O Começo Depois do Fim

O Começo Depois do Fim – Cap. 480 – Providência

 

POV ARTHUR LEYWIN

 

Através da cacofonia de sons indistinguíveis, ouvi uma voz abafada.

— Mate-a.

— Não.

Um brilho intenso no coração da escuridão. O amargo pano de fundo para os ecos de dez mil aspectos fragmentados de uma mente levada além do limite da capacidade, da sanidade.

Contra a parte de trás das minhas pálpebras fechadas, o éter escorria como sangue pelos poros entre os mundos. Sobreposta a essa imagem estava outra: fios dourados se estendendo além dos limites de um mundo e entrando no próximo, através de uma fenda, alcançando longe e se espalhando a partir do ponto de conexão que era um único homem, um homem cujas mãos estavam vermelhas com o sangue de civilizações após civilizações. Na imagem, eu cortava as cordas do Destino e assistia um império cair. Depois olhava para minhas próprias mãos, e elas estavam vermelhas como as dele.

Assim não. Eu descartei a visão. Um pequeno ponto de luz estava crescendo atrás dela.

Tentei falar. As palavras saíram como um grito.

Outra imagem. Uma que considerei com mais atenção, por mais tempo: eu, com uma coroa de luz sobre minha testa, e os fios do Destino enrolados ao meu redor como armadura, Agrona impotente contra mim. Na visão, eu o derrubava de dez maneiras diferentes, e ainda assim cada golpe reverberava através do tempo e espaço para garantir falha e destruição, e dez visões diferentes dentro da visão colapsavam ao meu redor. Eu, no epicentro da falha.

Descartei a imagem com alguma dificuldade.

A luz ficou mais próxima, mais brilhante.

Refleti sobre a última visão, a única maneira. Era uma porta que eu podia abrir, mas não ver além dela. Entretanto, era a única maneira.

As visões se fundiram em um borrão brilhante. Tentei fechar os olhos, mas já estavam fechados.

Sons indiscerníveis atingiram meus ouvidos.

— Mate-a.

— Não.

— Arthur/Grey.

Relâmpagos atrás dos meus olhos. Respiração presa nos meus pulmões. Um mundo escrito em fogo, visto através de pálpebras fechadas.

Meus olhos se abriram de repente, e um fraco grito escapou dos meus lábios.

Eu me vi de cima, uma mente fora do corpo. Eu estava sentado de pernas cruzadas na piscina de líquido rico em éter, que ondulava levemente e lançava uma luz azul-púrpura desigual no interior da grande caverna subterrânea onde Sylvia havia se escondido muito tempo atrás. Ao meu lado, Sylvie estava sentada na mesma posição. Seu rosto estava franzido em uma expressão tensa, os olhos ainda fechados, as pálpebras se movendo enquanto os globos oculares abaixo corriam para frente e para trás, como se ela estivesse tendo um sonho torturante.

Não havia emoção no que eu via diante de mim. A cena ainda estava muito distante de mim, muito distante e irreal.

Tessia… não, Cecilia… estava de joelhos ao lado da piscina. Seus cabelos acinzentados cobriam seu rosto. Olhos amendoados de cor azul-esverdeada estreitaram-se, fulminando com o olhar o homem que estava acima dela através dos fios prateados. Sangue se acumulava ao redor de seus dedos e se espalhava na piscina, tingindo a luz azul que enfraquecia.

Não precisei procurar a fonte para saber que não era sangue dela, mas meus olhos ainda assim se voltaram para Nico. Cada fraco batimento de seu coração moribundo fazia com que mais do pouco sangue que ele ainda tinha jorrasse do espinho negro e ramificado que sobressaía de suas costas.

Também não precisei adivinhar como isso aconteceu. A mana que conjurou o feitiço fatal ainda flutuava ao redor de Agrona, mal controlada. Eu sabia que ele já havia se esquecido de Nico. Toda sua vontade estava concentrada em Cecilia enquanto ele correspondia ao olhar fulminante dela com uma expressão de comando cruel e expectante.

Muitos fios dourados corriam entre os três. Os que estavam ao redor de Nico estavam começando a se quebrar um a um. A maioria levava de Nico para Cecilia, enrolando-se ao redor dela, e menos para Agrona. Alguns poucos fios ligavam Nico a mim, mas estes estavam tremendo de tensão, prontos para se romper.

Embora poucos fios ligassem Nico e Agrona, o próprio Agrona irradiava mais do que eu poderia contar.

E, ainda assim, eu estava coberto por ainda mais fios dourados do que os outros. Enrolados em cada centímetro do meu corpo, de modo que eu estava quase escondido sob eles, os fios dourados me conectaram a todos os outros e depois se espalharam pelo mundo inteiro, assim como Agrona. Os fios estavam tão entrelaçados que eu quase parecia…

— Arthur/Grey.

