O Começo Depois do Fim – Cap. 304 – Matar ou Não Matar

 

Meus dedos correram sobre a moldura do arco, traçando as bordas irregulares e quebradas onde partes da grande estrutura estavam faltando.

Este era outro desafio ou apenas azar? Esperava que cruzar o deserto congelado fosse o suficiente para deixar esta zona, mas claramente não era isso.

Me virei para Caera.

— Você vê alguma peça do arco naquela pilha? Parece que há pelo menos quatro ou cinco pedaços separados que foram quebrados, a julgar pelos danos.

Ela vasculhou a grande pilha por um momento antes de olhar para mim e balançar a cabeça.

— Há bastante coisa para separar aqui, mas não vejo mais nada na mesma pedra branca de que o arco parece ser feito. Talvez aqui sob alguns dos ossos…

Continuou remexendo, mas eu não estava esperançoso. As coisas nunca foram tão fáceis nas Relictombs.

Regis saltou do meu lado, aterrissando na plataforma e sacudindo-se como um cachorro, as chamas violetas de sua crina tremeluzindo. Olhou para a estrutura antiga elevando-se sobre ele antes de falar.

— Você precisa mesmo das peças? Talvez esse seu novo poder sofisticado possa apenas… consertar.

— Você não pode simplesmente consertar…

O resto das minhas palavras morreu na minha garganta quando percebi que meu companheiro tinha razão. Pressionando minha palma no arco, acendi a runa divina recém-adquirida que estava latente dentro de mim. Reparar todos os espelhos na última zona me deu prática mais do que suficiente para utilizar o Requiem de Aroa, mas a sensação ainda parecia nova e crua, quase estranha.

A runa brilhou dourada sob minhas roupas enquanto o éter circulava por ela, e partículas roxas de éter começaram a girar em volta da minha mão. As partículas me deixaram e fluíram ao longo do arco, concentrando-se onde as bordas quebradas se destacavam contra as esculturas perfeitamente lisas.

Além de alguns arranhões leves desaparecerem, nada aconteceu. Continuei me concentrando, imaginando os fragmentos perdidos do arco se reconstruindo. As partículas cintilantes de éter simplesmente funcionaram quando usei a runa antes, consertando os espelhos rachados e liberando os ascendentes presos sem nenhuma instrução minha.

Mas eu tinha visto o que fazer na visão do futuro…

Talvez eu precisasse de mais compreensão de como consertar um item, ou qual era seu propósito, para afetá-lo com o Requiem de Aroa.

Ou talvez nem fosse isso.

Mais frustrado comigo mesmo do que com as circunstâncias em que estávamos, deixei escapar um suspiro.

— Não está funcionando. — Regis disse, prestativo.

— Eu posso ver isso. — murmurei, retirando o éter da minha runa divina. As partículas roxas cintilaram uma por uma enquanto o brilho da runa desaparecia. — Tente procurar no resto do corredor por quaisquer peças do arco. Talvez, se pudermos encontrá-las, eu consiga consertá-lo.

— Talvez? Quer dizer, sou tão otimista quanto qualquer outro, mas “talvez” soa como…

— Temos outra escolha? — rebati, olhando para o filhote de lobo de sombras.

As orelhas de Regis caíram.

— Não, creio que não.

Suspirei enquanto meu companheiro pulava degrau por degrau e começava a farejar a parede externa do enorme espaço. Sylvie e eu nunca brigamos assim, mas isso não era culpa de Regis. Sylvie sempre foi meu contraponto, dando-me sabedoria quando estava sendo tolo, sobriedade quando eu era imprudente, bravura quando eu estava com medo.

Regis, por outro lado, era mais parecido comigo, reforçando minhas forças e minhas fraquezas. Era por isso que fui mais duro com ele do que fui com Sylvie? Lembrei-me daqueles primeiros momentos nas Relictombs, quando acordei sozinho e sem poderes, sozinho, exceto por ele.

Sem ele, acordar naquele quarto do santuário sem Sylvie, sabendo que ela se sacrificou por mim…

Sentando-me na beirada da plataforma com minhas pernas penduradas para o lado, retirei a pedra da cor do arco-íris que mantinha meu vínculo. Já fazia algum tempo que eu não tentava colocar éter nela, mas podia sentir que ainda não tinha ficado forte o suficiente. Apesar de tudo que enfrentei e de tudo que aprendi desde que acordei sem magia e quebrado nas Relictombs, mal havia arranhado a superfície do que se era possível com o éter.

