O Começo Depois do Fim

O Começo Depois do Fim – Cap. 470 – Apanhada

 

A foice, Melzri, avançou através das espessas nuvens de poeira. A parede frontal do Instituto Earthborn era uma ruína sob ela, os escombros estavam repletos de guerreiros anões. Seus cabelos brancos eram rosados com sangue, e ela apoiava um braço com o outro mesmo enquanto voava. Ela estava totalmente focada em mim, sua expressão fria e metódica. Havia algo tão terrível na inexpressividade de sua sede de sangue que tive de desviar o olhar.

Seth e Mayla estavam próximos, parcialmente presos sob uma pilha de telhas de pedra quebradas, um escudo em redoma trêmulo segurando os pesados pedaços de parede em ruínas. Seth fez uma careta em concentração, os olhos fechados, o suor marcando pequenas linhas através da poeira lamacenta que cobria seu rosto. Mayla estava enfiada sob o braço dele.

Boo rosnou furiosamente enquanto se arrastava para se livrar dos escombros. O estudante alacryano, Valen, estava no espaço vazio que o corpo de Boo deixou para trás. Eu não sabia dizer se ele estava vivo ou morto.

Não vi Caera, Claire ou Enola em lugar nenhum.

Pedras deslizando sob pés instáveis atraíram meu olhar para os fundos da sala. Mamãe estava se levantando do chão, seus próprios olhos arregalados seguindo rapidamente pela câmara até que me encontrasse. Ela parecia encolher enquanto soltava uma respiração, então seu foco mudou e seu rosto se transformou de susto.

Minha cabeça virou. Melzri estava voando logo acima de mim. A silhueta de aranha de Bivrae era visível atrás dela, espreitando ameaçadoramente no vazio sufocado pela poeira.

Houve um rugido de Boo e ele se jogou na foice, garras de fora e presas desnudas. Ela desapareceu, apenas para reaparecer do meu outro lado. Ela se abaixou para me agarrar, mas em vez de fechar na frente da minha armadura de couro, seus dedos pálidos envolveram uma linha brilhante de prata que apareceu acima de mim. Nós duas olhamos para a manifestação com alguma confusão, então a linha de prata se torceu violentamente, empurrando-a para fora de sua mão e mandando-a cambaleando de volta.

Boo passou por cima de mim enquanto Silverlight se acomodava em meu peito, imóvel mais uma vez. Mamãe correu para o meu lado um momento depois, a magia de cura já brilhando em torno de suas mãos. Bairon, apoiando-se na lança carmesim, apareceu no canto do meu olho.

Minha respiração aliviou quando os arranhões e hematomas profundos da explosão foram levados pelo toque da mamãe.

— Está tudo bem, Eleanor, estamos aqui — disse Caera de algum lugar atrás de mim, enquanto Hornfels afastava as rochas que esmagavam Seth e Mayla, libertando-os.

Melzri soltou uma risada maníaca, um pouco para Bivrae, ainda escondida na nuvem de poeira.

— Vocês só podem estar brincando comigo. Vocês realmente planejam morrer por essa pirralha?

Ninguém se mexeu. Ninguém falou uma única palavra. A pressão se formou e cresceu no meu peito até que ameaçou arrancar lágrimas dos meus olhos enquanto eu considerava as pessoas ao meu redor. Usando Silverlight como uma bengala, eu me forcei a ficar de pé. Mamãe tentou se mover na minha frente, mas apoiei minha mão livre em seu ombro. Ela vasculhou meus olhos, uma alquimia emocional de terror, aceitação e desespero refletida em seus próprios olhos. Era um olhar que me dizia, com bastante clareza, que mesmo sabendo que não poderia nos proteger desse inimigo, ela morreria tentando e estava em paz com isso.

Contudo, eu não estava.

Com uma pressão suave, mas firme, encorajei-a a afastar-se e dei um passo à frente. Boo soltou um gemido baixo, mas ficou onde estava. Minha mão esquerda bateu em um punho apertado ao redor de Silverlight, ainda na forma de um arco sem corda; Eu não tinha ideia de onde minha outra arma tinha ido parar.

