Era um dia nublado, um bom dia para uma luta. Nuvens vermelhas profundas pairavam baixas no alto, como se estivessem carregadas de sangue prestes a derramar-se sobre nós. Mas é meu sangue ou dos meus inimigos? Eu me perguntei preguiçosamente, a mão apertada em torno do cabo da minha lâmina.
— Se-eth! Se-eth! Se-eth! — A multidão cantava, meu nome se tornando duas sílabas enquanto rugiam alto o suficiente para sacudir o solo sob meus pés.
Olhei através do campo de batalha para meu oponente. Seu cabelo fino e desgrenhado caía sobre a pele pálida, inchada e com um tom esverdeado. Parecia que ela havia se enrolado em um lençol velho, ou talvez em uma cortina, em vez de roupas. Ondas doentias de mana venenosa saíam dela, mas não me importei.
Eu não estava com medo. Nem um pouco. Não conseguia escapar da sensação de que deveria estar, mas com minha espada em punho e meu nome sendo cantado, era impossível ter medo de qualquer coisa.
Dando um sorriso vitorioso a Bivrae dos Três Mortos, eu andei em frente. Só que… meus pés não se moveram. Era como se estivesse enraizado no chão, presos firmemente. Minha mão agarrou a empunhadura da minha espada, que estava na bainha, mas a lâmina não se soltou. Eu puxei e puxei, mas foi inútil. Então, de repente e com uma certeza inegável, compreendi que iria morrer.
Meu corpo ficou congelado enquanto a mulher pesadelo corria pelo estádio em minha direção. Tentei gritar, mas o barulho engasgou em minha garganta. Mana se acumulou na atmosfera, crescendo cada vez mais até que…
Levantei-me em um salto e pisquei rapidamente por causa do suor que ardia em meus olhos. Grogue, olhei em volta, lutando para entender o que estava vendo.
O interior mal iluminado de uma habitação simples de um cômodo abria-se para um exterior sombreado pelo crepúsculo.
Pulei da cama áspera e peguei meus sapatos, calcei-os e corri para a porta.
— Seth, seu idiota, você caiu no sono! — Já haviam se passado longas semanas, talvez um pouco mais, não tinha certeza, desde o aparecimento do Soberano e o ataque. Eu só queria me deitar e fechar os olhos por um minuto, mas…
Olhando para o oeste, o sol já havia ido além das montanhas distantes. Eu dormi a tarde inteira!
Enquanto olhava em volta em busca de Lyra Dreide, uma carranca profunda apareceu em meu rosto. Algo estava errado. Todos haviam parado e estavam olhando para o sul. Meu próprio olhar seguiu o deles e de repente senti: mana, tanta mana que mal consegui entender. Aquilo desfaleceu e inchou, indo para frente e para trás, lançando um brilho rosa distante contra o céu crepuscular.
— Pelos chifres de Vritra, não pode ser uma batalha — disse uma jovem que eu não conhecia, a alguns metros à minha direita. Sentindo meu olhar, ela olhou de volta para mim. A cor havia sumido de seu rosto. — Que tipo de batalha poderia causar tal… tal… — Suas palavras foram sumindo enquanto lutava até mesmo para pensar em uma descrição apropriada para a sensação.
Então, todos nós, como um só, nos agachamos ou nos encolhemos, gritos ecoando pelo acampamento enquanto uma sombra caía sobre nós, fraca na luz pálida. Olhando para cima assustado, observei duas enormes feras reptilianas aladas voarem acima, deixando o acampamento para trás em um instante enquanto cortavam o ar em direção à batalha distante.
Engoli em seco e desenraizei meus pés, um eco do meu pesadelo acelerando momentaneamente meu pulso. Eu precisava encontrar Lyra ou Lady Seris!
Quando comecei a correr, a cena imóvel ao meu redor também descongelou e as pessoas correram para encontrar seus sangues — suas famílias — com alguns outros gritando por liderança e alguns se agrupando ansiosamente para discutir o evento. Mais de um, percebi com desconforto, observava a linha das árvores ao sul com expressões ansiosas que pareciam deslocadas diante do medo de todos os outros.
