O Começo Depois do Fim

O Começo Depois do Fim – Cap. 443 – A Verdade do Poder

 

POV CECÍLIA

 

Olhei para o espaço onde o portal estava, sua imagem posterior ainda visível contra a escuridão da noite e as favelas abaixo. Minha mente estava em branco, a fúria da batalha lavada pelo choque de seu fim repentino. Até mesmo a dor gritante da ferida do meu lado parecia subjugada, distante enquanto bombeava sangue ao redor da minha mão.

Eu tinha falhado. Grey estava lá, bem antes de mim, mas eu não tinha sido capaz de detê-lo. Eu o deixei escapar…

Simplesmente não conseguia entender isso. Eu era o Legado. Meu controle sobre a mana era tal que eu podia arrastá-la do núcleo de uma asura ainda viva, e ainda assim Grey havia me igualado, me ferido, quase me matou. Se eu não tivesse sentido a distorção na mana onde seu ataque apareceu, talvez ele tivesse. Outra vez.

Embora eu só tivesse sido capaz de atrair uma pequena quantidade de mana do dragão, tinha sido o suficiente para me oferecer uma centelha de insight: Grey aparentemente podia manipular a interação entre éter e mana, usando uma força para se mover e guiar a outra, chegando ao ponto de desviar ou cancelar feitiços de “atributo” mana com seu éter; e através da mana do dragão, vi a possibilidade de fazer o mesmo, só que ao contrário.

As duas forças se empurraram uma contra a outra, e assim qualquer aplicação de mana causou alguma pequena mudança no éter ao seu redor. Eu não tinha entendido isso antes, mal sabia o que era éter, mas estava começando a entender.

Eu estava confiante demais, no entanto. A quantidade de mana e pura vontade mental que havia sido necessária para mal mover a arma conjurada de Grey, mesmo pegando-o de surpresa, havia sido cataclísmica. Rangendo os dentes, não pude deixar de sentir que tinha desperdiçado a oportunidade. Da próxima vez que o enfrentasse — e não tinha dúvidas de que haveria uma próxima vez — ele estaria pronto para isso.

No mínimo, parecia claro que Agrona estava errado ao ver o núcleo de Grey como uma mera curiosidade. Isso, ou ele estava escondendo o quanto o controle de Grey sobre o éter impactou seus planos. Eu não tenho certeza do que ele entendia ou não. Uma pequena parte de mim desejava ser inteligente o suficiente para dissecar a situação e sair com uma compreensão melhor do que Agrona poderia ganhar de Grey, Nico e eu, mas esse tipo de pensamento estratégico nunca tinha sido meu forte.

O vento forte do feitiço voador de Nico fez com que meu cabelo soprasse ao redor do meu rosto enquanto ele me alcançava. Meus olhar travou no dele, mas rapidamente o afastei, incapaz de suportá-lo.

Ele estava pálido, com o rosto ensanguentado e surrado, o núcleo exausto, lutando até mesmo para manter o foco através do cajado que lhe permitia canalizar seus feitiços. Mesmo voando, ele favoreceu seu lado esquerdo, onde Grey o atingiu. Ele estava com pouco mais do que ossos quebrados e sangue acumulado, mantido pela pele machucada.

A culpa enrolada do meu estômago subiu para enrolar-se como videiras em torno do meu coração. Deveria tê-lo ouvido? Fiquei imaginando, já começando a adivinhar cada palavra e ação. Poderia Grey realmente nos ajudar… fazendo o que Nico temia que nem Agrona conseguisse? Não deixei o pensamento criar raízes, rasguei-o e joguei-o de lado. A batalha deixou claro que esta já não era mais uma opção.

Havia um olhar assombrado nos olhos de Nico enquanto me inspecionava, a incerteza brilhando como lágrimas prestes a cair, como se ele não pudesse ter certeza se eu estava realmente lá ou se ele poderia acordar e eu tivesse ido embora.

