O Começo Depois do Fim

O Começo Depois do Fim – Cap. 422 – Através dos olhos do Djinn

 

Luz e cor sangraram pela tela em branco em tons de verde, azul e roxo. Meus arredores corriam como aquarelas, fundindo-se em um diorama de vitrais antes de finalmente perceber formas reconhecíveis. Encontrei-me sentado em uma almofada macia feita de um material marinho profundo. À minha frente havia uma pequena escrivaninha de madeira, habilmente trabalhada para destacar o grão rodopiante de qualquer árvore alienígena da qual foi trabalhada.

Algumas dezenas de assentos e mesas semelhantes estavam dispostos em fileiras organizadas sob um pagode ao ar livre, esculpido em pedra branca macia e ladrilhado com um material ciano iridescente que não reconheci. Um riacho límpido corria por um canal raso no meio do piso, separando a área dos assentos em duas metades.

Na beira do pagode, o riacho se juntava a um corpo maior de água ao cair da beira de um penhasco. De pé, fui até a borda para olhar para baixo. O borrifo da cachoeira obscurecia levemente uma cidade extensa que se espalhava da base dos penhascos. Quando tentei me concentrar na cidade, porém, a névoa pareceu mudar e girar, impedindo-me de me concentrar nela.

— Uma ilusão.

Sussurrei. A voz que saiu não era a minha.

Olhando para baixo, percebi que a pele dos meus braços era rosa claro. Formas de feitiço cobriam grande parte da minha pele exposta. Mas, mais do que isso, eu era pequeno, uma criança, talvez o equivalente a oito ou nove anos de idade em um contexto humano.

— Muito bem.

Alguém disse atrás de mim.

Girando, percebi que era o djinn remanescente. Seu cabelo estava alguns centímetros mais curto e possuía mais volume, mas fora isso era o mesmo. Ele estava de pé sobre um estrado elevado cerca de dez centímetros acima do chão, sob o qual o riacho borbulhava.

— Por favor sente-se.

Ele apontou para a almofada que eu ocupava quando a provação começou. Sem palavras, fiz o que pediu. Algo mudou em sua postura e expressão, mas era difícil de ler.

— Você está aqui hoje para testar sua aptidão e conhecimento, aluno, para que possamos julgar melhor o futuro de seu aprendizado individual. Primeiro, explique o que você sabe sobre a relação entre mana e éter, se puder.

Olhei ao redor, incerto, antes de focar no djinn.

— Sério? Esta é a provação?

A sombra de uma carranca cruzou seu rosto, mas passou em um instante, ele me deu um sorriso tranquilizador.

— Pode parecer elementar, mas é meu trabalho de vida obter uma compreensão completa dos conhecimentos e talentos de meus alunos, para que possam atingir seu potencial em seu próprio trabalho de vida.

— Eu preferia as provações de luta…

Murmurei baixinho. Mais alto, disse:

— Mana e éter são simultaneamente forças opostas e colaborativas. Embora tenham propriedades definidoras únicas, eles se pressionam constantemente, moldando-se mutuamente. A metáfora que me ensinaram usava água e um copo. Na realidade, se a mana é como a água, então o éter seria um odre, porque ambos são mutáveis com a força apropriada exercida pelo oposto, mas não acho que essa metáfora também se sustente.

Fiz uma pausa, pensando.

— Não, uma comparação mais apropriada descreveria o éter como uma flecha e a mana como o vento.

— Sua compreensão é rudimentar. Superficial.

O djinn respondeu imediatamente, mas não havia desaprovação em seu tom monótono.

— Você vê o éter como uma ferramenta e um material, uma coisa a ser manejada e utilizada. Seus pensamentos estão confusos pela violência de suas experiências passadas. Essa explicação mecânica de como as forças gêmeas de mana e éter interagem é precisa em um nível superficial, mas você não entende o que as separa.

Meus dedos tamborilaram na superfície da minha mesa enquanto tentava suprimir uma pontada de irritação.

— Você pode corrigir meus erros, então?

A cabeça do djinn virou ligeiramente para o lado.

— Mas você não cometeu nenhum erro.

Meu joelho começou a tremer por vontade própria.

— Mas você acabou de dizer…

— Eu expressei observações. Verdades, não julgamentos.

O djinn disse com um ar de diplomacia acadêmica.

