O Começo Depois do Fim

O Começo Depois do Fim – Cap. 404 – Uma Batalha de Palavras

 

POV Arthur Leywin

Windsom esperou, os olhos sobrenaturais apontados para mim e a expressão ilegível.

Virei a cabeça de leve para ver a entrada arqueada cavernosa do palácio, onde a silhueta de Jasmine era apenas visível dentro das sombras. Dentro do contorno escuro da sua forma, o brilho violeta de Regis era como um farol.

Pus um pé na parte inferior das escadas etéreas que levavam ao portal manifestado por Windsom.

— Tentou convencê-lo a mudar de ideia?

Perguntei, parando.

Ele franziu a testa e passou os dedos pelos cabelos loiros.

— Não tenho certeza do que você quer dizer.

— Elenoir.

Falei, me voltando para os seus olhos.

— Como o enviado a este mundo, tentou convencer o lorde Indrath a não atacar Elenoir?

— Não — disse, relaxando.

— Eu me ofereci para ir junto e garantir que o general Aldir fosse capaz de completar a missão.

Assenti com a cabeça.

— Entendo.

Sem pressa, subi o resto das escadas até ficar em frente ao portal. Os crimes dele serão punidos hora ou outra, falei a mim mesmo. Mas, naquele momento, me preocupava com seres muito mais importantes do que ele.

Respirando fundo e preparando a mente para o que estava por vir, entrei. O palácio, Etistin, e Dicathen inteira se transformou numa luz dourada.

Mesmo antes de Epheotus surgir aos meus olhos, senti a distância aumentando entre Regis e eu. A ligação, que exigia proximidade física entre nós, havia sido quebrada contra Taci nas Relictombs, porém, não tinha tempo para considerar isso. Após a batalha, não senti nenhuma mudança em qualquer ligação nossa.

Agora, quando entrei no feixe dourado de luz, não mais em Dicathen, mas ainda não em Epheotus, senti a conexão desaparecer, deixando para trás um tipo de vazio angustiante que teria parecido loucura se eu já não soubesse a razão.

A luz desapareceu e fui recebido pela sensação familiar de estar em outro mundo, assim como a primeira vez que fui ao continente e todo o pensamento de Regis saiu de mim.

Não havia picos gêmeos de montanhas, uma ponte cintilante, árvores de pétalas rosas ou um castelo imponente. Em vez disso, parei no gramado aparado com cuidado de uma cabana simples com um telhado de palha.

O meu coração deu um pulo.

Virando em um círculo rápido, confirmei que a cabana estava cercada por árvores altas com copas de folhas esparramadas que se entrelaçavam, deixando uma pequena clareira onde a cabana familiar se destacava de maneira estranha.

Windsom, com as sobrancelhas loiras finas levantadas, apareceu ao meu lado atravessando a luz dourada. Ele mal me olhou antes de apontar para a porta da cabana.

— Por que estamos aqui?

Perguntei, entretanto, somente repetiu o gesto com mais firmeza.

Não tinha visto ou falado com a senhora Myre, esposa de Kezess, desde que treinei aqui anos atrás. Contudo, pensava nela com frequência, em especial quando a minha compreensão do éter aumentava e revelava o fracasso da perspectiva dos dragões.

Não permiti que a minha incerteza fosse demonstrada nos meus movimentos ou expressão. Quando ele deixou claro que não responderia, me movi com postura até a porta.

Ela abriu com o puxão mais leve, dando espaço à brilhante e limpa luz de um artefato de iluminação.

O interior era exatamente como me lembrava. Nada fora do lugar. Bem, quase nada.

No centro da sala, descansando em uma cadeira de vime, estava Kezess Indrath. Ele usava vestes brancas simples que pegavam a luz feito pérolas líquidas e aros vermelhos e irregulares nas orelhas.

Logo examinei o que pude da cabana, todavia, ele aparentava ser o único presente.

Ao entrar, a porta se fechou, aparentemente por vontade própria.