Através dos fios entrelaçados, brilhando fracamente ao meu redor como as ataduras de um antigo rei mumificado, eu vi. O aspecto do Destino, dentro e ao redor de mim, ligado a mim, sentado logo atrás e acima de mim, não no espaço tridimensional, mas no tempo e nas camadas pressionadas do tecido do universo que separavam o mundo físico e o reino etéreo em que ele estava preso.

— Eu aceito a visão do futuro que você ofereceu como estando dentro da ordem natural, o avanço necessário do fluxo temporal — continuou o aspecto, sua voz apenas para meus ouvidos. — Mas também ofereço um aviso.

Minha visão se retraiu ainda mais, puxando-se através do teto da caverna e do solo acima dela até o ar livre. Em vez de olhar para a Clareira das Bestas, eu estava acima de Etistin, como nas visões que o Destino me mostrou dos eventos passados ali.

Agora, ele me mostrou o futuro.

Assim como antes, borrões brancos representando os dragões chegavam, e Etistin como eu conhecia era apagada da face de Sapin. A baía parecia solitária e desolada sem a cidade, mas o tempo passou rapidamente e logo uma nova civilização estava sendo construída ali. As estruturas simples que construíram não duraram muito antes de também serem exterminados. A velocidade da visão parecia estar aumentando, de modo que eu só via flashes de cada nova cidade sendo construída antes de ser destruída.

Eu me retirei ainda mais, até que o mundo inteiro era apenas uma pequena mancha de cor contra um vasto céu escuro, vazio exceto pelas estrelas distantes. Todo o amplo universo estava diante de mim em cores exageradas, as estrelas brilhando como pontos de luz contra um fundo ondulado de óleos sobre água em tons de roxo, azul e cinza.

E, ressoando logo abaixo da superfície, pressionando contra as paredes da realidade, estava a crescente pressão do reino etéreo. Um ritmo constante começou a pulsar do reino etéreo como um batimento cardíaco, e com cada pulsação, as estrelas brilhavam e se projetavam. Os batimentos ficaram mais fortes, mais rápidos, e de repente entendi o que estava prestes a acontecer.

Como se meu entendimento tivesse conjurado aquilo à existência, o mundo se rompeu. Era como a visão que eu tinha tido antes, o futuro que o Destino estava tentando conjurar através de mim, mas o cataclismo resultante não ocorreu em escala global.

Foi com um horror profundo e vago que assisti à explosão etérea se espalhando pelo céu, apagando as estrelas e deixando para trás apenas um vazio infinito.

A cena desapareceu, e eu estava novamente olhando para mim mesmo e para o aspecto do Destino dentro e ao redor de mim.

Com o desvanecer da visão, meu horror também se dissipou. O que restou foi como um sonho distante, apenas meio lembrado na escuridão profunda da noite. Porém, era um daqueles que impede o sonhador de voltar a dormir por medo de que o pesadelo volte.

— Mate-a. — As palavras frias saíram de Agrona, e ele pressionou Cecilia com sua intenção assassina, prendendo-a de quatro no chão.

Ela fechou os olhos, sua dor escrita nos fios dourados que os conectavam. Dois a dois, os fios que a ligavam a Agrona estavam se rompendo e desaparecendo no nada.

Com os dentes cerrados, ela pronunciou uma única palavra.

— Não.

Meus olhos se abriram de repente, e um fraco grito escapou dos meus lábios.

A cabeça de Agrona começou a se virar para mim, sua intenção se afiando em uma lâmina mortal. Agachada a seus pés, os olhos de Cecilia se voltaram para mim, e através deles eu vi profundamente em seu coração, onde uma Tessia trêmula se desenrolava e estendia a mão. Nós de fios dourados se entrelaçavam entre os dois, uma bagunça caótica de passado e futuro que os amarrava.

Outro fio conectando Nico a Cecilia se rompeu, e eu senti que a respiração que deixava seus pulmões era a última que ele daria neste mundo.

— Nico!

A piscina começou a se agitar quando, ao meu lado, Sylvie se levantou. Suas mãos se lançaram para fora, e um escudo prateado e meio formado começou a se envolver ao meu redor.

A foice da intenção de Agrona o atingiu, e explodiu com um som parecido com o de um sino. Sylvie foi lançada para trás, seu corpo girando pelo ar como uma boneca de pano.

O calor se derramou em meu núcleo vazio enquanto Regis expelia desesperadamente todo o seu próprio éter, forçando-o a passar pelos portões ao redor do meu núcleo. A força correu através dos meus canais como lava, ardente e inexorável.

Agrona recuou do escudo de Sylvie, cambaleando um passo.

Ao lado dele, Cecilia se levantou.