— Me matar não vai trazer sua irmã de volta.

Melzri me considerava como se eu tivesse dito a ela que dois mais dois fossem igual a verde.

— Trazê-la de volta? — Ela zombou. — Vocês não entendem. Não tenho sentimento algum pela Viessa, nem ela por mim. Sua morte simplesmente vai equilibrar a balança. É um dever, não uma busca cheia de ódio de um coração partido. Eu sou nascida Vritra, uma Foice, não uma criança mimada invadindo os dois continentes em busca de vingança.

— Eu também nasci Vritra — disse Caera, com a voz forte, mesmo que sua assinatura de mana irradiasse fracamente. — Mas não preciso ser escrava dos desejos egoístas do clã Vritra só porque seu sangue negro corre em minhas veias. Foice Viessa morreu fazendo o que foi pedido pelo Alto Soberano, não foi? Culpe-o por sua desgraça, nã…

— Cala a boca — disparou a foice. Um músculo se contraiu em sua mandíbula, fazendo-a parecer ligeiramente enlouquecida. — Estou cansada e por aqui dessa briga inútil. Ou deixam a menina morrer, ou morrerão para prolongar a vida dela por meros instantes. De qualquer forma, escolham rápido e em silêncio, porque sua choradeira me esgota.

Um frio súbito varreu a câmara, como se uma nuvem escura tivesse acabado de atravessar o sol. Senti uma efusão de poder da cidade atrás de Melzri, depois um deslocamento em massa de mana. À medida que, por instinto, me concentrava mais plenamente em meus sentidos aprimorados, senti o exército distante de assinaturas de mana se apagando como muitas velas.

Mayla ofegante, caiu de joelhos. Uma de suas formas de feitiço estava ativa, irradiando mana. Seus olhos estavam fechados, mas se movendo rapidamente atrás das pálpebras.

— A batalha, está…

Eu já tinha sentido as pessoas morrerem antes, mas desta vez foi diferente. Alguém tinha feito alguma coisa, descoberto alguma coisa…

— Diga a ela — pedi a Mayla, dando mais um passo em direção a Melzri. Eu sabia que a Foice poderia me cortar em duas antes mesmo que eu pudesse vê-la se mexer, mas ela já tinha caído na armadilha de falar em vez de lutar. Seris e Cylrit ainda estavam por aí, junto com Lyra. E um exército inteiro de guerreiros dicathianos fortalecidos por núcleos de besta. Se eu pudesse atrasá-la por tempo suficiente… — Diga a ela o que você vê, Mayla.

— Nuvens de névoa negra derramando de Lady Seris — disse Mayla imediatamente, com a voz embargada. — Como um exército de gafanhotos, enfiando-se na pele e comendo sua mana.

A expressão de Mezlri escureceu e ela se afastou, olhando pela entrada destruída.

Só então notei que uma silhueta diferente estava de pé onde a retentora estava há apenas um momento. Um pedaço de um corpo em ângulo anormal estava em um monte aos pés do recém-chegado, não emitindo nenhuma assinatura de mana.

Melzri zombou.

— Cylrit. Esfaquear a pobre Bivrae pelas costas? Que desonroso da sua parte.

— Venho com uma mensagem de Lady Seris — disse Cylrit, dando um passo à frente. Seu cabelo preto sendo soprado pelo vento e bagunçado da batalha, sua armadura com vários cortes profundos. — Ela gostaria de falar com você pessoalmente e pede que espere até que ela resolva sua tarefa atual antes de fazer qualquer coisa que não possa ser desfeita.

Melzri piscou para ele, apertando mais forte em torno das duas espadas que carregava. Ela falou mecanicamente enquanto virava as costas para ele, dizendo:

— Vou cumprir meu dever.

Cylrit voou para a frente, sua espada um borrão escuro. As duas dela subiram para desviar o golpe, depois Cylrit deslizou para ficar entre ela e nós.

— Você não precisa esperar muito — disse ele, com a voz tão nivelada como se estivesse tendo essa discussão em uma mesa, não na ponta das lâminas um do outro.