Os olhos dele, lavanda no início, mas mudando para um tom mais escuro e rico de roxo quando entrei, seguiram todos os meus movimentos, a sua rigidez e intensidade em desacordo com a expressão plácida e linguagem corporal. As linhas suaves do seu rosto jovem e o ângulo relaxado dos seus membros finos também estavam desalinhados com o ar de poder inatacável irradiando dele. Não era a sua intenção, a Força do Rei, como Kordri a chamou, porque não conseguia sentir a sua mana ou aura. Havia, no entanto, uma força constante e inexorável ao seu redor, que nem a gravidade ou o calor do sol.

Ele se mexeu no seu assento, o que sacudiu um pouco o cabelo prateado médio dele. O silêncio entre nós permaneceu.

Entendi bem o jogo. Sem dúvida, Windsom teria ficado em atenção por horas esperando que Kezess o reconhecesse, caso o senhor dos Asuras assim o considerasse. Porém, não o aceitei como o meu soberano e nem o convite para simplesmente ficar à presença dele.

— Há quanto tempo está acompanhando o meu progresso?

O canto dos seus lábios se contraiu e os olhos escureceram ainda mais.

— Arthur Leywin, eu deveria recebê-lo de volta. Agora, que nem antes, você é trazido diante de mim devido à guerra que se agita no seu mundo.

— Agita?

Questionei, mudando o meu peso de uma perna para a outra. Estava muito ciente da nossa fisicalidade, com ele ainda sentado, quase imóvel e eu parado em frente a ele.

— Você conhece muito bem o estado da guerra entre Dicathen e Alacrya.

— Esse conflito não é mais importante.

Falou, o tom semelhante ao de alguém discutindo uma mudança esperada no clima.

— Eu lhe disse antes que o via como um componente necessário nesse conflito, mas você falhou em seguir o meu conselho, o que levou ao seu inevitável fracasso. Agora é hora de determinar se há um lugar para você na próxima guerra entre os Vritras e toda Epheotus.

Uma citação dele se destacou para mim, e não pude superá-la, apesar dos outros aspectos de nossa conversa serem mais importantes.

— Seu conselho que “falhei” em prestar atenção… está falando da Tessia.

Suas sobrancelhas mal se ergueram em um centímetro na transição do seu olho ao magenta.

— Através de você e do outro reencarnado, Nico, Agrona preparou o recipiente perfeito para a entidade conhecida como Legado. E através dela, você deu a ele conhecimento e poder o suficiente para ser uma ameaça a Epheotus, assegurando a destruição do mundo que você veio a amar e todos nele. Você se acha sábio porque viveu duas vidas curtas e, portanto, se recusa a ouvir conselhos bem intencionados, esquecendo que aqueles que os deram viveram séculos antes do nascimento do rei Grey e viverão séculos depois que os ossos de Arthur Leywin se transformarem em pó.

Reprimi uma risada.

— Acho que você não sabe nem metade do que finge saber. Se tivesse entendido isso antes da reencarnação de Cecilia, teria feito Windsom matar Tessia, Nico, ou até eu.

Cruzei os braços e dei um passo.

— Como Agrona chegou tão longe de você?

Sem um movimento sequer, ele de repente se pôs de pé. Os seus olhos eram da cor de um raio violeta furioso, entretanto, a expressão permaneceu plácida, exceto pelo aperto da mandíbula.

— Você não causando uma boa impressão agora. Antes, tinha o seu vínculo com a minha neta para protegê-lo. Já que você, nos seus muitos fracassos, permitiu que ela morresse em batalha, não pode mais reivindicar tal proteção. Se não me provar que ainda tem um papel a desempenhar na guerra, eu o destruirei.

Eu esperava por aquilo, tanto a ameaça quanto à menção a Sylvie. Não podia adivinhar o quanto ele sabia a respeito do que havia acontecido com ela, contudo, tinha uma certa maneira de descobrir. Imbuindo éter na runa do meu antebraço, peguei a pedra iridescente que havia recuperado das Relictombs após acordar.

— A Sylvie não morreu.

Ele pegou o ovo, todavia, parou um pouco, os dedos estendidos permanecendo a poucos centímetros de distância.