Assim como o Destino pairava acima e atrás de mim como uma sombra dourada, uma sombra prateada se ergueu com Cecilia. Vinhas esmeraldas se contorciam através da luz prateada enquanto Cecilia e Tessia ficavam juntas. Os nós dourados que as ligavam estavam se desfazendo. Não quebrando, mas desenrolando, cada nó desgastado se desatando e se endireitando rapidamente.

A sombra prateada que era Tessia levantou o braço. Meio segundo depois, Cecilia fez o mesmo.

Vinhas esmeraldas explodiram de Tessia, estalando como relâmpagos verdes pelo ar entre ela e Agrona. Elas o atingiram, empurrando-o mais meio passo para trás e agarrando seus pulsos e chifres.

A mão de Cecilia se fechou em um punho, e os fios ao seu redor flexionaram e vibraram, pulsando com uma luz dourada. Sua mandíbula se contraiu, os olhos se fecharam, e lágrimas escorreram deles. Sua mão caiu um centímetro.

Agrona zombou, e Cecilia foi levantada do chão. Ela foi arremessada pelo ar até suas costas se chocarem contra o teto da caverna, soltando uma chuva de pequenas pedras, e então ela caiu de volta ao chão, aterrissando pesadamente na minha frente. Uma dúzia de fios ou mais se romperam e queimaram entre Cecilia e Agrona.

A sombra prateada que era Tessia havia desaparecido, arrastada de volta para a prisão de seu corpo.

Os olhos escarlates de Agrona se fixaram em Cecilia, seus lábios se curvaram em uma careta de decepção.

Levantei minha mão. Os olhos de Agrona se voltaram para mim, arregalados.

Muitos fios ainda uniam Cecilia e Agrona. O éter endureceu entre meu polegar e indicador, e eu apertei o feixe dourado, cortando os fios do Destino como se fossem nada mais que lã fiada.

Uma onda de choque foi lançada em ambas as direções a partir do corte, atingindo Agrona e se espalhando sobre a forma de Cecilia, jogando-a na piscina aos meus pés.

Agrona tropeçou e caiu, ficando de joelhos. Seus olhos perderam o foco, e no ondular do espaço e do tempo, vi a queima de todos os futuros potenciais em que Agrona era capaz de usar o Legado, seja como uma arma na forma de Cecilia ou como seu próprio poder. A onda de choque continuou a abalá-lo, atingindo-o repetidamente à medida que cada futuro potencial colapsava em sua mente.

Inclinei-me para frente e puxei Cecilia para perto de mim, segurando-a de bruços na superfície do líquido denso, agora esgotado de éter e emitindo uma fraca luz púrpura. Muitos fios ainda a conectavam ao mundo mais amplo. Peguei-os em seguida, mas até mesmo a fraca borda cortante de éter ao redor da minha mão era difícil de manter.

Alcançando o vazio ao meu redor, ativei a relíquia da armadura.

Escamas negras começaram a se formar sobre minha pele enquanto a armadura se formava, espalhando-se do meu peito para cobrir todo o meu corpo. 

Mas, à medida que a armadura se espalhava, placas brancas brilhantes e cristas começaram a se formar sobre ela, crescendo em ombreiras e grevas sobre as escamas negras. Botas pesadas fundiram-se perfeitamente às grevas, e delicadas manoplas cresceram ao redor das minhas mãos entre minha pele e Cecilia em meus braços.

Não tive tempo para considerar a implicação dessa mudança, e, enquanto a armadura começava a absorver éter da atmosfera ao redor, concentrei minha atenção em absorver o que podia. As bordas etéreas ao redor dos meus dedos com manoplas se firmaram novamente, e alcancei novamente os fios dourados que se estendiam de Cecilia.

O tempo pareceu engasgar. Abaixo de mim, a piscina manchada de sangue explodiu para cima, formando espadas, machados e lanças. Um vento com contornos negros me atingiu como um aríete, e puxei Cecilia para mais perto de mim, protegendo-a o melhor que podia. O vento começou a levantar as armas e girá-las, me deixando no centro de um vórtice mortal.

À medida que as espadas e machados líquidos me atingiam, a armadura puxava do meu modesto reservatório etéreo, lutando para se reformar enquanto cada golpe a despedaçava pedaço por pedaço.

Em meio à tempestade de espadas, encontrei os olhos de Agrona, agora com a cor de sangue coagulado.

Com uma mão trêmula, peguei os fios dourados. Meus dedos se fecharam em torno de um punhado de fios do Destino, e o éter os penetrou.

Mais uma vez, ondas de choque rolaram ao longo dos fios, se espalhando por todo o mundo. Eu senti cada uma, e vi por trás dos meus olhos cem diferentes efeitos em cascata enquanto as vidas de alacryanos e dicathianos em todo lugar eram alteradas para sempre. Minhas pernas e meus braços tremeram ante o peso disso.