Eu já tinha me acostumado com o Nico duro e cheio de raiva deste mundo, aquele que tinha ido à guerra por Agrona, que tinha matado para me trazer a este mundo. Ele me assustou no início, quando eu estava recém-acordada do vazio da morte, mas não demorei muito para entender a necessidade de sua raiva, sua escuridão. O que Agrona exigia de nós, para reconquistar as vidas que o destino roubou, não poderia ser realizado pelos órfãos sofridos que éramos na Terra.

Agora, vendo o olhar indefeso em seu rosto ensanguentado, não pude deixar de ver aquele menino, o jovem sensível, mas inteligente, pelo qual eu relutantemente me apaixonei.

Mas, pensar naquele Nico só me lembrou da garotinha fraca e assustada que eu tinha sido. Quando criança, os anos gastos tolamente esperando que pudesse ter meu ki sob controle, então, todo aquele tempo trancada, servindo de cobaia, apanhando no  treinamento todos os dias até que eu só pudesse pensar em uma forma de escapar, a morte. Abri a boca e me preparei para gritar, mas a frustração e a dor se alojaram em minha garganta, e apenas o silêncio irradiou de mim.

Depois, todo o resto voltou correndo. O medo, a culpa, a raiva, a incerteza, a esperança… mas a dor me dominou. Por um momento, lembrei-me de como tinha sido morrer.

Forçando a memória, pressionei as duas mãos no corte e o inundei de mana de atributo água, desejando que se curasse. Porém, embora pudesse acalmar uma febre ou a dor causada por longas horas de treinamento, não era curandeira.

— Cecil, sua ferida… — Nico disse, mas se interrompeu imediatamente quando acenei para longe o que ele estava prestes a dizer.

Focando na mana de fogo, queimei o corte fechado, cauterizando-o e interrompendo a perda de sangue. Isso não me mataria antes que pudesse alcançar Taegrin Caelum e os curandeiros de lá, então coloquei a ferida e a dor fora da minha mente.

Nico limpou a garganta.

— Guardas e soldados já estavam reunidos do lado de fora do palácio antes de partirmos. Voltarei e informarei o que aconteceu. E… Preciso encontrar Draneeve, ver se ele ainda está…

Eu zombei.

— Você está preocupado com aquela criaturinha despedaçada em um momento como esse? Pelos chifres do Vritra, Nico, temos coisas mais importantes para… para… — Cambaleei atrás enquanto absorvia a expressão dele.

O nariz de Nico estava enrugado, suas sobrancelhas vincadas em um franzir da testa e seu lábio enrolado em um escárnio incrédulo.

— Fiz uma promessa para ele, Cecília. Ele nos ajudou, te ajudou! — Desta vez, ele se interrompeu. Olhando para longe, ele se arrastou em um longo e fortalecedor puxar de ar. Quando olhou para mim, ficou mais calmo. — Eu o tratei terrivelmente. Durante anos. Entendo como você o vê, como vê todos os outros, porque eu costumava ser igual. É por isso que quero ajudá-la a escapar desta vida.

O peso de suas palavras quase me tirou do ar. Senti minhas bochechas avermelhadas de vergonha por seu sermão.

— Sinto muito, Nico. Por não contar o que eu tinha lembrado antes. Eu…

Ele soltou um fôlego ofegante, em algum lugar entre uma risada e um escárnio.

— Por favor, não me peça desculpas. Não é… é… — Ele se afastou. Quando a umidade em seus olhos finalmente começou a cair por suas bochechas sujas e ensanguentadas como lágrimas, ele se afastou e começou a flutuar lentamente de volta em direção ao palácio demolido do soberano Exeges.

O Soberano…

Balançando os punhos, o segui. Quase me esqueci do Soberano! Parecia inacreditável — impossível — que Grey fosse poderoso o suficiente para derrotar um soberano basilisco de sangue puro e toda a sua guarda pessoal, e depois ainda ter a potência de lutar comigo até um impasse, mesmo com dois jovens asuras ao seu lado.

Agrona precisava saber o que tinha acontecido imediatamente. Um soberano tinha sido assassinado, uma foice morta e nosso alvo tinha escapado…

Não era uma conversa que eu estava ansiosa.