— Foice Melzri Vritra.

Mais uma pessoa apareceu, mancando através das nuvens obscuras. Seus cabelos perolados e vestes brancas pareciam brilhar com alguma luz interior, banindo a poeira enquanto ela passava.

Melzri virou-se novamente, observando sua aproximação com uma expressão inescrutável.

— Seris, sem nome, fugitiva e traidora de sangue — disse ela, cerrando os dentes em aborrecimento.

Com seu foco em Seris, deixei minha mão direita se aproximar de onde a corda apareceria se Silverlight tivesse uma.

— Retire-se, Melzri — disse Seris cautelosamente.

— Você não dá ordens aqui — respondeu Melzri no mesmo tom. — Vou ter o sangue que me é devido.

As pontas dos meus dedos beliscavam o ar, procurando uma corda que eu não conseguia ver. Por favor, Silverlight. Você me escolheu, então me ajude. Eu não ficaria ali como presa congelada se Seris não pudesse falar com Melzri.

Os cabelos perolados se espalharam sobre as ombreiras brancas brilhantes das vestes de batalha de Seris enquanto ela balançava a cabeça.

— Se seu coração bate tão ferozmente por sangue, por que não matou a Lança?

— Porque você me interrompeu! — Melzri bradou, mas algo em sua voz me disse que ela não estava dizendo a verdade.

Bairon endureceu, parecendo afrontado.

— Nossa batalha ainda não havia terminado, Foice.

— Você não o matou porque está interessada nele — disse Seris no mesmo tom que mamãe usava quando eu era jovem e ela tinha que me explicar minhas próprias decisões infantis. — Você anseia por aventura e emoção. Anseia em ser desafiada. É uma característica da qual você não consegue escapar desde antes mesmo de seu sangue se manifestar. Matá-lo seria cortar o fio do destino em seu potencial.

Meus dedos arrancaram o ar novamente, procurando inutilmente uma corda que não existia, esperando e rezando para que eu pudesse manifestá-la apenas por pura força de vontade.

— Sabe qual é o seu problema, Seris? — Melzri perguntou, suas costas totalmente voltadas para nós agora, quase como se tivesse esquecido que estávamos lá. — Você acha que sabe tudo, o tempo todo. De todas as Foices, você é de longe a mais parecida com ele.

Seris acenou com a cabeça em aceitação.

— Talvez seja por isso que posso ver o que vocês ainda não aceitaram: um futuro onde Agrona dominou este mundo e Epheotus, que papel a Foice Melzri Vritra desempenhará? O que, nesse futuro, haveria para empolgá-la, se Agrona tivesse um lugar para você?

Desta vez, Melzri ficou em silêncio.

— Mas eu posso libertá-la do domínio de Agrona e te mostrar uma visão diferente do futuro. Aquele em que você me ajuda a matar um deus e, ao fazê-lo, vê nascer uma nova era do mundo.

— Você… — Melzri se cortou com um risada desesperada sem nenhum humor. — Você afirma que me conhece bem, e ainda assim espera que eu vire as costas para tudo o que lutei por toda a minha vida? Abandonar meu propósito? Retomo o que disse, Seris. Você é uma tola.

Meus dedos apertaram alguma coisa e um fio de mana prateada brilhante se manifestou sob eles. O corpo do arco dobrou-se, tomando forma. Imbuí mana nele, formando uma flecha, e puxei para trás.

A corda não cedeu.

— Você luta por um propósito que é e sempre foi uma ilusão. Essa guerra já não provou isso? A cada passo, algum novo poder é revelado e torna as batalhas anteriores insignificantes. Fomos substituídas pelas Assombrações, que por sua vez cairão para os asura. Se isso continuar até sua conclusão natural, no final, tudo o que restará é o próprio Agrona. E você terá passado a vida inteira lutando para garantir o futuro dele à custa do seu.

Não pude evitar a surpresa que senti quando Melzri pareceu realmente ouvir Seris, mas não desisti do meu esforço para sacar a corda do arco. Não importava o quanto eu puxasse, Silverlight se recusava a dobrar mais.