O vórtice diminuiu, as armas conjuradas caíram de volta na piscina, agora manchada também com o meu sangue. Agrona estava de joelhos, seu corpo arfando a cada respiração, em seu rosto estava uma expressão de dor e perseverança desesperada.

Apenas alguns fios permaneciam ao redor de Cecilia, enquanto as linhas douradas irradiando de Agrona eram incontáveis. Eu tinha visto tantas possibilidades na pedra-chave ao procurar o caminho a seguir para que o destino me libertasse de suas amarras. Não sei o que teria feito se tivesse me deparado com este momento antes. Mesmo agora, era uma decisão difícil de tomar, de aceitar. Parecia errado. Sentia que era injusto.

Não havia um único fio irradiando de Agrona que eu pudesse cortar e resultaria em uma vitória aqui. Nenhum golpe que pudesse desferir diretamente contra ele traria um mundo em que o futuro que mostrei ao Destino poderia acontecer.

Olhei de volta para Cecilia. Seus olhos se abriram. Não havia nenhum vestígio de Tessia neles; ela tinha esgotado suas forças e estava enterrada profundamente sob o espírito mais forte do Legado, presa pela magia de Agrona e as runas desenhadas em sua carne.

Outro fio entre Tessia e Nico se apagou. Apenas uma única linha dourada permanecia.

A mana estava começando a vazar do núcleo de Nico e subia de sua pele como vapor.

Algumas vontades eram mais fortes do que outras. Certas visões do futuro eram tão potentes que reescreviam a probabilidade e o potencial, forçando a realidade a se ajustar para manifestar esse futuro. Agora eu sabia que isso era a verdade sobre como alterar o Destino: por meio de ação, vontade e crença inabalável. Não era outro poder a ser manipulado ou controlado. As pedras-chave nunca foram sobre controlar o Destino, apenas sobre compreendê-lo. Contudo, por meio da compreensão, ainda podia ser influenciado.

No entanto, não foi apenas a minha vontade que influenciou o Destino.

— Sinto muito — disse, e todos os meus muitos arrependimentos sobre como lidei com tudo entre nós vieram à tona com essas duas palavras.

Cecilia não disse nada, apenas olhou de volta para mim. Não havia desespero em seu olhar, nem esperança, nem medo. Também não se tratava de confiança. Ao olhar naqueles olhos verde-azulados, vi apenas aceitação. Ela sabia que este era seu fim, e não tinha mais forças para lutar contra isso.

Eu não reconheci meus próprios sentimentos. Senti culpa por minhas próprias ações, mas não senti que Cecilia ou Nico mereciam minha misericórdia. Nenhum dos meus antigos amigos tinha tido uma vida justa, nem na Terra nem neste mundo, e eu não os culpava por isso, mas ambos tinham escolhido tratar este lugar – esta vida, este mundo inteiro – como se não importasse. Enquanto a Terra era pouco mais que um pesadelo para mim, tinha se tornado a obsessão deles, tanto no passado quanto no futuro, e trataram meu mundo e minha família como um simples degrau para se mover de uma vida na Terra para a próxima.

Eu não reconheci meus próprios sentimentos, mas se o fizesse, eu sabia que encontraria amargura e raiva. E ódio. Não reconheci meus próprios sentimentos porque não queria reagir emocionalmente. Não queria repetir os erros deles ao deixar o passado destruir uma oportunidade para um futuro melhor. Eles não mereciam minha misericórdia, e certamente não tinham ganho redenção.

Todavia, puni-los também não era importante. Não no grande esquema das coisas. O Destino havia me mostrado isso.

Um rugido sacudiu a caverna, fazendo cair mais pedras e poeira do teto. Saindo das sombras, com a luz púrpura dançando sobre as escamas negras, Sylvie se aproximou de nós. A terra tremeu quando sua garra desceu sobre Agrona, imobilizando-o.

Uma foice de mana negra e transparente cortou a piscina ao meu lado, quase arrancando meu braço e a cabeça de Cecilia.

Peguei um fio dourado que saía de Cecilia e subia pelo teto da caverna. Segurei-o, mas não o cortei. Em vez disso, canalizei o Réquiem de Aroa nele, fortalecendo o potencial e conjurando um zumbido ressonante através do fio que se espalhou em ambas as direções. Todos os outros fios ao redor de Cecilia começaram a se desfazer, quebrando como seda de aranha e se transformando em luz dourada e depois em nada mais que uma possibilidade distante e inacessível.

Os últimos nós que ligavam Cecilia a Tessia se desfizeram. Quando os nós desapareceram, esses fios também se dissiparam.