— Meu propósito é ajudá-lo a direcionar seus esforços no futuro. Seu caminho é fluido, não determinístico. Próxima pergunta: considerando apenas a força e a magia atualmente à sua disposição, como você poderia participar do progresso de nossa nação?

Eu encarei o djinn.

— Sua nação? Mas…

Algo se encaixou no lugar. A mudança em seu comportamento, a ausência de contexto atual em suas perguntas e respostas… Essa conversa estava ocorrendo como se eu realmente fosse uma criança djinn vivendo antes do genocídio de seu povo. Ele não estava realmente se dirigindo a mim como Arthur Leywin, mas repetindo o que deve ter sido uma troca frequentemente repetida com crianças reais de muito tempo atrás. O que quer que fosse esse teste, também era um olhar direto para o coração do povo djinn antes de seu extermínio.

Decidi ser franco.

— Em vez de construir uma enciclopédia, eu construiria muralhas. Com base no que vi nas Relictombs, não entendo por que você não transplantou suas cidades inteiras para o reino etéreo. Vocês poderiam ter se protegido.

O djinn assentiu.

— Violência, novamente. Você…

O djinn vacilou, tropeçando um passo. Uma mão pressionada ao lado de sua cabeça enquanto se acomodava no estrado.

Comecei a me levantar, mas congelei. Isso fazia parte da provação? Ou quebrei algum parâmetro ou interrompi os pensamentos do remanescente por não entrar no jogo?

— Você está bem?

Perguntei depois de um momento, voltando para o meu lugar.

A bela cena do penhasco se desvaneceu, as cores correndo e escurecendo como cera. Tive que fechar os olhos contra a vertigem da mudança repentina. Quando os abri novamente, alguns segundos depois, ainda estava sentado, mas tudo havia mudado.

Filas de bancos de madeira escura davam para um pódio elevado, atrás do qual sentavam-se três djinn encapuzados. O interior do prédio era iluminado por altas janelas em arco que revestiam as paredes à minha esquerda e à direita. Através deles, pude ver os penhascos ao longe e, no topo de uma cascata fina, o pagode com telhado ciano.

Criaturas semelhantes a pássaros esvoaçavam entre as vigas acima, chilreando alegremente, mas a luz e a alegria dos arredores não se estendiam aos muitos djinn presentes.

Pisquei várias vezes tentando olhar para a multidão, mas além de uma vaga impressão de desconforto, ou talvez desapontamento, não conseguia me concentrar em suas feições. Exceto pelos três atrás do pódio, apenas o remanescente, que estava parado no fundo da sala, estava livre.

Um dos djinn presidentes limpou a garganta e uma forma de feitiço começou a brilhar em seu pescoço. Quando falavam, suas vozes eram magicamente amplificadas, enchendo a sala sem volume, como se estivessem bem ao meu lado.

— É uma ocasião rara e triste quando há a necessidade de convocar este conselho, o Corpo Jurídico da Cidade Justa de Zhoroa. Hoje, abordamos os crimes do réu: abandono de seu trabalho vitalício e corrupção do éter para criar instrumentos de hostilidade. Como é tradição, primeiro permitiremos que o réu explique suas ações.

Juízes, percebi, relembrando minha experiência no Salão Principal. Este é um tribunal.

Todos os olhos se voltaram para mim. Impressionado com a transição repentina para esta nova cena, lutei para formar uma resposta.

Um djinn vestido de índigo parado ao meu lado descansou a mão no meu ombro e me deu um sorriso encorajador.

— Apenas fale a verdade. Lembre-se, todos aqui estão ansiosos para entender.

— Mas talvez eu não saiba.

Disse lentamente, tentando entender as acusações do juiz, de crimes que eu nem existia para cometer. No entanto, este julgamento dentro da provação era claramente proposital e minha resposta não era apenas esperada, mas seria medida por alguma métrica que eu desconhecia.

— Essas acusações são mesmo crimes? O que me mantém acorrentado ao mesmo trabalho… trabalho vitalício… para sempre? Não posso mudar de ideia?

Os três juízes assentiram sob seus capuzes e então a figura central falou novamente.

— Esta é a única resposta do réu?

— O trabalho de uma vida não pode ser abandonado, apenas ter seu curso mudado.

Disse, recuperando o equilíbrio enquanto tentava entender o propósito do julgamento.

