O Começo Depois do Fim

O Começo Depois do Fim – Cap. 370 – Não Autorizado

 

POV ARTHUR LEYWIN

Nico deu um meio passo até mim, com a mandíbula tensa e uma veia pulsando visivelmente em sua testa. Estacas negras se lançavam do chão a cada movimento, sua pela estava impregnada com fagulhas das chamas negras.

 — Mesmo depois de duas vidas, você não mudou nada.

O sorriso falso sumiu do meu rosto com as palavras dele, evitei palavras mais provocativas. O resto de orgulho que eu tinha sentido ao atrair o Nico pra esse confronto, no qual ele não poderia escapar ou pedir por ajuda, sumiu agora que ele estava diante de mim. Seu rosto, no qual restava apenas um resquício da similaridade com o Elijah, me enchia de emoções conflitantes.

Ele foi o meu melhor amigo em duas vidas, afinal de contas. Primeiro como Nico e então com o Elijah. Eu o decepcionei em ambas. Foram esses fracassos, em parte, que levaram ele a se tornar quem era agora.

Rancoroso. Desesperado. Apenas o esqueleto de um homem.

Ainda assim… Eu não o culpava por me odiar.

Não poderia.

Não podia nem o culpar pelo que fez nessa vida… por mais fácil que isso teria sido. Ele foi reencarnado aqui apenas para ser manipulado e usado como uma ferramenta por Agrona. O Destino não deu a ele a oportunidade de aprender com os erros da sua vida passada. Ao invés de uma segunda chance, o medo, insegurança e ódio de Nico foram manipulados e usados como uma ferramenta e arma desde os primeiros momentos de sua vida.

Mas independentemente de como nós dois chegamos a esse ponto, já não existe mais espaço para perdão, pra reconciliação.

Apesar de saber o quanto a Tessia significava pra mim, Nico ajudou Agrona na reencarnação da Cecilia, usando o corpo de Tess como um receptáculo e ainda não entendia quais as consequências isso teria. A mesma Cecilia que queria tanto evitar ser usada como arma a ponto de se jogar em minha espada pra fugir desse destino…

E ele, no seu egoísmo e ignorância infinitos a entregou pra Agrona.

— Diga algo!

Nico vociferou, quase gritando. Uma onda de chamas espirituais corroeu o chão abaixo dele, passou a flutuar.

— Tipo o quê?

Surtei, depois de sua reclamação petulante irritar meus nervos como uma ferida antiga.

— Dizer que eu não matei Cecilia? Que eu nunca quis abandonar vocês dois? Você ao menos ouviria se eu te dissesse a verdade? E o que isso mudaria, Nico? Certamente não o fato que você matou milhares de inocentes, que você levou a Tessia por puro egoísmo…

— Eu só levei de volta o que me pertencia!

Gritou, seus olhos queimando com um ódio negro.

— O que eu deveria ter. Isso é destino. Assim como é você morrer. Novamente.

Não sei porque, mas a finalidade da declaração de Nico causou uma dor profunda dentro de mim. Desejei, naquele momento, que eu pudesse desfazer tudo que tinha acontecido. Que Cecilia tivesse sobrevivido e que eles tivessem fugido juntos como estavam planejando. Que eu não tivesse me afastado deles pra treinar com a Lady Vera e que eu tivesse me esforçado mais pra ajudar Nico a encontrar a Cecilia quando ela desapareceu.

Tinha tanto que eu poderia ter feito de maneira diferente.

Mas eu não fiz. E apesar de que podia olhar pra trás para o caminho que eu percorri, não podia mudar seu formato. Nem podia mudar o destino aonde ele me trouxe. Mas podia olhar pra frente e fazer novas escolhas, escolhas diferentes, para mudar minha direção.

Desde que acordei nas Relictombs, tinha sido frio e indiferente. Era necessário, sabia disso. Não me culpava por essa necessidade.

A persona de Grey era como um escudo, que usei pra cercar a minha mente, mantendo de fora pensamentos sobre aqueles que eu não podia ajudar agora: Tessia, Ellie, minha mãe, todos que estavam em Dicathen… ao invés disso, foquei nas Relictombs e em procurar as ruínas que Sylvia me instruiu em sua última mensagem, além de tentar entender minhas novas habilidades e o novo mundo no qual eu me encontrava.

Mas era hora de seguir em uma direção diferente. E isso começaria com Nico.

Não pude evitar que minha expressão suavizasse, exibindo a minha tristeza e pena sem filtros.

