O Começo Depois do Fim

O Começo Depois do Fim – Cap. 307 – Os Quatro Clãs

 

Demorou um pouco para meus olhos se ajustarem à mudança na luz. O interior da cabana do ancião Bico de Lança estava escuro, sem iluminação, exceto pelas finas colunas de luz que fluíam pelas fendas nos gravetos, tecidos e ao redor da borda da porta pendurada.

O interior da cabana era simples: uma grande cama de penas, grama marrom e fofos tufos de pelo branco dominavam o espaço, e uma única pia de cobre cheia de água repousava ao lado da porta. Uma fina camada de gelo havia se formando na superfície.

Pendurados ao redor da cabana, nas pontas soltas dos galhos, estavam o que pareciam troféus. Havia vários colares feitos de grandes presas e pequenos ossos, a pele de uma criatura de quatro braços que não reconheci, e até mesmo uma fileira de crânios felinos alinhados ordenadamente.

— Meio mórbido o senso de decoração dos nossos amigos emplumados. — Regis transmitiu.

— Não podemos ter certeza de que eles são amigáveis ainda. — Eu avisei, meu olhar passando de um item para outro até que minha atenção pousou de volta no colar feito de garras.

Não parecem muito semelhantes aos que foram deixados no altar? 

Enquanto o ancião se arrastava para a cama e se agachava, suas pernas finas se dobraram sob ele e eu tive uma visão melhor das garras em seu pé.

— Acho que você está certo. Afirmou Regis. — Agora, a grande questão é:  eles os colocaram lá ou foi um dos ursos? Eu acho— 

A voz de Regis foi abafada quando meus olhos focaram em algo muito mais interessante. Enquanto o ancião se remexia em seu ninho, por um instante eu captei o brilho púrpura do éter sob a cama. Havia algum tipo de relíquia escondida dentro, eu tinha certeza disso. Talvez até um pedaço do portal.

— Sente-se, sente-se. — O velho pássaro grasnou, acenando com as asas em torno da cabana.

Sem dar nenhuma indicação de ter notado alguma coisa, sentei-me no chão de terra batida ao redor da cama, pensando que seria rude da nossa parte invadir o lugar de descanso do ancião, e Caera sentou-se ao meu lado. Sem saber por onde começar, fiquei em silêncio e esperei o Bico da Lança continuar.

— Silêncio é sabedoria. — O velho pássaro disse sabiamente, balançando seu bico preto para cima e para baixo. — Muito, muito tempo desde que um ascendente nos visitou.

— Temos muitas perguntas, ancião, mas primeiro, como devemos chama-lo? — perguntei educadamente.

O velho pássaro cinza estalou o bico e grasnou de uma maneira que eu não tinha esperança de replicar, então riu, um som como um grão sendo moído.

— Em suas palavras, Velho Broke Beak.

Sorrindo para a precisão de Velho Broke Beak, eu trouxe minha mão ao peito e disse:

— E eu sou Ar… — parei, tropeçando nas palavras quase revelando meu nome.

— Este aqui é Gray. — Caera interrompeu, olhando para mim estranhamente com o canto do olho. — E eu sou Caera. É uma honra conhecê-lo, Velho Broke Beak.

— Como é que você conhece nossa língua? — perguntei, na esperança de mover a conversa além do meu quase erro.

Apesar de nossa urgência em deixar esta zona, estava extremamente curioso sobre esses Bico de Lança. Desde que renasci neste mundo, eu não conheci uma besta de mana ou etérea tão inteligente quanto essas criaturas.

O djinn havia sido tão poderoso a ponto de criarem uma vida ciente e inteligente simplesmente para preencher suas provações? Parecia implausível.

— Outro ascendente, sábio o suficiente para ouvir, me ensinou quando eu tinha acabado de aprender a voar. — O ancião estalou o bico várias vezes, bagunçou suas penas e bicou a cama debaixo dele antes de continuar. — Guardei este conhecimento e compartilhei suas palavras com cada ascendente que nos encontraram desde então… ou aqueles que deixaram. Muitos não são sábios o suficiente para ouvir as palavras.

