialmente ativo, a runa divina quente em minhas costas, redirecionando um fluxo constante de éter até o meu crânio. Ainda assim, eu gostaria de poder ativá-lo completamente.
— Espero não estar sendo precipitado, mas já considero os clãs Avignis e Kothan meus aliados. E os Eccleiahs também, é claro.
Novis ergueu sua taça.
— Como esperávamos, é claro. Contudo, mais precisa ser feito.
Regis, que devorou sua comida com uma rapidez obscena, sentou-se nas patas traseiras ao meu lado.
— Parece que um casamento político precisa ser arranjado — intrometeu-se.
Novis e Rai trocaram olhares, e senti meu estômago se contrair desconfortavelmente.
Veruhn pigarreou e abriu a boca para responder, mas no mesmo instante, um atendente anunciou:
— Lady Myre, do Clã Indrath!
Os asuras presentes no salão se levantaram em uníssono, e o ambiente ficou silencioso, exceto pelos novos anúncios:
— Preah, do Clã Inthirah! Vireah, do Clã Inthirah!
Myre apareceu na porta, silhuetada pela luz intensa lá fora. Com ela estava uma comitiva de dragões, dos quais apenas uma eu reconhecia.
Preah, a guardiã de Chama Eterna, onde passamos algumas semanas após retornar a Epheotus, tinha o cabelo trançado rente ao couro cabeludo. As escamas ao redor de seus olhos e descendo pelas bochechas brilhavam iridescentes, combinando com o vestido pálido que usava. Ao lado dela estava uma jovem dragão com o mesmo cabelo rosado e olhos prateados. Imediatamente, pensei que fosse sua filha.
A filha era alguns centímetros mais alta, e seu cabelo caía em ondas amplas sobre os ombros. Vestia uma túnica que parecia uma armadura, com escamas azul-esverdeadas destacadas por placas de armadura cinza-claro e trechos de malha. Seus olhos, da cor de prata derretida, se fixaram em mim imediatamente.
O grupo de dragões começou a entrar, e o anunciador chamou mais um nome:
— Chul, da raça fênix!
Levantei-me tão repentinamente que quase derrubei minha cadeira.
Foi só quando os asuras ao redor de Myre se moveram que eu o vi, vindo na retaguarda. Um sorriso largo surgiu em seu rosto ao me ver.
— Meu irmão em vingança! — Sua voz ressoou pelo grande salão como uma avalanche, e ele esbarrou grosseiramente na filha de Preah ao passar. Todo o salão parou quando ele se chocou contra mim, tirando o ar dos meus pulmões. Fui erguido do chão em um abraço esmagador.
Ellie riu de alegria. Sylvie recostou-se na mesa, seu olhar alternando entre Chul e Myre. Sua preocupação transbordava através de nossa conexão.
— Eu sei o que você fez por mim — disse Chul em um murmúrio grave. De repente, ele me pôs no chão e ajoelhou-se, de cabeça baixa. — Eu lhe devo minha vida, meu irmão. O que precisar, de agora até o fim dos meus dias, será seu.
— Levante-se — murmurei, segurando-o pelo braço. Ele obedeceu de imediato, praticamente tremendo de desejo de servir. Seus olhos brilhantes, o laranja e o azul, cintilavam com um propósito ardente.
Eu percebi uma força nele que não estava lá antes. Não apenas em sua assinatura de mana, que era mais firme e pura, mas em seu espírito, sua própria presença de mente e corpo. Mais do que a cura proporcionada pela pérola de luto havia ocorrido no Santuário, isso era claro.
Um sorriso flutuou pelo meu rosto, e então a realidade da situação voltou à tona.
Dois servos fênix estavam magicamente ampliando a mesa, estendendo-a em ambas as direções. Outros dois ajustavam as cadeiras com cuidado, que estavam vazias enquanto todos esperavam que Myre tomasse seu assento. A maioria dos olhos, no entanto, estava em Chul e em mim.
Myre estava em pé do outro lado da mesa de jantar trocando gentilezas com Veruhn enquanto esperava que novas cadeiras fossem criadas para todos os que chegaram atrasados. Isso levou apenas alguns instantes, e quando tudo estava pronto, Novis e Myre se sentaram ao mesmo tempo. Todos os outros os acompanharam.
Encontrei o olhar de Novis. Ele estava pálido, seu foco saltando de Myre para Chul, a mandíbula trabalhando em silêncio. Claramente, ele não esperava a chegada dela. Limpando a garganta, disse:
— Lady Myre. É uma grande honra. Obrigado por se juntar a nós no Ninho.
