O Começo Depois do Fim

O Começo Depois do Fim – Cap. 191 – Selo Rompido

 

Olhei para fileira de juízes que espiavam da plataforma, assim, dando uma visão superior para o estádio principal. Sentada no meio da fileira havia uma alta e bem torneada mulher, com cabelos vermelhos como chamas, que se enrolavam por suas costas. Dois olhos afiados que fariam até um leão selvagem recuar com respeito me olharam com interesse enquanto o resto dos juízes murmurou entre si sobre os resultados da partida.

Perguntei-me o que exatamente tinha para acontecer. Meu oponente, candidato à divisão dois, que estava no teste para uma vaga na primeira divisão, desmaiou atrás de mim quando os médicos se aproximavam com uma maca.

Houve uma percepção apreensiva conforme os juízes continuavam discutindo que eles poderiam muito bem estar determinando se deveriam subir-me de divisão ou manter-me na Divisão Três.

Podia ver Nico e Cecilia no canto do meu olho, esperando tão intensamente pelo veredito quanto eu durante minha primeira competição enquanto participante dessa academia, quando ainda acreditava que resultados justos poderiam ser alcançados através de trabalho duro.

Depois do que pareciam eras, um homem idoso e magro com bigode branco se arrumou um pouco meticulosamente, provavelmente pra compensar pela sua cabeça careca, pigarreou pra chamar a atenção de todos.

— Cadete Grey, sem sobrenome. Ao mesmo tempo que sua partida foi impressionante, especialmente sua demonstração de artes marciais, o baixo nível de utilização do seu ki durante o torneio deixou claro que alguns fundamentos básicos estão claramente faltando e precisam ser cuidadosamente revisados. Portanto, Cadete Grey passará pra Classe Um da Terceira Divisão.

Podia sentir meu sangue ferver debaixo da minha pele fazendo tudo o que podia pra suprimir minha raiva. Cerrei os punhos, rangi os dentes, enrolei os dedos dos pés, qualquer coisa para impedir-me de atacar o juiz e todo esse sistema da academia. Nesse momento, uma gargalhada ecoou por toda a arena. Minha raiva ardente foi instantaneamente sufocada quando olhei pra cima, pasmo, enquanto a juíza ruiva continuava rindo com vontade. Porém, não apenas eu fiquei chocado com as ações dela, como o resto dos juízes, que viraram repentinamente suas cabeças na direção da colega, com expressões que variavam de choque a raiva e a constrangimento.

O público que esteve esperando silenciosamente pelos resultados da rodada final murmurou entre si, esperando receber algumas respostas da virada dos eventos.

Finalmente, depois da juíza ruiva se acalmar, soltou um suspiro limpando uma lágrima.

— Minhas desculpas, pensei que o juiz Drem estivesse brincando com o garoto dizendo que ele precisava “rever seus fundamentos”.

Com a menção de seu nome, o juiz de bigode ficou vermelho até o topo de sua cabeça brilhante.

— Lady Vera. Pela santidade dos duelos de avaliação anuais, seu comportamento é inaceitá—

— Não. — a mulher ruiva que o juiz se referiu com tremendo respeito, apesar da diferença de idade, interferiu categoricamente.

— O que é um comportamento inaceitável, e embaraçosamente patético, é essa tentativa de segurar esse garoto porque ele não é de uma casa nobre.

Claramente despreparado pra ser respondido de maneira tão ríspida, o juiz Drem gaguejou o que esperava que fossem palavras.

— O qu- Como ousa… Eu não fiz tal –

— Então, como você pode justificar o cadete Grey em uma divisão que não seja Divisão Um? — Lady Vera interrompeu novamente. Neste ponto, realmente esperava que essa senhora tivesse forças ou apoio pra justificar sua falta de respeito pelo juiz mais velho.

O Juiz Drem tentou o seu melhor pra recuperar o juízo, deixando escapar outra tosse.

— Como afirmei anteriormente, a utilização de ki do Cadete Grey é ausente—

— Errado. — ela interrompeu instantaneamente novamente, fazendo com que o juiz mais velho praticamente evaporasse de frustração e vergonha. — A utilização de ki do garoto é pelo menos um passo à frente até dos estudantes da Classe Dois da Divisão Um. O que você chama de utilização de ki “ausente” é na verdade ele compensando seus níveis de ki baixos em um grau quase impressionante.

