O Começo Depois do Fim

O Começo Depois do Fim – Cap. 374 – Vozes

 

POV ELEANOR LEYWIN

Eu oscilava de um lado pra outro à medida que as costas de Boo balançavam com cada passo lento. Sua respiração era pesada e regular, quase sonolenta depois de ter se empanturrado de peixe brilhante. Estávamos no nosso ritmo, retornando do ponto favorito de pesca do Boo, e indo vagarosamente até a praça na frente da prefeitura.

Já conseguia ouvir o murmúrio das várias vozes combinadas. Soavam como dúzias, talvez até mais de uma centena…

Era estranho. Crescendo em Xyrus, um dia no mercado significava encontrar centenas, ou até milhares de pessoas. Nunca pensei muito sobre o barulho da multidão naquela época. Todas aquelas pessoas se mesclavam ao fundo, estavam lá, mas… não eram importantes.

Agora a ideia de tantas pessoas e cada uma delas havia passado por uma perda terrível, sobrevivendo ao pesadelo destes últimos meses, me deixava desconfortável. Constrangida. Mas apesar desse sentimento que se alojava em mim, uma luz dourada irradiava do meu núcleo, me enchendo de confiança e bravura.

Sorrindo, acariciei o pescoço do Boo.

— Obrigada. Eu sempre posso contar com você, não é mesmo, Boo?

O volume da multidão aumentava aos poucos à medida que me aproximava dos refugiados reunidos, quase todos elfos. Vários me deram olhares desconfiados quando passei, fiquei surpresa com quão desconfortável a multidão parecia. Não tinha certeza do que estava acontecendo e só estava aqui porque Albold havia me pedido em uma mensagem.

Minha mãe estava me esperando na entrada de um beco que levava à um dos jardins comunitários, longe do grupo denso de elfos que enchia a praça.

Ainda em cima de Boo, estendi a mão pra baixo e apertei a mão dela levemente.

— O que está acontecendo?

— Eu achei que você ia conseguir me dizer

Disse, e seus olhos estavam examinando a multidão, inquietos.

Seguindo seu olhar, percebi o porquê. Haviam mais elfos olhando pra mim agora. Alguns encaravam abertamente, outros tentavam disfarçar enquanto me olhavam de canto e cochichavam com amigos e família. E apesar de que alguns pareciam curiosos, ou até mesmo, tinha esperança, amigáveis, outros nem tanto.

Então percebi o motivo de Albold ter me chamado.

Me perguntei o que exatamente ele e Feyrith tinham dito a estes elfos. Será que tinha sido tudo que eu compartilhei com eles da conversa de Virion e Windsom? Isso parecia imprudente, mas não sabia exatamente o que eu estava esperando que eles fizessem com a informação. Mas pela maneira que as pessoas estavam olhando para mim, parecia ser o caso.

Me vi desejando que eles pelo menos não tivessem mencionado de onde obtiveram essa informação…

Não que eu estivesse com medo. Sentada nas costas de Boo e com a mão da minha mãe confortavelmente em volta da minha panturrilha, tinha a mesma sensação quente de quando, na infância, Art dormia ao meu lado enquanto me colocava na cama. Uma sensação de estar protegida.

Mas não podia deixar de pensar que toda essa infelicidade e frustração que eu via ao meu redor era culpa minha.

Umas duas semanas haviam se passado desde que contei para Albold e Feyrith sobre as mentiras de Virion e Windsom. Rinia havia me avisado para não me envolver, mas ainda sentia que eles deveriam saber. Sabia muito bem como era quando mentiam e escondiam coisas para me proteger. Meus pais sempre estavam escondendo de mim as coisas relacionadas ao Arthur. Mesmo quando as Lanças o levaram, eles inventaram muitas desculpas para que eu não me preocupasse.

Como se eu fosse estúpida demais para entender que quando minha mãe se trancava em algum cômodo e chorava, havia algo de errado.

Mas queria que me dissessem a verdade, para que eu pudesse crescer com ela, reagir ao mundo real e não só ao que meus pais decidiam me mostrar.

