Nico olhou para mim e deu um sorriso travesso.
— Vai ter um novo hoje. Outra menina. Draneeve deixou escapar esta manhã.
Eu só balancei a cabeça enquanto prosseguia com meus alongamentos para me preparar.
— Espero que ela seja tão gata quanto aquela menina Maylis. — Nico me observava ansiosamente, sabendo que falar sobre essas coisas sempre me fazia corar. Tentei esconder, mas ainda sentia o calor subindo pelo meu pescoço. Nico riu, vendo-me constrangido sem fazer qualquer esforço para o fazer. — Acho que alguém gostou de você. — O sorriso tornou-se forçado. — Mais do que ela gostava de mim, de qualquer forma.
Esfreguei a nuca e escovei uma mecha de cabelo do meu rosto, murmurando:
— Acho que você está esquecendo uma coisa.
Eu odiava quando ele me atormentava assim. Eu tinha a sensação de que ele sempre foi assim, mesmo em nossa vida passada, mas minhas lembranças da Terra e de ser um rei não eram mais muito claras. Algumas coisas, como todo o treinamento físico que tinha feito, ficaram claras, mas minha vida em si parecia toda confusa.
— Sim, sim, eu sei — disse Nico, revirando os olhos antes de lançar um olhar vago pela sala de treinamento. — Estamos à procura de algum terceiro mosqueteiro mítico para a nossa dupla dinâmica. — Nico franziu a testa de repente, uma expressão que eu me senti igualando.
— O que é um Mosqueteiro? — perguntamos os dois ao mesmo tempo.
Nico deu de ombros, rindo, mas não consegui esquecer a pergunta tão facilmente. Muitas vezes nos encontramos nos baseando em algum fato compartilhado ou pedaço de memória cultural de nossas vidas na Terra, mas também muitas vezes não faziam sentido para nenhum de nós. Não pude deixar de me perguntar se sempre foi assim desde a minha reencarnação, mas como as lembranças da Terra, minha vida antes da Foice Cadell me salvar daquela dragão e me trazer para Alacrya também era confusa.
Suponho que sim, considerei. Eu só tinha uns quatro ou cinco anos quando isso aconteceu.
Meus pensamentos permaneceram sobre esse assunto, pegando inutilmente no tecido dessas lembranças sem obter nenhuma nova visão sobre elas enquanto eu completava meu aquecimento pré-treino. Só quando as Foices Melzri e Viessa apareceram, Nico se apressou em seguir meu exemplo. As duas foices nos observaram em silêncio, Melzri parecendo estar entediada enquanto Viessa irradiava uma constante corrente de decepção.
Quando Foice Cadell chegou pouco depois, eu me levantei e fiquei em pé. Com ele estava uma menina que parecia ter mais ou menos a minha idade. Ela tinha cabelos azul marinho da cor das águas profundas do oceano que vi ao visitar a costa de Vildorial com Cadell, mas eram seus olhos que realmente se destacavam. Eram como dois rubis brilhantes embutidos em seu rosto levemente redondo.
Cadell estalou os dedos e atentei-me, percebendo que estava olhando demais. Ao meu lado, Nico continuou disparando olhares expectantes para mim, mas o ignorei o melhor que pude.
— Grey. Nico. Esta é Caera do Alto Sangue Denoir. Cadell nos observava de perto, seus olhos vermelhos e escuros em comparação com os da menina. Além de seus lábios e olhos, nenhum músculo se contraiu. Ele estava tão imóvel que poderia muito bem ser confundido com uma estátua. — Ela é descendente do sangue Vritra, embora ainda não tenha despertado. Ela vai treinar com vocês nos próximos dias. Essa oportunidade é uma grande honra para o sangue Denoir. — Seu tom mudou ao dizer essa última parte, deixando claro que estava falando com a garota sem sequer olhar para ela.
Ela se curvou profundamente, seus cabelos azuis marinhos caindo sobre seu rosto.
— Claro, Foice Cadell Vritra! Agradeço por esta oportunidade incrível. O Alto Sangue Denoir provará sua pureza ao Alto Soberano.
São todos iguais, pensei, lembrando de todos os outros jovens adotivos de sangue Vritra que foram trazidos para treinar conosco nos últimos dois meses. Era difícil ver o mundo da perspectiva deles. Para eles, o Alto Soberano era essa força mística, incognoscível, um deus entre os homens. E ele era um pouco intimidador, e bem estranho, mas, principalmente, era apenas o Tio Agrona.
Cadell me deu um olhar significativo, forçando-me a endireitar ainda mais, depois voltou sua atenção para as outras Foices.
— Vou deixar as minúcias do treino de hoje para vocês.
— Como sempre — disse Melzri sob sua respiração enquanto Cadell saia da sala. Eu sabia que ele tinha uma audição insana e deve tê-la ouvido, mas Melzri sempre foi sarcástica e ele sempre a ignorou. Eu gostava de Cadell, mas não conseguia imaginar bancar o esperto com ele, ou qualquer outra coisa que não fosse completa e perfeitamente respeitosa, na verdade. De certa forma, ele era muito mais assustador até mesmo do que o tio Agrona.
