O Começo Depois do Fim

O Começo Depois do Fim – Cap. 328 – O Alto Salão

 

As três semanas até meu julgamento passaram em um borrão de repetição e monotonia.

Quando amanheceu, fui poupado da habitual sessão de tortura com Petras e Matheson, e até permitiram uma ducha fria para limpar o sangue e a sujeira de minha estada de três semanas na masmorra dos Granbehls. Acho que eles não queriam que fosse muito óbvio que eu fui privado e torturado.

Ada, felizmente ou não, não tinha vindo me visitar novamente, mas imaginei que a veria em breve no julgamento.

Estava sentado no chão com as pernas cruzadas, o brinquedo de frutas secas de Three Steps seguro com firmeza em uma das mãos. O dedo indicador da outra mão brotou uma garra curva de éter violeta, que estava atualmente enrolada em torno da semente dentro da fruta, puxando-a desesperadamente.

Já tinha conseguido materializar a forma da garra por dez segundos, mas a semente não estava se mexendo. Vinte segundos se passaram. Depois trinta. Meu dedo começou a doer e tremer, e eu podia sentir a garra perdendo sua forma.

Finalmente, depois de quase quarenta segundos, a garra de éter se dissipou com a semente ainda alojada firmemente dentro da fruta seca.

— O que é aquilo?

Meus olhos se abriram para encontrar Matheson olhando para mim através das barras. Estava tão focado em manter a forma da garra de éter que não o ouvi chegar.

Agitei minha mão, rolando o brinquedo fora de vista antes de armazená-lo em minha runa dimensional, então coloquei uma mão em concha sobre a outra.

— Oh… você quer dizer isso? — disse inocentemente enquanto lentamente levantava o dedo médio da mão que estava escondendo na palma da minha mão.

Regis soltou uma risada.

Matheson fez uma careta e deu um passo para o lado para que quatro cavaleiros Granbehl pudessem abrir a porta da minha cela e marchar para me cercar. O mais alto dos quatro puxou meus braços para trás e colocou algemas em meus pulsos.

— Revistem-no. — ordenou Matheson, e o mesmo cavaleiro começou a me dar uma revista completa, mas é claro que não encontrou nada. Ele encolheu os ombros blindados para o administrador.

— Espero que você esteja se divertindo, Ascendente Grey. — disse calmamente. — Eu mesmo estou muito ansioso para ver aquele sorriso irritante tirado de seu rosto presunçoso.

— Podemos ir então? — perguntei. — Tenho certeza que eu não gostaria de chegar atrasado para isso.

Matheson ajustou os punhos das mangas e passou marchando, liderando o caminho escada acima e pelos corredores bem decorados da mansão acima. Alguns criados da mansão nos espiavam de vários cômodos enquanto saíamos da propriedade Granbehl, mas o único rosto familiar que notei foi Petras, que estava sentado em alguns barris perto da porta dos fundos pela qual fui conduzido para fora.

Eu dei a ele um sorriso alegre enquanto passava.

— Derramamos tanto sangue, suor e suas lágrimas juntos que quase vou sentir sua falta.

Minhas palavras fizeram o torturador praticamente se dobrar de vergonha, enquanto Matheson gargalhou de desgosto.

— Que jeito de chutar um homem quando ele está pra baixo. — disse Regis acusadoramente.

Revirei os olhos.

— Perdoe-me por falta de simpatia para com o cara que passou as últimas três semanas me abrindo.

— Bem, se julgássemos apenas por sua reação, eu diria que o pobre Petras não fez nada além de dar-lhe uma massagem rigorosa. — observou Regis. — Mas isso está fora de questão. Você está terrivelmente animado para um cara a caminho de seu próprio julgamento por assassinato.

Senti uma curiosidade genuína irradiando da pequena bola de calor que era meu companheiro.

— Estou quase pronto para queimar este maldito lugar até o chão. Veremos como as coisas vão se desenrolar com o que Alaric está planejando, mas aconteça o que acontecer, não pretendo voltar aqui.

— Matty é todo meu.

Vários outros guardas Granbehl fortemente armados e blindados nos encontraram do lado de fora da casa, e eu fui escoltado até outra carroça como aquela em que fui trazido aqui.