Restavam apenas dois: o fio fortalecido, vibrando pelo universo, e o fio desgastado conectando-a a Nico, que já tinha dado seu último suspiro neste mundo. A última parte de sua mana escapou de seu núcleo e saiu por suas veias de mana. Um nó de partículas de energia ametista brilhante flutuou para fora dele.

 Um pequeno nó de fio dourado, hesitante e tremeluzente, estendia-se de volta para Cecilia.

— Vá — falei, minha voz rouca e fraca.

Lágrimas escorreram dos olhos de Cecilia, e seus lábios começaram a tremer. Por um momento, não vi Cecilia no corpo de Tessia nem a própria Tessia. Em vez disso, vi a menina órfã que lutava para fazer amigos por medo de machucá-los. Com apenas um leve aceno de cabeça, ela voltou seu olhar para o caminho do fio. Embora eu soubesse que ela não podia vê-lo, ela podia senti-lo puxando-a.

Seus olhos reviraram, e a essência de seu ser brilhou intensamente dentro da luz dourada do fio do Destino; aquele que a ligava de volta à Terra. As partículas etéreas que haviam subido de Nico se dissolveram no fio também, e juntos, duas pequenas luzes púrpuras ascenderam através do ouro. Atrás deles, o fio se desfez.

A onda de choque final irrompeu de Agrona, jogando Sylvie para longe como se fosse uma folha seca de outono. A força da onda se espalhou pelos fios do Destino que conectavam Agrona ao mundo, e minha mente foi arrancada da caverna junto com ela.

Eu vi a Clareira das Bestas sob um portal ondulante no céu. Dispositivos de óbvia origem alacryana cercavam a fenda, isolando-a do mundo e golpeando-a com ondas de força disruptiva. Dezenas de Assombrações flutuavam no ar dentro do escudo que as protegia do pequeno exército de dragões do lado de fora.

A onda de choque percorreu os fios dourados até atingir as Assombrações e Instiladores como um golpe físico. Como insetos em um furacão, foram varridos do ar.

Quando a primeiro Assombração se chocou contra um dos artefatos geradores de escudo, faíscas voaram do dispositivo e o escudo começou a oscilar. Então, uma segunda, terceira e quarta Assombração aterrissaram entre os equipamentos frágeis, e uma explosão abalou a fortificação alacryana. Começando em um único ponto, o escudo ao redor deles começou a colapsar para dentro. O buraco cresceu cada vez mais até ser maior que o próprio escudo, e então o escudo desapareceu.

Os dragões pairaram nas bordas, olhando em choque. Charon, flutuando à frente em sua forma de dragão marcado por cicatrizes, deu um grito retumbante, e os dragões desceram sobre os alacryanos prostrados.

Ao mesmo tempo, em todo o continente, outra onda de choque atingiu centenas de alacryanos aprisionados. Gritos irromperam de suas celas, ecoando pela cidade subterrânea. Costas arqueadas enquanto pessoas se jogavam no chão, arranhando as runas e núcleos. Entre eles, vi Corbett Denoir e o guerreiro Arian, protetor de Caera, mas também o jovem Alto Sangue de Xyrus, Augustine Ramseyer, e muitos outros com os quais eu estava familiarizado. 

Eu vi quando Seth Milview e Mayla da cidade de Maerin se agarraram um ao outro, suas faces distorcidas de dor e medo enquanto tremiam com o impacto. Seris, Lyra Dreide e Caera se moviam entre eles, parecendo ser as únicas entre todos os alacryanos não paralisadas pela força de colisão da alteração do Destino.

Em outro lugar, eu segui a onda de choque enquanto ela passava por cima de Etistin. Ela encontrou a Foice Melzri enquanto esta vasculhava a carnificina de um horrível campo de batalha congelado. A Foice se abaixou para verificar sinais de vida de uma mulher de pele pálida com cabelo curto e branco, a retentora Mawar. A Lança Varay estava deitada por perto, mexendo-se levemente. Melzri a observou cautelosamente, depois sacou uma lâmina no exato instante em que a onda de choque a alcançou, levantando-a do chão antes de arremessá-la para um campo de espinhos de gelo.

Mais fios conectavam-se através do vasto oceano até Alacrya. Lá, minha compreensão do que estava acontecendo começou a se desfazer, pois os efeitos da explosão eram muito amplos para que minha mente cansada pudesse acompanhar tudo de uma vez.

Em vez disso, fosse por algum pensamento meu ou por algum truque do reverberante Destino, foquei em Taegrin Caelum, a distante fortaleza montanhosa de Agrona. Muitos fios do Destino conectavam-se a pontos ao longo da fortaleza, e tal era a força da onda de choque ao atingir as paredes de pedra que a montanha tremeu e a pedra começou a rachar. Uma torre alta explodiu desde a base, enviando uma avalanche de pedras quebradas para despencar nos níveis inferiores, o teto da torre afundando na base implodida em uma nuvem de poeira.