Os outros juízes sentados atrás do painel eram obviamente mais baixos em termos de hierarquia do que o juiz Drem, porque a única coisa que eles estavam fazendo nesse ponto era alternar sem palavras seus olhares entre Lady Vera, Juiz Drem, e eu.

— Lady Vera. — o juiz velho disse com os dentes cerrados. — Embora eu seja grato pela sua compreensão do assunto, eu sou juiz há quase vinte anos agora. Por favor, retribua o respeito que eu lhe mostrei mostrando-me o respeito que eu ganhei neste campo.

Lady Vera bate os dedos no painel em que estava sentada, contemplando por um momento antes de assentir.

— Certo. Vou respeitar seu veredito, juiz Drem.

Entretanto, antes que eu tivesse a chance de ficar desapontado com isso, a figura de Lady Vera desapareceu de vista.

— Que merda é—

Ela apareceu acima de mim e aterrissou com um baque suave. Apesar do fato de eu ter testemunhado tudo, ainda estava em descrença com o fato dela ter limpado o espaço que nos separava tão casualmente quanto eu pisaria fora de uma calçada.

— Criança. Como o juiz “Handlebars”1Handlebars refere-se ao estilo de bigode que o personagem provavelmente tem, aquele que parece um guidão de bicicleta. disse, você ainda vai estar na divisão Três, mas o que você me diz sobre eu me tornar sua mentora pessoal?

Pensei por um momento, até mesmo virei-me para Nico e Cecilia, para ter certeza de que o que eu estava vivendo era real. Não sabia quem essa mulher era, mas a maneira que era segura de si e a habilidade impressionante de movimento que usara pra limpar a distância que a maioria dos soldados de elite não ousariam tentar me fez correr o risco.

Ignorando a fileira horrorizada de juízes, bem como a multidão atordoada, eu segurei a mão dela.

— Eu aceito sua oferta.

 

POV ARTHUR LEYWIN

 

Acordei no chão com minha mão estendida na minha frente, bem como o meu sonho tinha terminado. No entanto, ao invés da mão aparentemente frágil de Lady Vera segurando a minha, estava segurando firmemente o chifre de Uto.

A pedra obsidiana que antes brilhava como uma joia sinistra agora tinha rachaduras e lascas pelo seu exterior cinza opaco. Demorou um momento comigo me perguntando como cheguei nessa posição quando me lembrei de repente. Como se tivesse sido atingido por um raio, me levantei rapidamente. Olhei para meus arredores pela primeira vez desde que acordei, aliviado por ainda estar no meu quarto e ele estar relativamente intacto. Olhando pela janela, ainda era de noite, o que significava que eu fiquei inconsciente por apenas algumas horas.

Focando meus sentidos no meu interior, concentrei minha atenção no meu núcleo de mana, não tinha o brilho prateado cintilante que antigamente tinha, ao invés disso, brilhava intensamente como um sol branco.

— Eu consegui. — murmurei incrédulo. Mantive a concentração no meu núcleo por alguns minutos, apenas assimilando as novas e estranhas sensações que vieram com meu avanço. A minha parte paranoica fez isso apenas pra ter certeza de que eu não estava imaginando coisas.

Não estava. Agora eu era um mago de núcleo branco.

Em êxtase, enviei um pulso de mana por todo o meu corpo. O fluxo de mana foi contínuo e quase instantâneo. Não tive a chance de ler as anotações no caderno que Alanis me deu, mas tive a sensação de que talvez ela tivesse que atualizar alguma das leituras.

Sem parar, estendi minha mão, palma pra cima, e comecei a moldar a mana. Comecei com algo relativamente fácil, fazendo uma pequena esfera de mana pura. Isso era equivalente a alongar antes de uma corrida. Depois disso, comecei a fazer exercícios mais complicados. Aumentei a esfera de mana e a encolhi o mais rápido possível. Então dividi a esfera de mana em duas menores. Depois que eu tinha cerca de uma dúzia de pequenas esferas de mana flutuando acima da minha mão, acendi algumas delas unindo partículas de mana de afinidade do fogo na atmosfera ao mesmo tempo em que congelava outro conjunto de esferas e assim por diante. Após alguns minutos do exercício, tinha várias dezenas de diferentes esferas elementares, todas orbitando em volta da minha palma.