Balancei a cabeça enquanto nosso anfitrião falava, imaginando os tipos de ascendentes poderosos que poderiam ter alcançado esta zona apenas para atacar cada besta etérea que viam sem perceberem que não eram monstros.

Mas se eles foram capazes de lutar contra ascendentes poderosos o suficiente para chegarem a esta zona…

— Então esses caras devem ser mais fortes do que parecem. — Concluiu Regis.

— Estou feliz por você ter vindo e por trazer sabedoria com você. — Continuou o velho pássaro. — Precisamos de você e você precisa de nós.

Caera se inclinou para frente, seus olhos escarlates perfurando os roxos do Bico da Lança.

— Você sabe onde estão os pedaços do portal?

— Os clãs os detêm, sim, mas eles não os darão a você, não. — O Velho Broke Beak balançou a cabeça enrugada, o bico comprido cortando para frente e para trás no ar como uma lâmina afiada.

— Os clãs? — Caera perguntou.

— Quatro clãs, sim, e as coisas selvagens, as coisas irracionais, cada um carrega um também, mas eles sempre caçam para os outros. As coisas selvagens não dormem, não têm medo e são sempre gananciosas. — O ancião se inclinou para frente, olhando de Caera para mim repetidamente. — Mas os clãs são piores. Cruel. Estúpido. Quatro Punhos, Ursos Fantasmas, Garras das Sombras… apenas os Bicos de Lança conhecem a sabedoria.

— Ursos Fantasmas? — perguntei, pensando na criatura invisível com a qual lutamos sob a cúpula.

— Monstros enormes e famintos. — Disse o ancião ameaçadoramente, agitando as penas como se estivesse tremendo. — Ursos Fantasmas matam como se fosse um jogo, movendo-se invisível pelo meio das tempestades, invadindo na noite. Se você encontrar um… — Ele se inclinou para frente novamente com seu bico rachado chegando a centímetros do meu rosto.  — …mate-o, ou ele irá caçá-lo para sempre. Os Ursos Fantasmas nunca desistem de sua presa.

Eu apenas assenti, mantendo cuidadosamente meus pensamentos fora de minhas feições. O Urso Fantasma que tínhamos visto não parecia uma máquina assassina. Na verdade, parecia cauteloso e curioso, e então fugiu antes de fazer mal a qualquer um de nós.

— Nós podemos ter apenas o assustado. —Observou Regis. — Os… Ursos Fantasmas ou o que quer que seja podem não ter visto muitas pessoas, muito menos alguém que pudesse realmente vê-los como nós. 

— Você pode estar certo. — Admiti, mas ainda não tinha certeza. Eu não queria revelar nosso conhecimento sobre os Ursos Fantasmas, então, em vez disso, pressionei o ancião para obter mais detalhes sobre os outros clãs.

— Os outros… tão ruins quanto, sim. O clã Quatro Punhos é como você, mas não como você. Pernas curtas, braços longos e grossos como o peito de um Bico de Lança adulto. Rostos amassados e feios, com dentes assim. — Usando suas asas emplumadas o Velho Broke Beak imitava presas grandes e deformadas.

— As Garras Sombrias vivem para lutar, para matar. — O Velho Broke Beak apontou para a fileira de crânios felinos. — Eles nos perseguem, escalam os picos e jogam nossos ovos de seus ninhos.

Caera estava ouvindo sombriamente o velho pássaro falar. Ela balançou a cabeça quando ele mencionou ovos.

— Isso é horrível. Sinto muito, Broke Beak.

— Você disse que precisávamos um do outro. — o lembrei, ansioso para trazer a conversa de volta às peças do portal. — Então, cada um desses clãs detém um pedaço do portal fora desta zona? Por quê?