Viessa avançou e colocou nós três em uma fila. Melzri pegou três lâminas de treinamento imbuídas de seu suporte e entregou uma para cada um de nós. Eram feitas de uma madeira escura dura, densa e difícil de manejar, mas que segurava magia facilmente.
— Nico, Grey, vocês vão começar — disse Viessa, com a voz arrepiando minha espinha como sempre. — Mostrem à Caera a velocidade e a intensidade de sparring que esperamos. Concentrem-se na forma e na entrega adequada de seus ataques. Seu equipamento será configurado para corrigir o desleixo.
Senti meus músculos tensos e Nico enrijeceu atrás de mim. As runas esculpidas nas lâminas e empunhaduras de nossas espadas de treinamento ajudavam a ajustar a velocidade, força e precisão de nossos movimentos. Elas também podiam ser configuradas para dar choques dolorosos no alvo ou no portador, dependendo do desempenho de ambos os lados. Quando Viessa conduzia o treinamento, muitas vezes eram os dois, e a dor da “correção” era sempre intensificada.
— Caera, esperamos que você seja capaz de igualar o ritmo desses pequenos idiotas sem a ajuda de qualquer uso de mana — disse Melzri à garota. — Preste atenção. Internalize sua velocidade e estilo. Lembre-se, estamos procurando ver se vocês podem treinar juntos de forma eficaz, e isso significa duplicar seus esforços sem problemas. — Ela deu a Nico um olhar significativo. — A menos que eles sejam desleixados, então não se segure e, definitivamente, não se preocupe em machucá-los.
Os olhos de Caera piscaram inseguramente em direção a Melzri um batimento antes de sua expressão se estabelecer novamente.
— Sim, Foice Melzri Vritra!
— Vamos lá — resmungou Nico, lutando para não fazer bico. Por mais que estivesse feliz em ser usado como parâmetro, ele odiava quando Melzri o escolhia, o que só a fazia fazer isso ainda mais.
Ele se moveu para o centro da área de treinamento, girou e entrou em posição tail stance1
Com minha própria perna esquerda para frente, deixei a ponta da minha espada para baixo na postura fool’s stance2
Ele abriu com um corte arrebatador para cima, que evitei com um rápido recuo sem sequer trazer minha própria arma. A espada de Nico girou da direita para a esquerda, mantendo o ímpeto da pesada madeira escura, depois cortando em direção ao meu ombro. Em vez de desviar para a esquerda, que teria sido a direção natural, abaixei a cabeça e dei um passo para a direita, movendo-me por baixo de sua lâmina e trazendo a minha para o seu lado com um baque suave.
Ele grunhiu e recuou, rangendo os dentes.
Houve um choque de mana da minha espada de treinamento, atingindo meus braços e peito com picos de dor. Cerrei os punhos, tentando não deixar a dor transparecer enquanto olhava para as Foices questionadoramente.
— Se seu oponente estivesse usando armadura e tivesse a proteção de mana, ele nem teria sido ferido pela força de seu ataque — explicou Viessa em seu tom frio. — Não falhe com a jovem Lady Caera mostrando fraqueza diante dela. Você sabe muito bem que não deveria pensar que esse nível de força seria aceitável, rapaz.
Frustrado, acenei com a cabeça bruscamente e recomecei. Desta vez, Nico foi mais paciente e eu fui para o ataque primeiro. As pesadas lâminas de madeira colidiram várias vezes, liberando um som alto, seguidas por um baque pronunciado e um rosnado de dor de Nico. Nós recomeçamos mais uma vez.
— Melhor. Essa é a velocidade que esperamos. — disse Viessa à menina. — Quaisquer formas tradicionais são aceitáveis. Haverá uma oportunidade de treinamento mais tarde que a encorajará a se libertar de posturas estabelecidas, mas hoje, queremos ver se você está treinada bem o suficiente para identificar e combater os estilos usados por Nico e Grey. — Falando conosco novamente, ela disparou: — Bem, o que estão esperando? Não percam meu tempo.
Nico e eu duelamos por vinte minutos, trocando três vezes mais golpes. De cada golpe que acertou, três em cada quatro foram meus, e minha espada de treinamento não me “corrigiu” novamente. Nico, por outro lado, começou a se contorcer a cada pausa depois da quinta vez que sua espada lhe deu um choque.
Depois disso, Viessa parou e trouxe a garota para frente, Melzri me puxou para o lado. Ela me obrigou a ficar de costas para a sessão de sparring com os olhos fechados. Com sua poderosa assinatura de mana tão próxima e mal contida, era difícil focar em qualquer outro sentido que não fosse o do meu núcleo de mana.
— Narre a sessão de sparring — ordenou.
Aprimorei meus sentidos naturais em direção aos sons e movimentos das assinaturas de mana muito mais fracas de Nico e da garota. Seus calçados se arrastaram pelo chão. A pele de suas mãos rangendo enquanto agarravam firmemente os cabos embrulhados em couro de suas espadas de treinamento. A respiração de Nico era mais pesada e rápida do que a da menina.