— E quanto ao meu uso do éter como um “instrumento de hostilidade”, não faço nenhuma defesa ou desculpas. O próprio éter está ansioso o suficiente para adotar uma forma destrutiva. Por que haveria algo como um edito de destruição se o éter não fosse usado como tal?

O juiz central se inclinou para frente, aprofundando as sombras sob o capuz.

— Não é o papel da civilização usar esses elementos naturais à nossa disposição para suprimir sua destrutividade, assim como a nossa? O fogo pode queimar e a água afogar, como é a natureza deles e ainda assim consideramos errado aproveitá-los para esse propósito expresso, não achamos?

— Talvez não se a pessoa que você está queimando for um inimigo com a intenção de fazer o mesmo com você.

Respondi, imediatamente me arrependendo de minha leviandade. Não queria correr o risco de falhar na provação.

— O que quero dizer é que certamente há algum subsídio para me defender.

Tive uma ideia e decidi executá-la.

— Afinal, eu vi algumas criações etéreas horríveis e violentas protegendo as Relictombs. Monstros grotescos, armadilhas mortais, terríveis instrumentos de guerra. E tudo criado para salvaguardar o conhecimento dos djinn. Por que é aceitável proteger conhecimento, mas não vidas?

— Você responde a perguntas com perguntas e, ao fazê-lo, pede que forneçamos sua defesa para você.

Disse o juiz.

— Que assim seja. Vamos deliberar.

De repente, o tribunal girou. A sensação de vertigem durou apenas uma fração de segundo e, quando parou, minha perspectiva havia mudado.

Me vi sentado atrás do pódio, de frente para os outros dois juízes.

— E você?

Um perguntou, como se tivéssemos acabado de conversar.

— Qual é o seu julgamento sobre este caso?

Precisando de um momento para pensar, fiz questão de olhar para o réu por cima do palanque. O djinn vestido de índigo ainda estava lá, mas um estranho com pele roxa e um corpo coberto por formas de feitiço irregulares estava sentado ao lado dele olhando para nós, a chama do desafio queimando em seus olhos. A ilusão era tão real que era difícil lembrar que isso não estava realmente acontecendo. A vida desse homem não dependia do que eu estava prestes a dizer, porque ele estava morto há muito tempo, se é que alguma vez viveu.

— Lei nem sempre é justiça.

Respondi.

— Parece que esse djinn só fez o que achou certo. E, algum dia, seus descendentes podem olhar para trás neste momento e concordar com ele.

— Por cinco mil anos, os djinn construíram uma nação baseada na aquisição pacífica de conhecimento.

Explicou o juiz central.

— Doença, fome, violência, todos esses são sintomas de uma civilização doente. Não é nosso avanço nas artes de mana ou éter que é nossa maior conquista, é nossa civilidade. Devemos permitir que forças externas tirem isso de nós? Se nos rebaixarmos à posição de nossos inimigos, perderemos. É por isso que nossa lei está escrita como está e, como juízes atuais do Corpo Jurídico, somos responsáveis por defender a lei e o bem de nossa grande cidade e da união mais ampla. Qual é então o seu julgamento?

Não pude deixar de balançar a cabeça.

— Eu julgo suas ações justificadas.

Os outros dois juízes assentiram, então a luz desapareceu enquanto sombras profundas envolveram o tribunal. Todos se viraram para as janelas, esticando o pescoço para ver. Todos exceto o djinn remanescente guiando minha provação, que estava olhando para seus pés. Então a cena se dissolveu novamente, as sombras se aprofundando até que eu não consegui ver mais nada.

Quando a luz voltou, meu ambiente havia mudado novamente.

Estava em uma câmara esférica, cercada por djinn. Um teto abobadado de vidro colorido deixava entrar a luz do sol de cima em mil tons de roxo e azul. Videiras floridas cresciam nas paredes e pequenos riachos escorriam ao longo da borda da escada que quebrava fileiras concêntricas de assentos em estilo anfiteatro. Todos os assentos, ao que parecia, estavam ocupados.

Ao meu lado, o djinn remanescente tinha um olhar distante e desfocado em seus olhos enquanto olhava para duas pessoas sentadas frente a frente em uma mesa redonda. Algo foi esculpido na mesa, mas não consegui distinguir os detalhes. Não tive tempo de sobra para me perguntar o que era, porque a simples visão do homem sentado do outro lado daquela mesa foi como um choque elétrico em meu sistema nervoso.