— Não faça isso. Não me olhe assim.

Nico disse, balançando a cabeça em desafio.

— Eu não quero a sua compaixão.

Meu corpo relaxava à medida que aceitava o que estava prestes a acontecer.

— Eu gostaria que as coisas tivessem sido diferentes.

 

POV SERIS VRITRA

Eu friccionava uma unha na outra até ouvir um estalo, que era um hábito de infância do qual tinha me curado há tempos, ou pelo menos achava que sim.

A trama do Arthur havia ultrapassado os meus planos, novamente.

Estava surpresa, vacilando entre uma tentativa apressada de colocar as peças no lugar e uma aceitação silenciosa de que eu não entendia completamente o que estava acontecendo.

Ainda assim, não tinha chegado até onde cheguei sendo estupida e depois de considerar por um momento, percebi que o plano de Arthur tinha sido bem simples, e mesmo assim eficaz.

A aliança impaciente e trôpega de Nico com os Granbehl’s, que compartilhavam seu ódio pelo Arthur. A represália sem cautela de Arthur, sua tentativa superficial de cobrir seu rastro.

Nico precisaria ter mais autocontrole para poder crescer a força de seus aliados o suficiente pra então ser uma ameaça ao Arthur. Sua natureza impulsiva ia contra o uso de subterfúgio. Quando seu golpe mal planejado falhou, Arthur sabia que ele teria um chilique.

Nico sempre foi um garoto temperamental. Assimilou o conceito de poder de um homem fraco, a ideia de intelecto de um tolo e a visão de maturidade que uma criança tem. Ainda assim, nunca descartei seu potencial. As outras Foices ainda não enxergavam isso, mas nenhuma das reencarnações eram o que pareciam. Cada uma delas era uma força de mudança, de caos, em sua própria maneira.

Ao ver Nico e Arthur, ou Grey, que em várias maneiras era uma pessoa diferente do garoto que eu salvei em Dicathen, se encarando no campo de batalha, senti uma empolgação repentina.

— Uma interrupção não programada, mas talvez essa seja uma oportunidade para o pequeno Nico provar a si mesmo.

Disse Dragoth com uma risada despreocupada.

— Provar a si mesmo?

perguntou Viessa, sua voz era apenas um assobio baixo.

— Apenas por lutar com esse… o que, um professor de escolinha? Nico se envergonha assim e por consequência, a nós também.

O Soberano Kiros soltou um bufo irritado, seus olhos entediados se moviam aleatoriamente pela tribuna, que tinha sido equipada com todos os confortos imagináveis.

— Contanto que isso não atrase muito as coisas

Grunhiu. Seu olhar se demorou no canto mais escuro da sala.

— Talvez você devesse ir castigar seu irmão-de-armas.

Cadell deu um passo pra fora das sombras e se curvou perante Kiros.

— Perdoe a impudência da Foice Nico, Soberano. O Alto Soberano o deixou sem coleira por muito tempo, eu temo.

Os lábios de Kiros se torceram em um meio sorriso seco.

— Você questiona as ações ou julgamento do Alto Soberano, Foice?

Cadell se ajoelhou e colocou ambos os braços em um dos joelhos.

— Não, Soberano Kiros, é claro que não.

— Eles estão dizendo alguma coisa.

Disse Melzri, se inclinando no parapeito e virando sutilmente sua cabeça.

— Provocações inúteis.

Ela lançou um olhar sombrio para Viessa.

— Nós devíamos ter surrado mais o Nico durante seu treinamento.

— Quem é esse Grey, afinal?

Dragoth perguntou, olhando para o resto de nós.

— Ele me parece familiar.

Cadell, novamente de pé, estava observando das sombras ao invés de vir pra varanda como o resto de nós.

— Um homem morto.

Disse simplesmente, encontrando meus olhos ao falar.

Então Agrona não confirmou a presença de Arthur em Alacrya com o restante das Foices, mas ele disse para Cadell. Interessante.

Não tinha certeza do quanto acreditar na insistência de Agrona que Arthur não significava mais nada pra ele. O Alto Soberano frequentemente jogava seus próprios jogos, alguns com objetivo, alguns apenas para entretenimento. Haviam momentos em que trabalhava contra seus próprios propósitos, talvez apenas para confundir qualquer um que estivesse tentando acompanhar, incluindo seus aliados, ou talvez porque tinha prazer em não saber exatamente como as coisas se desenrolariam.