À distância, bem atrás de Taegrin Caelum, um gêiser de lava laranja brilhante irrompeu da caldeira do Monte Nishan. Fumaça negra fervilhava para cobrir as Montanhas Presa do Basilisco em uma nuvem negra impenetrável, e o solo tremia.

Como se em uma só voz, toda a população mágica do continente gritou em uníssono, e então eu estava de volta à caverna de Sylvia, deitado na piscina rasa e quase vazia ao lado de Tessia.

O aspecto do Destino não pairava mais logo atrás e acima de mim. Ele se foi, e minha visão dos fios do Destino que nos conectavam a todos também se foi com ele.

Eu rolei de costas e olhei para Agrona. Ele estava deitado de bruços, suas costas subindo e descendo regularmente, mas seus olhos olhando para frente, vazios e sem vida.

Um som de batidas contra o chão molhado chamou minha atenção de volta para Tessia; ela estava tendo convulsões, seu corpo inteiro tremendo tão violentamente que seus calcanhares batiam loucamente contra a pedra. Eu a puxei para meu colo, amortecendo sua cabeça dos espasmos de seu corpo.

Olhos dourados brilharam no escuro, e Sylvie cambaleou em nossa direção, um braço apoiando o outro, que pendia inerte ao seu lado. — O que está acontecendo?

A resposta era óbvia.

A alta densidade de mana compactada no corpo de Tessia estava começando a escapar, criando uma espécie de aura arco-íris que cintilava e dançava no ar como a Aurora Constelada.

— Ela não consegue controlar.

Regis, pouco mais que uma sombra escura com olhos brilhantes agora, saiu do meu peito. Ele pairou na frente do meu rosto por um momento, depois mergulhou e desapareceu no corpo de Tessia.

Ela está tentando, lutando. Cecilia a ensinou, ou tentou, mas… não foi suficiente. Ela está… morrendo.

Eu passei minhas mãos sobre os braços dela e subi pelo pescoço, onde as tatuagens de runas haviam ajudado a prender Cecilia ao corpo e manter o controle sobre o espírito de Tessia, junto com quaisquer outros desígnios sombrios que Agrona tivesse tecido para seus próprios propósitos. Contudo, não estavam mais lá. As runas foram destruídas no processo de remoção de Cecilia de seu corpo.

— Ela não tem um núcleo e não é o Legado — falei segurando-a firmemente para acalmar o pior dos tremores. — Foi Cecília quem passou pelo processo de integração.

Art… — O pensamento de Regis se interrompeu por um momento. — Ela disse que… está tudo bem. Ela quer que você saiba… que fez a coisa certa.

Engoli em seco e passei a mão sobre o cabelo de Tessia. Era estranho pensar especificamente como sendo o cabelo de Tessia de novo. Seu corpo de novo. Ela de novo.

Estremeci quando meu núcleo se contraiu. As feridas causadas pelo ataque de Agrona estavam lutando para cicatrizar. Apesar do sacrifício de Regis e da relíquia de armadura, meu corpo estava faminto por éter. Minhas pálpebras estavam pesadas, e cada movimento parecia lento e doloroso. Eu me sentia fraco, mais fraco do que em muito tempo.

Meu foco fragmentado retornou para Tessia com um solavanco. Mana ainda estava jorrando dela, criando as luzes dançantes ao seu redor.

Sem o aspecto do Destino me ligando diretamente à pedra-chave e a tudo o que havia visto dentro dela, os muitos futuros potenciais que eu havia analisado, usando uma combinação do Gambito do Rei, do Destino e da própria pedra-chave, pareciam embaçados e distantes. Tudo estava tão claro, antes, até o momento em que eu havia separado Cecília e o Legado de nosso mundo…

Apenas o futuro do reino etéreo mantinha clareza. Isso eu entendia. Isso, eu sabia o que fazer. Espero que eu possa fazer o que precisa ser feito…

— Arthur — gritou Sylvie bem ao meu lado, fazendo-me estremecer. Não havia notado que ela estava ajoelhada ao meu lado. — Temos que fazer alguma coisa.

— Eu sei, eu… — Fechei os olhos, apertando-os com força e depois relaxando novamente. — Desculpe, estou tendo um pouco de dificuldade… para me concentrar. — Com um pequeno tremor, forcei-me a ficar de pé e ajustei Tessia em meu colo.

— Ela está dizendo… ah, que droga, Art. Queria não ter que ser o intermediário aqui. — Regis estremeceu, uma expressão mental que fez um espasmo passar pelo meu próprio rosto relaxado. — Ela está dizendo que entende. Que está tudo bem. Você fez tudo o que podia. Ela quer que você saiba que, depois de tudo… bom, ela está feliz que você esteja aqui no final. Você e Sylvie. E eu também, mas ela acrescentou isso como uma espécie de pensamento secundário, mesmo que seja eu que… tudo bem, tudo bem. Ela, uh… ela te ama, Art. E quer que eu te diga… ade…

— Pare —, eu disse, de repente totalmente acordado. — Não! Isso não é um adeus! Olhei ao redor da caverna como se pudesse encontrar a solução ali, ao alcance das mãos.