Você deveria ter ouvido Nico! — A voz de Tessia soou repentinamente em meus pensamentos.

Estava esperando ela intervir, na verdade, só fiquei surpresa que ela esperou tanto tempo.

Você deveria ter me ouvido. Poderíamos estar em segurança em Dicathen agora, longe de Agrona e suas ambições. Arthur poderia nos ajudar, tenho certeza disso.

O vento soprado pelo meu voo levou meu bufar em resposta para longe. Como se eu pudesse confiar nele para fazer isso. Mesmo que Grey não se propusesse a me matar, ele ainda abandonou Nico e eu pela sua fome de se tornar rei. Ele é obstinado, tem sido desde criança. Parece que ele quer tanto me ver morta que está disposto a te matar comigo caso seja necessário.

Ele se defendeu — rebateu Tessia, friamente, sua consciência se contorcendo sob minha pele como um parasita. — Mais uma vez, você é a agressora colocando-o com o pé atrás enquanto a história se repete. — Sua voz ficou em silêncio enquanto uma pausa tensa pairava entre nós, então: — Você é realmente tão covarde que vai forçá-lo a matá-la duas vezes para escapar de suas vidas? Colocaria esse fardo nele de novo, uma pessoa que você já considerou seu melhor amigo… alguém que você costumava até mesmo… amar?

Uma risada amarga estourou de meus lábios apenas para derreter no ar noturno enquanto nos aproximávamos do palácio em ruínas.

Amor… até parece. Eu era uma criança com uma queda pela primeira pessoa que tinha sido gentil comigo. Além disso, Grey nunca foi assim… romântico… e ele desistiu de mim no segundo em que demonstrei interesse por ele. Desistiu de mim e Nico. Nico, porém, nunca desistiu. Por isso… É por isso que…

Engoli com força. Se você odeia Nico e eu tanto assim, por que me ajudar a defendê-lo? Perguntei, pensando nas videiras esmeraldas que haviam irrompido de mim para pegar o braço de Grey e impedi-lo de tomar a cabeça de Nico. Você liberou o poder do Guardião Elderwood para mim, apenas por um momento. Você tem tanta certeza de que Grey pode e que nos ajudaria, e ainda assim você sabe tão bem quanto eu que ele estava pronto para matar nós duas se tivesse sido capaz.

Tessia não respondeu imediatamente. Seu espírito era espinhoso, como o início de uma dor de cabeça.

Zombando, continuei. Embora eu não pudesse mais bloqueá-la completamente, poderia enredar sua vontade em uma luta contra a minha, forçando seu silêncio. Não estou pronta para morrer e nem vou. Antes eu achei que só tinha uma saída, e talvez naquele mundo fosse verdade. Aqui, porém…

Segui Nico até os escombros fumegantes, casualmente conjurando uma brisa forte para limpar o ar.

Aqui, eu tenho o poder de mudar o resultado da minha vida. Posso ser a arma de Agrona, mas só porque ele é a minha melhor chance de conseguir o que quero. Quando terminar com este mundo, voltarei à Terra. Não como o Legado, mas como Cecília, e viverei uma vida tranquila e amorosa com Nico. Eu vou…

Mesmo quando imaginei, minha mente tropeçou no pensamento. Desde que Agrona tinha prometido fazê-lo, eu só tinha aceitado como sendo o que eu queria. Nunca tinha pedido para ser o Legado, apenas para ter uma vida, mas será que a casa aconchegante longe das cidades, da política e da guerra da Terra, realmente me daria isso? Eu poderia sacrificar o poder que tinha agora pela vida que tinha perdido…?

Dar a alguém esse presente apenas para arrebatá-lo? Era um destino pior que a morte.

Não tinham sido esses os meus próprios pensamentos, vendo a ferida de Nico? Era realmente o desejo mais querido do meu coração desistir de tudo o que tinha ganho deste mundo e… da mana?

Tessia recuou mais fundo dentro de mim, não me empurrando mais, e quase desejei que ela o fizesse. Com quem mais eu poderia falar, senão a voz na minha própria cabeça…

Recuei do concurso de vontades, não tentando mais mantê-la calada, mas ela estava mesmo assim.