Eu não tinha corrido muito quando Lyra Dreide dobrou a esquina de um prédio maior, de tamanho familiar, com as sobrancelhas franzidas e uma expressão intensa enquanto observava os dragões se dissolverem em pontos distantes antes de serem escondidos pelo horizonte.
— Lady Lyra, algo está acontecendo — disse sem fôlego. — Uma batalha… nas Clareiras das Bestas.
Seus olhos vermelhos pousaram em mim e uma expressão estranha suavizou suas feições. Arrepios subiram pelos meus braços e pescoço, e dei um passo para trás.
— Venha comigo, Seth. — Ela disse com sua voz suave e uma espécie de… dor meio escondida por trás dela. Sem esperar por mim, ela passou em direção ao extremo sul do acampamento.
Lá, encontramos a maioria dos aldeões, aqueles que ficaram lá permanentemente e um grande número que só esteve lá por alguns dias a fim de ajudar a construir algumas casas novas, já reunidos e quase todos ainda olhando para o sul. Muitos se viraram para nos observar e alguns gritaram em resposta à aparição de Lyra.
— Retentora Lyra!
— O que é isso, o que está acontecendo?
— Um dragão! Eu vi um dragão!
— Alto Soberano Agrona finalmente chegou!
A multidão ficou em silêncio e todos os olhares se voltaram para a jovem soldado que gritou isso. Ela pareceu perceber seu erro imediatamente e se encolheu sob tanta atenção, a maior parte claramente hostil.
— Por favor, devo pedir a todos que tenham calma — disse Lyra, sua voz se projetando pela pequena cidade de modo que soasse para cada pessoa como se ela estivesse bem ao lado delas. — Não façam ou digam agora nada que possam se arrepender depois. Devemos confiar que os dragões estão nos protegendo como concordaram, até o momento em que nos derem motivos para duvidar.
— Onde está Lady Seris? — perguntou um homem com cabelo preto curto e barba levemente desgrenhada, saindo da multidão. — Certamente ela teria mais para nos contar do que isso!
— Sulla — disse Lyra, apaziguadoramente. — Compreendo o seu medo, mas independentemente do que esteja acontecendo no sul, não podemos entrar em pânico.
— Não estou sugerindo que entremos em pânico, mas talvez devêssemos fazer algo além de sentar aqui e esperar para sermos salvos. — Ele respondeu.
Olhei rapidamente entre eles, momentaneamente atordoado com a atitude dele antes de lembrar que Lyra não era mais uma Retentora, assim como Seris não era uma Foice. Elas se tornaram nossos iguais, mas isso não impediu que a maioria de nós as considerássemos nossas líderes. Em Alacrya, ela provavelmente teria arrancado a pele de seus ossos sem pensar, mas foi exatamente disso que trabalhamos tanto para escapar.
— Se parecer que o perigo é…
Caí de joelhos enquanto o mundo tremia. A pele das minhas costas queimava como se eu tivesse sido marcado, e uma presença… uma consciência que não era minha, envolta em um invólucro de poder, agarrou-se no espaço logo atrás dos meus olhos. Tentei olhar em volta e ver se era só eu, incerto se seria melhor assim ou não, mas não conseguia me concentrar, mal conseguia enxergar, como se um grosso cobertor de lã cinza tivesse sido puxado sobre meus olhos.
Então ouvi a voz e soube que não era só eu, porque ao meu redor as pessoas gritavam. O estrondoso barítono fez meus ossos tremerem de desespero, como se meu esqueleto quisesse abrir caminho para fora de mim e fugir. Mesmo que nunca tivesse ouvido aquela voz antes na minha vida, sabia imediatamente quem era.
— Filhos de Vritra — começou, estrondoso de forma que não poderia dizer se estava na minha cabeça ou explodindo no próprio ar —, vocês esperaram. Aguardaram pacientemente e agora sua longa espera chegou ao fim.
Minha visão retornou lentamente e vi dezenas de outros Alacryanos da mesma forma que eu. Como se tivesse sido forçado a me ajoelhar diante do próprio Alto Soberano, pensei descontroladamente. Alguns permaneceram de pé, cambaleando ou encostados em uma parede ou cerca, mas apenas Lyra parecia fisicamente inalterada. A maneira como ela se concentrou no horizonte, olhando cegamente para o nada, foi o suficiente para me dizer que ela também podia ouvir a voz.