Ainda assim… sabia que os elfos talvez não sentissem o mesmo. Talvez em tempos assustadores como esse, algumas pessoas preferissem se manter ignorantes, alheios e se segurando nas palavras esperançosas de nossos líderes.

Então aguardei, esperando que algo acontecesse depois da minha conversa com Feyrith e Albold, quase que torcendo por isso só pra que tudo acabasse logo.

Porque, se algo ruim acontecesse, sabia que seria por minha causa.

— Obrigado por vir, Ellie

Alguém disse, vindo de trás. Me virei e sentei de costas em Boo. Feyrith e Albold tinham acabado de sair de um beco estreito.

— O que exatamente está acontecendo aqui?

Minha mãe perguntou, se movendo para ficar entre Boo e o par de elfos.

Ambos curvaram a cabeça pra ela e Feyrith disse:

— Graças à sua filha, nós elfos finalmente soubemos da verdade sobre o que aconteceu à nossa terra natal. E descobrimos que nossos líderes mentiram sobre isso, para proteger uma aliança com falsos amigos.

— Nós vamos fazer com que Virion explique a si mesmo e as suas ações.

Disse Albold assertivamente.

Feyrith me deu um sorriso discreto.

— Nós queríamos que você estivesse aqui, Ellie, para ouvir o que Virion tem a dizer e… dar a sua perspectiva, se necessário.

Ele rapidamente levantou a mão quando minha mãe fez menção de reclamar.

— Você foi guiada pela própria profeta Rinia. Você estava em Elenoir quando a destruição ocorreu… e foi a única sobrevivente do ataque. Foi você que ouviu as mentiras que Virion compartilhou com o Asura. Precisamos de você aqui, Ellie.

Então não estou aqui para ser questionada, pensei aliviada. Mas o que Virion vai dizer, ou negar, quando pedirem a ele uma explicação? De qualquer forma, essa reunião de elfos só estava acontecendo por minha causa e da informação que eu escolhi compartilhar.

Mamãe soltou um suspiro, dando um passo pra trás e olhando pra mim. Boo estava meio virado, para poder olhar os elfos, suas sobrancelhas apertavam seus olhos e seus dentes enormes estavam à mostra.

— Está tudo bem. — disse.

— Nós já estamos aqui. Eu só… Você precisava ter contado pra todo mundo que foi eu?

Um leve rubor apareceu nas bochechas de Feyrith e ele olhou pro chão.

— As pessoas precisavam ser convencidas de alguma forma só para virem aqui. Nós tivemos que dizer a elas exatamente como descobrimos a verdade.

— Ah.

Disse. Eu queria ficar brava, mas não conseguia culpa-los. Se não quisesse ser envolvida, afinal de contas, poderia ter simplesmente ficado de boca fechada.

Acho que não vou saber se o que eu fiz foi o certo ou errado até que eu veja como tudo isso vai acabar. Espero que a maioria das pessoas estejam felizes em descobrir a verdade, mas aposto que um bocado deles vai achar que estou mentindo, ou me culpar por causar problemas.

Olhei em volta novamente. Tinha mais gente olhando pra mim, agora que eu estava conversando com Feyrith e Albold. Uma velha elfa com uma bengala, membro do conselho, imaginava, estava vindo na nossa direção, mas atrás dela eu vi um rosto genuinamente amigável.

Acima da multidão, sobre os ombros de Jasmine Flamesworth, estava minha amiga Camellia, sorrindo e acenando pra mim. Seu cabelo loiro claro estava amarrado pra trás em finas tranças e um ramo de azevinho estava atrás de sua orelha. Ela deu um tapinha na cabeça de Jasmine e apontou em minha direção, evocando uma carranca da sua montaria.

O resto dos Chifres Gêmeos estavam com eles, quando eles se viraram em nossa direção, as pessoas abriram caminho para permitir passagem.

Helen me deu um sorriso acolhedor e acariciou o lado de Boo.

— Ellie. Eu deveria saber que eles iam te arrastar pro meio disso.

Ela olhou friamente para Feyrith e Albold, e seu sorriso sumiu.

Durden, que se destacava na multidão por ser pelo menos 10 centímetros mais alto que todo o resto, fechou a cara de forma exagerada, destacando as cicatrizes que cobriam metade de seu rosto.