Nico estava deixando de lado os escombros onde eu podia sentir a tênue assinatura da mana de Draneeve. Gritos vinham da frente do palácio.

— Vou lidar com os soldados — disse baixinho, mordendo o lábio. Quando ele não respondeu, o deixei e voei pelo hall de entrada parcialmente desabado.

Uma centena ou mais de magos já estavam reunidos ali, embora não tivessem invadido os terrenos do palácio.

Um homem mais velho, de armadura pesada e ostentando um bigode longo e caído, avançou.

— Legado — chamou ele, ajoelhando-se em um arco. Atrás dele, toda a força de soldados fez o mesmo. Ele segurou o arco por um tempo respeitável, depois olhou para mim pedindo permissão para ficar de pé.

Eu concedi com um aceno.

— O Soberano foi assassinado — expliquei, minha voz obscurecida com mana de atributo vento para que só ele pudesse entender as palavras. — Nenhum sobrevivente permanece no palácio, mas é preciso colocar magos para começar a apagar as chamas para que não se espalhem. E preparem um comunicado para a cidade a fim de explicar a destruição, mas não anunciem o acontecido com Exeges. Você receberá mais instruções em breve.

O rosto do homem tinha ficado frouxo enquanto me olhava, incompreensivo.

— Envie alguém para preparar o portal de teletransporte mais próximo para nos levar a Taegrin Caelum imediatamente — adicionei antes de me afastar.

Voando de volta através da fumaça e dos escombros, encontrei Nico debruçado sobre Draneeve, que havia sido descoberto e agora estava apoiado contra a base de uma parede demolida, com a cabeça balançando em inconsciência. Fiquei surpresa com o quão normal ele parecia.

— Ele vai sobreviver? — perguntei, tentando soar preocupada, mas não sentindo que consegui.

— Acho que sim — respondeu Nico. — Mas o crânio dele está fraturado e há muito inchaço. Preciso levá-lo a um curandeiro, mas…

— Não em Taegrin Caelum — preenchi quando ele hesitou, entendendo. — Vou dizer a Agrona que ele está morto.

A mandíbula de Nico trabalhou silenciosamente por alguns segundos antes de finalmente falar.

— Tenha cuidado. Não minta para ele se puder evitar. Depois de cuidar de Draneeve, vou trabalhar com as forças da cidade para lidar com as coisas por aqui, depois vou até você.

Acenei com a cabeça, mas ele não estava olhando na minha direção. Estendendo a mão, quase coloquei a mão no ombro dele, mas parei por pouco. Corpo amaldiçoado, pensei amargamente antes de me afastar.

Quando cheguei ao complexo onde fica o portal de teletransporte, ele estava sintonizado com Taegrin Caelum, como eu havia pedido. Os guardas me deixaram passar sem preâmbulo e me vi no fundo da fortaleza de Agrona. Pelo burburinho e agitação, ficou claro que todos estavam cientes do que havia acontecido e, por isso, estavam em alerta máximo, mas também detectei uma certa confusão na resposta. Embora tenha recebido as habituais curvaturas e cumprimentos em minha aparição, esperava que uma mensagem ou ordens de Agrona estivessem me esperando nas câmaras de teletransporte, mas ninguém se aproximou de mim.

Na verdade, havia uma nítida ponta de medo na maneira como os assistentes e soldados me observavam andar pela câmara, a maioria evitava meu olhar, enquanto outros me devoravam visualmente, respirando como se estivessem esperando que eu lhes desse ordens.

Fiquei cada vez mais tensa à medida que subia pela fortaleza e ninguém me impedia. Foi só quando comecei a subir as escadas que se abriam para o corredor que liga à ala privada de Agrona que comecei a entender. Acima de mim, alguém gritava a plenos pulmões, sua raiva sacudindo as próprias pedras.

Antes que pudesse abrir a pesada porta de ferro, ela foi arrancada de suas dobradiças bem na minha frente. Bateu contra a parede oposta e explodiu em uma teia de aranha de madeira quebrada e metal retorcido.