Kezess Indrath.

Não havia como saber há quanto tempo essa visão aconteceu no mundo real, mas ele não parecia diferente de quando o encontrei em Epheotus. Tudo era idêntico, desde o estilo de seu cabelo cor de creme até a qualidade fria e distante de seu olhar que mudava de tom, que apontava como uma arma para o djinn à sua frente. Apesar de sua postura relaxada, porém, possuía alguma qualidade intangível que o fazia se sentir como uma raposa em um galinheiro.

A djinn, uma mulher com pele azulada e cabelos tão finos que pareciam flutuar em torno de seu couro cabeludo, parecia ter acabado de falar.

— Minha posição não mudou, Senhorita Sae-Areum.

Disse Kezess, exalando ostentação.

— Seu conhecimento das artes mágicas chamadas éter é um perigo para sua civilização, este mundo inteiro, e deve ser incluído na compreensão dos dragões, não importa o esforço ou custo. Simplesmente não há alternativa a não ser que seu povo ensine o meu.

A plateia estava totalmente silenciosa. O remanescente ao meu lado se mexeu em seu assento, porém, revelava a tensão que prendia seu corpo como uma corrente elétrica.

— Você parece pensar que só precisa visualizar que o mundo funciona da maneira que você escolhe para fazê-lo.

Respondeu Sae-Areum, com uma tristeza profunda em cada palavra.

— Mas é exatamente essa inflexibilidade que o impediu de obter mais informações sobre as artes do éter. Não podemos ensiná-lo, não da maneira que você deseja ser ensinado.

A leve ruga do nariz de Kezess comunicou mais do que o mais hostil dos escárnios.

— Sabemos no que você está trabalhando. Sinceramente, eu aprovo. Nosso mundo de Epheotus é algo semelhante: um pedaço deste mundo desenhado em outra dimensão, plantado lá e cultivado pelos ancestrais de meus ancestrais. Então a questão é, se você está tão convencido de que os Asura não podem aprender as artes djinn, por que está tentando tanto mantê-los longe de nós?

Um pedaço deste mundo desenhado em outra dimensão…

As palavras de Kezess se alojaram em meu cérebro como um osso quebrado na garganta de um lobo. Embora soubesse que Epheotus era um reino próprio, não um lugar físico neste mundo, fiquei chocado ao perceber que os Asuras o haviam criado e imediatamente comecei a me perguntar como tal coisa era possível, ou onde exatamente estava. Haveria mais dimensões, lugares separados do espaço físico onde residia este mundo e, presumivelmente, meu antigo lar na Terra?

O reino do éter, pensei imediatamente. Deve ser algo assim, talvez até o mesmo lugar. Antes que eu pudesse pensar mais sobre isso, porém, minha atenção foi forçada a voltar para o momento.

— Não estamos.

Sae-Areum disse placidamente.

— Mas seu aviso sobre o que espera qualquer civilização que se torne muito poderosa magicamente nos encorajou a olhar além dos limites de nosso próprio mundo e do escopo estreito de nossa própria linha do tempo e, ao fazer isso, percebemos a verdadeira importância de garantir que nosso conhecimento seja escrito de uma forma que nunca vai desaparecer. Não é fácil transmitir um insight, Senhor Indrath, mesmo para os receptivos.

Uma risada tilintante e perigosa escapou de Kezess.

— Mas nós dragões não somos… receptivos, é isso que você está dizendo?

— Expliquei nossa posição e você a sua.

O olhar de Sae-Areum varreu o público silencioso.

— Algum djinn aqui deseja revelar seu coração?

A plateia ficou em silêncio. Eu não conseguia nem dizer se o djinn remanescente ao meu lado estava respirando, ele estava tão quieto.

Ninguém respondeu a ela? Ninguém discutiu, ou se agradou… ou ficou com raiva?

Levantei-me e um tremor percorreu a sala.

— Você não pode dar aos dragões o que eles querem. Não apenas porque eles ainda teriam eliminado vocês, mesmo se tivessem feito isso. Não, a verdadeira razão é que sua compreensão do éter é, em sua essência, falha. Eles não têm a capacidade de obter mais informações, porque não reconsideram os fundamentos de seu conhecimento.