— Caera atacou primeiro — comecei a narrar, fazendo o meu melhor para imaginar a luta deles no olho da minha mente. Uma série de colisões de madeira sobre madeira ressoou através da câmara. — Nico está lutando defensivamente, não contra-atacando. Ele… — Havia um pulso de mana seguido de um gemido abafado — …está se segurando.
— Bom — disse Melzri, soando um pouco entediada. — Continue.
Mantive uma narração constante da sessão de sparring pelos vinte minutos seguintes, recebendo uma batida afiada contra uma coxa ou bíceps sempre que deixava algo passar ou errava o fluxo do combate.
Contudo, enquanto escutava, senti minha atitude começando a mudar.
A menina tinha claramente treinado extensivamente. O problema com esses sangue Vritra, ao menos daqueles que conheci, era que eram simultaneamente tratados como armas e como se fossem feitos de vidro. Altivos e cheios de auto-importância e poder social não conquistado, nenhum deles havia sido focado ou colocado à prova. Naturalmente talentosos, sim, mas bem treinados, não.
Exceto por essa menina. Ela era mais forte até comparada aos meninos com quem tínhamos treinado, mas ainda rápida. Errou só alguns passos ao longo de todos os vinte minutos, enquanto entrava e saía suavemente de uma dúzia ou mais posturas. Por mais que Nico não fosse exatamente o mais esforçado em Taegrin Caelum, ele ainda era melhor do que qualquer outra criança com quem havíamos treinado por uma larga vantagem, mas essa garota se manteve, acertando um golpe para cada um que Nico lhe deu.
Quando terminaram, peguei-me reconsiderando meu pensamento anterior. Talvez não sejam todos iguais, afinal.
— Nico. Comigo — disparou Melzri, marcando o fim do sparring de Caera e Nico. — Grey. Vá. Não me decepcione. Ela olhou significativamente para minha espada de treinamento enquanto a entregava.
Tendo estudado Caera cuidadosamente nos últimos vinte minutos, presumi que sabia o que esperar quando nossa vez começou. Ela me surpreendeu imediatamente, imitando a postura fool’s stance que eu havia adotado anteriormente contra Nico apenas para dar seu primeiro golpe para frente, voltar para a posição tail stance, girar e dar um salto por baixo do meu braço esquerdo. Eu trouxe minha própria lâmina a tempo, pegando seu golpe e avançando para que sua própria lâmina fosse empurrada para trás. Ela girou no ar, seus pés voando para frente e ela caindo de costas, sua cabeça batendo nas telhas de pedra.
Nico xingou e virou para ver o que aconteceu, apenas para receber um golpe na parte de trás de seus joelhos de Melzri. Eu instintivamente avancei para oferecer a Caera uma mão para cima e ter certeza de que ela estava bem, mas um brilho frio de Viessa me parou.
Caera rolou, levantou e esfregou a parte de trás de sua cabeça cautelosamente. Seus dedos saíram manchados de vermelho.
— Você precisa de um curandeiro, menina? — Viessa perguntou soando mais como uma ameaça.
— Não — Caera disse imediatamente, endireitando-se. Ela limpou o sangue em suas calças, depois se virou de volta para mim, sua espada de treinamento firmemente em ambas as mãos. — Boa jogada. Pensei em pegá-lo desprevenido com o salto, mas…
— Mas você sacrificou sua capacidade de ajustar sua postura e absorver a força de pressão de uma forte manobra defensiva — interrompi.
Ela apenas assentiu. Com um comando de Viessa, recomeçamos.
Nossos vinte minutos se passaram no que pareceu ser momentos, e percebi quando acabou que realmente estava me divertindo. Caera era experiente, mas também muito intuitiva. Seja por um equilíbrio em nossos talentos ou por sua própria capacidade de avaliar um oponente e se ajustar rapidamente, ela fez frente a Nico e a mim quase perfeitamente, muito melhor do que qualquer um dos outros. Eu sabia antes mesmo da primeira hora que ela seria a única.
O pensamento me deixou inexplicavelmente nervoso. Afinal, por que ela realmente está aqui?
— Nada mal, pequenas feras — disse Melzri, nos olhando com um olhar desconfortavelmente predatório. — Bebam. Reservem alguns minutos para descansar e conversar. Temos várias horas a mais de treinamento emocionante pela frente hoje. — Ela se afastou, levando Viessa com ela.
Enchi três copos de pedra na fonte que corria por uma parede da sala de treinamento e os entreguei aos outros. Nico apenas grunhiu, mas Caera pegou a taça com as duas mãos e se curvou levemente para mostrar respeito.
— Obrigada.
— Então, onde você aprendeu tudo isso? — Nico explodiu, falhando como de costume em manter a compostura. — Você é melhor do que deveria.
Com o copo a meio caminho dos lábios, Caera se arrepiou. Ela baixou lentamente o copo e olhou para Nico com uma irritação mal velada.
— E o quão boa eu deveria ser, exatamente?
Nico arregalou os olhos e quase deu um passo para trás.