— A hora chegou. A guerra começa de novo, e vocês serão o fio da lâmina que cortará as gargantas dos seus senhores dragões. Vocês levantarão suas armas mais uma vez e seus subjugadores se tornarão apenas poeira e sangue pisados nas estradas em seu caminho para a vitória. Começando com aquele que te colocou aqui, que roubou sua força e sua liberdade.
Sem olhar para mim, a mão de Lyra agarrou minha camisa e me levantou desconfortavelmente. Sua mão continuou lá, presa no tecido como a garra de alguma besta de mana, enquanto a cor sumia de seu rosto.
— Encontrem Arthur Leywin. Encontrem a Lança que presunçosamente chamam de Godspell e tragam-na para mim. Vivo se você puder, mas seu núcleo também será o suficiente.
Como uma pedra caindo do céu, uma figura bateu no chão próximo, cabelos perolados esvoaçando em torno de seus chifres antes de cair sobre suas vestes de batalha pretas. Os olhos escuros de Seris percorreram a multidão, fixando-se em Lyra. Ela parecia sombria.
— Não ousem recusar-me.
Eu me encolhi tanto que poderia ter caído se não fosse pelo aperto de Lyra quando o mesmo homem de antes gritou para o céu. — Mas eu recuso! — Sua voz cortou o silêncio como o barulho de uma espada colidindo contra um escudo, então ficou lá, desconfortável.
— Sulla, fique em silêncio! — Seris sibilou, dando um passo em direção a ele e acenando para que se acalmasse.
Em vez disso, ele deu alguns passos para fora, virando-se para olhar para todos os outros.
— Não sei que magia é essa, mas ele só está tentando nos assustar! Pegar nossas lâminas e ir para a guerra? A maioria de nós fez tudo o que pôde para escapar do serviço eterno aos Vritra! Arriscamos nossas vidas! Lutar por ele agora? Não. Não, acho que não.
Avistei Enola avançando, o rosto determinado, claramente pronta para se juntar a ele, mas seu avô a pegou pelo pulso e a puxou para trás, repreendendo-a com tanta violência que até minha destemida colega de classe empalideceu e ficou quieta em resposta.
Todavia, outros avançaram para ficar ao lado de Sulla. Reconheci todos, mesmo que não os conhecesse individualmente. A maioria eram aqueles que lutaram ao lado de Seris em Alacrya como parte de sua rebelião, mas alguns que reconheci eram soldados. Entre eles estava o Sentinela, Baldur Vessere. Eu o conhecia muito bem, pois ele havia trabalhado próximo de Lyra, tendo se tornado um verdadeiro líder entre os soldados quando o Professor Grey — Arthur, lembrei a mim mesmo — encarregou Baldur de reunir as tropas após a rota em Blackbend City.
— Lauden, não! — Uma mulher sibilou, arrastando meu olhar confuso através da multidão até onde um homem estava se afastando de um casal mais velho (claramente seus pais, ele se parecia com eles) e caminhando orgulhosamente para se juntar à multidão crescente.
— Por favor, mãe. Chegamos até aqui. Já não desistimos de todo o poder que o nome Denoir já carregou? O abismo nos levou, mas foi a decisão certa, não foi? — Ele deu um tapinha no ombro de Sulla. — Não vou voltar atrás agora.
Lauden Denoir. Irmão de Lady Caera, reconheci vagamente, meus pensamentos se recusando a entrar em foco. Meu cérebro parecia estar sendo comprimido dentro do crânio.
— Parem! Fiquem quietos, em silêncio — ordenou Seris, de repente estridente, um pânico crescendo dentro dela que nunca tinha visto antes. Ao meu lado, Lyra estava tensa, a mão que segurava minha camisa tremia.