Ao longo de tudo isso, tinha um sorriso largo no meu rosto que só notei depois que minhas bochechas começaram a doer. Existiam centenas de variações desses exercícios de manipulação, todos destinados a ajudarem os magos a melhorarem a magia orgânica, um termo que tinha muitos nomes, mas todos significavam uma coisa: magia que não precisava de gestos ou encantamentos para conjurar.

Grande parte da magia ensinada nas aulas iniciais da Academia Xyrus concentrava-se em magia estagnada, que consistia essencialmente em magias limitadas em variações e usos pra reproduzir de forma fácil e consistente. Os gestos e encantamentos que tantos magos usaram e ainda hoje usam ajudaram guiando os seus subconscientes conforme moldavam a sua mana no feitiço que desejavam. A desvantagem era que a maioria desses gestos e encantamentos basicamente dizia aos oponentes: “Ei, eu vou jogar uma bola de fogo em você”. Era bastante fácil para qualquer mago decente combater essa magia estagnada. A magia orgânica que aprendi tão naturalmente desde que era uma criança, graças à compreensão da mana da minha vida anterior, era muito mais difícil de conjurar e controlar. Toda vez que lançava uma simples lâmina de vento no meu oponente com um simples movimento do meu braço, meu cérebro estava basicamente dando instruções detalhas da mana que coloquei no feitiço para obter a forma, tamanho, velocidade, trajetória, ângulo, etc. Tudo correto.

Entrar no estágio de núcleo branco não foi tão inspirador quanto esperava que fosse, mas foi definitivamente um grande passo à frente, mais do que qualquer um dos avanços anteriores para os próximos estágios de núcleo.

Meu controle e minha “delicadeza” sobre a mana definitivamente haviam aumentado um pouco, quase como se o avanço no núcleo branco também tivesse afetado minha percepção.

Pensei de volta em alguns momentos do passado, quando as Lanças demonstraram um pouco da sua maestria em magia. A habilidade de Olfred de conjurar golens de magma assustadoramente realistas bem como o controle magnífico de Mica sobre um elemento abstrato como a gravidade foram todos os motivos que confirmaram minha afirmação. Colocando Alea de fora, eu nunca tive a chance de ver Aya lutar. Bairon foi capaz de transformar um raio em uma lança gigante que parecia quase tão detalhada quanto uma magistral arma artesanal e, recentemente, fiquei cara a cara com o dragão de Varay feito completamente de gelo.

É por isso que todas as Lanças são tão habilidosas em manipular mana? Pensei, suspirando. Outro pensamento me ocorreu também. Voar. Geralmente, voar de maneira hábil significava atenção constante ao seu corpo e gasto de mana o tempo tudo, tudo isso prestando atenção em outra coisa, como lutar. Essa era a razão da maioria dos magos não voar, mesmo que pudessem, que uso tinha o voo quando precisava de foco total para usá-lo e o gasto de mana era ridiculamente alto?

Se manipular mana ficou tão fácil assim, então pude ver como as Lanças eram capazes de voar facilmente enquanto conversavam casualmente comigo ou até mesmo lançavam feitiços. Ansioso para saber quais eram meus limites, fiquei tentado a ir imediatamente para a sala de treinamento e testar algumas teorias, estava especialmente animado para ativar o Realmheart apenas para ver o que eu podia fazer. No entanto, uma dor aguda surgiu na minha cabeça, me arrancando dos meus pensamentos.

— A-Arthur! Algo está acontecendo…

A voz de Sylvie soou na minha cabeça, mas soou abafada e distorcida.

— Sylvie? O que tem de errado?

Chamei por ela várias vezes, mas não tive resposta. Sentimentos de excitação e euforia foram imediatamente substituídos por preocupação e medo enquanto descia o lance de escadas até a pequena sala de treinamento na qual ela se isolara.

Virei a maçaneta de metal frio da porta, mas estava trancada.

— Sylvie, eu estou aqui! Você pode me escutar?

Sem resposta.