— Ellie, você sabe que você está montada no seu urso de costas, né?

Camellia deu uma risada apreciativa depois da piada, mas parou rapidamente. Ela olhou pra baixo, deixando que uma trança de seu cabelo claro caísse sobre seu rosto.

— Me desculpem, acho que essa não é uma boa hora para risadas.

— Sempre há espaço para que a gente se lembre que estamos vivos ainda.

Angela Rose respondeu enquanto dava um abraço apertado em minha mãe.

A velha elfa finalmente veio até nós. Ela hesitou, olhando para os Chifres Gêmeos e pra mim.

— Desculpem a interrupção, mas…

Seu olhar pousou em Feyrith.

— Eu gostaria de uma palavrinha antes de começarmos.

Feyrith acenou, parecendo todo sombrio e sério. Mas quando olhou pra mim, havia uma suavidade em seu rosto que parecia ter desfeito um pouco do dano feito enquanto era cativo dos Alacryanos.

 — Obrigado novamente por estar aqui, Ellie.

E eles se foram.

Me virei para sentar corretamente em Boo e Camellia saiu dos ombros de Jasmine e subiu na garupa de Boo, atrás de mim. Seus braços me envolveram na cintura e ela descansou a cabeça em minhas costas, me apertando um pouco.

— A coisa vai esquentar.

Angela murmurou, com um braço ainda em volta de minha mãe.

— Vamos torcer para que não. — disse Helen.

— Mas se esquentar, se lembrem que nosso papel aqui é evitar que as pessoas machuquem uns aos outros.

Durden pulsou com mana e um braço de pedra se formou no lugar do que ele tinha perdido durante a batalha na Muralha.

— Estamos com você, como sempre, Helen.

Nossa estranha família ficou em silêncio enquanto esperamos.

Não demorou muito.

Albold e Feyrith andaram pela multidão até que subiram as escadas que levavam até o prédio do conselho. Os guardas que deveriam estar lá estavam ausentes e as portas estavam fechadas.

Albold tentou gritar alguma coisa, mas sua voz se perdeu no ruído. Feyrith atirou algum tipo de magia de água pra cima, onde estourou com um barulho sibilante e as pessoas se aquietaram.

— A maioria de vocês já sabe por que estamos aqui.

Disse quando a conversa acabou.

— Alguns de vocês já abriram os olhos para as mentiras do comandante e estão aqui para nos apoiar, mas sei que muitos de vocês ainda estão céticos. Não os culpo por isso.

Ele pausou, deixando que suas palavras se acomodassem na multidão.

— Companheiros elfos, nós já perdemos muito.

Sua voz falhou e ele pausou novamente.

— Ninguém pode curar o buraco que fizeram em nossos corações e almas ao destruírem nosso lar, ao cometerem genocídio do nosso povo. Mas eu, Fevrith Ivsaar III, estou dizendo que vocês merecem entender porque fizeram isso conosco.

A voz dele ficou mais alta enquanto falava, se tornando um grito que encheu a caverna.

— Mentiram para nós. Nos trataram como crianças. Nos pediram para que ficássemos ao lado dos nossos destruidores. Traídos pelos nossos próprios líderes!

Vários elfos aplaudiram após essas palavras, mas a maioria permaneceu quieta. Alguns responderam à mensagem de Feyrith com hostilidade flagrante, direcionando olhares ferozes para ele. Ao meu lado, vi Helen avaliando todos que eram potenciais ameaças, independente de qual lado da discussão eles estavam.

— Provas!

Um elfo de cabelos cinzas gritou, cortando os aplausos. Ele tinha sido marcado no pescoço e a queimadura ainda estava recente e com crosta.

— Como você ousa acusar Virion Eralith, um homem que lutou por nós a vida toda, de nos trair sem nenhuma prova!

Houveram alguns gritos de apoio, mas os que ficaram do lado de Feyrith vaiavam para tentar calar o homem.

— Nós devemos dar mais ouvidos às palavras de uma garota humana do que do nosso comandante?!

Uma elfa gritou, com olhos verdes brilhantes tão cheios de amargura e desdenho que senti a bile subindo na minha garganta.