Um sorriso agradável floresceu em seus traços jovens e belos. Eu só a havia visto nessa forma perto de Kezess, mas não me surpreendia que também a usasse para se envolver na política dos clãs. Perguntei-me vagamente quantas pessoas a viam em sua aparência idosa. Será que aquela forma era apenas uma escolha estratégica para confortar um garoto humano de quinze anos?
Contudo, outros pensamentos, muito mais urgentes, sobrepuseram-se a este. Quando finalmente todos nós tomamos nossos assentos, sendo oferecido a Chul um entre mim e Sylvie, observei Myre com atenção. Com o canto da boca, perguntei:
— O que você está fazendo aqui?
Chul já estava pegando o pernil assada de alguma besta. Ele arrancou um pedaço do osso com os dentes e respondeu com a boca cheia.
— Tenho uma mensagem para você da… — Levantei a mão e fiz um gesto de “Depois”, mas Chul não prestou atenção. — …Caera. Coisas estranhas estão acontecendo em Alacrya.
Soltei um suspiro de alívio, feliz por ele não ter mencionado o nome de Mordain na frente de uma fortaleza cheia de fênix. Meu alívio durou pouco enquanto eu absorvia o que ele havia dito. A situação deve estar grave para enviar um mensageiro para Epheotus, embora não conseguisse entender porquê Chul. Ele estava em grave perigo só de estar aqui; na verdade, fiquei atordoado que ele não tivesse sido preso ou morto imediatamente. Não apenas ele era um membro do banido clã Asclepius, mas também era mestiço djinn.
Havia uma lista curta de pessoas que sabiam onde estava o Santuário, mas aqueles que podiam transcender a fronteira entre Dicathen e Epheotus eram ainda menos. Wren ou Mordain devem saber, talvez até ambos.
Quanto mais pensava, mais preocupado ficava.
Antes que pudesse responder, no entanto, Novis começou a falar.
— Lady Myre, quem é este convidado que você traz com você? Chul, você disse? Um nome interessante para uma fênix. Não pude deixar de notar que você não mencionou o nome do clã dele. — Mudando seu foco para Chul, ele perguntou: — De onde você é, irmão?
Chul começou a responder, mas não conseguiu, pois sua boca estava cheia.
Em vez disso, foi Myre quem respondeu.
— Infelizmente Chul é um sem clã, Lorde Avignis. Todavia, ele foi adotado pelo clã Leywin.
Ouvi murmúrios ao redor da mesa. Veruhn bebeu de uma caneca de barro e lambeu os lábios feliz, mas Rai e Novis pareciam atônitos.
— Eu… não sabia — disse Novis, franzindo as sobrancelhas enquanto me lançava um olhar furtivo e desconfiado.
Eu resisti à vontade de xingar.
Que diabos Myre está jogando aqui?
Eu precisava que as fênix e os basiliscos confiassem em mim. Será que isso era uma tentativa de Kezess de criar uma divisão entre nós? Mas então, reconheci ao mesmo tempo, ele não poderia ter previsto a aparição de Chul. O fato de o guerreiro meio-fênix, meio-djinn ainda estar vivo sugeria que talvez Kezess não soubesse a verdade, ou nem mesmo soubesse que Chul estava em Epheotus. Myre estava aqui por ordem de Kezess ou em desafio a elas?
Muitas perguntas e nenhuma maneira de obter respostas agora.
— Concentre-se no que podemos fazer — pensou Sylvie. — Estamos aqui por um propósito. Isso não muda nada, a menos que Myre faça algum outro movimento.
— Cara, as coisas estão esquentando — acrescentou Regis do fundo da mesa, onde estava farejando por mais comida. — Eu, por mim, acho que é um jogo de poder. Kezess sabe que Mordain ainda está por aí, e agora estão dizendo que podem fazer algo a respeito, mas não vão.
— Por favor, não deixem nossa chegada interromper os trabalhos — disse Myre, quebrando a pausa desconfortável na conversa. — Do que estavam falando?
Veruhn de repente olhou para a mesa, focando em Vireah, filha de Preah. Seu rosto suavizou numa expressão de compreensão.
Rai limpou a garganta.
— Estávamos apenas discutindo a ascensão do clã Leywin e a necessidade de forjar alianças.
Myre riu. Talvez fosse minha própria ansiedade, mas o som foi ao mesmo tempo musical e inquietante.
— Não me diga que o jantar só tem dez minutos e vocês já estão tentando casar o Arthur. Achei que teríamos pelo menos a primeira sobremesa antes disso.
Minha mente voltou ao comentário irônico de Regis e ao olhar compartilhado entre Rai e Novis, depois para o olhar de compreensão de Veruhn para Vireah Inthirah. De repente, entendi.