O Velho Broke Beak fechou os olhos, seu longo pescoço balançando suavemente como se estivesse cantando uma música em sua cabeça.  Quando seus olhos roxos finalmente se abriram novamente, havia uma sensação de ancestralidade sobre ele, uma fadiga que emanava dele como uma aura.

— Muito, muito tempo eu pensei sobre isso. Os Bicos de Lança sempre tentaram espalhar sabedoria para os outros clãs, mas agora eu sei que eles não podem aprender. Os outros não vão te dar as peças. Você deve destruí-los. Todos eles. Pegue suas peças. Quando você tiver as outras, eu lhe darei a peça guardada por muito tempo pelos Bicos de Lança.

— Minhas desculpas por ser franca, mas por que você não pode nos dar sua peça agora? — Caera perguntou, estudando o ancião de perto.

Seu pescoço torceu para o lado a tal ponto que sua cabeça estava quase de ponta para baixo.

— Se os ascendentes falharem, se morrerem na neve, sob as garras e dentes dos outros clãs, então teríamos perdido nosso próprio pedaço do templo dos Criadores. Não, isso não é sabedoria.

Embora eu tenha reconhecido o sentido em suas palavras, fui distraído por outra coisa que ele disse.

— Os Criadores?

O bico longo e escuro subia e descia lentamente.

— Os outros clãs sentem apenas a energia dos Criadores dentro das relíquias, então os acumulam e os adoram. Eles são muito burros para pensar sobre o propósito das peças, sim.

Esses clãs, ao que parecia, haviam desenvolvido algum tipo de mitologia em torno do djinn, da cúpula e do arco interno. Se as peças do portal vazassem éter, e essas criaturas pudessem sentir isso, faria sentido que elas as cobiçassem.

— Você vai precisar dos dons dos Criadores para curar o portal. Você consegue fazer isso?

Concordei. Assim como a sala dos espelhos, só chegamos à zona nevada porque eu já tinha as ferramentas necessárias para passar por ela. Teste após teste, pensei silenciosamente.

Naquele momento, o estômago de Caera roncou ruidosamente. O Velho Broke Beak olhou ao redor, encarando o abdômen dela com olhos arregalados, o bico rachado ligeiramente aberto.

— Comida, sim. Tenho sido um péssimo anfitrião. Tão ansioso para compartilhar palavras, enquanto você passa fome. Venha. Nós nos sentamos. Nós conversamos. Agora, coma, sim.

As pernas do ancião rangeram audivelmente quando se levantou e liderou o caminho para fora de sua cabana. Do lado de fora, vimos vários Bicos de Lança por perto, olhando fixamente para nós enquanto o seguíamos de volta para o ar frio da montanha.

O Velho Broke Beak estalou, estalou e grasnou, e os outros assentiram respeitosamente e começaram a nos seguir, formando duas longas filas.

As sobrancelhas de Caera franziram em preocupação quando olhou para mim, mas assenti e caminhei atrás do Velho Broke Beak.

Os Bicos de Lança murmuravam e cacarejavam em sussurros baixos, o farfalhar de suas feições ficando mais claros à medida que seguíamos o Velho Broke Beak pela aldeia. Outros espiaram seus bicos para fora das muitas cabanas e se alinharam na marcha improvisada. Vários dos Bicos de Lança voavam em círculos acima de nós, sua estranha canção caindo sobre a depressão da montanha.

Seguimos o ancião até outra cabana quase idêntica, com uma cobertura de porta cinza desbotada. Ele estalou o bico três vezes e a multidão atrás de nós ficou em silêncio quando o Bico de Lança de penas escuras que vimos ao entrar na aldeia apareceu na porta.

Houve uma breve troca de palavras em sua própria língua, então o Bico da Lança negro gesticulou com o bico e o ancião entrou, acenando para nós com uma asa.