— Lady Seris, todos nós juramos pela sua causa em Alacrya — disse Sulla. — Não vou me intimidar com Agrona agora, nem nunca mais. Não enquanto eu… eu… — O suor escorria por seu rosto, ele fez uma careta quando as palavras pareciam lhe faltar. Uma mão começou a coçar suas costas e um terror crescente tomou conta de suas feições. De repente, ele estava se arranhando, grunhindo baixo no fundo da garganta, e todos os que estavam por perto recuaram, horrorizados.
Com olhos arregalados e horrorizados, ele olhou para Seris, mas ela balançava a cabeça.
— Sinto muito, Sulla… todos vocês. Eu sinto muito.
Sua camisa, que cobria suas runas, estava fumegando, um brilho emanando do tecido. Quando pegou fogo, queimando sua espinha, ele caiu de joelhos e gritou. Uma súbita rajada de vento negro levantou-o do chão, girando-o e jogando-o de volta no solo. Lâminas de vento e fogo brotaram de seu corpo, espalhando sangue na área circundante ao seu redor, depois giraram, eviscerando seu corpo e silenciando seus gritos agonizantes.
Tarde demais, me virei e fechei os olhos.
— Acalmem-se! — Seris gritou, ambas as mãos pressionando o ar ao seu redor como se pudesse sufocar o terror crescente. — Não respondam a ele! Não em voz alta, não em seus próprios pensamentos, continuem…
Alguém gritou e não pude deixar de olhar. Um dos que se juntaram a Sulla foi engolfado por chamas azuis, a pele escurecendo e os olhos virando geleia enquanto arranhava o chão.
A multidão gritou em uníssono e afastou-se ainda mais do pequeno grupo daqueles que tinham sido corajosos o suficiente para se levantarem e gritarem sua negação às ordens de Agrona.
Aterrorizado, tentei fazer o que Seris ordenou, sufocando meus próprios pensamentos. Sem querer, me aproximei de Lyra e seu braço envolveu meu ombro, puxando-me para perto.
Contudo, meus olhos se fixaram em uma pessoa. O irmão de Lady Caera, Lauden, estava tropeçando para trás da mancha carmesim que tinha sido o homem, Sulla. Estava manchado com o sangue de Sulla, mas seu rosto estava inexpressivo, confuso. Pensei vagamente que meu próprio rosto devia ser praticamente igual.
Ao lado dele, outra pessoa começou a morrer, suas runas acendendo e seus próprios feitiços destruindo-os por dentro. Os olhos de Lauden percorreram a multidão para encontrar sua mãe e seu pai. A mulher chorava abertamente, implorando ao marido enquanto ele a impedia de correr para o filho.
Meu estômago se apertou, contorcendo-se nauseantemente dentro de mim, mas não importa o quanto quisesse desviar o olhar, simplesmente não conseguia. Eu não podia.
Então assisti, envolto no conforto inesperado do braço de Lyra Dreide, enquanto as runas de Lauden Denoir explodiam, sua energia queimando sua camisa e a pele de suas costas. Mana jorrou dele como sangue de um wogart massacrado, borbulhando de seus pulmões e saindo pelo nariz e boca enquanto ele engasgava e se afogava. Uma veia em seu pescoço estourou, espirrando para fora, depois outra, então… então eu desviei o olhar, no último instante.
Por um momento, tive medo de que a mesma coisa estivesse acontecendo comigo, mas quando me senti mal, só a bile e meu almoço quase digerido surgiram, respingando no chão e em meus sapatos.
— Eu lhes dei o poder que possuem, então ele é meu. Trabalhem contra mim, seja em ação, palavra ou até mesmo em pensamento, e a magia que foi meu presente para vocês se tornará sua ruína. Esses primeiros poucos corajosos, por servirem de exemplo para vocês, pouparam seu sangue do mesmo destino, mas quaisquer outros que desobedecerem, condenarão suas mães, pais, filhos e filhas a compartilharem seu fim doloroso e horrível.
A voz ficou em silêncio, mas a presença ainda pressionava a parte inferior da minha coluna. Enquanto limpava a boca, olhei para cima, de volta à aldeia, e encontrei um par de olhos vermelhos sorridentes.
Parado como se estivesse petrificado, com a manga meio arrastada sobre os lábios e as costas curvadas enquanto tentava me endireitar, olhei para a Assombração. Perhata, lembrei-me. A mulher que subjugou um soberano.