— Você não pode resistir a ele — disse Melzri depois de um momento. — Mesmo que você esteja certa e nossas vidas inteiras sejam tornadas inúteis pelo resultado da guerra, isso não muda nada. O resultado é o mesmo, independente de por qual lado você lute.

— A prova de que é possível resistir à Agrona está bem ali — disse Seris, indicando Caera. — Diga a ela como você ainda está viva, Caera.

— Na verdade, foi graças a Eleanor e sua mãe — disse Caera, para depois continuar explicando um pouco do que havia acontecido.

Seris sorriu vitoriosa, diminuindo um pouco de seu cansaço.

— Viu? Uma adolescente comum com apenas um feitiço quebrou o poder do próprio Agrona. Essas pessoas aqui, sejam alacryanos ou dicathianos, arriscaram tudo para ficarem contra ele e protegerem um ao outro da melhor forma possível, mesmo contra as mais terríveis probabilidades. Não diga a eles que o resultado desta guerra não importa, que o esforço deles não importa.

O silêncio era tanto que pude ouvir as ordens gritadas distantes e o chiado mecânico do movimento dos trajes de mana.

Melzri olhou para Seris por um longo tempo antes que seu olhar varresse o resto de nós, fixando-se em mim. Não consegui ler o olhar que compartilhamos, mas depois de um momento tenso, ela zombou e voou, acelerando acima de Seris e desaparecendo ao longe. Sua assinatura de mana diminuiu até que nenhum sinal dela foi deixado.

Seris virou-se para vê-la partir, sua expressão em branco. Depois de alguns segundos, ela olhou para todos nós, então foi como a quebra de um feitiço.

Mamãe me envolveu em um abraço arrasador, toda a tensão dos últimos minutos escorria dela, mas ela não ficou. Depois de tocar suavemente sua testa na minha, ela saiu correndo, primeiro para Valen, depois para Enola, curando o suficiente de suas feridas para trazê-los de volta à consciência.

A corda de Silverlight desapareceu e o corpo do arco se endireitou novamente. Seris examinou-o com uma pitada de tristeza, então seu foco mudou para Caera.

— Estou… feliz que você descobriu como derrotar a maldição por conta própria, embora eu esperasse isso de você.

— Bem, sim. Obrigada — disse Caera, com as sobrancelhas franzidas enquanto fazia uma leve reverência a Seris.

Os olhos atentos de Seris novamente piscaram para mim, então ela passou a olhar para os quatro estudantes alacryanos. Enola lutou com os pés para ficar firme diante de Seris, mas Valen permaneceu sentado nos escombros, com os olhos levemente desfocados. Seth e Mayla ficaram ligeiramente afastados dos outros, de mãos dadas com tanta força que seus dedos estavam brancos.

— Esses outros, porém. — Seris aproximou-se deles, de maneira metódica — Você fez bem em manter seus pensamentos sob controle, mas temo que seja apenas uma questão de tempo. Por enquanto…

A névoa negra saiu dela e empurrou contra eles. Fracos contra a enxurrada de sua mana, senti a deles sendo empurrada para fora de seus corpos, quase no inverso do que eu poderia fazer com meu feitiço. Como um só, cada um deles caiu, forçado ao chão pela súbita reação de seus núcleos se esvaziando.

— Isso os manterá seguros até descobrirmos uma solução mais permanente — explicou Seris. — Não tentem ativamente reabastecer seus núcleos. Seu corpo fará isso inconscientemente, mas se vocês expulsarem sua mana antes que ela possa se acumular, permanecerão seguros.

Para Bairon, ela disse:

— Você lutou bem hoje, Lança Wykes. Só me arrependo de ter demorado tanto para convencê-lo da verdade. Independentemente disso, seu Comandante Eralith está lá em cima, organizando… acomodações… para todos os alacryanos na cidade. Acredito que ele poderia usar sua ajuda. — Quando Bairon hesitou, ela acrescentou: — A retentora Bivrae está morta e Melzri não é mais uma ameaça para você. A luta pode continuar em outras partes do seu continente, mas Vildorial está, por enquanto, segura.