O corredor anteriormente ornamentado estava em ruínas.

Os objetos que decoravam as paredes foram arremessados, os móveis esmagados, os tapetes grossos esfarrapados e queimados. Um chifre de dragão perfurou a parede. Penas vermelhas e alaranjadas, agora enegrecidas pelas chamas, haviam sido lançadas por todos os lados, manchando o chão como várias manchas de sangue.

No meio desses destroços estava Melzri.

Ela estava de costas para mim. Enquanto eu observava, ela soltou um uivo e enviou meias-luas de fogo preto em uma barreira que a impedia de progredir mais pelo corredor. As chamas estouraram contra a barreira, mas quase não fizeram a mana arrepiar em resposta.

Ela girou de repente, seus olhos esvoaçando, dentes desnudos, mana fervendo em feitiços ao redor de suas mãos.

— Você! — gritou. Ela apontou para mim, a mana se contorcendo em seu punho. — Sua puta inútil, você deveria…

Acenei com a mão na minha frente como se estivesse afastando uma teia de aranha.

Seus feitiços piscaram. Seus olhos esbugalharam ainda mais de alguma forma, sua boca abrindo e fechando como um peixe se afogando.

— Onde está a Agrona? — perguntei, olhando para a barreira.

— Ele… Ele não vai… — Ela hesitou, esvaziando-se. — Ele não veio me ver. Eu. Viessa…. morta…. mas ele nem veio me ver!

— Ele está aqui? — perguntei, ainda sem atender ao olhar dela. Havia algo tão desconfortável em ver um olhar de foice tão patético que não queria reconhecê-la. — Agrona. Ele está aqui?

Rosnando, ela girou e atacou a barreira novamente.

— Como diabos eu deveria saber?! Se estiver, não mostrou a maldita cara. — Engolindo uma respiração ofegante, ela gritou: “Covarde!” a plenos pulmões.

Sua voz ralou em meus nervos, me fazendo arrepiar. Quase sem querer, varri toda a mana ao seu redor, arrastando-a até mesmo a de seu corpo.

Ela tropeçou como se tivesse sido atingida, olhou por cima do ombro para mim confusa e depois caiu no chão, inconsciente.

Eu me senti um pouco mal, sabendo que a reação que ela sentiu quando acordou seria realmente horrível. Mas, ao mesmo tempo, esperava estar a ajudando. Até mesmo salvando-a de si mesma. Se ela se encontrasse com Agrona em seu estado atual, a conversa não iria bem. Melhor ela dormir com o pior de sua dor. Eu espero.

A barreira que impedia sua passagem abriu-se como uma cortina diante de mim e fechou-se com a mesma facilidade atrás. Passei pelas portas mais além, depois para a ala particular de Agrona.

Eu tinha visto apenas parte deste lado de Taegrin Caelum. Agrona me deixava ir e vir como desejasse em certos momentos, mas me alertou contra explorar muito profundamente seu espaço. “Era perigoso”, foi o que ele havia me dito quando estava apenas chegando a um acordo com minha reencarnação, e esperava-se que eu me restringisse a procurá-lo diretamente se entrasse nessa ala.

Estendendo meus sentidos para fora, procurei sua assinatura de mana.

Muitas fontes de mana brilharam por toda a fortaleza, algumas delas de asuras, tinha certeza, mas Agrona não estava entre elas.

Nunca o vi estar ausente de Taegrin Caelum. Certa de que ele estava mais fundo em sua ala, sua assinatura de mana envolta por algo seu ou algum aspecto da barreira que ele havia enrolado em torno de toda a ala, continuei em frente.

Cada quarto por onde passei foi mobiliado e decorado com os despojos de seus séculos de liderança. Ele gostava particularmente das partes do corpo de outras raças asuranas, como os chifres e a asa que, antes da birra de Melzri, adornavam o hall de entrada. Contudo, parecia colecionar uma grande variedade de retratos e tapeçarias também, cobrindo as paredes com dezenas delas.