— Então, é verdade.

Esperei, esperando que ele fizesse algo. Fazer qualquer pergunta sobre o ovo ou o que ela fizera revelaria a minha própria ignorância e eu não queria dar ao antigo dragão mais influência sobre mim.

Ele foi igualmente cuidadoso e, após examinar os meus olhos por um momento, afastou a mão e recuou sutilmente.

— Acredito que você continuará a trabalhando para revivê-la.

Uma declaração, não uma pergunta.

— Claro. Ela é o meu vínculo.

O éter se estendeu para agarrar o ovo e o retirou ao espaço de armazenamento extradimensional.

Por mais que Kezess não tivesse dito muito, a sua resposta me revelou duas informações muito importantes: primeiro, ele sabia o que estava acontecendo com ela. Eu ainda não entendia a transformação dela ou como foi transportada às Relictombs comigo e ele obviamente sabia o que era a pedra. Segundo, ele não poderia revivê-la sozinho. Se conseguisse, tinha certeza de que ele teria tentado tomá-la de mim. Isso devia significar que apenas eu poderia completar o processo de imbuir o ovo com éter.

Ele se virou e, sem pressa, atravessou a cabana até onde várias ervas e plantas estavam penduradas na parede, secando.

— Myre ficará triste por não ter te visto.

Contou, beliscando algo que cheirava a hortelã.

— No entanto, não posso deixar de me perguntar se o apego dela a você se deveu mais à presença da Vontade da nossa filha dentro do seu núcleo do que a quaisquer características inatas suas.

Ao se virar de novo, os olhos se suavizaram em lavanda.

— Foi um feito impressionante você ter chegado à terceira fase da conexão com a Vontade de Sylvia. Pena que te matou, ou teria matado sem a intervenção da Sylvie. E, porém, mesmo que tenha perdido a vontade dela, manteve a capacidade de influenciar o éter, até se tornou mais proficiente.

Seus olhos observando os meus me deu a sensação de larvas rastejando no meu crânio, o que fez com que o meu estômago girasse.

— Vai me contar tudo, Arthur.

Além de uma minúscula contração no meu olho direito, mantive o desconforto longe do meu rosto.

— O que vai fazer por mim em troca?

As luzes brilhantes da cabana diminuíram no dilatar das narinas dele.

— Como já afirmei, terá permissão para viver se me convencer do seu uso.

Eu ri. Sem responder, fui a uma cadeira de balanço e me sentei, cruzando uma perna acima da outra.

— Você quer negociar pelo meu conhecimento. Eu entendo. Afinal, você buscou por conhecimento por séculos e até cometeu um genocídio apenas para deixar de adquirir o que aprendi em um ano.

Os seus olhos se estreitaram.

— Se sabe o que aconteceu com os djinns, então com certeza vê que não hesitarei em sacrificar uma vida menor pelo bem maior.

Inexpressivo, encarei o dragão enquanto me balançava um pouco para frente e para trás na cadeira de Myre.

— A ganância e o bem maior podem trocar algumas cartas, mas você raramente as verá andando lado a lado.

— Me mostre.

Ordenou, ignorando o meu sarcasmo.

— Posso sentir o éter ao seu redor e queimando dentro de você, mas quero ter ver usando. Prove que não é mais do que um truque de mágica.

Mordi a língua para não o alfinetar mais. Não tinha medo dele, mas também não queria somente provocá-lo. Ele possuía um propósito ao me convocar e possuía um propósito ao aceitar.

Considerei as runas à disposição e o que menos me custaria revelar. A escolha era óbvia.

Enviando éter à runa divina, ativei o Realmheart. O calor da magia trouxe um rubor às minhas bochechas. O ar se encheu de cor, a runa deixando visíveis as partículas individuais de mana presentes em todo o nosso arredor e as fronteiras entre éter e mana, como a atmosfera aqui era rica em ambos. Pareciam óbvias agora que aprendi a vê-las direito.

Me perguntei se Kezess poderia vê-las.