Fiz uma pausa, pensando no que queria dizer. Isso era uma provação, afinal. Precisava me expressar com clareza, pois achava que estava começando a ver o propósito disso tudo.

— Seu senso de superioridade e infalibilidade impede que sua civilização avance.

Continuei, meu barítono ressoando pela câmara.

— Os dragões, todos os Asuras, estão inteiramente em dívida com a visão de mundo estrita de Kezess. Acorrentado a isso. Independentemente da força de seus físicos ou poder de sua magia, eles não crescem. Não mais.

Os olhos de Kezess escureceram para um violeta estrondoso enquanto olhava através de mim.

— O costume djinn de deixar todas as vozes serem ouvidas, mesmo em uma questão de estado como esta é cansativo Senhorita Sae-Areum. Se você não for sábia o suficiente para tratar comigo individualmente, talvez eu esteja falando com o djinn errado.

— E, no entanto, esse não é o ponto do descendente?

Sae-Areum perguntou, mas as palavras soaram como um sussurro em meu ouvido, como se fossem apenas para mim.

— Mas a verdade é.

Continuei, descendo para o banco na minha frente e passando direto pelos dois djinn.

— Esta decisão já está tomada. Você não quer minha opinião, porque não posso mudar o que já aconteceu. Duvido que o destino possa reescrever o passado assim, não é? Mas você está julgando minhas intenções, minha ética e minha compreensão de seu povo. E, de uma forma estranha, acho que você está tentando confirmar se fez a coisa certa ou não.

Andei de banco em banco até chegar ao chão, a menos de seis metros de onde Sae-Areum e Kezess estavam sentados.

— Então, tenha a minha resposta. Você fez a única coisa que podia fazer, o que achou que era certo.

Sae-Areum não olhou para mim, mas sorriu e passou o dedo distraidamente pelos sulcos esculpidos na mesa redonda. Kezess levantou-se, lançando-me um olhar penetrante. Esperava que ele tivesse alguma repreensão, mas em vez disso a cena se dissolveu, virando cinzas e explodindo.

Achei que talvez tivesse acabado quando tudo ficou branco, mas, como quando fui atraído pela primeira vez para a provação, a luz e a cor sangraram na tela em branco. Desta vez, porém, era cinza fuligem, laranja brilhante e carmesim avermelhado. Meus arredores corriam não como aquarelas, mas como o tremeluzir de uma chama.

O mesmo pagode de antes tomou forma. O telhado ciano estava enegrecido e meio desmoronado. O riacho se foi, drenado pelo chão onde uma rachadura da largura do meu punho se abriu no piso de pedra.

Um rugido distante tremeu no ar, seguido pela forja de chamas e vento, chamando minha atenção para a cidade. Zhoroa, eles a chamavam. Nuvens de fumaça subiam de chamas de trinta metros de altura, espessas o suficiente para bloquear o sol e escurecer o céu por quilômetros ao redor. E os dragões ainda estavam atacando, cuspindo fogo tão quente que as pedras brilhavam em laranja e corriam como vidro soprado.

Não estava sozinho. Uma mulher estava sentada na beira do pagode, seus pés onde o riacho se juntava ao rio estreito antes de mergulhar nos penhascos. Até o rio se foi.

— Senhorita Sae-Areum…

Disse, estendendo a mão antes de perceber que era minha própria mão, não a de um djinn.

Ela se virou para olhar para mim e percebi que estava errado. Ela tinha o mesmo tom de azul em sua pele, mas seu cabelo era mais escuro e grosso, fluindo como água em vez de flutuar no ar.

— O que deveríamos fazer?

Ela perguntou, o desespero tão grosso e afiado em suas palavras que elas arranharam meu coração.

— Diga-nos o que fazer…

Comecei a estender a mão para ela, para fazer algum gesto fútil e reconfortante, então me lembrei de onde estava e deixei minha mão cair. Essa cena parecia diferente das outras, de alguma forma. Após o encontro com Kezess, o julgamento parecia ter acabado. Percebi seu propósito e respondi da melhor maneira que pude.

Então, por que está continuando? Me perguntei. Em voz alta, disse:

— Sua escolha já foi feita.

Ela engoliu em seco e enxugou as lágrimas.