— Receio que tenha havido algum tipo de mal-entendido — falei.
Veruhn assobiou para si mesmo. Reclinado na cadeira, cruzou os braços e fitou o horizonte com seus olhos nebulosos.
— Não é incomum em Epheotus clãs que selam sua aliança através de casamentos — explicou. — Os descendentes Asuras assumem o aspecto da linhagem parental mais forte e, em seguida, se juntam ao clã apropriado. Isso cria laços fortes. Sei que esse tipo de união é frequente em sua terra de Dicathen também.
Quando não respondi, Sylvie interveio.
— Sim, é verdade, especialmente entre os poderosos, mas…
— Arthur não pode se casar! — A voz de Ellie ecoou pela mesa, e ela imediatamente ficou vermelha como um pimentão. Quando continuou, sua voz estava mais controlada. — Ele já está prometido a alguém em casa!
— Existem questões do coração, e depois existem questões do clã — disse Rai, hesitante. — Arthur, não há nada que você possa fazer que estabeleça uma aliança mais forte com qualquer outro clã. Em particular, um voto de casamento entre dois grandes clãs teria um impacto imenso.
— Espero que não tenha a impressão errada — disse Myre, um sorriso triste e apertado suavizando sua expressão. — Seria fácil chegar à conclusão de que os Clãs Kothan e Avignis concordaram com tudo isso apenas para se fortalecerem.
— Claro que não — disse Novis, parecendo tanto ofendido quanto nervoso. Rai permaneceu em silêncio, com o olhar pensativo sobre suas mãos à frente de si.
Veruhn, por outro lado, estava mexendo os polegares e deixou seu olhar vagar pela sala, aparentando tédio.
Eu queria dizer a eles que um casamento político como o que estavam sugerindo estava fora de questão, mas não consegui.
Estava irritado. Não com eles, mas comigo mesmo. Eu deveria ter previsto isso, planejado para isso. Poderia ter preparado uma resposta.
Pensei na reunião dos grandes clãs, onde me nomearam arconte. Mesmo naquela época, os outros grandes lordes insistiram que uma visita às casas dos clãs era esperada. Eu estava recém-ascendido, solteiro, com um clã pequeno e sem herdeiro. Era uma consideração tão óbvia de se fazer…
Talvez seja bom que eu tenha esquecido como pensar como um rei. O medo abafou o pensamento imediatamente. O receio de que minha falha em prever isso se deva ao Gambito do Rei, e não a alguma mudança em minhas considerações internas.
Não é a primeira vez que me preocupo por ter confiado demais na runa divina. Talvez eu estivesse perdendo o ritmo sem ela…
— Ou talvez você seja apenas humano. — A voz mental de Regis cortou o barulho dos meus pensamentos como uma flecha. — Quem teria previsto que você seria proposto para um bando de princesas?
Sylvie continuou a falar por mim, mudando habilidosamente o assunto para outras questões. Ela fez perguntas sobre a cidade e os dois clãs e compartilhou detalhes sobre sua vida em Dicathen.
— Por isso, oficialmente tomei o nome de Leywin — disse ela, fingindo indiferença.
Rai e Novis estavam atônitos, assim como os poucos outros asuras próximos o suficiente para ouvir.
Myre estendeu a mão sobre a mesa para afagar a mão de Sylvie com simpatia.
— Ah, minha querida. Por mais que seu avô e eu desejássemos que você tivesse sido criada em Epheotus, entre os seus, sabemos a verdade. Você é de Dicathen, e seu vínculo com Arthur é tão profundo quanto o vínculo de sangue que corre em suas veias. Sua escolha é sua para fazer. Só estamos felizes por tê-la de volta entre os seus.
Nenhum sinal da turbulência que fervia sob a superfície dos pensamentos de Sylvie apareceu em seu rosto.
— Obrigada, vovó. Agora, Lorde Avignis, eu esperava que pudéssemos voltar à animosidade entre os clãs. Talvez você possa me esclarecer…
Abandonando os pensamentos sobre a proposta repentina de casamento, voltei ao problema da chegada de Chul e à mensagem que ele carregava.
Tentando ser sutil, virei-me para longe da conversa e fiz questão de examinar uma enorme pintura de cristal que dominava uma parede próxima. Sussurrando baixo, perguntei:
— O que aconteceu em Alacrya?
Chul também se virou em seu assento.