A multidão começou a discutir e gritar, suas palavras se perderam. Tudo que eu conseguia ver era a divisão que isso causava, o rompimento de nossa resistência frágil e como tinham sido as minhas palavras que nos trouxeram até aqui.

— Espero que você não esteja levando as palavras deles pro pessoal, El.

Disse uma voz, e Emily Watsken veio de dentro da multidão. Cabelo encaracolado emoldurava o rosto sujo de cinzas dela, havia uma rachadura em uma de suas lentes.

— Em!

Escorregando pra fora do Boo, eu dei um grande abraço nela.

— O que aconteceu com você?

Ela esfregou sua bochecha, sujando ainda mais sua pele com cinzas.

— Uma explosão no laboratório, um dos projetos novos do Gideon… mas não se preocupe com isso. O que eu perdi?

Suspirei, me recostando em Boo.

— Nada além de um bocado de gritos e olhares bravos até agora.

Todo mundo disse seus olás, apesar de que os Chifres Gêmeos estavam mais focados na multidão fervendo. Subi de volta no Boo, me reclinando em Camellia, que descansou seu queixo em meu ombro.

— Ninguém realmente tá te culpando por nada, sabe.

Ela disse em um sussurro.

— Eles só estão assustados.

— Não estamos todos?

Resmunguei, então soltei um suspiro desnecessariamente longo.

— Eu só…

Minha mãe apertou minha perna e me deu um sorriso.

— Se ver no meio de eventos que alteram o mundo aparentemente é a maldição de meus filhos.

Segurei a mão dela e ri um pouco.

— Nós somos sortudos, eu acho.

Na frente do prédio da prefeitura, Albold havia dado as costas para a multidão e estava batendo nas portas.

— Virion! Virion, seu povo precisa ouvir a sua voz. Responda às acusações, ou você será tido como—

As portas se abriram de repente, quase arremessando Albold pra trás.

A Lança, Bairon Wykes, agora guarda pessoal do Comandante Virion e membro do conselho, estava parado na entrada, com sua armadura brilhante cheia de eletricidade. Seus olhos queimavam enquanto pequenos raios pulavam dele para as paredes e pro chão, deixando marcas de queimadura na pedra.

— Vão embora.

Ele ordenou, sua voz cheia de um poder que eu raramente havia testemunhado de perto. Mesmo com vinte metros nos separando, podia sentir a descarga estática arrepiando minha pele e pequenos arcos de eletricidade pulavam entre os pequenos pelos em meus braços.

— O comandante não vai ser arrastado da sua casa por uma turba. Se você quiser conversar, agende um compromisso.

Feyrith e Albold se recuperaram rapidamente.

— Nosso próprio comandante, que já foi rei de Elenoir, manda seu cão de caça para nos afugentar. Qual é o seu plano, Lança? Você vai—

— Já basta, Bairon.

Uma voz áspera saiu de dentro da prefeitura. A multidão, que quase ficou louca com as ameaças do Lança, ficou quieta e parada como um campo de rochas.

— Eu vou falar com o meu povo.

A Lança deu um olhar feroz em volta, antes de sair pra fora e se mover para o lado. Virion veio atrás dele.

Apesar de que o velho elfo estava com as costas retas e dava cada passo com firmeza e confiança, senti imediatamente que algo estava errado. Ele estava vestido em vestes de batalha verde-floresta, bordadas com folhas e vinhas douradas, usava o cabelo amarrado para trás em um rabo de cavalo, fazendo com que emitisse uma poderosa aura de realeza…, mas isso não era o suficiente para esconder o cansaço profundo que pairava sobre ele como uma nuvem negra.

Não falou imediatamente, mas deixou que seus olhos afiados passassem pelos refugiados reunidos. Onde olhava, os elfos abaixavam a cabeça. Alguns estavam chorando, seus fungos suaves eram o único som que se ouvia.

— Meus irmãos e irmãs.

Começou e sua voz era tanto firme quanto suave, de alguma forma. Com um tom experiente de comando, mas também uma projeção de avô compreensível.

— Vocês chamaram por mim, então aqui estou.

Não sabia como interpretar a expressão de Virion quando seus olhos examinaram a multidão.