Abaixo de nós, Arthur puxou a capa branca dos seus ombros e fez ela sumir com um floreio. Não houve nem um sinal de mana saindo dele, um fato que os outros foram rápidos em comentar.

— Seu controle sobre a mana é perfeito.

Disse Viessa, apertando seus olhos totalmente pretos ao olhar para Arthur.

Não tentei ocultar meu divertimento com essa declaração e ela se virou pra mim. Já havia algum tempo desde que eu tinha conversado com a Foice de Truacia. Enquanto trocávamos olhares, reparei em sua expressão, postura e características.

Sua pele era tão pálida quanto seus olhos eram negros, um mar de cabelos roxos se derramavam sobre seus ombros e pelas suas costas. Ela era mais alta do que eu, ficava ainda mais evidente por conta das botas de couro que usava, que eram de uma cor azul esverdeado que combinava com as runas costuradas em seu rico manto de batalha branco e cinza. Os vazios negros de seus olhos eram sempre ilegíveis, seu rosto de porcelana raramente deixava escapar alguma emoção.

De todas as Foices, Viessa era a que eu tinha mais dúvidas.

Mas não pensei muito nela nesse momento. Tinham coisas mais interessantes pra me concentrar.

— Eles vão lutar.

Na arena, Arthur e Nico tinham se separado, deixando uma distância de seis metros entre eles. Nico estava dentro de um inferno de fogo negro. Arthur parecia ser feito de gelo.

Com um grito raivoso, Nico avançou. O chão se desfez abaixo dele, sendo destruído quando estacas negras cresciam como erva daninha onde quer que sua sombra tocasse. Um redemoinho de chamas negras se enroscava em volta dele, se estendia à sua frente à medida que se preparava pra derramar o fogo negro em Arthur.

Mas Arthur nem piscou diante da fúria de Nico. Teria achado que ele era louco, se não tivesse mais informações.

Arregalei os olhos e me inclinei no parapeito ao lado de Melzri, mais do que pronta pra finalmente ver por mim mesma o poder que Caera tinha descrito.

Com um rugido faminto, as chamas de Nico explodiram pra frente. A mão de Arthur se levantou, e um cone de energia ametista saiu de encontro ao fogo.

Onde os dois poderes se tocaram, se mesclaram e consumiram um ao outro, cada um cancelando perfeitamente o outro lado.

— Impossível. — Cadell grunhiu da parte de trás.

— Ah, agora isso está interessante.

Disse Kiros, se inclinando pra frente no seu trono.

— Você aí, Melzri, saia da frente, está bloqueando minha vista.

Estacas negras saíram do chão ao redor de Arthur, mas elas colidiram contra uma camada de éter brilhante que envolvia sua pele como uma luva.

Nico emergiu da nuvem de trovoadas que restou após a colisão do éter e do fogo espiritual, com uma dúzia de novas lâminas de metal negro orbitando em volta dele. Com um empurrão, ele as enviou como mísseis na direção de Arthur.

Uma espada se materializou na mão de Arthur. Uma lâmina de puro éter, brilhando como uma ametista vibrante. O ar ao redor dela se distorcia de uma maneira que fazia meus olhos doerem, como se a lâmina estivesse pressionando o tecido do mundo para que ela pudesse existir. Em movimentos tão rápidos que a maioria não conseguiria acompanhar, Arthur cortou estaca após estaca, deixando os pedaços passarem por ele ou ricochetearem em sua pele protetora.

E então, Nico avançou sobre ele.

A colisão enviou tremores pelas fundações do estádio, por um momento perdi a visão do que estava acontecendo. A arma de Arthur era uma linha acesa de luz roxa brilhando através de uma tela de poeira. Nico era uma silhueta, destacada pela nuvem de fogo negro que ainda o cercava.

A linha de luz roxa cruzou com a silhueta negra…

E então, Nico estava voando pra longe de Arthur, tropeçando no ar como um boneco.

O corpo de Nico atingiu o chão da arena com um impacto que abriu uma cratera na metade do estádio atrás de Arthur.

— Espera, o que aconteceu?

Dragoth perguntou, sua voz grave carregada com confusão.

Viessa soltou o ar lentamente.

— O núcleo de Nico…

Ela estava certa. A mana já estava abandonando Nico. Podia sentir ela saindo de seu núcleo arruinado e se dispersando na atmosfera em volta.

— Oh

Dragoth grunhiu.

— Eu acho que eu estava errado sobre ele provar a si mesmo.