Agrona ainda estava desacordado. A luz purpúrea escura da piscina tinha desaparecido, seu éter esgotado. Uma única lágrima desceu pela bochecha de Sylvie, e ela se apoiou em meu braço, com a respiração fraca.

A luz da mana interagindo com a atmosfera ao redor de Tessia começou a desaparecer.

Tentei levantar Tessia e ficar de pé, mas não consegui. Sylvie se levantou, mas cambaleou em seus pés, instável.

— Não tenho forças para me transformar neste momento. Eu… não posso nos tirar daqui, Arthur.

Sem forças sequer para levantar Tessia, lutei para fazer um inventário mental de todas as ferramentas ao meu alcance que pudessem ajudá-la. Eu podia me comunicar com ela através de Regis, eu…

— Desculpe — falei de repente, percebendo que não havia respondido adequadamente a ela, — Isso não é um adeus, Tessia. É um “bem-vinda de volta”.

Mesmo enquanto dizia as palavras, eu não sabia se eram verdadeiras. Eu só tinha uma opção, mas não sabia o suficiente sobre ela para ter certeza de que funcionaria. Seu corpo não estava gravemente ferido. Será que um elixir poderia dar a ela a força para controlar um corpo sem núcleo?

Com o pouco éter que me restava, canalizei a runa em meu braço e retirei as duas pequenas pérolas azuis brilhantes de minha runa dimensional.

— Ajude-me a segurá-la.

Saí de baixo de Tessia, que não estava mais tendo espasmos, mas ainda se contorcia ocasionalmente. Sylvie e eu a ajustamos para que ficasse deitada de costas, e Sylvie fez o possível para estabilizá-la enquanto ela tremia. Com as pérolas em uma das mãos, conjurei uma pequena lâmina de éter na outra. Dor percorreu minhas têmporas e núcleo enquanto forçava a manifestação a se concretizar. A luz etérea que formava a lâmina tremeu levemente e depois se solidificou. 

Com muito cuidado, cortei sua roupa, depois a pele lisa acima do esterno. A lâmina separou a cartilagem e o osso tão facilmente quanto a pele, abrindo caminho para onde seu núcleo deveria estar.

Embora seus olhos estivessem fechados, o corpo de Tessia tremia enquanto eu empurrava uma das pérolas de luto para dentro da cavidade. Ela se acomodou lá, como um pequeno núcleo azul brilhante em seu peito. O núcleo de uma criança leviatã que nunca teve a chance de viver sua vida… uma vida agora dada a Tessia. Senti minha mandíbula trabalhar enquanto cerrava os dentes, a tensão era palpável, e me forcei a relaxar.

Regis se afastou do corpo dela sob o meu comando; não havia mais como alcançar sua mente interior de qualquer forma. Ela estava totalmente inconsciente e seu pulso mal batia.

Tanto Regis quanto Sylvie compartilharam das minhas memórias ao usar a outra pérola em Chul, mas eu podia sentir a antecipação e o desconforto deles à medida que os segundos continuavam a passar e nada acontecia.

— Leva tempo —, eu lhes assegurei.

Senti a atenção de Sylvie mudar, e segui seu olhar de volta para seu pai.

— O Legado era tão intrínseco a seus planos quanto as veias de mana são para um conjurador. — Ela disse. — Removê-la, mesmo que só a possibilidade, enviou uma onda de choque pelo Destino que se espalhou por todo o nosso mundo. Foi como se ele tivesse entrado em seu peito e puxado metade dos canais que percorriam seu corpo.

Sylvie olhou fixamente para a forma em coma de seu pai.

— Eu vi partes disso. — Sylvie continuou — Não… não consegui acompanhar tudo. O que vamos fazer com ele?

— Eu nunca fui capaz de ver além disso — respondi, afundando. O esforço de falar estava drenando até minhas últimas forças. — A onda de choque… não tenho certeza. Ela agiu como um relâmpago, deixando-me cego para tudo depois. Vi muitas outras possibilidades, mas não era como ver o futuro, na verdade. Era mais como… elaborar um plano e convencer-se de que nada aconteceria exceto o que planejou, mas nunca encontrei uma maneira de atacar Agrona diretamente, ou Kezess, para ser sincero, que funcionasse. — Balancei a cabeça. — Sinto muito. Sem o aspecto do Destino aqui para me ligar a tudo, não consigo explicar.