Vou tirar você daí algum dia, Sylv. Eu juro. Quando você conhecer Regis, você vai…

— Outra relíquia escondida dos Vritra?

Caera perguntou enquanto deslizava para um lugar ao meu lado, meu saco de dormir bem puxado em torno de seus ombros. Seu cabelo azul marinho caiu na frente de seus olhos e ela se inclinou para inspecionar o ovo de Sylvie.

— Não exatamente. — disse, voltando meus olhos para o ovo iridescente.

— É lindo. — disse Caera, suas palavras quase um sussurro.

— Obrigado. — disse, apressadamente guardando o ovo de volta na minha runa de armazenamento dimensional antes que ela pudesse estudá-lo mais de perto.

Comecei a me levantar quando dedos fortes agarraram meu antebraço e me puxaram de volta ao meu lugar. Virei-me para dar alguma desculpa a Caera, mas ela estava olhando para mim, estupefata.

— O que era aquilo?

Meus olhos se estreitaram.

— Eu não acho que sou obrigado a dizer a você o que minha…

— Não estou falando sobre a pedra colorida. — disse ela, afastando minhas palavras com a mão livre. — Como você fez aquilo? Para onde ela foi?

Perplexo, mostrei a ela as costas da minha mão e o anel de armazenamento dimensional que eu usava.

— No meu—

— Não, você não colocou aí. — Ela balançou a cabeça, seu comportamento calmo usual substituído por uma excitação infantil. — Você não ativou o anel agora, eu saberia. Espere, você não pode… — Os olhos de Caera se arregalaram em compreensão. — Claro, como eu não vi isso antes? Você não tem mana para ativar o anel.

Minha mente girou em busca de mentiras para explicar o que tinha acontecido: meu anel poderia ser outra relíquia que não precisava de mana, o ovo poderia ter poderes semelhantes aos de Regis, ou alguma outra desculpa conveniente…

Mas quando abri minha boca para falar, hesitei… cansado de tudo isso.

Qual era o ponto em mentir? Caera sabia que eu poderia usar éter. Ela sabia que eu tinha pelo menos uma relíquia, o que já era punível com morte, e provavelmente presumiu que eu tinha mais. Ela até viu Regis falar e absorver o éter, mas ainda escolheu acariciá-lo como se ele fosse apenas mais um animal doméstico.

— Eu… — Soltando um suspiro, puxei minha manga e coloquei éter em meu antebraço para ativar a runa dimensional. — Eu tenho uma runa, uma forma de feitiço, que opera com um princípio semelhante. O anel é apenas para enfeite.

— Fascinante. — Os olhos de rubi de Caera brilharam com intensa curiosidade enquanto olhava para as runas complexas gravadas em minha pele.

Senti um leve sorriso puxar o canto dos meus lábios enquanto a observava inspecionar meu braço como uma criança abrindo um brinquedo novo.

Me dando conta, uma onda de culpa me forçou a lembrar quem era essa garota. Caera me seguiu e mentiu sobre sua identidade. Ela não era apenas uma Alacryana, mas do mesmo sangue de Agrona e o resto de suas monstruosidades que haviam causado estragos em meu povo.

Uma parte sombria de mim decidiu que eu sempre poderia matá-la antes de deixar as Relictombs se lhe contasse muito, mas também sabia que estava apenas dando desculpas. Para ser honesto comigo mesmo, simplesmente era bom ter até mesmo aquele pequeno peso de ter um segredo a menos nos meus ombros.

Um toque frio no meu braço me tirou dos meus pensamentos, me assustando.

Caera puxou sua mão.

— M-minhas desculpas! Minha curiosidade tende a levar o melhor de mim às vezes, e eu queria ver como a runa parecia…

— Está tudo bem. — disse, pigarreando.

Puxei minha manga para baixo para cobrir a runa, mas Caera ainda estava olhando para mim.

— Tem algo no meu rosto? — perguntei, levantando uma sobrancelha.