— Cale a boca, seu tolo.

Disse Melzri, pulando da sacada e atingindo o chão abaixo com força suficiente pra rachá-lo.

Finalmente Arthur se virou. Seus olhos dourados seguiram a linha da trajetória de Nico até onde seu corpo quebrado estava jogado. O olhar dele se fixou em Melzri, mas quando ela parou pra se ajoelhar ao lado de Nico, seus olhos subiram até a tribuna.

O tempo, que estava se arrastando, finalmente voltou a correr.

Ouvi a plateia com seus suspiros de choque e gritos assustados; os guardas com suas perguntas em voz alta; os oficiais do evento procurando como proceder; e finalmente as pedras caindo e a madeira se quebrando nos túneis abaixo da arena de combate.

Reparei na preocupação de Melzri, na frustração de Viessa, na curiosidade de Dragoth e no distanciamento frio de Cadell.

Já estava considerando as maneiras pelas quais eu poderia tirar o Arthur dessa situação, mas me contive. Isso era parte do seu plano. Ele já teria preparado sua fuga, se é que ela seria necessária. O que meus colegas Foices iriam fazer, afinal? Nico tinha desafiado o Arthur, ou aceitado o seu desafio, em suas próprias palavras. E tinha sido o Nico que interrompera o Victoriad. Arthur não tinha feito nada de errado…, mas ainda assim tinha mandado uma mensagem.

Em alto e bom tom, realmente.

Eu pensava, estava torcendo, que Arthur iria simplesmente se retirar, dando um fim ao confronto antes que se intensificasse. Ao invés disso, caminhou com confiança na direção da tribuna, passando por Melzri, que examinava a ferida de Nico.

— Eu peço perdão pelo atraso que este duelo causou nos eventos de hoje, mas temo que uma interrupção adicional seja necessária.

Gritou, garantindo que sua voz fosse ouvida não só no camarote, mas por todo o coliseu.

— Este duelo foi um desafio não autorizado.

Viessa respondeu friamente, sua voz se projetando sem esforço pelo estádio.

— Qualquer que tenha sido a razão para seu ataque em nosso colega Foice, saiba que derrotá-lo não te garante nada do Soberano Kiros, ou do Alto Soberano, e não te dá direitos para exigir a posição da Foice Nico, ou nos pedir por qualquer coisa.

Arthur encarou os olhos negros de Viessa sem piscar. A linha definida de seu maxilar estava relaxada, seus lábios firmes e retos, e sua postura atenta, mas calma. Era como se ele fosse a pessoa no comando aqui.

— Eu respeito as regras que vocês estabeleceram.

Arthur continuou, se posicionando com as mãos entrelaçadas atrás de suas costas e suas pernas mais abertas, numa postura levemente mais agressiva.

— Ainda assim, foi sua Foice que instigou e me forçou a fazer esse desafio fora do protocolo.

A figura de Dragoth se expandiu, crescendo quase um metro. Com ambas as mãos no parapeito, ele olhava pra baixo na direção de Arthur, sua curiosidade velada transparecendo em seu maxilar e sobrancelhas.

— Certo. Então o que é que você quer? Talvez se você implorar, nós seremos…

— Não.

Arthur disse, sua voz interrompendo a pompa de Dragoth como um chicote.

Dragoth, sempre mais relaxado do que outras Foices, respondeu a essa ofensa só com uma risada, o que em outra circunstância teria sido punido com morte.

Quando Arthur continuou a falar, encontrou meus olhos por um momento, então direcionou o olhar pra Cadell, falando com uma certeza tranquila que contradizia a natureza extraordinária do seu pedido:

— Eu só peço por coisas que ganhei. Quero desafiar a Foice Cadell do Domínio Central.

Os lábios de Viessa se torceram no que me pareceu quase uma careta.

Ao lado dela, Dragoth fez um gesto na direção do campo de batalha.

— Nós não temos que entreter desafios de professores de escolas.

Abaixo, Melzri estava segurando um frasco de elixir, sua mão estava parada antes de administrar o remédio na boca de Nico, seus olhos estavam arregalados e sua boca parcialmente aberta.

Apenas cinco minutos antes, presumiria que qualquer conflito entre Arthur e Cadell seria uma vitória unilateral. Se Arthur tivesse explicado seu plano completo pra mim, de não apenas atrair Nico pra uma luta onde ninguém iria intervir em favor dele, mas também para desafiar o Cadell diante do Victoriad inteiro, o teria dissuadido ou removido ele do torneio, se necessário.