Lorde Granbehl estava parado ao lado da porta, as mãos cruzadas atrás das costas. Ele ergueu o queixo quando me aproximei.

— Esta será sua última oportunidade de confessar seus crimes, Ascendente Grey. Admita sua culpa e pedirei clemência em seu nome. Se você se apresentar a um painel de juízes e confessar sua inocência, isso estará fora de minhas mãos.

Fechei meu olhar com o nobre Alacryano.

— Obrigado por sua maravilhosa hospitalidade, Titus.

Ele rangeu os dentes enquanto nós nos olhávamos fixamente, mas eventualmente acenou com a mão, e eu fui empurrado para dentro da carruagem.

Desta vez, havia dois cavaleiros sentados lá dentro, cada um com uma lâmina nua apontada para mim. Mesmo que um dos guardas fosse Alaric, não havia como ele me deixar saber sem se entregar, então fiquei quieto. Na maior parte do tempo.

Soltei um suspiro, recostando-me na cadeira.

— Eles poderiam ter me dado pelo menos uma carruagem com janelas.

Um dos guardas se mexeu desajeitadamente no banco estreito à minha frente, que obviamente era para bagagem, não um cavaleiro totalmente armado.

— Acho que vocês, cavalheiros, ainda são uma visão melhor do que minha cela sombria e o sempre atraente Petras. — continuei com um encolher de ombros.

O outro guarda sufocou uma risada enquanto o primeiro erguia sua lâmina de modo que a ponta pressionasse minha garganta.

— Fique quieto.

— Você acha que todo mundo que trabalha para os Granbehls é treinado para ser burro ou precisam de experiência anterior como idiota para se qualificar? — Regis perguntou.

Desta vez, foi a minha vez de abafar uma risada.

— Você acha que isso é engraçado? — O guarda segurando sua lâmina contra minha garganta torceu a espada curta e atacou com o punho, cravando-a no canto da minha boca. — Faça outro som, e eu darei a você a outra extremidade, escória.

— Sim. Esse cara definitivamente gosta de chutar filhotinhos.

Sorri enquanto corria minha língua pelo corte que já havia começado a cicatrizar, sentindo o gosto de sangue.

— Vritra, ele é tão estranho quanto dizem. — disse o segundo guarda. Ele parecia jovem e mais do que um pouco nervoso.

Nenhum dos dois é Alaric, pensei, considerando o cavaleiro friamente.

— Você ouviu os rumores, Roffe? Dizem que alguém está criando todos os tipos de problemas em torno deste ascendente. Alguns dos guardas pensam que ele é secretamente de uma casa de Alto Sangue, e eles são…

— Quer calar a boca? — O guarda que me bateu, Roffe, vociferou. — Devemos proteger, não bater papo como duas garotas de alguma academia.

O segundo cavaleiro ficou em silêncio.

Então, alguém está soltando rumores? Deve ser Alaric, pensei, franzindo a testa. O que aquele velho bêbado pensa que está fazendo, cara a cara com um sangue nomeado?

— Garantindo o investimento dele, imagino. — sugeriu Regis.

— Vamos apenas esperar que ele saiba no que está se metendo. — respondi, inclinando-me ligeiramente para o lado e tentando ficar confortável, o que não foi fácil considerando que minhas mãos ainda estavam acorrentadas atrás de mim.

O resto da viagem passou rapidamente. Em alguns minutos, paramos e alguém bateu três vezes do lado de fora da porta. Roffe bateu de volta duas vezes e a porta se abriu.

Sem esperar que me empurrassem ou puxassem para fora, pulei no chão sozinho, fazendo com que as figuras blindadas mais próximas recuassem e brandissem suas armas.

Olhando além deles, observei o prédio para o qual estavam me levando. Mesmo sem qualquer referência cultural para compará-la, a enorme estrutura foi imediatamente reconhecível como um tribunal.

O prédio de pedra escura era coberto por uma decoração ornamentada: vidro colorido enchia as janelas em arco, gárgulas com chifres debruçadas nas paredes e olhando para todos que se aproximavam, e centenas de finas torres de metal preto alcançavam o céu azul sem sol.