— E foi a coisa certa a se fazer? Se tudo acontecesse de novo, você seguiria nosso caminho, descendente?

Observei os dragões rodopiantes soprarem a morte na cidade por um longo tempo, meio que esperando que a provação terminasse e me levasse de volta à ruína, mas ele continuou. Esperava algo mais de mim, claro.

Passei toda a minha vida lutando para me tornar mais poderoso, pensei, certo de que a mente djinn que estava conjurando tudo isso poderia ler meus pensamentos tão claramente como se eu os tivesse falado. Se Kezess liderasse seus dragões para queimar Dicathen amanhã, lutaria contra eles, não importa quão desesperadora fosse a batalha.

Mas isso significava que era errado o djinn se recusar a lutar? Se seus últimos dias tivessem sido passados em guerra, talvez as Relictombs nunca tivessem sido concluídas. E então todo o seu conhecimento, a memória de toda a sua civilização, realmente desapareceria.

— Você achou que era. Mas não, o seu jeito não é o meu.

Disse por fim, respondendo às perguntas da garota soluçante.

— Talvez, aos olhos desta provação, isso me torne indigno, mas espero que você possa ver que também só quero fazer o que acho certo. Se ninguém lutar, nosso mundo será esmagado entre os clãs Indrath e Vritra. Então, de que servirá o conhecimento guardado?

As chamas diminuíram e a fumaça cheia de cinzas cobriu a paisagem. Quando clareou, estava de pé nas ruínas desmoronadas mais uma vez. Ellie, Boo, Lyra e Mica estavam todas encostadas na parede ou esparramadas no chão.

Algum pequeno movimento deve ter revelado o fato de que eu estava de volta com eles, porque Ellie gritou e se levantou de um salto.

— Arthur! Você está aí?

Balancei a cabeça e limpei minha garganta.

— Quanto tempo demorou desta vez?

Mica se afastou da parede e cruzou os braços, parecendo azeda.

— Quase uma hora. Um pequeno aviso teria sido bom.

— De volta da morte cerebral total, hein? E aqui eu pensei que iria herdar toda a sua vasta riqueza se você não voltasse.

Falou Regis, rindo em minha mente.

— Você não conseguiu ver nada daquilo? 

Perguntei.

— Não, ficou quieto como um túmulo aqui o tempo todo.

Desconcertado, voltei-me para o cristal que pairava sobre o pedestal central.

— Não entendo qual era o propósito disso tudo. Por que me mostrar essas coisas?

O cristal pulsou e a voz do djinn ecoou dele.

— Foi um teste.

— Eu passei?

A forma mágica de armazenamento extradimensional esquentou em meu braço enquanto o cristal falava.

— Não cabe a mim julgar. Você deve decidir por si mesmo. Afinal, sou apenas uma lembrança.

Ativando a runa, tirei o cubo indefinido cortado de pedra escura que acabara de aparecer na minha runa dimensional.

— Você pode me dizer algo sobre o que essa pedra angular contém?

Um zumbido estático quase inaudível vibrou do cristal e então disse:

— Não. Mas isso não significa que eu não possa te ajudar. O processo de sua mente, a trama de seus pensamentos, é muito diferente da dos djinn. Isso pode ser fatal para sua compreensão ou pode permitir que você se torne algo além do que jamais imaginamos. De qualquer forma, saiba que o caminho a seguir será difícil.

“Mas sinto-me compelido a dizer que, pelo menos, acredito que você realizará o que se propôs a fazer. As quatro formas mágicas seladas nessas pedras angulares são elas mesmas um mapa para uma visão mais profunda. Nossas maiores mentes teorizaram que, se alguém pudesse entender esses quatro decretos do éter, talvez também pudesse obter uma visão do próprio Destino. Era uma esperança distante e desesperada, mas agora que o conheci, Arthur Leywin, acredito que pode realmente acontecer.

— Eu… sinto uma sensação de perda.

O cristal deu um zumbido melancólico.

— Faz muito tempo que este pedaço da minha consciência vigia esta pedra angular. Agora, eu sou o último e logo irei embora.

— Você pode me dizer alguma coisa sobre o que aconteceu com a terceira pedra angular? O que falta? Se eu puder verificar se Agrona de alguma forma a recuperou…

— Essa informação não está armazenada neste remanescente.