O que é justamente o motivo dele não ter explicado.

Agora, qualquer recurso que eu poderia ter usado pra removê-lo, ou pra ajuda-lo a escapar, se foi. Com meu olhar em Melzri e Nico, percebi que eu não tinha mais certeza das habilidades de Arthur. Apesar de que Nico não era Cadell, ele ainda era uma Foice…, mas ele se deixou ser atraído pra uma situação desconhecida, caindo na armadilha de Arthur. Cadell não seria tão tolo.

Olhei nos olhos de Cadell. Sua carranca se transformou em uma careta. Minhas sobrancelhas se ergueram. As dele se franziram.

— Não.

Disse finalmente, apenas alto o suficiente pra que só nós o ouvíssemos.

— Foices não podem começar a entreter todo desafio que aparece. Fazer isso nos diminuiria e daria uma plataforma para que qualquer tolo que se acha importante pudesse…

— Ele é alguém que derrotou um de nós com apenas um golpe. — interrompi.

— É…

Dragoth disse com uma risada baixa.

— Não me diga que o Cadell, matador de dragões, está com medo de um professor de academia?

— Devemos mostrar ao povo que não somos tão fracos quanto Nico nos fez parecer.

Viessa comentou.

Os olhos de Cadell brilharam.

— Esse desafio está abaixo de mim. Ele não é—

Soberano Kiros se moveu no seu trono.  Foi um pequeno movimento, mas a discussão foi encerrada. Todos nós nos viramos para ele.

Kiros era alto e largo como Dragoth, apesar de não ser tão esbelto. Chifres grossos cresciam a partir de sua cabeça, se curvando pra cima e pra frente, até virarem pontas afiadas. Anéis dourados de várias espessuras ornamentavam os seus chifres, alguns cheios de gemas, outros gravados com runas pulsantes. Seu cabelo dourado estava raspado na lateral e próximo aos chifres, atrás estava amarrado em um rabo de cavalo. Roupas vermelhas brilhantes complementavam sua aparência.

Ele jogou uma fruta roxa e suculenta em sua boca e começou a falar enquanto mastigava, escorrendo polpa pelo queixo.

— Vá. Esse homenzinho estranho despertou meu interesse. Gostaria de ver mais do que ele é capaz, então não acabe com as coisas muito rapidamente.

Cadell se endireitou, então se curvou profundamente antes de se virar e sair da sacada. Independentemente do que desejava, não podia recusar uma ordem de Kiros.

Foi com uma sensação cada vez mais profunda de apreensão que observei Cadell flutuar até o campo de batalha enquanto olhava pra Arthur. Esperou até que Melzri pegasse Nico, ou o corpo do garoto, já que pela falta de mana eu não conseguia sentir nada e saiu da arena.

— Eu aceito.

A voz de Cadell estava marcada com amargura.

— Mas essa batalha…

Pausou, deixando as palavras flutuarem.

— Vai ser até a morte.

A falta de respiração da plateia era audível.

— É…

Arthur respondeu, dando vários passos pra trás na direção do centro da arena semi destruída.

— Certamente será.

Cadell não perdeu tempo e não deu nenhum aviso. Uma aura de chamas negras se acendeu no ar, ao redor de si, formando um cone que se estendeu até o chão. A plataforma da arena onde Arthur se encontrava foi obliterada, a terra foi queimada deixando uma cratera do tamanho do campo de batalha, com Arthur sumindo dentro dele.

A plateia suspirou quando o inferno se dissipou.

Arthur não havia se movido, porém agora estava na base de uma cratera profunda. Seu corpo estava intacto, não havia fogo espiritual queimando nele, consumindo sua força de vida como deveria.

Tive que me segurar pra não dar um sorriso desgostoso.

Tinha sido um bom truque. De onde Cadell estava, com sua visão obscurecida pelo próprio ataque, ele provavelmente não tinha visto e o movimento foi muito rápido pra alguém da plateia seguir, mesmo com a visão reforçada por magia. Por um instante, apenas por tempo suficiente pra que a onda de fogo passasse, Arthur desapareceu com um brilho de luz púrpura.

Caera havia mencionado essa habilidade, mas a velocidade incrível e o controle que Arthur exerceu impressionou até mesmo a mim.

O sentimento crescente de ignorância roía de dentro de mim. O que exatamente ele tinha feito? Como ele podia fazer isso quando nem mesmo os dragões podiam? O que mais ele estava escondendo?