— É o que vamos ver — disse ele olhando-a desconfiado. Finalmente, porém, ele me deu um aceno sutil, o que causou um caloroso clarão de orgulho em meu peito, e voou.

Seris se aproximou de mim, fazendo com que Boo viesse mais perto, pressionando seu lado peludo contra mim para que eu pudesse sentir a expansão de sua respiração e o ritmo rápido de seu pulso. A mamãe, que agora estava ajudando a curar alguns dos anões que haviam sobrevivido à explosão da parede da frente, parou o que estava fazendo para assistir.

— Há muito de seu irmão em você, Eleanor. — Seus olhos pareciam me atrair cada vez mais fundo, como piscinas escuras sem fundo. — É bom, que você seja forte. Esse mundo pode contar com a força do Arthur, mas ele, por sua vez, depende de você e da sua mãe. — Seus lábios se curvaram enquanto suas sobrancelhas franziam e ela me deu um olhar irônico. — Vocês são como as duas âncoras que mantêm o poder dele estável. Sem vocês, ele estaria desamarrado e, quem sabe, o que poderia ser do resto de nós.

Minha boca ficou aberta, mas não consegui pensar em uma resposta às suas palavras inesperadas.

A atenção de Seris, porém, já estava se voltando para outro lugar.

— Caera, comigo. Há muito o que fazer e eu preciso de você.

Caera engoliu visivelmente.

— Meu sangue… e Arian. Ele ficou gravemente ferido. Eu estava procurando um curandeiro…

— Venha, leve-me até ele — disse Seris com um gesto afiado. Então ela foi levada rapidamente para longe, suas vestes de batalha se projetando atrás dela.

Caera, como Bairon, hesitou, mas parecia haver pouca escolha além de fazer o que a Foice comandante ordenou e, assim, ela seguiu. Pensei em seguir também; com o perigo tão repentinamente desvanecendo, eu não conseguia me convencer de que a batalha realmente havia acabado, eu queria ficar ocupada e permanecer útil. Quando olhei para mamãe curando o pior dos anões feridos, porém, uma compulsão por ficar me manteve onde eu estava.

Hornfels, que estava no comando das forças Earthborn, providenciou para que Seth, Mayla, Valen e Enola fossem levados até onde o resto dos alacryanos estavam sendo reunidos em grupos sob o olhar atento de um exército de bestas de mana maquinadas. Valen e Enola, pelo menos, tinham famílias lá em cima e estavam ansiosos para descobrir o que havia acontecido com eles, ou, pelo menos, tão ansiosos quanto pudessem estar dado seu estado atual.

Antes de partirem, porém, Mayla se aproximou de mim, cada passo enviando um lampejo de dor em seu rosto, então envolveu seus braços ao meu redor.

— Obrigada — sussurrou ela.

— Vou te encontrar em breve. — Eu disse, emocionada e depois constrangida. — Descanse um pouco.

Enquanto os víamos abrir caminho sobre os escombros atrás de um destacamento de soldados Earthborn, eles passaram por Claire, que estava de pé sobre a besta de mana maquinada, que agora parecia pouco mais do que um cadáver de grifo esfarrapado. Ela ativou um punhado de pulseiras pesadas que subiam os dois braços e uma espécie de cinto largo em torno de sua cintura, então a máquina começou a desaparecer uma parte de cada vez.

— Artefatos dimensionais? — perguntei, caminhando até ela quando terminou.

Ela me olhou pensativa antes de dizer:

— Sim, embora não seja tão simples assim. Eles ordenam os componentes de uma maneira específica, permitindo a ativação dos artefatos dimensionais para armazenar e, em seguida, reconstruir automaticamente a exo-forma. Os artefatos foram especialmente projetados para uso por um não-mago. Não posso dizer que entendo totalmente os princípios, mas funciona. Isso é, desde que você ative tudo na sequência apropriada.

Olhei para a máquina, minha mente girando inutilmente enquanto tentava entendê-la. Depois de alguns segundos, eu ecoei:

— Exo-forma?

Ela bateu em uma das pulseiras.