Sabendo instintivamente que o tempo estava se esgotando, expressei outro pensamento que permaneceu no fundo da minha mente desde que falei com Kezess.

— Durante aquela conferência com o Lorde Indrath, ele alegou que Epheotus foi levado para fora deste mundo e alojado em outro lugar, e que os djinn estavam criando algo semelhante. Qual é o lugar onde as Relictombs estão contidas?

— Você deveria entender melhor do que eu, pois carrega uma runa divina que o conecta ao tecido interior do universo.

Disse o cristal, quase parecendo divertido.

— Passo de Deus

Disse baixinho para mim mesmo.

Várias camadas de compreensão se estabeleceram, completando uma imagem que eu nem havia percebido que não estava completa.

— A runa divina não revela caminhos ocultos.

Continuei. Sentindo minha expressão diminuir.

— Tenho usado o tecido conectivo deste mundo, o lugar intermediário onde Epheotus e as Relictombs estão, para me mover.

A runa divina queimou contra minhas costas, lançando uma luz dourada fraca pela sala.

— Mudou.

Observou Regis, descendo pelo meu corpo para inspecioná-la.

— O design está mais complicado.

Minha compreensão também mudou, mas antes que eu pudesse ativar a runa divina, o cristal falou novamente.

— Os danos ao edifício externo têm sido muito desgastantes para mim. Você já viu como fui forçado a retirar a energia da ilusão secundária que deveria ter impedido o progresso até esta sala. Vou precisar manifestar um portal para você sair, mas vai drenar toda a energia que me resta. Peço desculpas, Arthur Leywin, mas você deve ir agora.

— Isso não parece muito bom.

Disse Mica.

— Provavelmente deveríamos ouvir a coisa do giroscópio de cristal falante, certo?

— Sim.

Disse distraidamente. Então olhei para Ellie e o fundo do meu estômago caiu quando me lembrei de todas as vezes que ela morreu na minha frente na última zona.

— Estamos prontos. E… obrigado.

O cristal zumbiu novamente, muito mais alto desta vez e todos nós flutuamos para cima através do chão imaterial e transparente da sala inexistente acima. Através do poder do cristal, o “chão” endureceu, permitindo-nos ficar de pé sobre ele e então um portal retangular girou em existência, inserido em uma parede.

Quando isso aconteceu, o resto da sala começou a desmoronar, o éter mantendo sua forma sendo deslocado para o portal.

Retirando a bússola, corri para conectar o portal titubeante com sua outra metade e uma imagem distorcida do pequeno quarto apareceu.

— Vá!

Mica saltou antes que a palavra saísse da minha boca. Lyra incitou Ellie a passar, seguida por um uivo nervoso de Boo, então ela mesma atravessou sem sequer olhar para trás.

Mas minha atenção estava presa no espaço que se dissolvia lentamente ao redor do portal. Além dele, o mar púrpura crepuscular do vazio etérico. Dei um passo para longe do portal e toquei a runa que marcava meu antebraço. O horror da última zona, o teste do djinn e tudo o que aprendi, até mesmo a nova visão que obtive sobre a runa divina do Passo de Deus, tudo saiu da minha mente em um momento.

Porque havia uma coisa mais importante do que tudo aquilo.

Quando eu estava no reino etéreo lutando contra Taci, percebi que, com o oceano ilimitado de éter, eu finalmente tinha poder suficiente para completar o ovo de Sylvie. Mas permaneceu fora do meu alcance desde então.

Até agora.

Cada vez menos da sala permanecia no momento em que o djinn remanescente gastava seu poder para manter o portal.

— Parece que não temos tempo, chefe.

Disse Regis.

Tempo…

Estendendo minha mão, imbuí o Réquiem de Aroa. Partículas etéricas brilhantes fluíram de mim, correndo ao longo das bordas da sala em colapso.

Mas nada aconteceu.

— Por favor, você pode segurar um pouco mais? Eu preciso apenas—

— Peço desculpas.

Disse a voz de cristal, ecoando ao meu redor.

— Se você não sair agora, ficará preso.

Fechei os olhos e suspirei, deixando o Réquiem de Aroa escurecer.

Com o coração pesado, afastei-me da imagem do vazio etérico sem fim e entrei no portal.

 


 

Tradução: Reapers Scans

Revisão: Reapers Scans

QC: Bravo

 

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