A aura de fogo negro ao redor de Cadell brilhou quando mergulhou, expandindo atrás dele como asas gigantes. Garras de fogo se estenderam de suas mãos. Sua aparência, incluindo as chamas, se apagou, se transformando em sombra à medida que o fogo baseado em Decaimento consumia a luz.

Arthur se moveu, suas pernas se separando, suas mãos se transformando em punhos. Novamente, a lâmina brilhante de éter se materializou.

Os dois sumiram em uma nuvem trovejante de fogo negro e púrpura.

Os espectadores gritavam quando os escudos, que impediam que a plateia fosse vaporizada, tremiam e piscavam.

Atrás de mim, ouvi o barulho das roupas de Kiros quando se reposicionava em seu trono.

Arthur reapareceu primeiro.

Minha mandíbula se fechou e meus dedos afundaram no corrimão decorativo, torcendo o metal até que se desfez em minhas mãos.

Seu uniforme tinha sido rasgado do seu estômago até as costelas. Fogo negro dançava na ferida, consumindo sua carne. Ele continuaria, incendiando seu sangue e destruindo seus canais de mana até que chegasse no seu núcleo. Eventualmente, consumiria sua força vital, o matando de dentro pra fora.

Quando a nuvem de mana e éter de dispersou, vi Cadell do outro lado da arena, flutuando a dez metros de altura. Uma mão estava pressionada contra seu pescoço, e sangue fluía entre seus dedos. Ele fez uma careta de dor, mas tinha um olhar de vingança. Eu já conseguia ver as chamas roxas lambendo a ferida, e curando-a.

Mas Cadell não era o único que estava se curando. O fogo espiritual queimando na lateral de Arthur diminuía à medida que ondas de uma luz roxa passavam sobre a ferida e aos poucos era extinguido. Então, como se a ferida não tivesse sido nada mais que uma linha desenhada na areia, as mesmas ondas a levaram pra longe, deixando a pele de Arthur sem marcas.

— Fascinante. — murmurou Kiros.

— Isso é uma surpresa do Alto Soberano, talvez? Uma luta encenada pra destacar alguma nova mágica que ele desbloqueou?

Dei uma olhada pro Soberano. Seus olhos estavam cheios de curiosidade e maravilha, seus lábios se curvavam em um sorriso bobo.

— Que surpresa maravilhosa.

Adicionou, batendo as palmas nos joelhos com entusiasmo.

Tudo era um jogo para os Soberanos. Esse era o resultado de uma vida completamente desconectada de consequências reais. Especialmente para os basiliscos do Clã Vritra, que viam o mundo como um grande laboratório e tudo que havia nele era pra seus experimentos. Guerras, doenças, desastres naturais… tudo isso eram pouco mais do que oportunidade para que os Vritra dissecassem o que sobrava.

Minha mente tentou voltar até a última guerra entre Vechor e Sehz-Clar, como acontecia com frequência quando eu considerava o passado e o futuro, mas eu pus esses pensamentos de lado, concentrando-me na cena diante de mim.

Arthur tinha virado para encarar Cadell, que estava flutuando lentamente em sua direção, seu nariz torcido em uma expressão amarga enquanto tentava esconder a surpresa de ver Arthur vivo.

A figura de Arthur tremeluziu, numa transformação parecida com a que os Asura faziam ao trocar de matéria para formas de mana pura. Segurei o fôlego, momentaneamente boquiaberta quando escamas negras cresciam sobre seu corpo e chifres ônix saiam da lateral de sua cabeça, apontando pra frente e pra baixo, emoldurando sua mandíbula.

Então se moveu, com um brilho dourado entre suas escamas, fui surpreendida novamente, uma sensação com a qual eu não estava acostumada, e ainda assim parecia acontecer com frequência quando se tratava de Arthur. Sua armadura era magnífica, sua manifestação era maravilhosa, carregando a mesma elegância e prestígio que os próprios Asuras.

Arthur ajustou sua posição e conjurou uma espada, que projetou sua luz roxa sobre o chão enegrecido.

— Aprendi alguns truques novos desde a última vez que nos encontramos.

Disse Arthur, sua voz ressoando no silêncio etéreo.

— Espero que você também tenha aprendido, caso contrário isso vai acabar muito mais rápido do que eu gostaria.

 


 

Tradução: Reapers Scans

Revisão: Reapers Scans

QC: Bravo

 

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