— É só… Quem é você, Grey? — Caera perguntou.

— Apenas um soldado que foi mortalmente ferido. — disse com um encolher de ombros. — Você deve se lembrar, você me encontrou pouco depois.

Caera estreitou os olhos enquanto colocava os lábios para fora em um beicinho.

— Isso é uma simplificação exagerada, Grey. Se você me perguntasse, eu especularia que você é algum tipo de aberração das Relictombs, conjurada por éter para me atrair para as profundezas da fortaleza sem fim dos magos antigos.

— Te atrair? — zombei. — Desculpe-me, mas se bem me lembro, foi você quem de alguma forma me rastreou e me enganou para levá-la junto.

Caera enrijeceu antes de limpar a garganta.

— Isso, eu admito, foi um pouco impróprio. — disse ela, virando-se.

— Então… — disse baixinho. — Não é hora de eu obter uma explicação?

Caera se mexeu desconfortavelmente, ainda incapaz de me olhar nos olhos enquanto seu cabelo caía sobre o rosto como uma cortina. Ela levantou a mão e apontou para meu peito.

— O medalhão, ela disse finalmente.

— O medalhão? — ecoei, confuso. — Que meda—

A compreensão me atingiu e eu retirei a adaga branca como osso de seu irmão e olhei para a moeda de ouro presa ao cabo. Gravado nele estava o sinal da Casa Denoir: asas emplumadas abertas a partir de um escudo enrolado.

É claro.

— Qualquer um pode me rastrear com isso, ou só você? — Minha voz saiu fria e recolhida enquanto meu olhar estreito travava nela. Se Agrona ou suas foices fossem capazes de me caçar com um farol de rastreamento mágico, eu estaria em perigo assim que deixasse as Relictombs.

Droga. Se eu ainda fosse capaz de usar mana, não teria caído nessa.

— Só eu estou sintonizada com o medalhão. — disse ela apressadamente, virando-se para encontrar meus olhos. — Ninguém mais pode rastreá-lo, eu juro.

Ela me olhou por um momento, seus olhos de rubi sinceros e inabaláveis até que baixou a cabeça.

— Mais uma vez… peço desculpas.

Estendi a adaga e a moeda.

— Você disse que esperava por isso um dia. Aqui, pegue-as.

Ela não se moveu para aceitar os itens oferecidos.

— Grey, eu…

Eu coloquei a adaga e o medalhão na plataforma entre nós, apenas batendo alto o suficiente para interrompê-la.

— Você me disse como. Você ainda tem que me dizer por quê.

O éter vazou de mim, ondulando no ar para dar um peso tangível às minhas emoções.

— O que eu disse na zona dos espelhos era tudo verdade. — disse, estremecendo ligeiramente. — Eu poderia dizer que você era diferente e… Eu queria saber mais, ver por mim mesma.

— Então por que não se revelar? — Eu perguntei friamente. — Por que se dar ao trabalho de disfarçar sua identidade?

— Sem ofensa, Grey, mas até um vira-lata pode dizer o quão distante e desconfiado você é. Você realmente me deixaria viajar com você se soubesse quem eu realmente era? — perguntou, levantando uma sobrancelha.

Surpreso com a resposta direta, abri a boca para responder, mas Caera continuou falando.

— Além disso, estou sempre disfarçada, não importa aonde eu vá. — Ela sorriu solenemente, sua mão tocando um de seus chifres escuros.

Eu encarei a nobre Alacryana. Mesmo depois de suportar duas zonas e uma tempestade mortal de inverno, sua postura permaneceu equilibrada enquanto se sentava à minha frente. Mas por baixo daquele exterior polido havia algo que me lembrava de quando fui parar nas Relictombs pela primeira vez. Eu poderia dizer quão sozinha ela se sentia…

Soltando um suspiro, falei mais uma vez, quebrando o silêncio.

— Eu quero confiar em você, Caera, mas não posso.

— Então não confie, Grey. — Seu olhar endureceu quando ela engoliu em seco. — Se eu prejudicar você de alguma forma, impedir seus objetivos ou fizer qualquer coisa que faça você pensar que estou sabotando seu propósito aqui… me mate.

Fiquei em silêncio, surpreso com sua confiança e determinação.