Ele fez um movimento de corte curto com uma mão, fazendo o éter sair dele para ondular pela atmosfera e com que o próprio mundo paralisasse. As partículas de mana à deriva ficaram imóveis, e uma série de ervas, que estava se mexendo com as correntes sutis de ar, congelou. Então a ondulação rolou em mim e senti o tempo parando.

A minha mente voltou a um tempo antes das Relictombs, antes da minha forma dracônica, antes do sacrifício de Sylvie.

Me lembrei de sentar com a Rinia. Estava desconfiado a respeito da natureza dos poderes dela e assim ativei o Vazio Estático sem aviso prévio. Ela usou éter para se libertar do feitiço.

Por puro instinto, empurrei para fora contra a ondulação uma explosão do meu éter, que se agarrou em mim, repelindo o feitiço de Kezess.

Os seus olhos se arregalaram, mostrando verdadeira surpresa e até, pensei, incerteza pela primeira vez.

Todo o resto na cabana congelou, diferente da minha cadeira balançando. Senti uma sobrancelha arrepiar quando formei um sorriso irônico, mas sem humor.

— Creio que você achará a minha compreensão do éter digna de nota.

Kezess olhou em volta, franzindo um pouco a testa. Ele se abaixou para inspecionar algo, e percebi uma espécie de aranha agarrada à perna da mesa. Ele a puxou do seu poleiro, a examinando de perto. Após fechar e sujar os dedos com o que saiu dela, jogou o pequeno inseto no chão e voltou a atenção para mim.

— Você chegou a este conhecimento dentro da série de masmorras conhecidas como Relictombs, mas Agrona tem enviado magos para o reduto final dos djinns por muitos anos e não adiantou.

Disse com a voz ressonando no éter, os olhos se estreitando.

— O que te fez diferente? Como conquistou o que todos os outros falharam?

A fim de testes, fui mais ainda contra o feitiço. O éter ao meu redor flexionou, entretanto, não pude expandir a barreira além de mim e da cadeira em que me sentei.

— Estou disposto a te dar informações, mas só se pudermos chegar a um acordo.

Ele torceu o pulso, dando fim ao feitiço.

Respirei com mais facilidade, apenas então percebendo o dreno que havia sido para impedir a habilidade aevum.

Antes de continuar, ele voltou à cadeira de vime simples, descansando nela de uma forma que fazia parecer um trono. Ele me observou por um tempo, considerando. Então, devagar, como se saboreasse as palavras, continuou a falar.

— A retomada de Dicathen foi uma surpresa, tanto para mim quanto para Agrona Vritra, mas não pode durar mais.

Balancei a cabeça.

— Estou ciente de que a atenção dele foi voltada às próprias terras. Assim que resolver a rebelião lá, o seu olhar e forças retornarão a Dicathen. Pode não ter uma compreensão completa do meu poder, mas sabe que acabei com um esquadrão de Assombrações. Da próxima vez, enviará uma força que sabe que vencerá.

— De fato. O seu tempo está acabando.

Deixei sair a minha postura relaxada, me inclinando e apoiando os cotovelos nos joelhos.

— Você quer conhecimento, e Dicathen precisa de tempo. Falou de uma guerra entre os Asuras, mas antes, sempre me disseram que tal guerra destruiria o meu mundo.

Parei, deixando as palavras pairarem no ar.

— Não vou deixar isso acontecer, Kezess. Esse é o meu preço.

De repente, ele se pôs de pé, mais uma vez sem que eu notasse qualquer movimento. Ao mesmo tempo, a cabana derreteu, se dissolvendo que nem uma teia numa tempestade. Os tons marrons arborizados deram lugar a tons de cinza materializados em pedra e curvas suaves de nuvens. Estávamos de pé na torre mais alta do castelo dos Indraths, em seu topo.

As nuvens eram espessas, subindo até a metade do castelo para esconder os picos das montanhas e a ponte arco-íris abaixo. Mais nuvens brancas, cinzentas e douradas rodopiaram entre as torres e ao redor das estátuas e pedras. Pétalas cor-de-rosa vez ou outra apareciam caindo da névoa, arrancadas das árvores escondidas abaixo e carregadas ao céu pela corrente de ar.