Matheson apareceu entre dois dos muitos guardas de armadura que estavam em volta da carruagem.

— Lindo, não é? — disse, olhando para o tribunal. — Como a própria justiça dos Soberanos esculpida em pedra.

Bufei, atraindo um olhar irritado do mordomo.

— Traga este criminoso para dentro. — estalou.

Fui empurrado e cutucado com as armas para a frente, sob uma entrada em arco e em um grande salão. O interior do tribunal era tão ornamentado quanto o exterior: o piso era de mármore, a grande escada que levava ao patamar do segundo andar era feita do mesmo ferro escuro das torres e um enorme afresco[1] cobria todo o teto.

Ele mostrava um homem musculoso, de peito nu, com pele acinzentada e chifres extensos que se curvavam ao redor de sua cabeça como uma coroa de pé entre dezenas de pessoas muito menores e menos detalhadas. Partículas coloridas de luz estavam caindo dele e sendo absorvidas pela multidão reunida, cujos rostos estavam voltados para cima alegremente. Um anel de runas circundava a pintura.

Agrona, dando magia aos alacryanos…

— Você acha que a parte em que Agrona torturou e fez experimentos com os Alacryanos por um bilhão de anos está desenhada na parte de trás? — Regis perguntou.

— Sob o olhar vigilante do Alto Soberano, todos os seres são julgados. — disse Matheson, lendo as runas curvas.

Eu estava prestes a dizer algo irreverente, mas um choque de Regis me interrompeu.

O que é?

— Lembre-se de que você é um alacryano. Não pareceria bom para você rebaixar Agrona em público, especialmente aqui, agora.

Eu pensei por um momento.

— Hum…Boa.

Uma figura curvada em uma túnica preta e grossa com um símbolo dourado no peito se aproximou e trocou algumas palavras com Matheson. Eu não conseguia ver o rosto dele, que estava escondido nas sombras sob o capuz do manto, mas podia sentir olhos sondadores em mim.

O símbolo mostrava uma espada com escamas penduradas na guarda cruzada e deve tê-los rotulado como algum tipo de oficial da corte.

Eles acenaram para que os seguíssemos e lideraram a procissão de guardas, Matheson e eu, por um longo corredor de pico alto que terminava em duas portas de pedra sólida, cada uma com pelo menos três metros de altura e um metro de largura.

Conforme nos aproximamos, as portas se abriram sozinhas, revelando uma sala de tribunal com capacidade para algumas centenas de pessoas, pelo menos.

Foi projetado como um anfiteatro: em forma de meia-lua, com uma série de bancos de ébano subindo em degraus ao redor de uma plataforma ao longo do lado plano, onde cinco escrivaninhas altas, cada uma com o mesmo símbolo dourado das vestes do oficial, olhavam para uma cadeira única de metal preto retorcido.

A figura de manto escuro nos conduziu por um corredor entre os bancos, todos vazios no momento, e gesticulou para a cadeira. Dois dos cavaleiros me empurraram nele, e pesadas correntes pretas ganharam vida e envolveram meus pulsos, tornozelos, cintura e pescoço. As correntes eram terrivelmente frias ao toque.

Flexionei com cuidado, mantendo o movimento sutil para que ninguém pensasse que eu estava tentando me libertar. As correntes se apertaram ao meu redor como uma cobra, sua superfície fria e ardente mordendo minha carne e ameaçando me sufocar.

O oficial de manto escuro se inclinou para frente para que ficássemos cara a cara. Sob o capuz sombreado, uma jovem com olhos escuros me encarou de volta.

— Quanto mais você luta, mais fortes as correntes ficam, ascendente. Fique quieto e deixe apenas a verdade passar por seus lábios neste lugar. Apenas os homens culpados temem a justiça do Alto Salão.

Mais por curiosidade do que qualquer outra coisa, relaxei para ver se as correntes afrouxariam. Elas afrouxaram.

— Bom. — disse ela, endireitando-se. — O julgamento começará em breve. O resto de vocês podem encontrar assentos ou ficar ao longo da parede traseira.

Houve muitos tilintares e chacoalhados enquanto os guardas com armaduras pesadas manobravam para o fundo da sala. Pelo menos trinta deles tinham escoltado minha carruagem, e Matheson trouxe todos eles para o tribunal.