Felizmente, o som de pequenas patas arrastando-se pelo chão de pedra sedosa chamou nossa atenção para Regis.

Deslizei para fora da borda do estrado em que estávamos sentados, aterrissando da queda de três metros com facilidade, antes de caminhar em direção a Regis.

— Achou alguma coisa?

— Porcaria nenhuma. — murmurou Regis, sacudindo a cabeça.

— O que provavelmente significa que teremos que nos aventurar de volta na neve. — acrescentei com um suspiro.

Olhei de volta para Caera, que também pulou da borda da plataforma, pousando habilmente antes de se juntar a nós. Jogando o saco de dormir que eu tinha dado a ela sobre os ombros, nos deu um aceno de cabeça.

— Nós deveríamos ir, então.

Balancei a cabeça.

— Parece que a nevasca está piorando. Duvido que você duraria muito lá fora.

Caera franziu a testa.

— Apesar de drenar minhas reservas de mana um pouco, devo ser capaz de suportar se eu me revestir com meu fogo da alma.

— Não é só isso. A tempestade torna quase impossível para eu ver qualquer coisa, mesmo com meus sentidos aprimorados. Devemos montar acampamento aqui por enquanto e descansar um pouco enquanto ainda podemos.

Caera assentiu com a cabeça, envolvendo o cobertor grosso mais apertado em torno dela.

— Isso também não parece um plano ruim.

Consegui dar um leve sorriso antes de me virar para meu companheiro.

— E Regis?

— Sim, chefe?

— É melhor você passar algum tempo juntando éter. Vamos precisar de você de volta com força total.

O pequeno lobo das sombras sorriu faminto antes de pular no meu corpo.

A situação do acampamento não era ideal. Não estávamos equipados para o tempo frio, embora pelo menos as esferas de luz flutuando em torno da cúpula liberassem algum calor. Alaric havia embalado uma quantidade surpreendentemente grande de cobertores por algum motivo, mas não consegui encontrar nenhum tipo de fósforo para acender o fogo. Pior ainda, o anel dimensional de Caera havia sido danificado em sua luta contra Mythelias, o que significava que os fósforos e outros equipamentos de sobrevivência que ela empacotou estavam inacessíveis.

— E quanto ao seu fogo da alma?

Perguntei enquanto nós dois nos sentávamos na pilha grossa de colchonetes que tínhamos espalhado ao longo da borda da plataforma perto da escada.

— Não produz nenhum calor como uma chama normal faria. — disse ela, acendendo um fogo negro na ponta do dedo.

Nós dois preguiçosamente observamos a chama sombria enquanto Caera a tornava maior. Seu olhar seguiu a ponta da chama quando seus olhos se arregalaram de repente. Apagando a chama, ela apontou para cima.

— Podemos usar isso!

Eu olhei para cima para ver os orbes de luz flutuantes pairando acima de nós na sala. Antes que eu pudesse argumentar, Caera já havia pulado para o pedestal e estava escalando o arco. Alcançando o topo do arco, estava logo abaixo da altura que eles pairavam.

Curioso, observei Caera se agachar no topo do arco branco, colocar os pés debaixo de si e esperar. Depois de alguns minutos, uma das luzes se aproximou o suficiente. Os olhos escarlates se fixaram no alvo, ela saltou do topo do arco, voando pelo ar e pousando bem em cima dele…

Ou, ela deveria ter pousado em cima.

Em vez disso, ela passou direto pelo orbe.

Caera soltou um grito suave quando se atrapalhou no ar antes de cair sem graça no chão sei metros abaixo dela.

— Ai. — Regis gemeu. — Isso deve doer.

A nobre Alacryana levantou-se como se nada tivesse acontecido. Seu cabelo, no entanto, estava em desordem e a poeira cobria suas roupas e partes do rosto.

Sufoquei uma risada quando ela se virou.

— Tudo bem? — perguntei, observando-a limpar a poeira de suas roupas.

— Eu agradeceria… se você pudesse esquecer o que aconteceu. — disse, ainda de costas para mim.

— Você estava balançando os braços com tanta força que, por um segundo, pensei que realmente ia voar. — sorri maliciosamente. — Essa imagem é muito difícil de esquecer.

