O Começo Depois do Fim

O Começo Depois do Fim – Cap. 263 – Sangue dos Antigos (POV Ellie – Capítulo 3)

 

Eu ouvi as criaturas deslizando pela escuridão antes de vê-las. O artefato de luz fraca que carregava iluminou apenas cerca de três metros ao meu redor, o suficiente para andar sem torcer meu tornozelo, mas não o suficiente para me mostrar o que estava por vir.

Havia três, talvez quatro deles, e ainda estavam a pelo menos quinze metros no túnel.

Ratos das cavernas.

Nós os descobrimos pela primeira vez quando exploramos os túneis ao redor do refúgio. As feras não representavam uma grande ameaça ao abrigo de refugiados; na verdade, eles provaram ser realmente úteis, já que podíamos comê-los. Não tinham um gosto muito bom, mas sem eles, trazer proteína suficiente para o nosso refúgio teria sido muito mais difícil. Ainda assim, as pessoas tinham que ter cuidado, porque os ratos das cavernas podem ser perigosos para quem viaja por conta própria.

Felizmente, tinha Boo comigo, então não estava muito preocupada com um bando de ratos das cavernas.

As bestas de mana semelhantes a roedores eram do tamanho de lobos e se moviam em matilhas como lobos também. Pelo que podíamos dizer, eram os predadores dominantes nesses túneis, sobrevivendo dos vermes menores.

Tirei meu arco do ombro e puxei a corda, conjurando uma flecha nela. Boo bufou, mas tínhamos praticado isso antes. Ele ficaria atrás de mim, fora da linha de fogo, até que o inimigo se aproximasse, então eu poderia recuar e ele avançava.

O arranhar das garras dos ratos das cavernas no chão áspero de pedra do túnel de repente se acelerou, mas esperei até ver o primeiro par de olhos brilhando em vermelho sob a luz refletida da minha pequena lanterna de pedra.

A corda zumbiu quando o feixe de luz branca voou para a escuridão. Uma segunda flecha foi conjurada e encaixada no momento em que a primeira encontrou sua marca bem entre os olhos do rato líder.

A besta tombou de ponta-cabeça, apenas uma sombra no limite da minha visão. Minha segunda flecha passou veloz por ele, atingindo outro rato da caverna que ainda não conseguia ver.

O terceiro animal passou correndo por seus companheiros mortos, rodopiando pesadamente como um ursinho, mas não se aproximou muito antes que uma de minhas flechas o acertasse na junta entre o pescoço e o ombro. Suas pernas cederam e ele deslizou para frente sobre o peito, ofegando horrivelmente.

O tirei de sua miséria com uma flecha final no crânio.

O túnel estava em silêncio, exceto pelo som suave da minha própria respiração e o bufo profundo de Boo atrás de mim.

— Desculpe, garoto. — disse com um sorriso. — Prometo que vou deixar um pouco para você na próxima—

Um movimento vindo de cima chamou minha atenção: um quarto rato da caverna estava usando suas garras duras para rastejar lentamente pelo teto do túnel. Estava encolhido e sarnento, com o pelo preto e cinza mosqueado se projetando para fora.

Movendo-me lentamente, coloquei minha mão na corda do arco e comecei a recuar, mas a criatura reagiu muito mais rapidamente do que seus companheiros mortos. Caiu no chão, girando no ar para pousar em seus pezinhos retorcidos, então abriu a boca grotesca e sibilou, cuspindo uma nuvem de gás esverdeado.

Soltei minha flecha, mas o rato da caverna, se é que fosse um rato da caverna, saltou para o lado, girou e disparou pelo corredor, movendo-se rapidamente além do alcance da minha fonte de luz fraca.

Tropeçando para trás para escapar da fumaça, lancei outra flecha em alta velocidade pelo túnel atrás dele, na esperança de acertá-lo às cegas, mas a flecha apenas atingiu a pedra e depois se extinguiu.

Boo rugiu e passou disparado por mim, rasgando no escuro atrás do estranho rato das cavernas, pronto para destruí-lo.

O túnel tinha um cheiro doce e pútrido, como fruta podre, fazendo meus olhos lacrimejarem e meu nariz queimar. Recuei mais e esperei, um calafrio subindo pelas minhas costas. Que diabos estava acontecendo? Me perguntei, esfregando os arrepios que apareceram em meus braços.

Depois de menos de um minuto, Boo voltou pesadamente pelo túnel. Pela ausência de sangue fresco em seu focinho, ficou claro que não pegou a criatura.  Não gostei da ideia daquela criatura se escondendo em algum lugar fora de vista, agarrada ao teto como um morcego, me olhando… estremeci de novo.