Ao explorar mais fundo sua ala, chegando a salas que nunca tinha visto antes, percebi que havia uma espécie de história sendo contada. Uma descida. Da luz às trevas. Era, pensei, uma metáfora para a fuga de Agrona de Epheotus, contada em retratos e cenários. Reconhecer isso me fez… triste, e por um tempo esqueci o que estava fazendo lá.

Uma escada estranhamente posicionada me chamou a atenção. Embora o nível superior continuasse, essa escadaria, que interrompia uma sala de jantar ornamentada, chamava tanta atenção para si que me senti compelida a descer, assim como a história que as decorações estavam contando.

A finura do andar superior foi deixada para trás, entrei em corredores estreitos de pedra fria. O túnel virava e curvava-se novamente, cruzando com uma dúzia de outros túneis como um labirinto. As portas estavam fechadas em distâncias estranhas e em locais incomuns; quando pensei em verificar atrás de uma, encontrei uma pequena sala com uma única esfera de vidro descansando dentro de um pequeno entalhe no topo de um pequeno pedestal.

Toquei no vidro frio, mas não houve reação, então saí da sala e fechei a porta atrás de mim.

Ignorando as portas ao lado, tentei outra ao acaso. A sala além estava vazia, exceto por uma grade redonda no chão, através da qual corria um fluxo constante de água. A água parecia estar vindo das próprias paredes, escorrendo para fora da pedra.

Quando me vi no fim de um túnel ramificado, abri a porta para espiar dentro e peguei fôlego.

Esgueirando-me para dentro, fechei a porta atrás de mim, depois olhei para o objeto que ocupava a maior parte da sala estéril. Era uma mesa, talvez com dois metros de comprimento e um de largura. Como antes, olhar para ela me encheu de uma sensação de erro, como se insetos invisíveis estivessem rastejando até meus braços e pernas. Hesitando, passei os dedos pelas runas ranhuradas, tão indecifrável quanto da última vez que as vi.

A mesa em que tinha acordado depois da minha Integração.

O que será que as runas significam…? — pensou Tessia, ressurgindo de repente. — Decifre-as e você saberá o que Agrona estava realmente tentando fazer quando você acordou.

Um súbito raio de medo me atingiu, acelerando meu pulso. Soube naquele instante que tinha ido longe demais. O que quer que essa mesa representasse, o que quer que essas runas fizessem, Agrona ficaria furioso se soubesse que eu a havia encontrado. Mesmo que ele não me punisse, teria a mesa realocada ou até mesmo destruída, tinha certeza. Se ele fizesse isso, eu não seria capaz de mostrar a Nico as runas em sua forma completa. Nico não tinha chegado longe com o traço de mana que eu tinha pego da última vez, mas se visse todo o sistema de runas, talvez…

Saí correndo da sala, certificando-me de que a porta estava fechada e me movi rapidamente por outro corredor, depois por outro, colocando distância entre mim e o artefato gravado em runas.

Devagar, você vai esquecer onde você está.

Tão de repente que quase gritei, girei para um canto e me vi cara a cara com uma jovem encapuzada. Ela se afastou de mim com tanta força que o objeto em suas mãos, uma placa redonda de cristal que emitia luz multicolorida, caiu de seu aperto e bateu no chão com um barulho nauseante.

Vento, calor e luz encheram o corredor. A moça gritou, a luz a dissolvendo diante dos meus olhos.

Quando o barulho desapareceu e a luz diminuiu, ela desapareceu completamente, e o artefato que ela carregava nada mais era do que cacos de cristal quebrados no chão.

— Bem, isso é uma pena.

Girei ao ouvir a voz, meu coração batendo na garganta.

— Curioso como tantas dessas antigas relíquias djinn são tão perigosas, não é? Apenas pensando alto. — Agrona subiu ao meu lado, olhando para a relíquia arruinada. — Ah bem. Vou chamar alguém para limpar essa bagunça. Ah, não fique tão perturbada — acrescentou, aproveitando a minha aparência.

Minha mandíbula estava pendurada como se tivesse sido deslocada, e podia sentir o sangue correndo do meu rosto.