— Me dói ver todos nós assim, a última escória de nossa civilização, escondida abaixo da terra ao invés de prosperando nas florestas nas quais nascemos…, mas mais ainda me incomoda que estamos sendo divididos, num momento em que precisamos nos juntar mais do que nunca.

— Ninguém está questionando o que você disse.

Feyrith respondeu dos primeiros degraus, olhando para cima até Virion. Ele gesticulou em direção aos espectadores com uma das mãos.

— Mas é difícil encaixar a sua mensagem com a realidade da nossa situação, pelo menos para mim. Nossa casa se foi, Virion… e os Asuras de Epheotus a tomou de nós. Não foram os Alacryanos. Você nega isso?

Virion acenava com a cabeça enquanto Feyrith falava. Antes dele responder, respirou profundamente.

— Não, eu não nego.

Houve uma inquietação nas pessoas, algumas gritaram desacreditadas, outras exigiram saber o porquê, ainda outras que diziam que Virion estava sendo manipulado de alguma forma.

— Então porque mentir?

Albold elevou a voz acima do ruído.

— Foi uma mentira necessária, que eu contei para que os trapos da nossa civilização não se desfizessem no desespero.

Enquanto falava, ergueu a cabeça, encarando as acusações sem vacilar.

— Eu posso lamentar a necessidade dela, mas numa situação similar, eu tomaria a mesma decisão novamente.

— Você protegeria os Asuraa ao invés do seu próprio povo?

Feyrith perguntou, descrente.

Virion se endireitou, o olhar que direcionou ao jovem elfo estava cheio de fogo.

— Você está vendo um Asura diante de você ou estas orelhas não são prova da minha linhagem?

Sua explosão repentina abafou todo o ruído.

— Você realmente acha que o meu luto por Elenoir não é tão profundo quanto o de vocês, mesmo que eu tenha vivido tanto tempo e lutado tanto por ela? Os asura destruíram Elenoir? Sim! E no ato, eles eliminaram um ponto estratégico inimigo neste continente, além de cortar as cabeças de muitas das famílias mais poderosas em Alacrya. Eles queimaram os acampamentos inimigos e laboratórios de magia. Eles destruíram muitos dos dispositivos de teletransporte de longo alcance que conectavam Dicathen a Alacrya.

De onde estava observando, pude ver o momento exato que se formou uma rachadura na postura real e disciplinada de Virion, a empatia e emoção tomavam conta à medida que os olhos de Virion se umedeciam com lágrimas mal contidas.

— Mas eles não tomaram nosso lar.

Virion apertou uma mão em seu peito, gesticulando para a multidão com a outra.

— Onde quer que formos, o que quer que aconteça com o povo élfico, nós carregaremos nosso lar conosco. Árvores podem ser replantadas. Casas reconstruídas. Magia recuperada. Ninguém pode tirar isso de nós.

— Mas as pessoas que eles mataram não podem nascer de novo!

Alguém gritou com a voz cheia de emoção.

— Isso é guerra!

A voz áspera de Virion falhou e a palavra “guerra” desceu como uma árvore caindo na multidão.

— Sacrifício é necessário, mesmo quando o preço parece ser alto demais.

O fogo, que brilhou tanto que por um instante pareceu que ia irromper dele, morreu, deixando pra trás um elfo muito velho e muito cansado.

— Não deixem que esta tragédia nos coloque em uma situação ainda pior. Não podemos lamentar apropriadamente aqueles que perdemos até que consigamos salvar todos os que ainda faltam…

A multidão estava em silêncio, observando Virion, Feyrith e Albold com olhos arregalados e úmidos.

Não concordava com Virion. Mas… o entendia. Seu povo estava tão frágil, já havia passado por tanta coisa. Ele só estava tentando os poupar de mais dor.

Depois de uma longa pausa, Virion fez um gesto pra trás.

— Foram os alacryanos que atacaram nosso continente, invadiram nossas casas, assassinaram nossos amigos e famílias… executaram nossos reis e rainhas… uma lágrima solitária desceu do olho de Virion, viajando em zigue zague pelo seu rosto austero.

— Essa guerra termina quando eles forem expulsos de nossas terras.