— Os trajes. De qualquer forma, eu tive que exceder o limite do meu e algo queimou, então não será útil até que seja reparado. Eu deveria fazer o check-in com o resto do Batalhão de Bestas e, em seguida, reportar a Gideon.

— Obrigada — gritei um pouco sem jeito quando ela começou a se afastar.

Ela não parou nem se virou, apenas levantou um braço carregado de pulseiras acima da cabeça em despedida enquanto dizia:

— Fico feliz por poder ajudar.

Eu a vi partir, sentindo uma sensação de admiração por tudo o que acabara de acontecer, mas meu humor imediatamente azedou novamente quando ela teve que desviar dos cadáveres de Bolgermud e dos outros guardas que estavam estacionados ao longo da parede externa.

Suas mortes foram tão sem sentido, pensei, incapaz de limpar minha mente da imagem de sua morte repentina e inevitável.

Voltei para o Instituto Earthborn, mas o movimento conjurava estrelas atrás dos meus olhos, e de repente senti tontura. Dei um passo, errei o pé e caí dolorosamente de joelhos. Lentamente, como uma árvore que começava a cair, inclinei-me para o meu lado e deitei-me sobre os azulejos quebrados do pátio.

Tanta coisa tinha acontecido tão rapidamente e eu tinha me esforçado tanto, que podia sentir minha mente e corpo sucumbindo à tensão. Era quase como se eu estivesse vendo tudo isso se desenrolar de cima, me vendo deitada ali, cada respiração vindo em um suspiro laborioso, meus olhos vagos… mas não entrei em pânico. Eu realmente não senti ou pensei em nada, apenas me deixei desmaiar.

Então alguém forçou algo em minha garganta e eu me sentei, engasgando com uma sacudida de mana acendendo dentro de mim. Um médico anão se ajoelhou sobre mim, com um recipiente de elixir vazio em seu punho enquanto falava palavras suaves e consoladoras. Boo estava ao lado dele, um olho em mim e o outro desconfiado no médico.

— Estou bem — insisti, piscando para afastar o momento de vazio e me concentrando no que estava acontecendo ao meu redor. — Por favor, ajude os outros.

Muitas outras pessoas apareceram, vindas de dentro do Instituto Earthborn. Mamãe estava curando os últimos anões feridos, e parecia ainda não ter notado meu colapso, algo pelo qual eu estava grata. Os outros, médicos, herbalistas e curandeiros não emissores, estavam agora ocupados em lidar com as feridas que não eram tão ameaçadoras à vida.

Fiquei de pé, apesar dos protestos do médico, sacudindo a última das teias de aranha. Embora estivesse cansada e dolorida, e meu núcleo doesse por usar tanta mana, ainda mais do que normalmente seria possível para mim através do uso dos orbes de mana armazenados, o elixir havia me revigorado.

Eu gesticulei pedindo a ajuda de Boo, então começamos a ajudar os Earthborn da melhor forma possível. Os anões eram eficientes e o Instituto Earthborn estava naturalmente cheio de algumas das melhores mentes da cidade, então embora o grupo de Bolgermud tenha sido uma fatalidade completa, surpreendentemente poucos dos soldados Hornfels morreram durante o ataque, e os magos do atributo terra reconstruíram o muro dentro de uma hora.

— Preciso descansar e reunir mana, então vou à cidade para ver o que mais posso fazer para ajudar — disse para mamãe cansada depois de termos sido dispensadas com muitos agradecimentos do próprio Carnelian Earthborn, senhor do clã Earthborn.

Mordi o lábio, sem saber se deveria expressar o pensamento que vinha crescendo em minha mente enquanto ajudávamos no esforço de limpeza. No entanto, as palavras foram crescendo e se construindo até irromperem às pressas.

— Mãe, estou muito preocupada com o Arthur e acho que a gente deveria… — Eu me cortei quase tão de repente quanto tinha começado, olhando em volta nervosamente.

Mamãe me olhou com preocupação.

— Vamos conversar em casa.