— Eles vão ficar felizes em não ter que raspar as entranhas dela das paredes, sabe? Uma boa desintegração limpa, nem mesmo poeira deixada para trás. Uma façanha incrível, de fato. — Agrona ofereceu seu braço e eu o peguei, minha mente entorpecida e os lábios tremendo. — Ou talvez não tenha sido a morte repentina daquela jovem, e bastante talentosa, posso acrescentar, imbuidora que a deixou tão aborrecida?! Bem, vá em frente, então. Imagino que você não mergulhou no meu santuário particular por um capricho, Cecil querida.

Proteja seus pensamentos! — Tessia gritou na minha cabeça, enchendo todos os cantos da minha mente.

Quando silenciei Melzri e ultrapassei a barreira acima, estive no controle de minha turbulência interior, pronta para enfrentar Agrona. Agora, eu me sentia dispersa e mal preparada, a intrusão de Tessia não estava ajudando, mas sabia que tinha que manter meus pensamentos em ordem, ou ele me leria como um livro infantil.

Respirando fundo, deixei de lado todos os pensamentos sobre a mesa gravada em runas, a relíquia quebrada, a morte repentina da jovem e até mesmo Tessia Eralith.

— Encontrei Grey. Ele assassinou o soberano Exeges. Lutamos e… a Foice Viessa e Draneeve não estão mais entre nós. — Parei, puxando meu braço livre do de Agrona, e me curvei profundamente, lutando para manter a calma. — Perdoe-me, Alto Soberano. Grey escapou.

Esperei uma resposta, mas nenhuma veio. Eventualmente, olhei para cima através dos cabelos grisalhos prateados que haviam caído sobre meu rosto. Agrona me observava calmamente, as sobrancelhas levemente levantadas, a pitada de um sorriso irônico nos lábios.

— Ah, aquele Arthur, estou certo? — Mordendo o lábio, ele estendeu o braço novamente, e eu peguei. — Como um ovo ruim flutuando para o topo da panela, ele simplesmente se recusa a ser mantido para baixo, não é?

Olhei para Agrona, totalmente incapaz de ler seu humor. Externamente, ele parecia quase… atordoado? Entretanto, não poderia confiar em suas emoções externas.

Rindo do olhar em meu rosto, ele deu uma pequena sacudida de cabeça, colocando os enfeites em seus chifres para tilintar.

— Permita-me deixá-la a par de um pequeno segredo — disse ele, sorrindo timidamente. — Arthur Leywin, ou Grey, está fazendo exatamente o que queremos que ele faça.

— O quê? — perguntei, incapaz de impedir de me engasgar com a palavra. — Mas você ordenou…

— Aço bom é forjado em fogo quente, não é? — interrompeu, balançando as sobrancelhas para cima e para baixo. — Você é uma ferramenta, ele é uma ferramenta. As ferramentas precisam ser afiadas, temperadas, graciosas; no caso de Nico, a ferramenta precisava ser quebrada e reforjada completamente.

Engoli  em seco. Era assim que Agrona operava. Leviandade, mudanças repentinas de traços extremos de personalidade, imprecisão… ele sempre soube te fazer baixar a guarda. E agora, estava me tratando como uma oponente.

— Nico quase morreu. Eu quase morri — retruquei, parando para apontar para a ferida em meu lado, sangue encharcando minhas roupas. — Se você realmente está nos… temperando ou o que quer que seja, o que está fazendo para garantir que não nos quebremos?

Agrona parecia totalmente despreocupado enquanto olhava para o sangue que manchava metade do meu tronco.

— Cecília, você concorda que as batalhas são vencidas pela força?

Senti a armadilha no tom dele, mas não consegui prever.

— E as guerras são vencidas pela aplicação estratégica dessa força — disse. — Sim.