Olhei de volta para o bando; eles estavam totalmente silenciosos e imóveis, seus olhos violetas nos seguindo de perto. Aqueles que voavam em círculos acima de nós o faziam em um padrão entrelaçado não natural, como uma dança aérea.

Caera desapareceu pela porta sombria à frente e eu a segui com uma sensação surreal caindo sobre mim como um cobertor pesado.

Por dentro, a cabana era quase idêntica à do Velho Broke Beak, embora não houvesse uma pia de cobre, e o único troféu na parede fosse o crânio de um pequeno urso com um buraco estreito logo acima da órbita do olho direito.  Parecia pequeno demais para ser um urso adulto.

Um segundo Bico de Lança, quase idêntico ao nosso guia, mas com uma franja de penas que se erguia de sua cabeça, que estava aninhado na cama, se levantou e arrastou-se para o lado após alguns estalos e gritos do pássaro de penas escuras.

Sentado no meio do ninho estava um grande ovo rosado. Caera me olhou com incerteza mais uma vez, mas fiquei em silêncio, esperando pelo Velho Broke Beak.

O ancião caminhou lentamente pela cabana, suas garras esmagando a grama seca e as penas da cama-ninho, depois bateu suavemente no ovo em vários lugares diferentes. Sem se virar para nós, ele disse:

— Este ovo não vai chocar.

Então, sem aviso, ele enfiou o bico afiado na casca do ovo, perfurando-o com um estalo agudo. Fiquei olhando, horrorizado e fascinado, enquanto começava a tirar pedaços da casca, amassando-os com o bico e engolindo-os até que surgisse um grande buraco no topo, revelando a gema dourada e pegajosa.

— Eu não esperava por isso. — Murmurou Regis atordoado.

O ancião pegou um pedaço do ovo, depois cruzou os bicos com o Bico de Lança com franjas antes dela também comer um pedaço do ovo. Ambos repetiram o ritual com o Bico da Lança de penas escuras, que pegou sua parte.

— Coma. — O ancião disse simplesmente, então os três Bicos de Lança se afastaram, nos observando com expectativa.

Eu podia ver os pensamentos de Caera escritos claramente em seu rosto enquanto sua fome e desgosto travavam uma guerra dentro dela.

Era óbvio que havia algum tipo de significado cultural, talvez até mesmo ritualismo religioso, para este casal oferecendo seus ovos para consumo, e embora a ideia dessas criaturas canibalizando seus próprios ovos fosse desagradável, esperava que eles não entendessem nossa hesitação, podendo até achar rude se recusarmos a oferta.

Além disso, Caera não poderia viver sozinha na neve para sempre.

Curvando-me respeitosamente a cada um dos três Bicos de lança, entrei com cuidado no ninho e me inclinei sobre o ovo. O interior era espesso, quente e viscoso. Usando as duas mãos como uma tigela, peguei uma pequena porção e bebi indelicadamente.

Tinha um sabor rico que não era exatamente desagradável, mas era estranho. Apesar disso, eu rapidamente terminei o punhado do ovo pegajoso quando percebi algo a mais sobre ele.

A gema de ovo crua dos Bicos de lança estava nadando em éter e comê-la permitiu que meu corpo absorvesse rapidamente o éter, ajudando a encher meu núcleo após a longa noite na tempestade.

— Regis, você está— 

— Sentindo isso? Ah, sim… — Respondeu, aproveitando a energia que absorvíamos apenas naquela pequena colherada do ovo.

Caera me observou com os lábios franzidos e uma expressão meio azeda em seu rosto. Balancei a cabeça em direção ao ovo dos Bicos de Lança, arregalando meus olhos incisivamente.

Ela cerrou a mandíbula e olhou para mim sombriamente antes de se ajoelhar na cama-ninho ao lado do grande ovo rosa e enfiar a própria mão na gosma dourada. A nobre Alacriana prendeu a respiração enquanto rapidamente engolia o ovo quente.

— Sim, coma. Coma. — O Velho Broke Beak disse encorajadoramente.