— Mas ele vai acabar acordando, não vai? — perguntou Regis, balançando para cima e para baixo e arregalando os olhos brilhantes com raiva. — Sei que usar sua técnica de “Tesoura do Destino” para vencê-lo não nos dará o futuro que queremos, mas por que não apenas… você sabe, cortar a cabeça dele agora enquanto está inconsciente? Use a outra pérola para recuperar sua força, se precisar.

Eu olhei entre nós três e então para a última pérola, ainda segura em minha mão. Com um pulso dolorido de éter, eu a enviei de volta para a runa dimensional. — Não sei se a pérola faria alguma coisa comigo. Admito que não tenho força nem para convocar uma lâmina de éter agora, mas não vou arriscar desperdiçar a última pérola.

Sylvie se esforçou para ficar de pé novamente. Ela conseguiu, mas parecia que poderia cair a qualquer momento.

— Talvez… talvez eu tenha a força para… estrangulá-lo enquanto ele estiver inconsciente. Talvez o destino aprecie a… ironia.

Regis soltou uma risada apreciativa, e eu sorri cansado. Sylvie parecia muito séria, como se estivesse realmente considerando a possibilidade. Sua expressão se desfez, e então ela também começou a rir. Eu me juntei a ela, cada tremor dos meus ombros enviando dor por todo o meu corpo, mas principalmente em minhas têmporas e na base do meu pescoço.

Havia uma parte de mim que não doía, no entanto.

Olhando para dentro, percebi que a cicatriz que Cecilia havia deixado em meu núcleo havia cicatrizado, e a sensação de coceira havia diminuído.

De repente, uma luz azul-branca, tão brilhante que tive que desviar o olhar, brilhou do corte no esterno de Tessia. A princípio, era apenas um gotejamento, mas rapidamente se transformou em uma inundação. Mana jorrou do corte e limpou seus arranhões e hematomas. Dentro dela, essa mana se solidificou em um poço preto escuro ao redor da pequena pérola azul. À medida que mais e mais mana jorrava através da casca preta rígida, ela se iluminou em vermelho, depois laranja, amarelo e prateado. Finalmente, o núcleo recém-formado virou um branco brilhante como neve.

Sua respiração se estabilizou e a tensão em suas sobrancelhas e lábios se dissipou. Ela não acordou imediatamente, mas um sorriso confortável brincava em seu rosto adormecido, como se estivesse tendo um sonho agradável.

Alisei seu cabelo, desejando nada mais do que abraçá-la e mantê-la ali. Embora uma parte de mim também estivesse hesitante, talvez até com medo. Ela viveu na cabeça de alguém que não queria nada mais do que me matar. Ela poderia ter aprendido todo tipo de coisas sobre mim… e talvez também tenha sido sujeita a um número incontável de mentiras. Nossa história não tinha sido nada simples até agora, e seria ingênuo e irracional pensar que poderíamos retomar exatamente de onde paramos no início da guerra.

A súbita aparição de uma assinatura de mana opressora arrancou meus pensamentos de qualquer coisa tão mundana quanto romance.

Aproximava-se em uma velocidade absurda, algo entre voar e teleportar, e estava escoltada por um grupo de assinaturas menores, mas ainda inumanamente poderosas.

O peso era demais para suportar, e não pude deixar de afundar no chão, deitando-me de costas. Regis se refugiou em meu núcleo, pequenos tremores percorrendo sua forma etérea. Sylvie afundou de joelhos e olhou para a base do longo eixo que se conectava à superfície.

A poeira se espalhou à medida que a assinatura se aproximava, e tive que desviar o olhar e fechar os olhos contra a nuvem ardente. Quando finalmente olhei de volta, não fiquei surpreso ao encontrar Kezess ali. Windsom, Charon e… uma pessoa que não via há muito tempo chegaram um momento depois. 

Charon passou apressado por Kezess, nos ignorando e indo em direção a Agrona, que ainda não tinha se movido.

— Vivo — anunciou, erguendo a cabeça de Agrona por um dos chifres, depois deixando-o cair de volta ao chão com um baque.

Lady Myre, esposa de Kezess e, minha mentora, muito tempo atrás, ficou ao lado de seu marido com toda a graça de que me lembrava. Seu olhar parecia passar por Agrona e chegar a algo mais profundo.

— Ele está… errado por dentro. Quebrado.

Com um toque leve no braço de Myre, Kezess deu alguns passos à frente, movendo-se de maneira casual e despreocupada que eu estava muito fraco para me irritar. Seu olhar lavanda varreu sobre mim e Tessia, e então se fixou em Sylvie.

— Traga-o. Traga todos eles. Solicite que todos os asuras retornem a Epheotus imediatamente. Lá, fecharemos a fenda e acabaremos de vez com essa guerra.

 


 

Tradução: NERO_SL

Revisão: Crytteck

 

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