— Isso não é… eu só quis dizer… — Ele me procurou pedindo ajuda, mas fingi não ver enquanto dava um longo gole, drenando meu copo. — Eu só quis dizer que você é muito boa, só isso.
— Claro que sou, sou do sangue Denoir — disse ela, com o queixo erguido. Embora fosse perfeitamente praticada, havia um indício de ser forçada que minava sua altivez. Mais suave e com menos atitude, ela acrescentou: — Vou ser uma ascendente um dia. Tenho que treinar para estar pronta.
Os olhos de Nico se iluminaram e a tensão se dissolveu quando a conversa se voltou para a associação de ascendentes, as Relíquias e os prêmios que podiam ser encontrados dentro dela. Eu me peguei sorrindo durante a conversa, e cada vez mais não conseguia tirar os olhos de Caera do Alto Sangue Denoir.
O tempo passou e tudo, exceto nós três, desapareceu. Quando me perdia em um borrão de luta, treinamento e tutoria, o rosto de Caera sempre se mantinha em foco. À medida que ela foi temperada pelo ritmo extenuante do treinamento do Tio Agrona nos anos seguintes, seu rosto afinou, nunca perdendo totalmente sua forma levemente arredondada, mas tornando-se mais definido, mais maduro. Mais bonito.
A mão dela estava suada enquanto apertava a minha. Ela não me olhava pelo canto do olho, mas eu podia sentir sua atenção em mim, seu desejo de conforto e apoio. Não era como se ela estivesse tão nervosa, mas, de novo, este não era exatamente um dia normal.
Nico, Caera e eu estávamos juntos em silêncio no saguão externo da ala de Agrona no Taegrin Caelum. Não querendo quebrar a tensão, simplesmente olhei para frente. Uma enorme asa cobria grande parte da parede à minha frente. A espessa membrana que conectava a estrutura dos ossos havia sido rasgada e depois reparada em alguns lugares, as escamas brancas pareciam sem brilho e desbotadas na luz fraca. Eu me perguntava se a asa tinha pertencido à dragão que me tirou da minha família quando era apenas um menino, aquela de quem Cadell me salvou.
Senti os olhos em mim e olhei para Nico, que desviou o olhar, mas não antes que eu pudesse ver a expressão em seu rosto enquanto ele observava a mão de Caera segurando a minha.
Eu teria suspirado, mas não queria quebrar o silêncio tenso.
Sempre houve uma rivalidade competitiva entre Nico e eu. Progredi mais rápido, treinei mais e recebi runas de nível superior; Era natural que ele ocasionalmente ficasse frustrado por sempre ficar em segundo. Eu não o culpei por isso. Ele tinha sido meu melhor amigo por duas vidas. Estávamos unidos pelo destino, ou assim pensei. Todavia, a dinâmica entre nós tinha mudado quando Caera chegou. Ela tinha sido… bem, o que o Tio Agrona estava procurando. Talentosa, motivada e conseguindo um equilíbrio perfeito, socialmente, entre Nico e eu. Pelo menos, até os sentimentos mencionados anteriormente.
Não havia muito espaço para descobrir coisas como relacionamentos na maneira como vivíamos, e eu não recebia exatamente indicações de pessoas como as Foices Cadell, Melzri e Viessa, que eram nossos professores primários, entre dezenas de outros magos poderosos que serviam Agrona. E nunca planejei isso. Nós meio que tropeçamos nisso quando a atração mútua entre nós começou a invadir nosso treinamento e estudo constantes. Afinal, passávamos quase todas as horas acordados juntos. Talvez fosse inevitável.
Embora, isso valesse para os sentimentos de Nico. Eu sabia que ele tinha se apaixonado por Caera desde o momento em que ela entrou por aquela porta para a sala de treinamento, anos atrás. Ele não conseguia evitar, era apenas quem Nico era. Ele também, infelizmente, não pôde evitar seu ressentimento por sempre vir em segundo lugar para mim. Ele se afastou de nós quase imediatamente na primeira vez que nos pegou mantendo contato visual um com o outro por tempo demais.
A pressão do ar na sala mudou e percebi que as portas haviam se aberto. Tio Agrona, vestido de maneira simples com uma túnica folgada, mas com sua ornamentação costumeira cobrindo os chifres que se estendiam de sua cabeça, olhou para nós três com um sorriso satisfeito.
— Ah, aqui estão elas, as três pessoas mais importantes do mundo. Entrem, entrem, temos muito a discutir.
Caera apertou minha mão novamente e a soltou, seguindo Agrona primeiro. Nico levantou as sobrancelhas e deu de ombros, caindo ao meu lado enquanto seguíamos atrás.
Prosseguimos por uma série de corredores e quartos ricamente decorados até chegarmos a uma câmara que não me lembrava de ter visitado antes. Os cheiros inebriantes de solo rico e uma mistura de muitos tipos diferentes de plantas saíam de uma porta entreaberta que levava a uma espécie de jardim interno. A luz do sol entrava através de um teto de vidro, a água escorria em pequenos riachos pelas paredes e em calhas incrustadas no chão.