Talvez percebendo minha angústia, Lyra também se virou, respirando fundo ao notar a mulher.
— Foice Seris! — Ela chamou com urgência, acidentalmente adquirindo o hábito de usar seu antigo título.
A multidão inteira desviou o olhar dos restos fumegantes daqueles que haviam morrido e se encolheram ao ver a Assombração espreitando atrás deles, seus lábios curvados em um sorriso malicioso, sua postura e expressão relaxadas, quase preguiçosas. A energia daquele momento formigou sob minha pele, arrepiando os cabelos da minha nuca. Não conseguia me lembrar de ter experimentado tanto medo.
Então Seris estava ao meu lado. Seus dedos roçaram meu ombro e foi como se ela me libertasse de algum feitiço. Levantei-me rapidamente e dei alguns passos para trás, pisando no meu próprio vômito enquanto tentava me esconder atrás de Lyra como uma criança.
— Eu te disse — cantarolou Perhata. Ela deu um passo saltitante à frente, seus olhos vermelhos profundos saltando de Seris para os cadáveres e depois voltando. — Esses são os soldados de Agrona, entendeu? E chegou a hora em que o Alto Soberano está pronto para fazer uso deles. A ordem foi dada e vocês marcharão, como eu disse antes. Ou… — Seu sorriso se aguçou, como uma adaga sendo afiada sobre uma pedra de amolar. — Leve-os para outro lugar, Seris. Diga-lhes para recusarem, para ficarem aqui, para fazerem qualquer coisa exceto exatamente o que ele ordena. Você sabe o que vai acontecer.
Olhei para Seris, sabendo que ela precisava encontrar uma maneira de contornar isso, superar isso. Ela precisava; caso contrário, para que serviria tudo isso?
Ao meu lado, Lyra se mexeu.
— Lady Seris…
A mão de Seris se ergueu, rápida como um chicote, ela se virou para olhar além de Lyra, para todos os outros reunidos ali, depois para leste e oeste, sem dúvida pensando nos milhares e milhares de Alacryanos nos outros acampamentos. Todos eles experimentaram a mesma coisa? Eu me perguntei em algum lugar no fundo da minha mente.
Finalmente, Seris falou.
— Reúna as armas e armaduras que temos. Nós… nós marcharemos para a guerra.
Alice colocou sobre a mesa uma tigela de ensopado de cogumelos, ainda fumegante e exalando um aroma rico de carne, e empurrou o prato de biscoitos recém-assados para mais perto de mim.
— Por favor, coma, querida. Você e Ellie têm treinado tanto que me preocupo com você.
Não pude deixar de rir, mas foi mais um som de apreciação e admiração do que diversão.
— Obrigada, isso tem um cheiro maravilhoso.
E um sabor também. Era estranho que uma refeição tão simples pudesse parecer tão… completa, complexa e… caseira. Eu cresci com chefs particulares que ficavam felizes em preparar uma refeição totalmente separada para cada membro da minha família, mas já fazia muito tempo que algo tão simples como uma refeição não parecia especial como esta.
Ellie riu também, engolindo uma colherada de seu próprio ensopado, seu foco em algum lugar bem abaixo de nós.
— Falando nisso, você viu Gideon hoje? Ele queimou as sobrancelhas de novo! — Ela riu e derrubou ensopado na mesa, o que só a fez rir ainda mais quando Alice olhou carrancuda para ela.
— Eu sei, coitadinho — respondi, escondendo meu próprio sorriso atrás de uma mão com a colher cheia. — E ele estava indo tão bem também.
Alice tentou sorrir enquanto jogava uma toalha em Ellie para limpar sua bagunça, mas não parecia totalmente focada no momento, pensei que poderia adivinhar o porquê. Porém, não me intrometi e, ao invés disso, peguei uma colherada do meu jantar, soprando suavemente o caldo para esfriá-lo.
— Espero que Arthur esteja bem — disse ela, de qualquer forma nos convidando a entrar em seus pensamentos.
