O Começo Depois do Fim – Cap. 285 – A Pegadinha

 

Desviei o olhar da pedra que adornava a bengala preta do homem e estudei os três convidados que acabavam de chegar.

Cromely, de nariz adunco e pele clara, trocou cumprimentos corteses, porém curtos, com o rebanho de funcionários da cidade e seus familiares. Os dois alunos que pareciam ter minha idade mal falavam enquanto mantinham o queixo levantado e o peito estufado.

A aluna conhecida como Aphene tinha corpo de atleta com pernas compridas e esguias que eram acentuadas pelo uniforme. Seu olhar feroz perfurou-me por trás de sua franja escura, me destacando.

Descartando sua provocação como no máximo fofa, virei meu olhar para o homem loiro que parecia ter passado um tempo considerável na frente de um espelho. Comparado com sua indelicada colega de escola, o aluno chamado Pallisun atendeu a todos com um sorriso experiente que parecia transmitir sua arrogância de uma forma mais implícita.

Observando o adolescente desfilar em seu terno branco, o qual era bordado com um único protetor de ombros enfeitado, me lembrei de um ganso-arco-íris exibindo suas penas durante a época de acasalamento.

Regis riu da minha comparação, concordando de coração.

O trio eventualmente veio até mim. Atrás deles estava a comitiva de cidadãos fazendo tudo o que podia para obterem um favor ou mesmo fazer com que olhassem em sua direção, em modo geral.

— Uma honra ter um ascendente em nossa presença. — representante mais velho entoou, sua expressão não correspondendo exatamente com suas palavras. — Meu nome é Cromely do Sangue Mandrick. Esta é minha neta, Aphene — apresentou antes de apontar para a aluna à sua esquerda. — E este aluno é Pallisun do Sangue Blather. Ambos, apresentem-se.

Aphene baixou a cabeça, um pouco relutante.

— Aphene do Sangue Mandrick.

Pallisun, que tinha aproximadamente minha altura, mas com um pouco mais de volume, me examinou da cabeça aos pés.

— Pallisun do Sangue Blather.

Cumprimentou, liberando um pouco de mana que se agarrou firmemente contra seu corpo em uma tentativa de mostrar seu controle.

— Que ganso-arco-íris. — julgou Regis.

— É um prazer conhece-los. E obrigado novamente, por me levar junto para a cidade de Aramoor. — eu disse a Cromely com um sorriso amigável. Afinal, ele era minha passagem para sair daqui.

— Não é nada. — respondeu ele humildemente.

— Ouvindo que nossa cidade tinha um ascendente visitando, o Ancião Cromely trouxe os melhores alunos da Academia Stormcove. — explicou o chefe Mason.

O olhar do representante da academia cintilou sobre o chefe da cidade com desdém antes de adicionar:

— Sim, embora ainda não possam se comparar ao Ascendente Grey, ambos serão transferidos para um instituto de ascendentes no domínio central em breve.

Olhei para os dois alunos com um sorriso casual.

— Parabéns adiantado.

Pallisun esticou o pescoço para conseguir aquela polegada extra sobre mim enquanto respondia.

— Você parece muito jovem, estimado ascendente. Não consigo imaginar que você já tenha muita experiência, mas ainda assim adoraria ouvir suas histórias nas Relictombs.

Regis se irritou.

— Por favor, deixe-me humilhar este homem.

— Seria muito baixo de nossa parte intimidá-lo. Além disso, estou os provocando de propósito. — enviei rapidamente para Regis antes de responder à loira vaidosa.

— É um local bastante agradável para um passeio. Você se importa em se juntar a mim na próxima vez que eu for? — Eu perguntei com uma piscadela.

Algumas risadas soaram da multidão ao nosso redor. A sobrancelha de Pallisun se contraiu em um aborrecimento contido enquanto ele abafava uma risada também.

— Por favor, me dê licença enquanto eu pego uma bebida. — Pallisun disse com um sorriso forçado. — Vamos, Aphene.