As plantas brotavam do solo a esmo, enrolando-se umas nas outras como se cada uma lutasse por sua própria sobrevivência. Flores que pareciam delicadas demais para competir eram apunhaladas por arbustos grossos cobertos de espinhos. Trepadeiras que pendiam pelas paredes recuaram visivelmente quando entramos.
Agrona riu e chegou a acariciar uma delas.
— Você tem muita sorte, Caera — disse ele, que embora estivesse de costas para nós, eu podia sentir o sorriso em sua voz. — Muito poucos neste mundo terão a oportunidade de cumprir seu propósito tão completamente quanto você.
Caera engoliu pesado.
— Qual é o meu propósito, Alto Soberano?
Agrona parou e virou-se para olhá-la, uma sobrancelha erguida acima da outra.
— Tio Agrona. — Ela se corrigiu com uma pequena reverência.
Ele voltou a se mover pela sala, curvando-se para sentir o cheiro de uma flor aqui ou arrancando uma pétala ali.
— Você é o receptáculo, Caera — disse ele, como se isso explicasse tudo.
Senti-me a franzir a testa, mas sabia que era melhor não intervir. Um receptáculo é algo em que você coloca outra coisa…
— Seus amigos cumpriram seu propósito como âncoras admiravelmente, forjando para mim o receptáculo perfeito — disse Agrona, que não esclareceu exatamente nada. — Você vai mudar o mundo, querida.
Caera me disparou um olhar levemente em pânico.
— Sinto muito, tio. Não entendo.
Agrona virou-se com um floreio, com as mãos estendidas para o lado.
— É claro que não! Como poderia?! O Legado está além de sua compreensão, mas não por muito tempo. Em breve, você entenderá perfeitamente.
Meus olhos se voltaram para Nico com a menção de Agrona ao Legado. Nossas expressões eram idênticas, quase como se olhar no espelho.
Cecilia…
A fúria fria como brasas quentes instalou-se no fundo do meu estômago quando finalmente entendi. Olhei para o lado, incapaz de encontrar os olhos de Caera, incapaz de aceitar o que eu tinha feito com ela. Eu realmente não ouvi enquanto Agrona continuava; quando ele nos dispensou, voltei direto para o meu próprio quarto e não atendi a porta quando Caera veio bater mais tarde. Eu não podia enfrentá-la. Não queria segurar sua mão e olhar em seus olhos e saber que eu a tinha matado.
Em vez disso, mergulhei em nosso treino. Eu vivi para isso, progredir, e alcançar o poder que isso proporcionava. Nunca me senti impotente nesta vida até saber o que Agrona tinha reservado para Caera. Eu odiava esse sentimento mais do que qualquer coisa, então decidi não ser impotente. Um dia, eu seria mais forte do que todos eles.
Madeira escura bateu forte contra o aço em rápida sucessão. A mana imbuindo as duas lâminas estalava e enviava faíscas voando ao redor delas. Nico estava na defensiva, todo o seu esforço se esgotou apenas em manter minha lâmina longe de si, mas suas mãos sozinhas não eram rápidas o suficiente e foi forçado a recuar meio passo a cada golpe.
Variei meus ataques, atacando rapidamente de direções alternadas, enquanto continuava avançando, esperando.
Ele errou o passo e sua lâmina saiu de posição. A madeira, raspada em uma ponta afiada mortal, atingiu-o no alto do braço. A mana agarrada à sua carne exposta e a superfície externa de sua armadura rompida, esculpida pela minha própria mana, que também cortou o couro de besta de mana sob ela. Nico se contorceu de dor quando minha lâmina encontrou a carne, marcando um corte raso ao longo de seu braço. Em vez de recuar e se recompor, ele empurrou seu ombro para frente, forçando a borda da lâmina mais profundamente e me obrigando a puxar meu golpe ou arriscar causar-lhe danos reais.
Eu não vi o soco chegando até que fosse tarde demais.
O punho de Nico, envolto em chamas, explodiu contra minha bochecha. Minha própria mana atenuou o golpe, mas o fogo da alma enviou agonia disparando da minha bochecha até meu olho. Tropecei para trás antes de me ajoelhar, depois coloquei minha arma em sinal de rendição para encerrar a luta.
— Que merda, Nico… — resmunguei, esfregando meu olho, que estava lacrimejando e imediatamente irritado, embaçando minha visão do lado direito. — Era para ser só infusão. Sem artes de mana.
— Especialmente sem feitiços Vritra — disse Melzri com a voz arrastada e irônica. — Ainda assim, foi uma boa tática. Sacrificar uma pequena ferida para entregar um ataque fatal, se esta fosse uma batalha real contra um oponente diferente. Muito bem, Nico.
Virei-me para encarar Melzri.
— Dificilmente foi “muito bem”. Nico aproveitou minha adesão às regras estabelecidas para nossa luta para desferir um golpe injusto.
— Seguir regras de combate em uma batalha é um paradoxo — respondeu Melzri, me observando atentamente. — A adesão eslava a tais regras só serve ao seu inimigo.
— Mas não somos inimigos. — Ao lado de Melzri, o rosto de Caera parecia pensativo entre Nico e eu.