Coloquei a colher de volta na tigela sem provar o ensopado, então olhei nos olhos dela. Ela devolveu o olhar apenas por um momento antes de seus olhos se desviarem novamente, e senti uma culpa se contorcendo dentro de mim. Eu ainda não tinha contado a Ellie ou Alice sobre minha conversa com Arthur. Ele ficaria chateado em saber que Ellie tinha me convidado para jantar… embora talvez ainda mais por eu ter aceitado. Talvez tenha sido um momento de rebeldia, ou…
Não, eu disse a mim mesma em tom de repreensão. Você estava sozinha e aceitou um momento de gentileza, mesmo que não devesse, só isso.
— Ninguém é mais capaz de enfrentar o que está por vir do que Arthur — disse em voz alta. Quando Alice encontrou meus olhos novamente, foi minha vez de desviar o olhar, correndo para enfiar outra colher de ensopado na boca e me arrependendo instantaneamente quando o tecido sensível da minha língua queimou. — Hah — exalei, procurando por uma mudança de assunto. — De qualquer forma, fiquei surpresa quando Ellie me convidou para jantar. Achei que Arthur iria esconder vocês duas em algum cofre ou algo assim — disse, apenas meio provocante.
— Windsom deveria vir nos buscar hoje, mas até agora ele não foi encontrado em lugar nenhum — explicou Ellie, agindo como se não fosse grande coisa. O irmão dela, eu esperava, discordaria totalmente.
— Eu só… — Alice suspirou profundamente e empurrou sua tigela para longe antes de continuar com seu pensamento anterior como se não tivesse sido interrompida. — Eu sei que ele tem Sylvie e Regis, mas eles são… bem, são tão parte dele quanto seus próprios pensamentos, sabe? Eu me preocupo com ele estar sozinho.
Aquilo me pegou desprevenida, como um eco dos meus próprios pensamentos de apenas um minuto antes. Limpei a garganta e enxuguei os lábios com um guardanapo, sem saber como responder.
— É que o mundo o colocou neste pedestal. — Alice olhou não diretamente para o vapor que lentamente saía da minha tigela. — E ele está tão lá em cima, e sem ninguém para lhe fazer companhia. Ninguém que o compreenda, que possa lhe oferecer companhia. Não de verdade.
Refleti sobre suas palavras, pensando se eu — ou qualquer pessoa, aliás — poderia ser essa companhia. Ou eu era apenas um dos muitos olhando para ele naquele pedestal?
Depois de um momento de silêncio, abri a boca para lhe oferecer palavras de consolo que ainda não havia decidido, mas tudo o que saiu foi um suspiro entrecortado. Um calor se espalhou pelas minhas runas e minha mana parecia latejar e inchar, apenas parcialmente controlada.
Então ouvi a voz violadora.
— Filhos de Vritra, vocês esperaram. Aguardaram pacientemente e agora sua longa espera chegou ao fim.
Meus olhos se abriram e olhei horrorizada para Alice e Ellie. Ambas olharam de volta, refletindo apenas uma confusão crescente. Empurrando minha cadeira para longe da mesa, cambaleei em direção à porta da sala de estar, mas à medida que a voz ganhou força, meu controle pareceu enfraquecer e mal consegui chegar à abertura antes de desabar contra a moldura, olhando através do espaço como se eu estivesse vendo o rosto de Agrona em uma projeção, seu rosto zombeteiro e sorridente olhando para mim enquanto ele continuava explicando tudo.
— Não, não, isso não é possível. Eu não vou… não posso! — engasguei, avançando em direção à porta da frente.
Uma forma marrom volumosa apareceu diante de mim e bati na parede peluda, caindo de costas, apenas parcialmente entendendo. A criatura que se assemelhava a um urso soltou um rosnado baixo e perigoso enquanto pairava acima de mim.
— Boo! — Ellie gritou, horrorizada. — O que você está…
— Encontrem Arthur Leywin. Encontrem a Lança que presunçosamente chamam de Godspell e tragam-na para mim. Vivo se puder, mas seu núcleo também será suficiente. Não ousem recusar-me.
— Arthur… — grunhi. Ele sabia, mas como? Como ele poderia ter previsto isso? — Eu tenho que… sair daqui — disse, olhando para os olhos escuros, úmidos e redondos. — Mas não farei isso. Não vou. Eu recuso. Eu prefiro morrer.