A parte que achei mais incrível foi que apenas havia sentido a menor aplicação de éter de Kezess, e ao contrário de seu feitiço de parada de tempo, não fui capaz de reagir ou desviar do teletransporte, se é que foi o que aconteceu. A minha mente correu para considerar as implicações disso e de onde o poder surgiu. Se a situação ficasse violenta, não poderia permitir que ele simplesmente me mandasse para onde quisesse em Epheotus à vontade.

Ele colocou as mãos no parapeito de uma janela aberta e olhou para o seu domínio. A sala era plana e vazia, contudo, havia um sulco circular nos azulejos cinza roxos que compunham o chão, como se alguém andasse em círculos sem fim por centenas de anos.

— Você vai explicar os poderes que ganhou.

Disse, ainda não olhando para mim.

— E me contará em detalhes como gerenciou este insight e como criou um núcleo que pode manipular diretamente o éter. Em troca, garantirei que nenhum conflito Asura se espalhe para Dicathen e te ajudarei a evitar que Agrona retome o continente.

Engoli a surpresa. Não esperava que fizesse uma oferta tão justa tão rápido, mas fiquei feliz em evitar um vai e vem prolongado, ameaçando e negociando. Ainda assim, sabia o seu limite para entender o meu poder.

— O povo de Alacrya também não deve ser prejudicado.

Falei, firme, adotando os maneirismos de um rei.

— O que aconteceu em Elenoir nunca mais pode acontecer em nenhum dos dois continentes.

Ele enfim se virou para mim, o olhar me perfurando que nem uma lança.

— É interessante que você tenha mencionado Elenoir, pois há uma segunda parte na oferta, mas chegaremos a isso no devido tempo. Não usarei a técnica da Devoradora de Mundos em Alacrya, mas evitar perdas em larga escala reduzirá a minha capacidade de garantir a segurança de Dicathen.

— Tudo bem. Não vou trocar milhões por milhares. Até que Agrona esteja pronto para avançar para cá, ele não vai sacrificar a sua posição em nosso mundo. Então, o ônus é você não escalar o conflito.

Ele assentiu.

— É verdade. Mas pode atender ao meu pedido?

— Nós dois sabemos que um insight não pode ser transmitido de uma pessoa para outra. Explicarei os meus poderes e como os recebi, bem como o meu processo para obter informações das runas divinas. O que você faz com elas depende só de você.

Os olhos dele escureceram enquanto ele considerava a proposta.

— Você me oferece os dedos e, talvez, a mão, mas espera o meu braço em troca.

— Você sabia o que estava me pedindo.

Me recostei na parede.

 — Você torturou e exterminou toda uma raça perseguindo o conhecimento deles, mas não aprendeu nada, não é?

— Essa é a segunda vez que você menciona isso.

Disse, a voz assumindo um estrondo baixo quando uma nuvem tempestuosa escureceu o rosto dele.

— Tome cuidado, Arthur, para não passar dos limites. Os eventos daquela época não são um assunto para um acordo e mencionar essa raça antiga e morta é proibido aqui.

Pesei o que eu responderia, dividido entre provocá-lo mais ou deixá-lo ir. As atrocidades dos Indraths contra os djinns eram imperdoáveis, todavia, não adiantava interromper a tênue aliança atual que aparentava estar se formando sobre ela. Não agora.

— Você disse que havia uma segunda parte no acordo. Então, vamos ouvi-la.

Ele atravessou a câmara vazia para uma janela diferente. Respondendo ao chegar dele, a vista dela mudou, em um momento mostrando um pico mal perfurando as nuvens e nos próximos, campos altos intermináveis em cores que variavam de azul profundo a turquesa. Uma estrada estreita destruída e coberta de sangue e cadáveres percorria a grama.

— Além de proteger os dois continentes da próxima guerra.

O tom dele era cauteloso e cansado de uma forma que não ouvi saindo dele antes.