Os dois alunos se viraram e se dirigiram para uma das mesas atrás deles. Enquanto faziam isso, não pude deixar de pensar que era uma pena que suas costas estivessem cobertas, escondendo suas runas.

Sem pensar nisso, me acomodei contra o rebordo que dava para a exposição. Abaixo, o anfitrião encarregado de mediar o evento estava fazendo os alunos andarem em círculo para acenarem para o público.

Os aplausos eclodiram quando a maioria dos alunos saiu do campo central, deixando para trás apenas um grupo de alunos que parecia ter cerca de oito a dez anos de idade.

O dia avançou enquanto observávamos os vários eventos que mostravam as proezas mágicas e físicas dos alunos.

Os alunos Conjuradores foram os primeiros. Os trabalhadores trouxeram alvos e os colocaram no lado oposto do campo para os alunos tentarem acertar com precisão e força. Depois disso, começaram a correr por uma pista de obstáculos enquanto atingiam alvos sem parar.

Embora eu não tenha tolerado as crianças soldados, foi impressionante ver até mesmo as crianças nesta pequena cidade passarem sem esforço pela complicada pista de obstáculos enquanto atiravam como combatentes treinados rumo à guerra.

Uma guerra contra Dicathen.

Droga, me amaldiçoei por ter pensamentos desnecessários. Qualquer coisa que eu fizesse para tentar ir contra Alacrya neste momento não seria nem mesmo equivalente a sujeira debaixo das unhas de Agrona.

Engolindo o gosto amargo na boca, continuei observando os alunos conjuradores terminando e o anfitrião pedia que os escudos voltassem para a arena. A exibição consistia em cada um dos escudos protegendo dois manequins de projéteis embotados feitos de madeira e pedra.

— Naquela idade, estaria lutando até a morte contra uma besta de mana que meu pai havia capturado para ganhar experiência de batalha. — uma voz clara declarou alguns metros à minha direita.

Mudei meu olhar para ver Pallisun de pé com uma garota de vestido com babados debaixo de cada braço. Continuou a se gabar ruidosamente de seu treinamento como escudo na idade deles. Enquanto isso, as garotas arrulhavam e riam como se suas próprias palavras contivessem ouro.

Ele não era o único apreciando o espetáculo abaixo. Durante esses dois eventos, os outros funcionários das cidades vizinhas fizeram apostas em seus próprios estudantes locais, enquanto os nomes de estudantes promissores eram mencionados e elogiados em voz alta o suficiente na esperança de que Cromely pudesse ouvir.

Quando os alunos escudos da cidade Ludro, Cessir, Deura e Maerin saíram, a atmosfera mudou. Enquanto os conjuradores e escudos receberam aplausos entusiasmados ao longo de seus eventos, eles eram invisíveis em comparação com quando os alunos atacantes subiram na plataforma que havia sido erguida para o torneio.

Este evento específico consistiria em seis atacantes representativos de cada cidade, todos participando do torneio.

Eles começariam tendo o duelo dos seis entre si pela vaga de representante de suas cidades e terminaria com o atacante restante de cada cidade se enfrentando nas semifinais e finais.

Depois que o anfitrião lembrou aos atacantes que perder intencionalmente para deixar um membro específico de sua cidade avançar era estritamente proibido, o torneio começou.

Embora não esperasse muito, devo admitir que gostei da exposição. A julgar por como Aphene parou de se preocupar em assistir após a primeira partida, tenho certeza que ela discordaria.

As crianças lutaram com movimentos treinados, exibindo proezas tanto físicas quanto mágicas. Por causa de como as marcas ou cristas que tinham restringia o escopo de seu feitiço de se tornar em uma forma ou ação específica, eles tiveram que confiar em compreender e manobrar melhor que seus oponentes, utilizando sua magia como uma ferramenta ao invés de confiar nela.

— Eu não posso imaginar que este pequeno espetáculo iria entretê-lo de alguma forma. — uma voz fina entoou por trás.

Voltei meu olhar para o próximo par de alunos atacantes subindo na arena.

— Então, você encontrou alguém que valha a pena admitir na Academia Stormcove?