Ele se virou para pegar algo da chefe da guarda, Lenna Aemaria, que se curvou e recuou de volta para a prefeitura. Quando se virou pra nós, estava segurando uma caixa longa e decorada. Ela era feita de uma madeira escura, de um preto profundo, ornada com um metal prateado luminescente. Com uma mão, abriu a tampa, revelando o conteúdo para todos.

Era uma vara, de mais ou menos um metro, com uma empunhadura vermelha enrolada com anéis dourados a cada poucos centímetros. Na ponta da vara, havia um cristal que brilhava com uma luz lavanda difusa. Era linda, mas olhar pra ela me deu arrepios.

— Agora vocês sabem dos artefatos que eram usados para empoderar as Lanças, que foram mantidos em segredo da população e usados para garantir a segurança de nossos reis e rainhas ao criar e vincular os magos mais poderosos do continente sob seu serviço.

Virion disse para a plateia encantada.

— Aqueles artefatos não mais servem um propósito.

Virion continuou, com a voz suave e quase reverente.

— E então, para mantê-las longe das mãos inimigas, nossos aliados Asura garantiram que elas não seriam usadas novamente.

Vários dos espectadores gritaram com medo, mas Bairon gesticulou para que fizessem silêncio, com eletricidade correndo entre seus dedos.

— Ao invés disso, eles nos deram artefatos novos.

Disse Virion, elevando a voz, cada vez menos cansado e mais poderoso. Ele segurou a caixa no alto, fazendo a gema lavanda brilhar na luz suave da caverna subterrânea.

— Este é um dos três artefatos capazes de elevar um mago para núcleo branco ou além, o que poderia ser a nossa melhor chance de lutar contra os Alacryanos. Cada artefato foi especialmente ajustado para uma das três raças de Dicathen, e não podem ser usados por ninguém com sangue Vritra, tornando-os inúteis para os Alacryanos.

Fiquei surpresa com o número de aplausos que vieram da multidão. Olhando em volta, percebi que a maioria dessas pessoas tinha vindo aqui por conta do medo, não em busca da verdade e Virion tinha acabado de dar-lhes um vislumbre de esperança. Subitamente, quem tinha sido o causador do desastre em Elenoir não importaria tanto caso tivéssemos armas como essas para lutar contra os Alacryanos.

— Isso é… muito bom, não é?

Camellia perguntou, ainda sentada atrás de mim.

As pessoas estavam gritando perguntas ou elogios, mas uma voz subiu acima de todas as outras.

— A quem vai ser dado este presente, Comandante Virion?

Virion fechou o rosto e suas sobrancelhas se franziram quando ele fechou a caixa e a devolveu para Lenna. O silêncio reinou mais uma vez, enquanto aguardávamos por uma resposta.

— Ainda há muito o que ser decidido.

Admitiu, dando o primeiro passo para descer as escadas.

— A maneira de antes, selecionar apenas dois guerreiros de cada raça, não será mais suficiente. Com estas novas relíquias, nós poderíamos criar um destacamento inteiro de Lanças, e—

— Causar uma devastação nunca antes vista ao mesmo tempo que prendemos os nossos defensores mais poderosos ao Clã Indrath.

Uma voz rouca interrompeu de algum lugar no público.

Examinei rapidamente os rostos surpresos até que eu a encontrei. Uma postura encurvada, envolta em uma capa e um cobertor, saiu de dentro de uma das casas ao redor da praça, puxando seu capuz para trás.

A multidão se abriu para dar espaço a ela. Alguns dos elfos se curvaram em respeito, mas a maioria lançou olhares cuidadosos ou até mesmo hostis.

Ela não se importou, andou trêmula até Virion.

— Estes artefatos são feitos para nos prender no poder. Garantir a nossa subserviência. Eu sei o que vai acontecer se usarmos eles.

A carranca de Virion fez rugas profundas em seu rosto. Mas ao invés de raiva, achei que sua expressão mostrava mais tristeza e arrependimento.

— Rinia. Por favor, venha pra dentro para que possamos discutir isso melhor.

Ignorando Virion, a Anciã Rinia olhou para os lados, encarando aqueles que estava perto dela.