— Vamos andando, Boo. — disse descansando minha mão em seu pelo grosso e desgrenhado. Então, para me tranquilizar, repeti o mantra que Helen havia me ensinado: — Olhos para cima e arco firme. Nunca vacile e esteja sempre pronta.

Movendo-me rápida e silenciosamente, prendi a respiração ao passar pela névoa fétida que ainda pairava no ar. Os ratos da caverna mortos jaziam em pedaços retorcidos no chão e logo atrairiam mais deles dos túneis ao redor. Teria que ser cautelosa no meu caminho de volta para a cidade subterrânea.

Olhei para cada protuberância de rocha no teto e nas paredes, e em duas ocasiões diferentes atirei uma flecha no que se revelaram ser pedras soltas que haviam caído do telhado, mas nas bordas escuras da minha luz elas pareciam ratos da caverna à espreita.

Cada curva e volta do caminho que levava à pequena caverna da Anciã Rinia fazia meu coração bater mais e mais enquanto rastejava pelos cantos cegos, me curvo pronto, esperando que a besta sarnenta pulasse de cima ou expirasse sua fumaça nociva.

Finalmente, vi o brilho constante do artefato de luz que pairava sobre a fenda na parede que servia como porta da Anciã Rinia. Soltando um profundo suspiro de alívio, percebi que a queimação em meu nariz havia descido para minha garganta e pulmões, e que era doloroso respirar.

O gás… 

Correndo para frente, escorreguei pela fenda e entrei na pequena caverna que a Anciã Rinia reivindicou como seu lar.

Boo grunhiu atrás de mim; geralmente não se importava de esperar no túnel enquanto eu conversava com Rinia, mas podia sentir minha angústia. Eu o ouvi tateando a estreita abertura atrás de mim, como se ele pudesse abrir caminho para me ajudar.

A velha vidente estava sentada em uma cadeira de vime com os pés apoiados em um pequeno fogo fraco que queimava dentro de uma alcova natural ao longo da parede oposta da caverna.

Ela se virou quando tropecei em sua porta, uma sobrancelha levantada.

— Ellie, querida, o que você… — Anciã Rinia se levantou com surpreendente rapidez, olhando para mim com preocupação. — Mas o que aconteceu, pequena?

Tentei falar, mas só consegui engasgar.

— Eu-eu-n-não posso—

A velha vidente estava ao meu lado em um instante, seus dedos ásperos cutucando meu pescoço, meus lábios, empurrando minha cabeça para trás para espiar em minhas narinas, abrindo minha boca para olhar minha garganta.

Meu pânico só aumentou quando a Anciã Rinia estalou a língua, depois correu para um armário alto encostado contra a parede áspera da caverna e começou a afastar a desordem de itens dentro.

— Onde está? Onde está?!

Então minha respiração parou de doer, porque parei de respirar. Tropecei na direção da velha Elfa e caí de joelhos, uma mão levantada em sua direção suplicante. Meus pulmões estavam em chamas e parecia que meus olhos iriam explodir do meu crânio.

— Hah! — A anciã Rinia piou de algum lugar acima de mim, embora parecesse muito distante. Então algo me empurrou bruscamente para o lado e tombei, rolando de costas.

Um rosto embaçado pairou sobre o meu, e algo frio foi pressionado contra meus lábios. Um líquido espesso e gelado encheu minha boca e começou a deslizar sem ajuda pela minha garganta, e foi como se alguém tivesse lançado um feitiço para congelar minhas entranhas.

O líquido, o que quer que fosse, se contorceu dentro de meus pulmões e garganta, mas quando engasguei, sugando uma golfada de ar gelado, ainda era capaz de respirar. A sensação de me afogar no lodo foi demais para o meu corpo, que imediatamente começou a tentar remover o lodo frio, forçando-me a vomitar. Rolando e me apoiando nas mãos e nos joelhos, comecei a vomitar como um gato tossindo uma bola de pelo.

A lama azul brilhante respingou no chão entre minhas mãos, acumulou-se densamente, congelou-se novamente como pedaços de bolor limoso deslizando pela pedra, depois murchou, escureceu e ficou imóvel.

Limpei a saliva de meus lábios trêmulos e me virei, horrorizada, para a Anciã Rinia.

A velha vidente sorriu gentilmente e deu uma tapinha nas minhas costas.

— Tudo bem, tudo bem. Certo como a chuva, agora.