Acenei com a cabeça, aliviado por ela ter entendido, e assim entramos nos túneis da área residencial. Depois que mamãe nos deixou entrar e Boo se jogou em frente à lareira apagada, continuei.

— Acho que a gente deveria checar o Arthur. Com aquela coisa esquisita de… pedra do espreitador.

As sobrancelhas da mamãe curvaram dramaticamente e ela olhou ao redor como se procurasse alguém que pudesse nos ouvir mesmo lá.

— Ellie, seu irmão não mediu esforços para se esconder até mesmo de nós. — Ao dizer isso, ela não pôde deixar de deixar escapar uma pitada de amargura cheia de arrependimento. Eu sabia exatamente como ela se sentia. — Estaríamos traindo a confiança dele para procurá-lo, e não sabemos se isso funcionaria, de qualquer maneira…

Pelo tom dela, percebi imediatamente que mamãe não estava tentando me convencer; estava tentando se convencer. Estava prestes a me sentar, mas parei no meio do caminho, me endireitei e comecei a mexer no pequeno espaço.

— Mãe, não tinha como o Art prever tudo o que está sendo jogado na gente agora. Os dragões desaparecendo? Virar Seris e todos os outros alacryanos contra nós? Onde quer que esteja, ele não deu a mais ninguém, ou a nós, a chance de guardá-lo ou protegê-lo. Eu só quero ter certeza de que ele está bem.

Mamãe mordeu o interior de sua bochecha, sua luta emocional visível em seu rosto.

Por um lado, ela estava certa: Arthur claramente não queria que nós, ou qualquer outra pessoa, o encontrássemos. Por outro, ele não era perfeito e podia cometer erros como qualquer outra pessoa. Desde que ele ganhou sua nova runa divina, eu o vi cada vez mais distante de todos ao seu redor, até mesmo eu e mamãe. Quando ele a usava, era como se ele se tornasse escravo do cálculo lógico. Não pude deixar de sentir que, talvez, ele precisasse de proteção de si mesmo tanto quanto de Agrona.

Quando mamãe soltou a respiração que estava segurando com pressa, eu sabia que ela havia cedido, tanto aos seus próprios impulsos quanto aos meus.

— Vamos — disse ela, falando baixinho. Ela saiu correndo do quarto e desceu pelo pequeno corredor que levava ao seu quarto.

Meu pulso acelerou quando faíscas dispararam através de meus nervos. Verifiquei duas vezes que havíamos trancado a porta quando entramos, então gesticulei para que Boo permanecesse na sala antes de seguir a mamãe.

Quando cheguei ao quarto dela, ela já tinha cavado a pedra sem brilho e de muitas faces de seu esconderijo. Ela estava sentada no pé da cama, com a relíquia nas duas mãos. Ela não olhou para mim enquanto eu me sentava ao lado dela. Não lhe ofereci qualquer pressão ou conforto. Eu não falei nada. Como emissora, apenas sua magia de cura conjuraria a centelha de éter necessária para ativar a relíquia, mas podia dizer que ela queria checar o Arthur tanto quanto eu, por isso não a pressionei.

Depois de um minuto ou mais de silêncio tenso, ela respirou fundo e canalizou sua mana, que se moveu através da superfície da pedra sem qualquer interação óbvia; a mana simplesmente passou, sem que ninguém estivesse imbuído na relíquia. Independente disso, a pedra foi ativada com uma sensação intangível que não poderia ser simplificada apenas para algo que eu estava vendo ou ouvindo, ou mesmo sentindo com meu núcleo. Era mais como se a magia dela se chocasse com cada partícula do meu ser.

Os olhos da mamãe ficaram vidrados e eu pude perceber que ela estava em outro lugar.

— Mostre-me. — Eu disse, mais suplicante do que pretendia soar.

Ela soltou a relíquia com a mão direita e apertou a minha. Senti sua magia como algo estranho e efêmero e distintamente diferente à medida que me puxava. Meu instinto era resistir, mas me forcei a relaxar. Na minha mente, eu me vi sendo puxada para longe da sala, correndo atrás de uma partícula de poder que sabia que era mamãe. Voamos pelo teto da caverna e depois pelo deserto acima, então corremos por Darv em um piscar de olhos.