— Se forem usadas, estas relíquias realmente ajudarão os nossos magos a ficarem mais fortes, o suficiente para lutar contra as Foices Alacryanas. Juntos, em número, fortes até mesmo para lutar contra os Asuras do Clã Vritra.

O público começou a sussurrar, mas pararam rapidamente.

— Nosso inimigo vai responder com o aumento dos seus esforços neste continente, uma distração planejada pelo Clã Indrath. As batalhas a seguir deixarão o continente em ruínas. Xyrus será derrubada dos céus. Etistin, quebrada e levada pelo oceano. A Muralha, derrubada até o chão. Dicathen, nosso lar, ficará em ruínas, com titãs ainda batalhando por cima dos destroços.

Virion estava quieto quando perguntou.

— E o que acontecerá se nós recusarmos a mão da amizade de Lord Indrath e quebrar nossa aliança com os asuras? Sem aliados e sem esperança, eu não preciso de visões do futuro para entender o destino do nosso continente.

Rinia zombou ironicamente.

— Seus aliados vão usar nosso povo como fertilizante, a partir do qual eles vão construir uma nova nação depois que a guerra deles com os Vritra acabar.

A atitude dela se aliviou um pouco e olhou para seu velho amigo.

— Existem tão poucos de nós, Virion. Não faça com que os últimos elfos marchem para sua própria extinção.

— Então o que devemos fazer?

— Os deuses se viraram contra nós—

— …morrer lutando, pelo menos!

— …aceitar o presente dos asura—

— …destruir os artefatos—

Isso continuou por um tempo. Helen e os Chifres Gêmeos ficaram vigilantes, caso as coisas se intensificassem, mas ninguém foi além do grito ou empurrão ocasional. Camellia permaneceu comigo, com sua bochecha em minhas costas, seu corpo tenso como um arco. Minha mãe abraçou minha perna e se escorou em Boo, seu rosto era um enigma.

— Eu me pergunto como eles funcionam?

Ouvi Emily dizer baixinho.

— Vou ter de perguntar para o Gideon…

Depois de alguns minutos assim, uma pressão intensa, como uma tempestade chegando, encheu a câmara e fez meus ouvidos estralarem.

Todos ficaram em silêncio quando o Lança Bairon deu um passo à frente.

— Silêncio, ele disse com firmeza.

Virion olhou para Rinia como se procurando por algo.

— Temos uma escolha diante de nós então. Mas…

O olhar dele passou pela caverna, parando em Albold e Feyrith e em outros líderes entre os elfos, antes de pousarem em meus próprios olhos.

— Se todos vocês querem ser ouvidos, se vocês desejam carregar o peso não apenas de suas próprias vidas, mas também a de outros, então isso é exatamente o que faremos.

Bairon deu um olhar preocupado em sua direção, mas logo ficou impassível.

— Conversem com seus familiares. Espalhem essa informação para todos neste santuário, para que cada um de nós, tão deslocados pelos Alacryanos, possa expressar nossos desejos. Em três dias, todos os humanos, anões e elfos neste santuário vão ter a chance de votar em relação a este assunto e determinar a direção do nosso povo. Para o bem ou para o mal.

Minha mãe se afastou, se virando para ir embora, mas fiquei observando Virion enquanto descia vagarosamente as escadas da prefeitura.

A multidão começou a se dispersar, mas alguns permaneceram para conversar com Feyrith e Albold, outros se reuniram ao redor de Rinia como se ela fosse uma vela numa sala escura e no meio disso tudo eu mal consegui ouvir as palavras de Virion quando se aproximou da Anciã Rinia.

— Rinia. Entre. Vamos conversar, como nós costumávamos.

A velha vidente apertou mais seu cobertor em volta dos ombros.

— Não posso. — respondeu rudemente.

— Você não me ouve mais como costumava.

Ela se retirou, com muitos elfos a seguindo e Virion me pegou olhando para eles. Ele inclinou sua cabeça levemente em minha direção e suas emoções eram ilegíveis atrás da fadiga e renúncia que eram óbvias em cada pequeno movimento.

 


 

Tradução: Reapers Scans

Revisão: Reapers Scans

QC: Bravo

 

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