— C-Caera? — Ellie gaguejou, pairando acima e atrás de mim. Quase pude sentir suas mãos estendidas em minha direção, congeladas e fora de alcance. — O que está acontecendo?
Com os dentes cerrados, tentei explicar, mas uma onda repentina de dor e poder das minhas runas dividiu as palavras em um grito. Eu me joguei de costas, me contorcendo. Alice agarrou Ellie e puxou-a para longe, Boo rugiu e saltou sobre mim, colocando-se entre os Leywin e o meu corpo.
Meu corpo… mas era meu mesmo? Ou meu sangue Virtra fez dele o corpo de Agrona? Era sequer um corpo agora? Ou ele me transformou em uma arma, uma bomba? E eu tinha me plantado exatamente onde não deveria estar. Eu teria amaldiçoado se pudesse dizer ao menos uma palavra em meio à dor.
Minha mente passou por meu sangue adotivo — minha família — e esperava além da esperança que estivessem bem, mas mesmo esse pensamento foi engolido quando o vento começou a soprar ao meu redor, virando meu corpo e então me levantando e me batendo contra a parede. Patas pesadas me prenderam no chão, os dentes à mostra em meu rosto. Senti uma lâmina de vento cortar uma linha em minha bochecha.
— Corram! — engasguei, esfarrapada e desesperada. — P-por favor, vocês precisam…
Mãos pequenas agarraram as minhas e olhei para ver Ellie ajoelhada ao meu lado, lágrimas escorrendo despercebidas por seu rosto.
— Agrona… ele sabe… procurando por Arthur… usando os Alacryanos que já estão em Dicathen… — gaguejei, lutando para pronunciar cada palavra. — Minhas runas… usando minhas runas…
A presença de Ellie era como um bálsamo refrescante contra minha pele em chamas, mas quando olhei para ela, uma lâmina de vento atingiu seu antebraço. Ela estremeceu e eu tentei me libertar, mas não tive forças.
Fechei os olhos, sentindo as lágrimas escorrendo pelo meu rosto agora. Eu precisava que ela entendesse, precisava que todos corressem.
Não serei eu a razão pela qual Arthur perderá a família, pensei desesperadamente. Não depois do que aconteceu, das coisas que ele disse. Não posso.
Então… Ellie estava lá, não apenas com sua presença física, mas com sua mana, empurrando-a para dentro de mim. Estava alcançando a minha própria mana, acalmando-a e acalmando a tempestade dentro de mim. Aquilo atirou de volta para ela, sua agitação controlada, mas não reprimida. Sua forma mágica era uma peça mágica maravilhosa, mas essa adolescente não conseguia se igualar ao poder do próprio Agrona Vritra e esperar derrotá-lo. Eu sabia muito bem disso.
A forma mágica! Minha mente vacilou, meus pensamentos estavam apenas parcialmente conectados uns aos outros.
Minhas runas Alacryanas estavam engolindo minha mana, ativando e liberando seus feitiços reprimidos contra meu corpo, mas a forma mágica que recebi em Dicathen estava adormecida, à vontade…
Enquanto Ellie lutava para controlar a mana autodestrutiva, abri meu núcleo e empurrei o máximo de mana que pude controlar, inundei a forma mágica e Alice ofegou. Abri os olhos para ver chamas fantasmagóricas dançando pelo meu corpo. Alice recuou mesmo quando a mandíbula de Boo alcançou minha garganta.
— Boo, não! — Ellie gritou e a criatura hesitou.
— Essas… chamas… não vão doer… — engasguei, mas não consegui falar mais do que isso.
Embora tivesse praticado constantemente com a nova forma de feitiço durante semanas, agora as chamas se espalhavam ao meu redor e pelo chão sem direção. A sala desapareceu abaixo delas, então éramos apenas eu, Alice, Ellie e Boo, amontoados em meio a um incêndio sem calor. E… parte da tensão diminuiu com menos mana sendo puxada para minhas outras runas.