Caera e eu continuamos comendo até que apenas uma poça rasa de limo enchesse o fundo da casca do ovo. Para Regis e eu, a gema rica em éter era como beber energia pura e destilada, mas pude ver a mudança ocorrendo em Caera quase imediatamente.

Embora ela tenha feito o possível para ficar de bom humor, estoicamente, mesmo depois de dias sem comer, ter um estômago cheio a deixava sorridente e sonolenta, apesar de sua hesitação inicial, ela consumiu avidamente os últimos resquícios de ovo dentro da casca.

Virando-se para mim com olhos caídos, abriu a boca para dizer algo, mas um pequeno arroto escapou de seus lábios. Os olhos de Caera se arregalaram em choque e ela levou a mão à boca.

— Muito pouco feminino. — Comentei.

Caera apenas revirou os olhos, enxugando os lábios antes de responder.

— Seu sexista.

À nossa volta, quase despercebidos, Velho Broke Beak e os outros conversavam baixinho.

— Red Wings e True Feather ofereceram seus ninhos para vocês descansarem e se recuperarem. Então, se vocês estiverem dispostos, Swiftsure, que os trouxe até nós, irá guiá-los até a aldeia dos Garras Sombrias. Sim?

— Sim. Obrigada.

Caera acenou com a cabeça, as pálpebras pesadas, mas  tentando o seu melhor para ficar acordada.

— Com certeza, Broke Beak. — disse, me sentindo mais bêbado com a gema rica em éter do que cheio.

True Feather e Red Wings pisaram levemente em torno de mim e começaram a quebrar o resto de sua casca de ovo, quebrando pedaços e amassando-os em seus bicos fortes, e em poucos instantes o ovo tinha sumido completamente.

Cada um dos Bicos de Lança se curvaram de asas abertas, em seguida, seguiram para fora da cabana, que estava parecendo mais quente e aconchegante a cada momento.

Assim que o último Bico de Lança saiu da cabana, Caera caiu para trás até ficar deitada de bruços nas penas e na grama, os olhos já fechados e com a respiração estável.

— Ela com certeza ficou… confortável perto de nós. — Comentou Regis, deixando escapar um soluço.

— Pare de falar e mantenha o foco. Espero que você esteja pelo menos com todas as suas forças amanhã. — respondi, sentando-me entre Caera e a entrada da cabana.

Respirando de maneira controlada, concentrei-me no éter percorrendo todo o meu corpo. Não me sentia tão saturado de éter desde que consumi o gigantesco tesouro de pedras de éter da centopeia, e não estava disposto a  desperdiçá-lo.

No entanto, em vez de refinar meu núcleo de éter, acendi a runa Passo de Deus.  Permanecendo sentado no chão, observei enquanto minha percepção do mundo ao meu redor se expandia até que eu pudesse ver todas as partículas do éter ambiente fluindo em todas as direções.

Podia sentir meu coração batendo contra minha caixa torácica e minha mente clara enquanto me concentrava nos fluxos entrelaçados de caminhos etéreos.

Falhar em usar o Passo de Deus enquanto perseguia o Urso Fantasma na tempestade me ensinou duas coisas: uma era que, por mais poderosa que fosse essa habilidade, seu uso indevido poderia ser fatal; e dois, demorei muito para encontrar o caminho correto.

Qual era o ponto de ter uma habilidade que poderia me transportar instantaneamente através do espaço quando levava tanto tempo para encontrar o caminho que poderia me transportar para onde eu queria ir?

Então, enquanto Caera dormia, sentei e observei, a runa Passo de Deus lançando um suave brilho dourado por toda a cabana dos Bicos de Lança. Observei como as partículas etéricas se moviam, como se comportavam e estudei todos os padrões que pudessem me ajudar a usar o Passo de Deus mais instintivamente.