Sentei em minhas mãos e respirei fundo. O ar ainda estava frio como uma manhã gelada de inverno e tinha um leve gosto de hortelã. A dor ardente e o cheiro persistente de podridão desapareceram.

— O que… o que foi isso? Meus olhos desviaram para a gosma preta, depois de volta para ela.

Ela se virou e caminhou lentamente de volta para sua cadeira, acomodando-se nela com cuidado, de repente a própria imagem de uma velha frágil.

— Gordura de caracol congelado. Funciona muito bem para queimaduras. Mas não dura fora de seu invólucro.

Afastando-me da pilha de lodo preto, olhei para a Anciã Rinia com nojo.

— Então você enfiou ranho de lesma na minha garganta? Mas nem me queimei… havia algum tipo de gás… pensei que tinha sido envenenada.

— Queimadura química. — disse ela com desdém. — O ancião que me ensinou também era um curandeiro talentoso. Não tenho o sangue dos antigos, entretanto, tive que fazer isso com remédios mais mundanos.

Eu nunca tinha ouvido a Anciã Rinia falar sobre seu passado ou como havia aprendido suas artes mágicas antes. Por um momento, a empolgação de aprender mais sobre a misteriosa vidente foi o suficiente para tirar o rato das cavernas e minha experiência de quase morte da minha mente.

— Essa foi a mesma pessoa que te ensinou sobre as runas e éter e outras coisas?

— Sim. Você poderia dizer que eles eram excepcionalmente talentosos. Levei uma vida inteira para aprender até mesmo uma parte do que sabiam… — A Anciã Rinia perdeu-se em pensamentos.

Ela pulou e sorriu calorosamente quando eu disse:

— Não consigo imaginar ninguém mais inteligente do que você.

— Talvez. É realmente lamentável que a sabedoria dos antigos morreu com eles…

Os magos antigos haviam construído maravilhas que ainda não entendíamos completamente: a cidade flutuante de Xyrus, o castelo voador, as plataformas de teletransporte que conectavam toda Dicathen. Li um pouco sobre eles, mas não havia muito que soubéssemos com certeza.

— A propósito, Ellie, você se importaria de mandar embora essa sua grande besta antes que destrua minha porta da frente? — Anciã Rinia perguntou divertida.

— Ah, foi mal! — Tremendo um pouco, pulei e corri de volta para a fenda que levava de volta ao túnel. Boo ainda estava coçando a entrada; ele se forçou a entrar no espaço que ia até os ombros, mas foi o mais longe que pôde ir.

Parou quando me viu.

— Está tudo bem, Boo, estou bem. Apenas descanse agora, voltarei depois de falar com a Anciã Rinia, ok?

Meu vínculo me olhou, então bufou e começou a correr para trás, lentamente se desalojando da abertura estreita.

Dei uma tapinha em seu focinho e voltei para a caverna, caminhando com cuidado ao redor da lama negra até onde a Anciã Rinia estava sentada. Havia apenas uma cadeira ao lado do fogo, então me sentei de pernas cruzadas na pedra quente aos pés da Anciã Rinia, sentindo-me mais do que nunca como uma criança. Apesar de estar lá por um motivo, algo que a velha vidente disse ficou na minha cabeça.

— O que você quis dizer com não ter o sangue dos antigos?

A Anciã Rinia zombou e olhou para mim com avaliação.

— Pegou isso, não é? Eu e minha boca grande. — Sua expressão ficou pensativa, como se estivesse tentando decidir o quanto poderia me dizer, uma expressão que eu já vira muitas vezes antes no rosto enrugado da velha elfa, então ela respirou fundo.

— Isso não é algo que muitos sabem, mas quando eu era uma menina, me ensinaram que emissores, curandeiros, carregam o sangue dos magos antigos em suas veias. Esta, de fato, é a fonte de sua forma anômala de magia.

— Então, isso significa que mamãe é descendente de magos antigos? Que… que Arthur e eu somos? — Eu não tinha certeza do que isso significaria. Nem tinha certeza se acreditava na velha vidente. Parecia fantástico, até bobo, pensar nisso. Os magos antigos eram figuras de histórias, como os Asuras.

Mas então, os Asuras eram reais o suficiente. Arthur até tinha ido para sua terra natal para treinar…

A Anciã Rinia balançou a cabeça.

— Receio ter nos desviado bastante. Talvez possamos falar mais sobre essas coisas mais tarde. Por enquanto, acho que seria melhor que você explicasse o que exatamente encontrou no caminho para cá?