— Eu já fiz a varredura de todos os alunos e nenhum deles carrega reservas de mana dignas de serem admitidas. — respondeu em um tom que dizia que esperava por isso. — Mesmo assim. O diretor da nossa academia solicitou que trouxéssemos mais talentos de fora da cidade de Aramoor, então vou pegar o vencedor deste pequeno torneio.

— É mesmo? Para mim, parece que você nunca teve a intenção de levar isso a sério. — ponderei.

— Sinceramente, eu estava relutante em visitar este… posto avançado. — Cromely então se virou para mim, seu nariz adunco a menos de um braço de distância do meu rosto. — Se aquele velho homem-urso não tivesse me dito que um ascendente de verdade estava aqui e precisava de um favor, não teria me incomodado em vir, muito menos com meus dois melhores alunos.

— Parece que você está insinuando algo, Ancião Cromely. — respondi, olhando de soslaio para o homem mais velho. — Não sabia que havia restrições para minha curta viagem à cidade de Aramoor.

— Sem restrições, é claro. — respondeu rapidamente com uma risada seca. — Apenas esperava que você agraciasse meus alunos e esta cidade com uma demonstração da força de um ascendente.

Estava esperando por isso. No momento em que os dois alunos com quem ele havia chegado começaram a me avaliar para uma luta, sabia que as chances eram grandes. Ainda assim, não acho que eles gostariam de me desafiar aqui.

— Mas faz sentido. — enviou Regis. — Se vocês lutam aqui e eles perdem, eles não correm o risco de perder a honra por desafiar estupidamente um ascendente.

— Hmm… embora educar os jovens seja importante, escolhi me tornar um ascendente ao invés de um instrutor porque valorizava os bens materiais um pouco mais. — sugeri com um sorriso brincalhão.

O velho representante piscou e pareceu voltar a si depois de um momento. Soltando uma gargalhada, me deu um tapinha no braço.

— Parece que não será muito difícil conviver com você, Ascendente Grey! Diga seu preço.

— Ouro é fácil de conseguir. — disse mostrando a ele o cartão de runas que o Chefe Mason me entregou anteriormente, preenchido com os ganhos da venda das bestas de mana que eu tinha usado como manequins de treino. — Mas estou curioso sobre essa pedra estranha que você tem na bengala.

— Como esperado de um ascendente, você tem um bom olho. — meditou enquanto segurava sua bengala. — Mesmo que isso tenha sido considerado uma relíquia morta por nosso soberano, ainda me custou uma pequena fortuna durante o leilão.

— Ele contém algum tipo de efeito especial ou segredo? — perguntei com indiferença, suprimindo tanto o meu desejo quanto o de Regis de consumir o éter armazenado dentro dele.

— Se uma relíquia morta pudesse realizar até mesmo a menor especulação de magia antiga, então seria impossível para um mero ancião da academia em alguma pequena cidade pagar por isso. — Cromely respondeu enquanto esfregava a pedra do tamanho da palma com o polegar. — Não, é apenas uma bugiganga muito cara para poder se gabar.

— Uma pena. — disse, fingindo desapontamento.

Não sabia que as relíquias consideradas “mortas” por Agrona foram leiloadas de volta ao público, mas fazia sentido. Por que não obter riquezas com os restos dos quais você não fará uso depois de levar todas as relíquias que ainda estavam intactas.

Pensando bem, não pude deixar de me perguntar como as coisas teriam funcionado de forma diferente se eu não tivesse a runa de armazenamento dimensional e o Chefe Mason tivesse dito que precisaria tirar a relíquia cuboide de mim.

Era seguro presumir que meu relacionamento com as pessoas desta cidade não teria sido tão despreocupado quanto agora.

— Mesmo assim. Se o Ascendente Grey é um perito desse tipo, não consigo imaginar você não querendo adicionar isso à sua coleção. — respondeu ele. — O que acha disso? Se o Estimado Ascendente conseguir derrotar Pallisun e minha neta em uma luta amigável, não irei apenas escoltá-lo até a cidade de Aramoor e garantir que você seja completamente servido, também darei a você esta relíquia. Se eles puderem superar você, tudo que o Ascendente Grey precisa fazer é dar uma forcinha para eles.