— Não exatamente. A batalha não consiste apenas em níveis de poder. Se fosse o caso, Kezess, com seu número e recursos muito maiores, teria me assassinado com sucesso há muito tempo. — Agrona começou a andar novamente, e não tive outra opção a não ser segui-lo. — Independentemente de você estar estudando menores ou asuras, há uma verdade universal em um conflito violento. Os fatores que cercam uma batalha, as emoções, a interação de relacionamentos, a encruzilhada entre expectativa e esforço, são tão importantes para o resultado quanto a força dos combatentes.

— Embora o jogo Disputa de Soberanos possa ter uma combinação quase infinita de movimentos, você limita o alcance da criatividade do oponente não por mudar seu jogo, mas mudando seus oponentes. Por exemplo, eu estava ciente de que Arthur deixou Dicathen com uma fênix menor a tiracolo. Não haveria razão para fazê-lo, a menos que ele pretendesse trazer esse menor para a batalha com ele. Dragoth teria sido um páreo ruim para tal guerreiro, então eu o mantive onde está, batendo seu crânio grosso e com chifres contra os escudos de Seris.

— Os poderes de Viessa… — comecei em voz alta, depois me interrompi.

Agrona assentiu animadamente, como se eu fosse uma criança dando meus primeiros passos.

— É uma pena que tenha morrido, é claro, mas ela serviu ao seu propósito. O impacto do menor na batalha foi reduzido e até se transformou em um trunfo, atrapalhando a capacidade de Arthur de se concentrar em você e forçando-o a proteger seus companheiros enquanto você não estava tão prejudicada.

Senti um frio escorrer pela minha espinha. Eu não tinha contado nada disso para ele; ele leu isso nos meus pensamentos.

Agrona ficou em silêncio por um momento, seus olhos rastreando toda a extensão do meu corpo.

— Afinal, parece que você foi capaz de absorver um pouco da mana de seu vínculo dragão, mesmo que apenas um toque.

Era muito para absorver enquanto também lutava para manter meus pensamentos alinhados. Apertando meus olhos com força, até que manchas brancas estourassem atrás deles, foquei em minha respiração. Só depois de abrir os olhos novamente é que me senti confiante o suficiente para falar.

— Então, o que é que você… nós… queremos que Grey esteja fazendo?

Fazendo uma pausa, ele pressionou um dedo em seus lábios e olhou para cima como se estivesse pensando.

— Nunca conheci outro que pudesse manipular o éter da maneira que ele pode. Os djinn sabiam mais, com certeza, poderiam trabalhar de uma maneira que parecesse… bem, mágica — disse ele com uma risada afiada. — Mas eles trabalhavam com isso. Era uma ferramenta para eles, tijolos na parede. Você acha que o Arthur sobreviveu tanto tempo porque ele é… o que… mais poderoso do que eu? Mais inteligente do que eu? Mais bem preparado do que eu? Oh, Cecil querida…

Ele se entregou a um ataque de riso suave, seu corpo tremendo ao lado do meu enquanto caminhávamos pelo corredor estreito.

— Admito, quando Nico e Cadell o encurralaram e alegaram que Tessia Eralith era seu receptáculo, eu o havia descartado, pensando-o morto e não tendo mais utilidade para ele. Mas, depois do Victoriad…

Balancei a cabeça, incapaz de decidir se Agrona estava dizendo a verdade ou simplesmente encobrindo seus erros.

— Mas as Assombrações… — Ele deu de ombros, o movimento acelerou meu batimento cardíaco. — Um crisol. O calor necessário apareceu, por assim dizer. Um grupo inteiro de Assombrações foi o suficiente para ser decisivo. Ou o matavam, ou ele revelava sua força. Se estivermos sendo honestos, eu teria ficado bastante decepcionado se fosse o primeiro.

Mas você me colocou a tarefa de encontrá-lo, matá-lo. Você sabia…

Como se estivesse lendo minha mente, coloquei minha mandíbula e endureci minha vontade contra a possibilidade, Agrona me deu um olhar preocupado e paternal e disse:

— Você e Grey precisam um do outro agora, Cecilia. Você é o martelo e ele a bigorna. É onde vocês se encontram que a verdade sobre o poder neste mundo será revelada.

 


 

Tradução: NERO_SL

Revisão: Crytteck

 

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