As coisas se moveram rapidamente quando Caera finalmente acordou, com os olhos turvos e entorpecidos por dormir demais. Embora estivesse mentalmente esgotado de me concentrar a noite inteira, meu corpo estava cheio de um energia recém-descoberta. Encontramos Swiftsure esperando pacientemente do lado de fora da cabana, ansioso para partir.

Antes de deixarmos a vila dos Bicos de Lança, no entanto, Velho Broke Beak tinha algumas palavras de sabedoria para nossa despedida.

— Swiftsure é rápido e sábio. Ele irá guiá-lo para as aldeias dos outros clãs, mas um Bico de Lança não pode lutar contra os Garras Sombrias ou Quatro Punhos. — advertiu. — Não espere compartilhar palavras com eles. Não hesite. A linguagem deles é violência, e você deve falá-la se quiser deixar este lugar. Volte com as outras peças e lhe daremos a última.

Com isso, Swiftsure nos levou de volta para fora do topo oco da montanha, vários dos outros Bico de Lança nos seguindo até o penhasco para se despedirem com estalidos felizes de seus bicos e guinchos estridentes que soavam como vivas.

Olhei para baixo na borda íngreme do penhasco enquanto Caera já se preparava para a descida. Caminhando até Caera, eu a coloquei de pé e envolvi meu braço em volta de sua cintura.

— Hum, c-com licença? — Caera gaguejou, enquanto Regis assobiava em minha cabeça.

Aproximando-me da beira do penhasco com Caera, me virei para o nosso guia.

— Swiftsure. Nos encontramos lá embaixo.

Observei o pássaro etéreo branco inclinar seu longo pescoço em confusão pouco antes de pular da beira do penhasco, levando Caera comigo.

A nobre Alacriana soltou um grito de surpresa que logo se transformou em um grito aterrorizado enquanto despencávamos em direção à plataforma de pedra vinte e cinco metros abaixo.

— Uhh, Arthur? Sendo a barata que você é, tenho certeza de que sobreviverá, mas não acho que a Lady Chifre possa… 

Acionei Passo de Deus quando estávamos prestes a cair e escorreguei para o caminho etéreo que nos levaria direto para o solo, poucos metros abaixo de nós.

Meus pés atingiram o solo quase sem ruído algum, o momentum que havíamos obtido durante a queda desapareceu completamente.

— Oh… — Murmurou Regis, completamente pasmo. — Ou você pode fazer isso, eu acho.

Caera ainda estava com a cabeça enterrada no meu peito com suas unhas cravando na minha pele, mesmo quando eu a soltei.

— Você pode me soltar agora. — disse enquanto seus chifres já me machucavam ainda mais.

Caera estremeceu antes de espiar para baixo e perceber que não estávamos mais no ar. Só para ter certeza, ela bateu o pé no chão duro antes de se soltar.

— C-como nós… o que… você! — Caera olhou para mim respirando em bufadas rápidas e raivosas antes de me socar no estômago com a força que poderia ter quebrado alguns ossos se não fosse eu. — Da próxima vez que você sentir vontade de se jogar de uma montanha, fique à vontade para pegar o pássaro!

Esfreguei meu estômago, estremecendo de dor.

— Entendido…

Swiftsure pousou a alguns metros de nós, agitando suas grandes asas enquanto olhava para mim de uma maneira curiosa.

— Garras Sombrias? — gritou, seu tom quase como uma pergunta, mas eu não tinha certeza do que ele quis dizer.

Nosso guia desistiu de olhar para mim em busca de uma resposta e soltou um guincho gutural antes de nos conduzir de volta pela trilha em ziguezague.

Caera ainda estava com raiva de mim, porém ficava me encarando com o canto do olho quando pensava que eu não notaria, olhando para mim da mesma forma que Swiftsure estava.

— Esse é um truque muito legal que você aprendeu da noite para o dia. — interrompeu Regis, curtindo o show.

— Vou precisar de mais tempo para praticar o Passo de Deus se quiser realmente usá-lo na batalha, mas aos poucos estou pegando o jeito.