— Te ofereço justiça se me der o mesmo em troca.

Não acho que você gostaria do tipo de justiça que eu te ofereceria, pensei. Ainda assim, estava curioso sobre o que havia acontecido e o que ele queria dizer.

— Vá em frente.

— Eu ordenei a Aldir que usasse a Devoradora de Mundos. Ambos sabemos que ele era um soldado cumprindo o seu dever.

Ele se virou para mim conforme a íris vagava por tons de roxo, se fixando em um malva frio.

— Mas para as pessoas do seu mundo, foi o poder dele que desencadeou tal devastação. Aldir é a assombração na escuridão que agora temem. Então, ofereço a vida dele para aplacar as massas. O castigue por seu crime e cure a ferida que a Devoradora de Mundos deixou nos corações do seu povo.

Pela primeira vez desde que abri a porta da cabana, me senti mal, totalmente desprevenido pela proposta inesperada.

— Que justiça quer em troca?

Perguntei devagar, ganhando um momento para pensar.

Ele olhou para as pastagens manchadas de sangue.

— A sua justiça é minha justiça. Eu pedi demais ao meu soldado. A técnica não foi proibida por conta das capacidades destrutivas, mas por conta do dano ao conjurador. Ela degrada a mente e corrompe o espírito do panteão que a usa.

Aquelas manchas vermelhas já foram dragões corajosos, soldados que lutaram ao lado de Aldir, treinados sob ele. Colocou a mão de cada lado da janela.

— Ele abandonou o posto, e ao procurarem por ele para ajudá-lo, ele os massacrou.

Eu deixei escapar uma risada alta.

Kezess ficou sóbrio de imediato, a emoção que havia exibido desaparecendo.

— Você está em uma linha perigosa, garoto.

— Então, a sua ideia de nos dar “justiça” é nos fazer limpar a bagunça que você mesmo fez? — questionei, incrédulo.

— Sei que você não pensa muito de nós, “menores”, mas vamos lá, Kezess.

Ele me olhou por um longo momento antes de voltar à janela e afastar a vista das pastagens. O lento mar de nuvens reapareceu.

— Então, que isso seja um aviso para você. Aldir trocou Epheotus por Dicathen e ele é perigoso. Se você lhe der abrigo ou tentar se aliar a ele, o resto do nosso acordo será nulo.

Ele está falando sério, percebi. Aldir deve ter mesmo mexido na cauda do velho dragão para deixá-lo tão bravo.

— Anotado e concordado. Se impedir que a guerra contra os Vritras se escale em nosso mundo e me ajudar a impedir Agrona de dominar Dicathen de novo, te conto tudo o que descobri do éter.

Ele estendeu a mão. Hesitei, sabendo melhor do que confiar nele, no entanto, sem saber que tipo de insulto seria recusar. Ele esperou.

Depois de um momento, segurei a sua mão. Gavinhas de luz roxa apareceram ao redor delas e se estenderam para fora ao longo de nossos pulsos e antebraços. O éter se agarrou com força, nos unindo quase que dolorosamente.

— Um acordo foi feito, e você está vinculado a ele. Quebre-o, e este feitiço vai devorar o seu núcleo.

Enquanto ele falava, as bobinas de éter começaram a se infiltrar na minha carne, cavando através dos meus músculos e nos meus nervos. Foi doloroso, porém não insuportável. Em segundos, a energia chegou ao meu núcleo, o envolvendo feito correntes, exercendo uma pressão física.

— Eu não concordei com is…

— Começamos imediatamente.

Disse laconicamente, uma lasca de sorriso marcando a sua máscara inexpressiva.

— Você percorre o Caminho do Saber.

A minha perspectiva da sala cambaleou, e me encontrei de pé no caminho de pedra desgastada.

— Ande e ative suas “runas divinas”, como as chamou.

Olhei para ele, zangado e incerto. Não esperava começar agora e me puni por ter sido pego desprevenido pela armação. Claro que ele não confiaria em mim para lhe contar o ele já sabia. Precisava haver uma salvaguarda.