Já se passaram meses e ainda estou fazendo isso, pensei, frustrado com a situação e comigo mesmo. De alguma forma, ainda era mais difícil pensar na pessoa sob aquele cabelo azul marinho, olhos escarlates como rubis e sua coroa de chifres como não sendo Caera. E, mesmo assim, também era impossível vê-la como Caera, porque as duas eram muito diferentes. Então pensei nas mãos de Caera, seu rosto, seus braços agora cobertos de tatuagens rúnicas que corriam até seu pescoço, em vez de pensar nela pelo nome.
Cecília, disse a mim mesmo, levantando-me lentamente. Seu nome é Cecília.
— Você… está bem? — Nico perguntou, finalmente, fugazmente encontrando meus olhos.
— Ótimo — respondi com firmeza, olhando para seu perfil até que ele limpou a garganta e fingiu virar as costas para mim para ir embora, agindo como se estivesse simplesmente reiniciando o campo de batalha.
Melzri riu enquanto jogava seus cabelos brancos como neve para trás, acomodando-os em torno de seus chifres.
— Acho que isso foi duelo de espadas o suficiente por agora. Grey, Cecília. Apenas feitiços. Sem movimentos.
Nico enviou sua lâmina para um dispositivo de armazenamento extradimensional ao redor de seu pulso e saiu correndo para longe de mim. Olhei para baixo a espada de madeira escura em minha mão. Não era uma arma de treinamento, mesmo que parecesse principalmente com os bastões cegos com os quais Nico e eu estávamos batendo um no outro desde que éramos crianças. Sua borda havia sido esculpida para ser afiada como uma navalha, e a parte plana estava imbuída de várias runas que prendiam a arma a mim, tornando difícil e doloroso para qualquer outra pessoa usar, mas também fortificava a madeira. No final, ainda não era tão durável quanto uma espada de aço, mas a madeira canalizava mana muito melhor do que qualquer arma de metal que eu já tivesse segurado. Com aplicação suficiente de mana, seria muito mais forte do que a simples lâmina que Nico empunhava.
Lamentavelmente, eu também abri meu anel dimensional com mana e guardei a lâmina. Eu sabia o que estava por vir, e não estava exatamente ansioso por isso.
Quando Nico e Cecília passaram um pelo outro, ela estendeu a mão para ele, depois o puxou para ela e rapidamente beijou sua bochecha.
Meu olhar foi ao chão.
— Ei, parem com essa merda no meu turno — Melzri ladrou. — Você é o legado, não uma garotinha colegial apaixonada. Não me importo se estavam mortos e separados há muito tempo.
— Desculpe, Foice Melzri Vritra — disse Cecília, corando e oferecendo à Foice uma rápida reverência antes de se apressar no lugar oposto a mim.
Tentei limpar a mente, mas o latejar na lateral do rosto só se intensificou quando vi Cecília se aproximar. Canalizando mana de vento, ela conjurou uma almofada de ar sob si mesma, cruzou cuidadosamente as pernas e se acomodou em cima dela, pairando a cerca de dois metros do chão.
Não pude deixar de ranger os dentes. Alguns meses e ela já é capaz de algo assim.
A rápida purificação de seu núcleo e expansão de suas habilidades foram muito além de qualquer coisa que eu poderia esperar. Parecia desafiar todas as leis da magia que eu tinha aprendido neste mundo. Eu mesmo tinha uma regalia, dois emblemas e uma crista, fornecendo-me aptidão com três dos quatro elementos tradicionais. Também aprendi algumas das artes de mana Vritra, com foco na água podre e no vento vazio para complementar, ou combater, a especialização de Nico em fogo da alma e ferro-sangue.
Cecília, porém, só precisou de tempo para se familiarizar com o corpo que agora habitava antes de demonstrar quase imediatamente afinidade com todos os quatro elementos e cada uma de suas possíveis desviantes, sem quaisquer runas adicionais concedidas após sua reencarnação.
Isso foi outra coisa que me encontrei fazendo com frequência: Não conseguia reconhecer toda a verdade da presença de Cecília neste mundo conosco. Porque não tinha sido simplesmente a sua reencarnação; ela não habitou aleatoriamente um corpo, nem renasceu em seu próprio corpo. Não. Seu espírito exigiu um receptáculo. E Caera teve que ser desalojada no processo, pensei com uma fúria crescente. Agrona a matou. Cecília a matou.
Melzri disse algo que não ouvi, então mana girou em um feitiço visível em torno de Cecília.
Saindo do meu estupor, formei uma barreira em torno de mim, já com o pé atrás devido ao meu foco fraco.
Um raio azul caiu contra meu escudo, seguido pelo estalo de trovões concentrados. A mana desviante do atributo som, purificada no núcleo de Cecília, tremeu através da barreira que me protegia, começando no ponto atingido pelo raio e ondulando para fora, como uma pedra jogada em uma lagoa.
Encostei-me na barreira, reforçando-a com toda a mana que pude reunir. Senti Cecília empurrando para o centro da ondulação com sua vontade, não lançando um feitiço, mas simplesmente empurrando a mana diretamente, opondo-se ao meu controle sobre ela.