Ela tinha me falado tanto quanto estava disposta, sabia. Também sabia que não adiantava discutir com ela ou tentar arrancar mais informações.  Ninguém entendia o poder de palavras simples melhor do que uma vidente, e não haveria como convencê-la a me dizer algo que não quisesse, então me aproximei um pouco mais do fogo e comecei a contar a ela sobre o ataque nos túneis.

A Anciã Rinia se inclinou para a frente em sua cadeira, com as mãos juntas enquanto ouvia minha história sobre os ratos das cavernas e a estranha e doentia besta de fera mana que quase me matou com seu ataque de respiração.

Quando terminei, se inclinou para trás e soltou um longo suspiro.

— Um duende da praga.

— O quê? — perguntei, nunca tendo ouvido falar de tal criatura antes.

— Criaturas perversas que são capazes de se disfarçar para viver entre outras bestas de mana. A maioria das bestas de mana são apenas isso, bestas, mas duendes de pragas estão cheios de ódio e crueldade. Felizmente, não são particularmente fortes, embora possuam uma inteligência mesquinha que os torna perigosos de subestimar.

— Parece algo que você levantaria e treinaria para manter as pessoas afastadas. — eu murmurei mal-humorada.

— Só se você quiser ser estrangulada durante o sono. — disse a Anciã Rinia, rindo sombriamente. — Mas você está aqui para discutir outra coisa, não é? E já que quase morreu no processo, é melhor você continuar com isso.

Pega de surpresa, abri a boca, tossi secamente e fechei a boca novamente. Desde o ataque do rato da caverna, nem havia pensado no pedido de Virion, e agora percebi que não tinha certeza de como perguntar o que precisava saber.

O medo e nervosismo fez com que minhas palmas suassem e minha boca secasse. Rinia estava olhando para mim com expectativa, mas não conseguia ordenar as palavras em minha mente.

— Bem, cuspa, criança. — disse a Anciã Rinia com impaciência, embora não com grosseria. — Conte-me tudo sobre o grande plano de Virion e peça minha sabedoria, sei que é por isso que você está aqui.

— Se–se você sabe por que estou aqui, por que precisa que eu pergunte a você? — Encarei o fogo, evitando o olhar penetrante da velha vidente. Tentei parecer indiferente, como se estivesse brincando com ela, mas minhas palavras saíram choramingando, como um cachorrinho assustado.

Ela suspirou profundamente.

— Minha querida… — Havia tanta gentileza, calor e cansaço em sua voz ofegante que não pude deixar de me virar e encontrar seu olhar.  — Você não tem nada a temer aqui. Você está sendo carregada com fardos que não deveria ter que suportar, mas você precisa saber que pode.

Eu quero lutar contra os Alacryanos, mas não posso nem fazer uma pergunta simples à minha amiga sem tremer, pensei com raiva. Eu não sou criança.

— Anciã Rinia. — falei sério, enxugando as palmas das mãos suadas nas calças e limpando a garganta. — Enviaremos um grupo, uma força de ataque, a Elenoir para resgatar uma caravana de prisioneiros élficos que estão sendo movidos, transportados, de Zestier em porões recém-formados ao longo da borda da floresta de Elshire. O comandante Virion pede que você compartilhe sua sabedoria e nos diga tudo o que puder sobre es–esta missão.

A Anciã Rinia fechou os olhos enquanto eu falava, assentindo distraidamente. Esperei, assistindo seus globos oculares dispararem sob suas pálpebras fechadas.  Imaginei ela estar lendo algum livro secreto que só ela poderia ver.

Seus olhos se abriram e ela se inclinou para frente, apoiando o rosto nas mãos. Os nós dos dedos enrugados ficaram brancos quando pressionou as pontas dos dedos nas têmporas. Quando falou, sua voz estava rouca e tensa.

— Antes de dar minha bênção para que você se junte a esta expedição a Elenoir, vou precisar que você faça algo por mim.

Sua resposta me surpreendeu.

— Sinto muito, não foi minha intenção desrespeitar, Anciã Rinia, mas não vim aqui para receber sua bênção. — Ela me deu um sorriso conhecedor enquanto apoiava o queixo na palma da mão. — Não, mas você vai precisar se quiser cumprir seu objetivo.

Me curvei, reconhecendo a verdade de suas palavras.

— O que– o que você quer que eu faça?

— Você vai caçar e matar o duende da praga para mim, criança.

 


 

Tradução: Reapers Scans

Revisão: Reapers Scans

QC: Bravo

 

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