Caera se virou, suas bochechas vermelhas e os olhos brilhando com raiva.

— V-você…

Eu não pude deixar de rir, mesmo quando Caera arrancou um saco de dormir debaixo de mim e girou nos calcanhares, marchando para o outro lado da sala antes de se aconchegar com o cobertor sobre a cabeça.

Sentindo uma pontada de culpa por zombar dela, deixei Caera ter um tempo para si mesma enquanto saía. Ignorando os ventos cortantes que rasgavam minhas roupas e armadura, coloquei neve em nossos odres e em um pequeno barril de madeira que Alaric tinha embalado para mim antes de voltar para dentro da cúpula.

— Como está lá fora? — Caera perguntou, encostada na parede ao lado da entrada.

Levantei o barril e os odres para ela ver.

— A água não deve ser um problema depois de derreter.

— Eu acho que nosso maior problema é a comida, então… — disse suavemente antes de dar uma olhada em mim. — Ou melhor, meu maior problema.

— Quando foi a última vez que você comeu? — perguntei.

— Já se passaram cerca de cinco dias, talvez uma semana… então não estou em perigo imediato de morrer de fome. — disse ela. Seu estômago roncou naquele momento como se fosse discutir.

— A pilha de ossos que encontramos antes significa que ainda pode haver alguma vida selvagem por aí em algum lugar. — declarei.

Caera deixou escapar um suspiro.

— Seja para sustento ou para as peças que faltam no arco, parece que todos os sinais estão nos dizendo para nos aventurarmos de volta lá.

— Você se arrepende de ter me perseguido agora? — perguntei com um sorriso malicioso.

— Investigado para pesquisa pessoal, corrigiu a nobre Alacryana.

Entreguei a ela o barril de madeira cheio de neve.

— Bem, Srta. Investigadora, mastigue isso por enquanto.

Caera agarrou um punhado e ergueu-o como se fosse uma taça de vinho.

— Você conseguiu encontrar uma boa especiaria, Grey. Isso é gelo grau S?

Revirando os olhos, fui até os cobertores que tínhamos empilhado um em cima do outro para fazer uma cama improvisada.

— Importa-se de ficar no turno da noite, meu companheiro glutão? — Eu perguntei.

Regis emergiu do meu braço, caindo no chão sobre as quatro perninhas atarracadas.

— Eu fico ofendido com esse tipo de linguajar.

— Diga isso para a sua barriga. — Apontei para a protuberância redonda de um estômago que quase tocava o chão.

— Hmph! Me deixe digerir e voltarei à minha forma adulta em um segundo. — argumentou antes de rebolar em direção à pilha de sacos de dormir.

— Você deveria tentar dormir um pouco. — disse, entregando a Caera mais alguns sacos de dormir. — A força da nevasca parece oscilar, então, idealmente, essa tempestade vai diminuir em breve. Se não, ainda devemos estar prontos para partir assim que Regis estiver de volta com força total.

Ela assentiu com a cabeça, aceitando o saco de dormir e se enrolando em um canto com as cobertas de pano enrolados firmemente em torno dela.

Estava deitado debaixo de um único saco de dormir a alguns metros de distância, encostado na parede lisa da plataforma. Com meu corpo Asura constantemente suprido pelas abundantes quantidades de éter ambiente da zona, o manto forrado de pele azul-petróleo foi o suficiente para manter longe a maior parte do frio.

O sono me escapou e fechar os olhos fez com que memórias indesejadas ressurgissem, então deixei meu olhar vagar pela grande cúpula de mármore até pousar na forma inclinada de Caera, ainda tremendo dentro de seus sacos de dormir.

— Talvez faça mais sentido se nós compartilharmos meu saco de dormir. — disse suavemente, raciocinando que o calor compartilhado por nossos corpos no saco de dormir confinado pode nos manter aquecidos.

Caera parou de tremer quando seu corpo inteiro pareceu ficar tenso sob as cobertas. Regis, que estava deitado perto, ergueu a cabeça com os olhos esbugalhados.

Lentamente, Caera se virou para mim, os olhos arregalados e corando em um vermelho brilhante até seus chifres curvos.