O vento puxou meu calcanhar e minha perna dobrou de forma anormal com um som de rasgo e estalo que fez com que a bile subisse até o fundo da minha garganta. As chamas diminuíram e o vento explodiu, jogando Ellie para trás. O resto dos meus ossos rangeram quando Boo pressionou seu peso com mais força, prendendo-me no chão enquanto os ventos fortes tentavam me despedaçar.
Lutei contra a dor, continuei canalizando mana para a nova forma de feitiço, então mãos quentes pressionaram meu rosto e pescoço, um brilho prateado me inundou e magia de cura se derramou através de mim. A agonia em minhas costas e pernas esfriou. Ellie estava lá mais uma vez, sua vontade surgindo contra a maldição se ativando dentro de mim, contra a força das minhas próprias runas tentando me despedaçar.
Mais mana inundou-se como fogo fantasmagórico, queimando tudo. Desesperada e sem opções, ativei a pulseira de prata também, enviando as finas pontas de prata para pairar ao redor de todos nós, imbuindo-as com toda a mana que minha consciência desfocada poderia capturar.
E à medida que meu núcleo se esvaziava, senti os dedos exploradores de mana pura de Ellie se fortalecerem e apertarem. Ela estava assumindo o controle, segurando minha mana enquanto eu a esgotava, tirando desse ataque o combustível necessário.
Minha perna se mexeu e estalou quando voltou ao lugar. Um corte sangrento no meu quadril que não tinha percebido estava selado. Meu núcleo doeu quando esmaguei até a última partícula de minha própria mana nativa.
Com a mesma rapidez com que o ataque começou, ele cessou e meu corpo foi purificado de qualquer mal que o estivesse causando.
Ellie e Alice continuaram trabalhando, garantindo que meu corpo estivesse curado e que o pouco de mana remanescente em minhas veias permanecesse sob controle, então Boo recuou, tirando as patas de mim. Minha clavícula se fundiu novamente e cicatrizou sob o toque de Alice.
Minutos se passaram enquanto estávamos todas deitadas, sem fôlego e encharcadas de suor, antes de Alice quebrar o silêncio.
— Caera, você está bem?
Eu apenas murmurei minha resposta afirmativa, sem ter certeza de quão “bem” eu realmente poderia estar.
Ela engoliu em seco e olhou para Ellie antes de continuar.
— Você… bem, você disse… algo sobre Arthur.
Eu enrijeci de repente quando a voz de Agrona mais uma vez encheu minha mente.
— Eu lhes dei o poder que possuem, então ele é meu. Trabalhem contra mim, seja em ação, palavra ou até mesmo em pensamento, e a magia que foi meu presente para vocês se tornará sua ruína. Esses primeiros poucos corajosos, por servirem de exemplo para vocês, pouparam seu sangue do mesmo destino, mas quaisquer outros que desobedecerem, condenarão suas mães, pais, filhos e filhas a compartilharem seu fim doloroso e horrível.
— Não, por Vritra, não… — Corbett, Lenora, Lauden e os outros. Estavam todos em perigo. Por minha causa.
Lutei para me sentar, mas Alice pressionou a mão no meu ombro.
— Descanse, Caera. Você precisa…
— Vajrakor — grunhi, afastando a mão dela e continuando a lutar para levantar. — Eu tenho que avisar os dragões. Eles devem saber.
Alice piscou surpresa, mas Ellie se levantou e pegou minha mão, colocando-me de pé.
— Eu irei com você.
— Todos nós iremos — disse Alice com firmeza, uma expressão de amor feroz e protetor endurecendo suas feições. Sem esperar permissão ou mesmo compreensão, ela se dirigiu para a porta.
Tropecei atrás dela, Ellie ajudando a me apoiar.
Todo o meu corpo protestou contra o movimento, mas comecei a correr atrás de Alice, através dos corredores labirínticos do Instituto Earthborn, até a cidade de Vildorial e subindo a longa estrada até Lodenhold, o palácio dos anões.
Meu coração afundou quando encontramos os corredores externos cheios de anões sussurrando nervosamente. Ninguém nos parou mesmo quando entramos na sala do trono.
Estava vazio. Os dragões se foram.
Tradução: NERO_SL
Revisão: Crytteck
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