Eu levantei uma sobrancelha.

— Dar uma forcinha?

Um sorriso astuto substituiu a expressão de confusão no rosto do homem mais velho.

— Não adianta fingir ignorância, Ascendente Grey. Mason me contou sua estreita relação com Alto Sangue Denoir. — sussurrou ele. — Não se preocupe; seu segredo está seguro comigo.

Respirei fundo e contive minha irritação. Parece que o grande chefe cedeu a pressão. Realmente não queria que minha associação com um nome tão poderoso fosse divulgada tão cedo, mas acho que funcionou a meu favor no momento.

Soltando um suspiro, concordei.

— Isso não parece uma proposta ruim.

— Ótimo! — Cromely bateu palmas, mostrando um sorriso que realmente alcançava seus olhos pela primeira vez. — Presumo que você não tenha problemas em enfrentar meus dois alunos ao mesmo tempo?

— Ele realmente não tem vergonha. — comuniquei interiormente a Regis.

Dando de ombros, disse ao homem mais velho.

— Achei que fosse esse o caso.

— Como esperado de um ascendente! — Cromely sorriu. — Tenho certeza de que, independentemente de meus alunos ganharem ou perderem, esta será uma excelente experiência de aprendizado para eles!

— Como esperado de um ascendente. — Regis repetiu zombeteiramente. — Que naja.

— Ele fala com um político. Não é nada surpreendente quando existe tal distinção dentro da hierarquia em Alacrya.

Observei enquanto Cromely se afastava depois de me fazer uma pequena reverência. Ele não poderia ter dado mais do que cinco passos quando o Chefe Mason imediatamente correu para mim, a preocupação atada em suas sobrancelhas franzidas.

— E-Estimado Ascendente.

O chefe Mason virou a cabeça para se certificar de que Cromely estava fora do alcance da voz antes de continuar.

— M-Minhas mais sinceras desculpas. O Ancião Cromely estava prestes a cancelar sua visita, e sei que isso implicaria em sua viagem de volta à cidade de Aramoor também. Ele conheceu muitos ascendentes antes, então apenas dizer que você era um ascendente não pareceu interessá-lo.

— O que está feito está feito. — respondi, com minha voz vazando um tom de aborrecimento. — Estou supondo que você previu que o Ancião Cromely me pediria para fazer um pequeno show com seus alunos?

O olhar do homem corpulento baixou.

— Ele mencionou isso, sim.

— Bom. Então, progrida conforme planejado. — Levantei-me para pegar uma bebida quando o chefe Mason agarrou minha manga.

— Por favor, tome cuidado com o Ancião Cromely. Ele é conhecido por ser bastante desonesto em seus planos, e ele preza muito sua neta. — se inclinou e sussurrou.

Minha boca se contorceu para cima em um sorriso.

— Então você está se preocupando comigo agora?

A expressão do chefe da cidade vacilou e ele parecia que estava prestes a se enfiar em um buraco.

— Estou brincando. — sorri, dando um tapinha no ombro do homem grande. — Espero que seu filho ganhe a exposição. Sua primeira vitória foi impressionante.

— Obrigado! — A expressão do chefe Mason iluminou-se enquanto ele sorria de orgulho.

Enquanto isso, fiz meu caminho em direção à saída, passando por Cromely com seus dois alunos. A expressão feroz de Aphene espelhava sua determinação enquanto Pallisun parecia que já havia vencido.

— Não que eu esteja preocupado, mas você vai ficar bem? Eles parecem estar escondendo algo e você drenou a maior parte de suas reservas de éter tentando acordar Sylvie. — Regis expressou sua preocupação.

— Eles presumem que sou um ascendente recém-formado que mal conseguiu sair de sua primeira ascensão.

Um sorriso apareceu em meus lábios quando saí da sala de exibição. Estava ficando entediado de treinar contra as bestas de mana próximas, e esse duelo sendo desafiador ou não, pelo menos poderia aproveitar para relaxar.