O escudo derreteu de repente e um punho concentrado de vento me atingiu no peito, levantando-me do chão apenas para me bater nas costas e me deixar esparramado.
— Grey, você se mexeu. — A voz de Melzri foi seguida com o brilho de mana, depois um chicote de chamas negras lambeu minhas costas.
Minha visão ficou branca por vários segundos enquanto a dor me dominava.
— Acho que foi um novo recorde, Cecília — continuou Melzri, desconsiderando que eu me contorcia no chão. — Mas seu uso de mana é preguiçoso. Embora seja impressionante que você tenha sido capaz de explodir seu escudo quase inteiramente se opondo ao seu controle sobre a mana, essa habilidade é uma muleta. Se aprender apenas a dominar seus oponentes por pura força de mana, então você não conseguirá exercitar a criatividade necessária para fazer uso de todo o seu potencial. Você é a única maga em Alacrya que pode controlar todos os atributos da magia. Faça uso disso.
— Sim, Foice Melzri Vritra!
— Grey, levante essa bunda do chão. De novo. E foco desta vez!
Fechei os olhos, respirei fundo e me levantei com os braços trêmulos.
A vida tornou-se uma névoa infeliz de repetição à medida que a distância entre Cecília, Nico e eu aumentava. Minha sensação de impotência só se aprofundou, um poço escuro e vazio que se abriu sob mim. E se olhasse para baixo, sabia que poderia cair e nunca mais me recuperar. Se não fosse o esforço contínuo de Agrona para que vivêssemos, estudássemos e treinássemos em grupo, eu não poderia aguentar isso.
— Você está com raiva, Grey. Bom.
Minha mandíbula apertou até doer e tentei não encarar o Alto Soberano.
— Use-a, rapaz. Não se segure. Sua raiva é um mecanismo de sobrevivência, destinada a empurrá-lo além do limiar de suas habilidades. Contê-la é se impedir. Se você fizer menos do que poderia, estará simplesmente esperando pela morte.
Tomei minha posição e sorri para Nico a minha frente. Um grande peso se instalou sobre meus membros enquanto Cecilia suprimia minha mana, forçando eu e Nico a confiar apenas em nosso treinamento de combate. Vi a boca dela pronunciar “Desculpe” pelo canto do olho. Se ao menos Agrona me igualasse contra ela sem a nossa mana. Então eu não estaria tão impotente contra ela.
Expulsei esse pensamento, focando.
— Comecem.
Desta vez, Nico mergulhou pela minha direita, abrindo agressivamente. A lâmina dele bateu contra a minha. Avancei no ataque, forçando sua lâmina para fora do caminho e plantando meu pé entre os seus, mas seu mergulho tinha sido uma finta e ele piruetou-se ao meu redor, sua lâmina virando para um aperto reverso e empurrando para trás em meu estômago.
Bati com a palma da mão na parte plana da arma dele e novamente entrei em seu ataque, muito perto para que as espadas fossem totalmente eficazes. Meu cotovelo arrebentou em direção à sua boca, mas ele se torceu e levou o golpe na mandíbula enquanto puxava sua espada de volta em sua direção, cortando meu corpo. Minha própria espada girou no lugar, desviando a ponta cortante da minha pele. Sem mana imbuindo a madeira escura, senti o aço cortar a ponta fina afiada da minha arma, entalhando a lâmina.
Fingindo um passo para trás, como se estivesse corrigindo minha postura, soltei um chute para frente na lateral do joelho dele. Atrasado, Nico tentou corrigir seu pé, mas minha bota bateu firmemente, dobrando sua perna para o lado com um estalo estranho.
Nico fez uma careta e brandiu sua arma defensivamente, criando uma barreira entre nós, mas havia sangue na água agora, e eu podia sentir o cheiro. Saindo do meu pé traseiro, mergulhei para frente e bati diretamente no protetor de mão de sua espada. Sua tentativa de bloqueio foi desajeitada e a lâmina sacudiu para fora de posição. Avancei, empurrando a ponta da minha espada de madeira através de suas costelas.
Ele se aproximou do ferimento, trazendo a cabeça para baixo, no meu joelho, o que se conectou com o barulho da cartilagem se partindo.
Nico tropeçou e caiu para trás, sua arma deslizando pelo chão com um ruído surdo de raspagem.
Virei-me com raiva para Agrona.
— Todos sabemos que sou o melhor espadachim. Qual o sentido desse exercício?
O sorriso de Agrona aguçou-se.
— Curandeiro, coloque Nico de pé. Depois, vamos de novo.
Minha mana voltou rápido depois que Cecília liberou a supressão para ajudar na cura de Nico. Nico ficou em silêncio enquanto o curandeiro aliviava o inchaço em seu joelho, colocava o nariz no lugar e parava o sangramento do corte em suas costelas, mas eu podia senti-lo fervendo. Cecília assistiu a tudo nervosa. Ela continuou tentando chamar minha atenção, mas eu a ignorei.
Quando Nico estava de pé, voltamos às nossas posições iniciais e a nossas posturas de abertura, esperando a ordem de Agrona.