Assim que alcançamos o fundo da ravina, viramos à direita, afastando-nos da caldeira. Este caminho rochoso e irregular nos levou para trás da vila no topo do penhasco dos Bicos de Lança, então viramos à direita novamente e marchamos em silêncio por horas.

Sem o vento e a neve, simplesmente caminhar nos mantinha aquecidos o suficiente. Nossas barrigas e núcleos estavam cheios, tornando a caminhada quase agradável.

Enquanto caminhávamos, pensei em tudo o que tinha visto e ouvido durante nossa curta estadia com os Bicos de Lança. Não pude deixar de pensar na insistência do Velho Broke Beak de que os outros clãs eram feras simples e violentas. Afinal, foi a cautela demonstrada pelo Urso Fantasma que me deu tanta certeza de sua inteligência.

Ficou claro pelos troféus pendurados orgulhosamente nas paredes do ancião que havia conflito entre os clãs, mas o pequeno crânio de urso quebrado na cabana de Red Wings e True Feather parecia não mais do que um filhote.

— O seu palácio na Terra não tinha um zoológico inteiro de criaturas empalhadas, incluindo dois filhotes de urso polar? — Regis apontou.

Minhas sobrancelhas franziram em aborrecimento.

— Esse não é… 

Eu não tinha feito a conexão, mas meu companheiro estava certo. Víamos aqueles ursos apenas como animais e não víamos nada de estranho em ter seus cadáveres empalhados para decoração.

Talvez os Bicos de Lança vejam os outros clãs como bestas.

— Eu diria para simplesmente matarmos tudo e darmos o fora daqui. Sabe, se negociarmos mais alguns desses ovos…  

Eu tive esse mesmo pensamento, e Regis sabia muito bem disso. Se consumirmos o suficiente dos ovos de Bicos de Lança, poderemos alcançar o próximo platô de nosso poder etérico, seja lá qual for.

Consumir os ovos de uma espécie autoconsciente parecia errado, no entanto. Parecia de alguma forma solene e ritualístico que tivéssemos sido convidados a comer aquele ovo, enquanto pensava nisso, percebi que não tinha visto nenhum Bico de Lança obviamente jovem. Me perguntei o quão raro os filhotes poderiam ser entre as estranhas criaturas.

O Velho Broke Beak havia afirmado que nenhum filhote nasceria do ovo, mas, ao mesmo tempo, o que aqueles ovos representavam senão o futuro da espécie?

Esses e muitos outros pensamentos me consumiram enquanto seguíamos nosso guia, que às vezes andava conosco no chão, outras vezes voando alto, explorando nosso caminho. Embora Swiftsure não pudesse falar nossa língua, havia aprendido algumas palavras e podia se comunicar bem apontando e gritando.

A luz não parecia mudar enquanto caminhávamos e, embora viajássemos por várias horas, a noite nunca caía.

Estava perdido em pensamentos quando Swiftsure estalou o bico para chamar nossa atenção.

— Perto. — disse em sua voz áspera.

O Bico da Lança ficou no chão, saltando à nossa frente em direção a uma crista de pedra escura exposta. Quando chegou perto, cruzou as pernas sob o corpo, de modo que seu corpo redondo quase tocou o chão e rastejou até a beirada, depois acenou para que avançássemos com uma asa.

Caera e eu nos ajoelhamos e começamos a rastejar pela neve.

— Isso é… — Caera sussurrou baixinho assim que chegamos perto da saliência onde Swiftsure estava posicionado. Meus olhos se estreitaram também.

A encosta da montanha desabava em um pequeno vale cheio de árvores baixas e incolores. Entre os galhos grossos, algumas dezenas de cabanas estavam estendidas parecendo passarinhos gordos. Algo estava se movendo dentro da aldeia.

— Quatro Punhos. — Swiftsure resmungou.

 


 

Tradução: Reapers Scans

Revisão: Reapers Scans

QC: Bravo

 

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