Meu coração já batendo rápido só martelava cada vez mais depressa enquanto traçamos o caminho para o nosso destino, terminando em uma pequena câmara grosseiramente construída contendo uma piscina de líquido brilhante e pouco mais. Sentados de pernas cruzadas na piscina, Arthur e Sylvie meditavam lado a lado com a pedra-chave pairando na frente deles.

Nenhum dos dois se mexeu, não dando nenhuma indicação do que estavam experienciando. Eu sabia que suas mentes deviam estar dentro da pedra-chave. Presos, pelo menos até que a resolvessem, pensei com um pressentimento, mas estavam ilesos; ninguém os havia encontrado. Soltei uma respiração aliviada e senti distante mamãe apertar minha mão. Não tinha certeza de quanto tempo ficamos, mas não foi muito. Quando mamãe começou a se afastar e se retirar da relíquia, fui puxada atrás dela.

Meus olhos piscaram.

Windsom estava na porta, seus olhos desumanos fixos na pedra.

Mamãe deu um grunhido de surpresa e tentou esconder a relíquia nas costas.

— Perdoem-me — disse o asura, oferecendo uma leve reverência. — Tanto por lhes surpreender quanto por meu atraso. Os acontecimentos conspiraram para que eu não cumprisse imediatamente o pedido de Arthur, mas estou aqui para levá-las até Epheotus, como prometido.

Mamãe e eu trocamos olhares.

— Claro — disse mamãe, com a voz um pouco mais alta do que o normal. — Estamos fazendo as malas. Só me deixe…

— Traga a relíquia djinn — disse Windsom, agora comandando. Mamãe congelou. — Aldir me contou sua experiência de ser vigiado enquanto limpava Elenoir. Desconfio que foi assim que foi feito, correto? Pode ser útil, especialmente se você for capaz de ver Arthur com ela.

Senti meu fôlego se perder. Como ele sabe?

Mamãe hesitou.

— Receio não me sentir confortável com…

— Somos aliados — interrompeu Windsom, endurecendo o tom. Deu um passo à frente e estendeu a mão. — Vou guardar isso para você. Então você pode reunir seus pertences para irmos. O caminho para Epheotus é difícil de navegar neste momento, mas ainda administrável para mim, e para poucos outros. Precisamos passar antes que qualquer outra coisa mude.

Mamãe ainda não entregou a relíquia e a expressão de Windsom escureceu ligeiramente cada vez mais.

Estendi minha mão para ela. Seus olhos castanhos se estreitaram quando ela olhou para baixo, com a expressão firmemente reservada. Depois de uma breve pausa, ela colocou a relíquia na minha palma.

Windsom deu um aperto impaciente em sua mão.

Senti pelo reservatório de magia dentro da relíquia. Eu não conseguia sentir o éter, mas sentia a maneira como ele se movia contra a mana. Não ousando reunir minha mana antes de agir, soltei uma onda de mana pura no coração da relíquia, tão repentina e contundente quanto pude.

Ela rachou, estilhaçando-se pelas muitas facetas.

Lentamente, arrastei meu olhar para longe do pedaço de rocha quebrado para Windsom, cuja única reação foi um aperto em sua mandíbula.

— Insensata, jovem Eleanor. Lorde Indrath não apreciará esse sinal exterior de sua desconfiança, não quando ele está arriscando tanto para mantê-la segura. — Windsom balançou a cabeça, escorrendo decepção. — No entanto, meu papel aqui é claro. Venham. Epheotus as aguarda.

Levantei-me, limpei minha garganta e chutei a pedra para debaixo da cama. Windsom a viu rolar, mas não fez nenhum movimento para pegá-la, em vez disso, virou seu calcanhar e marchou prontamente para longe.

Minhas mãos tremiam enquanto mamãe passava seus dedos pelos meus. Eu só podia esperar que tivesse feito a coisa certa. Mamãe apertou minha mão novamente e assentiu.

 


 

Tradução: NERO_SL

Revisão: Crytteck

 

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