— Comecem.
Nico veio com uma postura alta. Abri com um bloqueio acima da cabeça, meus pés já alinhados com meu caminho através do golpe e atrás de Nico, onde eu desferiria um corte na parte de trás de suas pernas.
Nossas duas armas se encontraram. O aço novamente cortou a ponta desprotegida da madeira. As armas se chocaram com a resistência esperada, empurraram, depois continuaram avançando uma contra a outra.
Uma linha brilhante de dor atravessou meu ombro e desceu pela parte externa do meu braço.
Os dois últimos centímetros de madeira escura caíram no chão, quicando. Nas mãos, segurei apenas o cabo com uma ponta cortada.
Mantive meu movimento original, mas em vez de atacar a parte de trás das pernas de Nico, já que minha arma não era mais longa o suficiente para alcançar, girei e soltei a empunhadura.
Nico havia completado seu golpe e estava meio virado, hesitando enquanto olhava para a lâmina de madeira quicando uma segunda vez, girando como se estivesse em câmera lenta.
O comprimento restante da lâmina atingiu seu esterno desprotegido, afundando até o cabo. Os olhos de Nico arregalaram de surpresa, sua boca formando um sonoro “Oh”. Ele cambaleou para trás uma vez, tropeçou na lâmina de madeira ainda quicando e caiu no chão.
Houve um momento em que ninguém se mexeu, então o grito de Cecília de “Nico!” dividiu o ar como um trovão.
Ela correu para o lado dele e alcançou o cabo, mas suas mãos pairaram sobre ele com medo.
— Ajudem! — ela gritou, lançando um olhar assustado para o curandeiro, mas ele estava observando Agrona, esperando o comando do Alto Soberano.
Enquanto as emoções de Cecília aumentavam com turbulência, sua vontade esmagando minha mana balançava para frente e para trás como um lobo rasgando sua presa.
— Solte minha mana, Cecília.
— Agrona! — Cecília gritou, olhando para o Alto Soberano com uma espécie de confusão suplicante.
— Cecília, solte a minha…
— Cale a boca! — Cecília gritou e algo dentro de mim rasgou.
Eu desmaiei como uma marionete que teve suas cordas cortadas, minhas mãos batendo no meu esterno. A mana, antes limitada ao meu núcleo pelo poder de Cecília, estava vazando e ficando escura. Fora do meu corpo, a sensação quente de mana que irradiava de todos na sala esfriava. Eu ofegava, incapaz de respirar, engasgado com meu próprio pavor, afogando-me em meu medo.
— Curandeiro, veja se Nico pode ser salvo.
Meus olhos se fecharam. Meus ouvidos zumbiam tão alto que as palavras se tornaram quase ininteligíveis.
— E quanto ao outro, Alto Soberano?
— O propósito do menino está completo. Deixe-o.
Meus dedos ficaram dormentes e não consegui mais senti-los cavando em minha pele, desesperado para alcançar a dor dentro do meu esterno. A bile encheu o fundo da minha garganta.
— Não se preocupe, Cecília querida. Lembre-se, embora uma âncora possa lhe dar estabilidade, ela também irá segurá-la. Acho que você chegou ao ponto em que o peso de tais relações deve ser cortado. É hora de você voar livre.
O soluço de Cecília foi a última coisa que ouvi antes do mundo ficar escuro.
Então, dentro da escuridão, um ponto de luz distante.
A luz se aproximou, ficou mais brilhante, e depois se transformou em um borrão brilhante, forçando-me a fechar os olhos. Sons indiscerníveis assaltaram meus ouvidos. Quando tentei falar, as palavras saíram como um grito.
— Parabéns, senhor e senhora, é um menino saudável.
Tudo voltou e lembrei onde estava e o que estava fazendo. O contexto da vida que tinha acabado de viver se encaixava, assim como as tentativas anteriores. Tudo parecia um sonho horrível, mas não desapareceu quando acordei.
Porque não estou realmente acordado.
Forcei meu corpo infantil a se acalmar e ignorei a agitação que acontecia ao meu redor enquanto voltava meu foco para o quebra-cabeça da pedra-chave. Não posso me perder toda vez que tento fazer algo diferente, pensei frustrado. Como posso resolver um quebra-cabeça se esqueço o que estou fazendo toda vez que pego uma peça?
Cheio do frio daquela triste e indesejada existência em Alacrya, um arrepio me atravessou. Pela primeira vez, senti o medo de ficar realmente preso na pedra-chave para sempre. Eu me agarrei ao calor da minha mãe com necessidade genuína, mas não conseguia escapar do sentimento de solidão melancólica que subsumia todos os outros sentimentos. De muitas maneiras, eu tinha esquecido o que era me sentir sozinho, estar sozinho na minha própria cabeça. Eu gostaria de poder me confortar com a mãe e o pai, mas naquele momento, com a vida de Grey em Alacrya ainda tão fresca em minha mente, não poderia aceitá-los inteiramente como reais.
Sylvie, Regis, onde diabos vocês estão?
Tradução: NERO_SL
Revisão: Crytteck
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