Só levou uma fração de segundo para perceber por que Regis e Caera pareciam tão chocados. Eu segurei minha mão em minha frente.

— Espere, eu não quis dizer…

— Grey. — disse Caera com voz rouca, — embora eu admita que você é muito bonito, não pense que me colocar em seu saco de dormir será tão fácil.

— Eita. — Regis cantou.

Abri minha boca, fechei e a abri novamente antes de enterrar meu rosto em minhas mãos.

— Esqueça o que eu disse. — murmurei, virando minhas costas para os dois.

— Sinto muito, sua ousadia acabou de me surpreender. — A voz de Caera ainda tinha um tom de riso quando seus passos suaves se aproximaram de mim. Senti a parte de trás do meu saco de dormir sendo levantada enquanto subia sob o cobertor grosso atrás de mim. — Obrigado, Grey.

Não respondi quando seu corpo se mexeu para mais perto de mim, seus calafrios constantes diminuindo gradualmente. Nós nos deitamos de costas um para o outro e eu mantive minha mente cuidadosamente em branco enquanto ouvia sua respiração ficar mais regular, mas era óbvio que ela ainda estava acordada pelo seu arrastar de pés ocasional.

— Há algo em minha mente. — finalmente disse. — Por que você esconde seus chifres? Achei que ter chifres fosse algo para se orgulhar.

— Suponho que seja normal pensar assim, e para muitos pode ser. — disse ela, com voz suave. — Mas a realidade nunca é tão simples.

Caera fez uma pausa, como se hesitasse em revelar mais alguma coisa. Depois de deixar escapar um suspiro, continuou.

— Cada casa que teve traços de sangue Vritra em sua linhagem é registrada para que os descendentes dessas casas sejam imediatamente testados ao nascer. Se o sangue de um recém-nascido contiver traços da linhagem do Alto Soberano, eles são imediatamente retirados daquela casa e colocados em uma casa Alto Sangue capaz de criar e treinar o bebê para se tornar uma figura distinta. — explicou ela.

— Então, os Denoirs não são seus pais de sangue? — Minha mente saltou para meus próprios pais e minha estranha relação com eles. Embora eu tivesse nascido de Alice e Reynolds, e pensasse neles como meus verdadeiros pais, como Grey, nasci de uma mulher diferente, uma mãe da qual não me lembrava.

— Não, eles não são. Eu não conheço meus pais de sangue. Os Denoirs tiveram a “honra” de me acolherem na esperança de que o sangue Vritra em mim se manifestasse, o que é bastante raro.

Havia um toque de sarcasmo na palavra “honra”, mas não pressionei, deixando-a continuar.

— Até então, eu deveria ser criada, educada e treinada nas mais seguras das condições, porque se alguma coisa acontecesse comigo, os soberanos despiriam os Denoirs de sua nobreza e terras, no mínimo, ou, na mais extrema das circunstâncias, até mesmo matar o sangue inteiro.

— Isso deve ter colocado seu relacionamento com os Denoirs no limite. — gargalhei.

Caera soltou uma pequena risada.

— Isso é um eufemismo, Grey. Mas sim, o único que realmente me tratou como uma pessoa em vez de uma escultura de vidro foi Sevren, o proprietário original da adaga branca, e o único que eu poderia realmente chamar de irmão.

— Ele me tirava furtivamente do meu quarto e nós dois treinávamos até o nascer do sol. Depois de se tornar um ascendente, costumava voltar e sempre me contava histórias de sua ascensão, as emoções e perigos das Relictombs. — Caera se mexeu ligeiramente sob o cobertor.

— Isso explica seu gosto pelas Relictombs. — disse, conectando os pontos com o que ela me disse como Haedrig. — Isso também explica por que você tem que se disfarçar em outra pessoa, mas não por que você escondeu seus chifres mesmo quando eu a vi pela primeira vez com seus guardas.

— O fato de meu sangue Vritra ter se manifestado foi mantido em segredo dos Denoirs, até mesmo para Taegen e Arian. — divulgou.

— O quê? Como eles não—

Me virei, só agora percebendo que Caera estava me encarando.

Seus olhos escarlates se arregalaram de surpresa quando ficamos cara a cara e eu imediatamente me afastei dela, deitando de costas e mantendo alguns centímetros de espaço entre nós.