Merda, pensei, tentando redirecionar a mente a uma direção mais positiva.

— Está perdendo tempo. Ande e conjure.

Comecei a me mover, seguindo o caminho. A luz passou a piscar e brilhar em todo o círculo, então ativei de novo o Realmheart. O círculo explodiu em vida com mais luz e energia, formando uma série de runas conectadas por dezenas de linhas brilhantes. Partículas de mana de todas as cores corriam ricas e ansiosas ao redor do círculo, alimentadas por partículas ametistas de éter. Entretanto, estava olhando apenas para a onda repentina de mana.

Dentro de mim, senti o éter estranho se segurando com firmeza ao meu núcleo. Ele reagiu a cada pensamento meu, apertando se eu considerasse a possibilidade de mentir ou limitar o que mostrei a Kezess. Sabia que se escondesse alguma coisa, reagiria violentamente e tentaria me prender e matar se ainda recusasse.

Simplesmente não adiantaria.

Eu não estava pronto para revelar mais sobre o Realmheart do que a sua presença. Não havia por que Kezess saber que eu poderia mexer a mana com éter. Então, deixei a runa e canalizei o éter ao Réquiem de Aroa.

Senti o olhar faminto de Kezess em mim a cada passo, assim como o fio de éter se contraindo em torno do meu núcleo. Partículas violetas dançavam pelas pontas dos meus dedos sem ter para onde ir, contudo, não importava. O Caminho do Saber reagiu cintilando e queimando, tanto mana quanto éter seguindo o meu progresso.

Dentro de mim, algo mais estava acontecendo. Enquanto imbuía na runa divina, também deixei o éter vazar do meu núcleo, o mantendo por perto a fim de orbitar o feitiço de Kezess.

Se quisesse firmar um acordo com o senhor dos dragões, seria com os meus próprios termos, não com os dele.

Com cuidado, moldei o éter ao redor das correntes, chocando-o contra o de Kezess que nem fiz ao criar uma barreira protetiva em mim na cabana. Daí, puxei.

O feitiço resistiu, o éter focado no seu propósito.

Me mantive andando. Um brilho dourado atravessou a sala assim que a runa divina queimou nas minhas costas, forte o bastante para aparecer através da camisa. O Caminho do Saber brilhou em resposta.

Como um pássaro tirando uma minhoca do buraco no chão, o meu éter puxou o de Kezess devagar para o meu núcleo.

Esta era a parte arriscada. Eu nunca havia enfrentado diretamente outro usuário de éter antes, no entanto, também nunca encontrei uma fonte de éter da qual não pudesse extrair.

Dentro do núcleo, senti ele sendo purificado, anulando a influência de Kezess. Pouco a pouco, o éter dele se tornou meu. E para ajudar a camuflar a mudança, caso ele conseguisse de algum jeito senti-la, reformei as “correntes” com o meu próprio éter.

Feito isso, me senti confiante o suficiente para parar de andar e sair do Caminho.

Kezess, que tinha se fascinado pelo Caminho do Saber, voltou à consciência.

— Por que está parando? Com certeza não é tudo o que descobriu.

— Não é.

Dei um leve aceno de cabeça.

— Você verá mais após eu ver um progresso na sua parte do acordo.

— Não foi isso o acordado.

Disse, um toque de hostilidade no tom.

— Parece que nós dois tomamos cuidado com as nossas palavras. Suspeito que você já tenha o suficiente para ocupar a mente, de qualquer modo. E você ainda tem a sua coleira no lugar. Uma vez que eu tenha garantia de que Dicathen está, de fato, segura sem mim, volto para te dar mais.

Ele me observou sem dar nenhum sinal físico de agitação, porém, eu ainda podia senti-la. Após um minuto ou mais, ele enfim cedeu.

— Volte para o seu mundo, mas esteja esperando a minha convocação. Ainda não terminamos, você e eu.

— Não.

Sorri.

— Certamente não acabamos.

 


 

Tradução: Reapers Scans

Revisão: Reapers Scans

QC: Bravo

 

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