Virei ligeiramente a cabeça e avistei o mordomo dos Granbehls sentado no banco mais próximo à minha esquerda. Estava me inspecionando cuidadosamente, seus olhos seguindo a rede entrecruzada de correntes.

O murmúrio de vozes e o trovão baixo de dezenas de passos no mármore atraiu sua atenção para o fundo da sala. Ele franziu o cenho, aparentemente não gostando do que viu ali.

Escutei com atenção, tentando captar trechos das muitas conversas que aconteciam atrás de mim.

— …para provar o assassinato nas Relictombs. O que os Granbehls estão—

— …emocionante, não é? Eu nunca estive no Alto Salão antes—

— …é ele? Oh, uau, ele é tão bonito, eu—

— …meu primo ouviu de um dos guardas que ele nem mesmo piscou quando Lorde Granbehl bateu nele—

Me virei, olhando cautelosamente para a minha direita enquanto passos pesados se aproximavam. Um homem grande e loiro em um terno cinza estava se movendo propositalmente em minha direção. Seus olhos verdes brilhantes se estreitaram em um sorriso quando encontraram os meus.

— Grey. — disse ele, sua voz um barítono[2] estrondoso. Me deu um sorriso alegre. — Confortável?

— Na verdade não. — admiti. Outro homem estava atrás dele, vestido com um terno cor de carvão mal ajustado.

— Alaric. — disse surpreso. — Tem certeza de que deveria estar aqui?

O ex-ascendente ergueu uma sobrancelha.

— Quem você acha que vai te tirar dessa bagunça senão eu, sobrinho?

— Bem, se eu fosse apostar apenas nas aparências, iria com o cavalheiro que não parece estar ainda com uma ressaca. — disse com um sorriso fraco.

— Meu querido sobrinho, de fato. — Alaric revirou os olhos antes de acenar com a cabeça em direção ao companheiro. — Grey, este é Darrin Ordin. Ex-ascendente como eu, e uma vez um aluno meu. Ele tem o hábito de ajudar outros ascendentes menos afortunados.

Dei uma segunda olhada no homem. Suas roupas eram perfeitamente cortadas e feitas de uma lã fina que deve ter custado uma fortuna. Ele não tinha a aparência de atleta arruinado como Alaric, e eu não pude deixar de me perguntar o quão aposentado ele realmente era.

Principalmente, porém, era a maneira como ele se portava que tornava sua riqueza óbvia: confiante, com as costas retas, mas não rígidas, e um ar despreocupado. Alaric, por outro lado, parecia tão deslocado no Alto Salão que era quase cômico.

Darrin estava examinando os assentos atrás de mim, a sugestão de uma carranca em seu rosto.

— Tive sorte, isso é verdade. — disse ele, voltando sua atenção para mim. — Eu apenas tento ter certeza de que outros que escolhem a vida de um ascendente, aqueles que não têm o apoio de um Alto Sangue ou Nomeado, tenham alguém cuidando deles… mas podemos falar sobre mim mais tarde. — acrescentou, sua atenção voltada para as mesas altas que olhavam para a minha cadeira.

Cinco figuras vestidas com túnicas entraram por uma porta que eu não podia ver, e cada uma se moveu para ficar atrás de uma mesa elevada vários metros acima de mim. Eles usavam túnicas pretas combinando, semelhantes às da mulher que nos guiou para o tribunal, mas seus capuzes estavam abaixados, revelando cinco magos magros e sem humor.

O homem na mesa central bateu um martelo, fazendo com que a sala se calasse repentinamente. Podia ouvir os ruídos abafados de pessoas correndo para se sentar atrás de mim, depois o estrondo retumbante das enormes portas duplas se fechando.

— Assim começa o julgamento do Ascendente Grey, sangue sem nome, sob a acusação de assassinato. — o juiz anunciou em uma voz áspera.

[1] Pintura feita em um teto, como aquelas que existem na Capela Sistina, por exemplo

[2] Um termo usado pra designar uma voz grave, mas baixa, isto é, firme.

 


 

Tradução: Reapers Scans

Revisão: Reapers Scans

QC: Bravo

 

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