— Ah, sim, isso é muito bonito — disse ele, muito alto. Depois, em tom mais baixo, acrescentou: — Algum tipo de ataque, talvez. Pulsos de mana que drenam a mana dos outros. Aparentemente, o ataque foi sentido por metade do continente. Algumas pessoas até sentiram isso em Dicathen.
— Caera? Seris?
— De acordo com a mensagem, que foi entregue por Lyra e sua linda elfa, elas foram atingidas, mas sobreviveram. Matou a Foice, no entanto. Dragoth, ao que parece.
Eu me virei novamente, batendo os dedos na mesa.
Mamãe estava tentando chamar minha atenção, mas sinalizei que estava tudo bem.
— Devemos ir embora? — perguntou Sylvie enquanto Myre contava sobre os vários outros clãs dragões e suas relações com os Indraths.
Esta mensagem foi levada por Tessia e Lyra Dreide juntas, e Mordain concordou com elas que era importante o suficiente para arriscar a vida de Chul enviando-o até Epheotus para entregá-la. Claramente, esse pulso de mana foi grave o suficiente para pôr em movimento os maiores poderes dos dois continentes.
Agrona poderia ter deixado alguma armadilha para ser ativada em sua ausência. Muitas Assombrações ainda poderiam estar à solta. O remanescente djinn, Ji-Ae, provavelmente ainda existia no coração do Taegrin Caelum. Eu não tinha como saber com certeza, mas também não sabia se minha presença em Alacrya ajudaria em algo.
— Nesta mensagem, elas pediram para que eu fosse? — perguntei a Chul, enquanto pegava um pãozinho que provavelmente não comeria.
Ele se inclinou e sussurrou em meu ouvido:
— A mensagem foi pensada para te alcançar antes da sua partida. Lyra apenas disse que você precisava saber o que estava acontecendo.
Refleti sobre essa informação, mas não podia simplesmente ponderar um perigo em comparação com o outro. A presença de Chul em Epheotus era uma complicação significativa. Ao trazê-lo para o Ninho Passo de Pluma pessoalmente, Myre estava enviando uma mensagem. Eu precisava entender o que ela pretendia, mas não podia perguntar com ela sentada diretamente do outro lado da mesa.
Uma ideia me ocorreu, e enviei meus pensamentos para Regis. Ele se levantou, bocejou, reclamou alto de ter comido demais e, em seguida, se fundiu ao meu corpo. Imediatamente, ele saiu em sua forma de fogo fátuo e passou para o corpo de Chul, que estremeceu o suficiente para derrubar sua bebida. Suas bochechas ficaram vermelhas enquanto um atendente corria para limpar a bagunça com vento e fogo.
— Pergunte como Myre se comportou quando ele chegou aqui.
Houve uma breve pausa, durante a qual Chul permaneceu imóvel ao meu lado.
— Ele disse que foi interceptado quase imediatamente por uma patrulha de dragões. Ele alegou estar à sua procura, então o levaram ao Castelo Indrath. Lady Myre o encontrou lá. Ela tem sido… muito gentil, segundo ele.
— Será que ela sabe quem ele realmente é? — perguntei, usando Regis para nos comunicarmos sem palavras, da mesma forma que ele havia compartilhado as últimas palavras de Tessia quando pensávamos que ela estava morrendo.
— Oof. Sim. Ao que parece, ele se apresentou como “Chul do Clã Asclapius, irmão em vingança de Lorde Arthur Leywin”… para praticamente todo mundo.
Suprimi um gemido. — E Kezess? Kezess sabe?
— Ele não tem certeza. Nunca o viu.
— Você está bem, Chul? — perguntou Myre. — Parece não estar muito bem.
Chul limpou a garganta e me lançou um olhar de soslaio.
— Ah…
Regis saiu do corpo de Chul e voltou para o meu. O grande meio-asura imediatamente relaxou.
— Obrigado, Lady Indrath. Estou bem. Apenas…
— Sobrecarregado? — completou minha mãe, dando um leve tapa em sua mão. — Senti o mesmo muitas vezes desde que fui trazida para cá pela primeira vez.
Meus olhos encontraram os de Myre do outro lado da mesa.
Essa mulher tinha sido como uma avó para mim, uma vez. Ela me guiou nos primeiros passos enquanto eu aprendia sobre o éter. Porém, eu não podia mais confiar nela.
— Não podemos ir embora — pensei, respondendo à pergunta de Sylvie. — Ainda não. Talvez não por um tempo. Teremos que confiar que Caera e Seris conseguirão lidar com isso, seja o que for.
Regis, Sylvie e eu, nossas mentes conectadas, permanecíamos isolados dos outros, partilhando o peso crescente de nossas preocupações.
Tradução: NERO_SL
Revisão: ***
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