Virei a maçaneta mais forte, esperando que ela estivesse emperrada, mas, como não estava, fiz um buraco perto da maçaneta, tornando o mecanismo de trava inútil. Empurrando para abrir a porta, parei completamente no meu primeiro passo com a visão à minha frente. De pé no fundo da sala mal iluminada, havia uma garotinha de olhos arregalados, uma túnica preta simples com dois chifres pretos inconfundíveis que se projetavam dos lados da cabeça dela.

Pensei que estava vendo coisas no começo. Culpei a pouca iluminação e as sombras lançadas pelos chifres por pregarem peças nos meus olhos, mas quando me aproximei e a garota olhou pra cima e nossos olhares se cruzaram, eu sabia.

— Sylvie? Essa é você?

A garota abriu um sorriso inquieto, um traço de medo e agitação evidente em seus brilhantes olhos de topázio.

— O-Olá, Arthur.

Nós dois permanecemos lá. Nenhum de nós sabia o que fazer, o que falar, como reagir. Eu ainda não conseguia acreditar. Meus olhos me disseram que eu estava vendo uma garota que não tinha mais que oito ou nove anos, cabelos compridos e ondulados da mesma cor pálida de trigo do ventre de sua forma dracônica; olhando atentamente, seu cabelo bagunçado mais se parecia com penas suaves do que com fios de cabelos reais. Pouco do pequeno rosto da garota era coberto por seus cabelos, já que sua franja mal cobria metade da testa. Seus olhos amarelos e redondos se moveram inquietos sob o meu olhar examinador até que enviou uma transmissão mental.

— Por quanto tempo você vai ficar me olhando assim?

Pego de surpresa, encolhi-me, não pelas próprias palavras, mas pelas emoções contidas nelas. Ao contrário de antes, podia sentir as emoções que ela estava sentindo enquanto se comunicava através da minha mente. Do jeito de agora, como se sentia desconfortável e envergonhada, mas ao mesmo tempo animada e ansiosa. Era estranho sentir emoções que não eram minhas pelo meu cérebro; nunca foi assim antes. No máximo, Sylvie poderia me enviar uma emoção extremamente forte para mim, que parecia mais que estava me dizendo como se sentia, nunca foi tão… íntima, por falta de uma palavra melhor.

— Desculpa. — falei em voz alta. — Ainda estou digerindo tudo nesse momento. O que exatamente aconteceu?

— Depois de absorver a mana do Retentor do chifre que você me deu, finalmente fui capaz de quebrar o selo que você e o meu avô disseram que minha mãe tinha colocado em mim para manter-me escondida. — A disparidade entre sua voz infantil e suas palavras me assustou, mas assenti em entendimento.

— Então, ao quebrar o selo, você conseguiu desbloquear a forma humana na qual os Asuras são capazes de se transformar?

— Sim. — disse, olhando para suas mãos pequenas. — Pra falar a verdade, eu não tive a chance de realmente estudar as mudanças em meu corpo, então não posso te dizer o que exatamente está acontecendo nesse momento, mas… — Sylvie se balançou abruptamente e cambaleou, quase caindo pra frente antes de recuperar o equilíbrio.

— Sylvie? Você está bem? — perguntei, preocupado.

Sylvie ficou no lugar por um momento, congelada. Fui cautelosamente até ela, incapaz de compreender o que estava errado, quando lentamente olhou para cima.

Quando nossos olhos se encontraram novamente desta vez, entretanto, um calafrio percorreu minha espinha. Sua aparência era a mesma, nada havia mudado, mas sua presença, seu comportamento, seu olhar, eram completamente diferentes. Tanto que involuntariamente me afastei dela.

“Sylvie” endireitou-se, balançando o pescoço de um lado para o lado, como se estivesse esticando seu corpo.

— Ah, ah. — disse ela, pigarreando. — Você pode me ouvir, certo?

Levantei uma sobrancelha, sem saber como responder.

— Vou aceitar esse gesto como um sim, disse ela com desdém.

— Quem é você? — perguntei, estreitando meus olhos.

“Sylvie” sorriu maliciosamente, uma expressão que não parecia natural em seu rosto.

— Sou grato por você estar na mesma sala quando a conexão foi finalmente estabelecida. Isso torna as coisas muito mais fáceis.

— Quem. É. Você? — repeti.

Seu sorriso malicioso mudou para um sorriso.

— Agrona.

 


 

Tradução: Reapers Scans

Revisão: Reapers Scans

QC: Bravo

 

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