— Minhas costas estavam absorvendo todo o calor. — ela explicou rapidamente, nervosa.

— Não, está tudo bem. — eu disse. — Mas como os Denoirs não sabem que você manifestou seu sangue Vritra? Achei que era esse o motivo principal de pegarem você.

— É, e em condições normais, eles teriam sido os primeiros a saber. — Caera concordou. — Mas no momento da manifestação do meu sangue Vritra adormecido, eu estava com um de meus mentores, uma Foice enviada por um dos próprios Vritra.

Endureci com a menção dos poderosos generais Alacryanos, que quase me mataram em várias ocasiões, mas Caera não pareceu notar.

— Minha mentora imediatamente me levou a uma área isolada e ajudou a me guiar durante o processo antes de explicar o que aconteceria comigo, agora que eu era uma verdadeira Alacryana de Sangue Vritra. — Um sorriso solene apareceu no rosto de Caera. — Ela me deu uma escolha: eu poderia ser experimentada e moldada em um soldado para Agrona, ou poderia continuar como antes, a filha adotiva frustrada de um sangue superprotetor.

— Presumo que você escolheu a opção número dois?

Caera soltou uma gargalhada.

— Não acho que estaria no mesmo saco de dormir que um misterioso portador da magia tabu com várias relíquias em sua posse se eu tivesse escolhido a primeira opção. Você sabe quantas leis você está violando?

— Provavelmente não muito mais do que a garota escondendo o fato de que ela é capaz de exercer a magia Vritra. — apontei. — E eu duvido que esteja tudo bem para você estar se referindo ao próprio Alto Soberano como se ele fosse o seu tio menos favorito.

Caera olhou para mim por um momento antes de cair na gargalhada, me assustando.

— Acho que é verdade. Aqui… — Ela então abaixou sua camiseta, puxando um pequeno pingente em forma de lágrima antes de entregá-lo para mim. — Não está funcionando agora, mas esta é a relíquia que mantém meus chifres escondidos e me permite mudar minha aparência para Haedrig.

Segurei o pingente na palma da mão, sentindo os traços inconfundíveis de éter irradiando dele.

— Está tudo bem para você revelar isso para mim?

— Não é razoável para você confiar em mim depois de como eu te enganei, mas uma alternativa próxima à confiança é a destruição mutuamente assegurada. — disse Caera, dando-me um sorriso sombrio.

Eu levantei uma sobrancelha.

— Você sabe que posso destruir isso agora…

Os olhos da nobre Alacryana se arregalaram.

— V-você pode? Isso seria… problemático.

Encarei a relíquia azul cristalina, estudando as runas etéricas que pareciam ter sido gravadas no interior da gema translúcida pelos djinns. Caera me observou de perto, mordendo o lábio nervosamente enquanto eu revirava a relíquia inestimável.

Ela estava certa. Se eu segurasse esta relíquia agora, ou a destruísse antes de deixarmos as Relictombs, a vida dela correria tanto perigo quanto a minha. Depois de pensar bem no assunto, joguei o pingente de volta para ela.

— Você não seria útil para mim se fosse presa assim que saíssemos.

Os olhos de Caera se iluminaram.

— Isso significa que você não planeja me matar ainda, Grey?

— Vamos dormir um pouco. — Virei minhas costas para ela, deitado de lado sob a coberta enquanto me fazia a mesma pergunta…

O meu lado racional sabia que seria mais seguro matá-la aqui e agora, mas eu tinha jurado a mim mesmo, depois de terminar nas Relictombs, que precisaria correr riscos se quisesse matar Agrona. E se Caera, com todos os seus poderes e conexões, realmente se opõe aos Vritra tanto quanto ela me fez acreditar, então tê-la ao meu lado pode valer o risco.

O som de respirações suaves e regulares atrás de mim tirou-me dos meus pensamentos. Espiei atrás para ver que Caera já havia adormecido.

— Sem brincadeirinhas. Sou um defensor do consentimento mútuo. — brincou Regis.

Ignorei meu companheiro, agradecido por ele ter ao menos se mantido reservado durante nossa conversa, e fechei os olhos, ao mesmo tempo esperançoso e ansioso pelo que esta zona traria.