O Começo Depois do Fim

O Começo Depois do Fim – Cap. 169 – Velhas Raízes

 

Uma névoa de magenta e laranja se espalhou pelo horizonte, dando vida ao oceano tranquilo à distância. Sylvie e eu descemos perto da borda das grandes montanhas. As figuras sombrias de Mica e Olfred lançaram uma sombra sobre nós, enquanto levitavam acima de nós, preparando-se para me pegar logo depois que Sylvie se transformasse em sua forma de raposa.

Ainda estávamos a vários quilômetros de distância da costa norte, mas não podíamos nos dar ao luxo de voar mais perto. Supondo o pior, uma foice pode ser capaz de sentir flutuações substanciais de mana mesmo a essa distância.

Sylvie se agarrou a mim assim que encolheu. Ao mesmo tempo, estendi a mão, agarrando a mão estendida de Mica. Lá descemos lentamente, perto o suficiente da enorme cadeia de montanhas para evitar atenção indesejada. Enquanto eu era capaz de pousar facilmente, mesmo desta altura, fazê-lo significaria que eu provavelmente achataria as árvores próximas e talvez até afundasse o chão com a força que teria que usar. Tão relutante quanto devia admitir, era muito mais simples confiar na lança para me carregar para baixo.

— Essa é uma cicatriz muito ruim que você tem em sua mão! — Mica observou, sua voz quase inaudível pelo vento.

— É uma ferida antiga. — abri um sorriso. Me certificara de esconder a cicatriz na minha garganta com o curativo oculto, mas a cicatriz na minha mão esquerda foi um pouco problemática para pessoas que não me conheciam muito bem.

A pequena lança assentiu, a força de seu aperto em volta do meu braço ficou mais forte, apesar de seus dedos de aparência delicada.

Aterrissamos na base das Grandes Montanhas, em um campo de grama seca e pedras onde ventos gelados assobiavam ao nosso redor.

— A partir de agora, a mana deve ser reduzida ao mínimo.  — disse Olfred, enquanto examinava  o ambiente à procura de alguém por perto.

Balancei a cabeça em concordância. Eu era capaz de usar mana sem que fosse detectado através do Caminho Ilusório, mas essa informação era melhor continuar em segredo.

— Suponho que você tenha um plano para encontrar o retentor e a foice em questão? — observou a lança com uma atitude rude.

— Um pouco.

Tirei a máscara branca que mantinha desde que me tornei aventureiro e o casaco preto feito do pelo de uma raposa. Essa era a roupa que usava junto com a máscara, uma vez que tinha a capacidade sutil de desviar o foco do usuário. Vestindo-o sobre as minhas roupas, também peguei uma capa grossa do meu anel de dimensional e a coloquei sobre meus ombros.

— Precisamos seguir em direção à estrada principal, então tire suas capas e coloque os capuzes.

Olfred estudou meu casaco preto com um olhar curioso.

— Um efeito intrigante. Você já foi assassino ou ladrão?

— Não. — ri, olhando para minha roupa. — Simplesmente não queria me destacar.

Com um aceno de desdém, ele e Mica seguiram o meu pedido, cada um tirando uma capa luxuosa de pele de besta rica em mana.

Sem dizer uma palavra, fui até Mica, enquanto pegava uma capa de reposição do meu anel. Deixando-o cair no chão, pisei nele, manchando a capa marrom com sujeira e grama antes de entregá-la à lança pequena. — Use isso em seu lugar.

— V-você acabou de soltá-lo e pisar nele! — Mica exclamou, pasma.

— Sei. — respondi enquanto deixava cair minha própria capa e pisava nela, esfregando meus calcanhares para cobri-la completamente com sujeira e grama. — Nós dois seremos os escravos de Olfred.

— Por que Mica não pode ser o mestre?

Ela bufou, segurando minha capa sobressalente com apenas dois dedos.

— Porque você tem a aparência de um estudante do ensino médio. — respondi abruptamente com um sorriso inocente. Olfred soltou uma pequena risada enquanto apertava sua capa de pele.

Olhando furiosamente para o grupo, ela relutantemente colocou a capa de volta em seu anel e colocou a suja que eu havia lhe dado.

— Desculpe. Isso é para medidas de segurança. — falei.

Inclinei e mergulhei meu dedo em um pedaço de terra lamacenta.

— Não, por favor.

Mica implorou, protegendo o rosto com o capuz da capa.

— Somos escravos que viajam a uma longa distância. Seria natural estar sujo e seria uma boa maneira de passar despercebido.

Sem esperar seu consentimento, tirei o capuz e a sujei seu rosto antes de fazer o mesmo comigo.

Abaixei minha cabeça e despenteei meu cabelo comprido até que ele cobrisse a maior parte do meu rosto. Depois de colocar o capuz da minha capa, entreguei a máscara que estava segurando para Olfred.

— Use isso junto com sua capa e, se alguém perguntar, é para esconder uma cicatriz horrível que você recebeu anos atrás.

Olfred assentiu, aceitando a máscara. Quando deslizou sobre o rosto e apoiou o capuz, não pude deixar de me lembrar do meu tempo como aventureiro sob o disfarce de Note.

A faixa azul que descia até o buraco do olho direito da máscara havia desaparecido ao longo dos anos, mas com a altura de Olfred sendo semelhante à altura que eu tinha quando era aventureiro, junto com a máscara e a capa, realmente trouxe de volta memórias.

— A máscara se encaixa bem. — disse Olfred, sua voz soando mais profunda pelos efeitos da máscara. — Ah? Tem esse tipo de função também.

— Mica quer ir para casa.

A pequena anã ficou de mau humor, seu rosto jovem coberto de lama seca enquanto seus cabelos curtos apareciam em cachos bagunçados debaixo da capa suja e esfarrapada.

— Como está meu disfarce? — perguntei ao meu vínculo, virando-me para encará-la.

— Vai ter que servir, embora me preocupe o que aconteceria se alguém olhasse com muita atenção.

Sua pequena cabeça felina assentiu em aprovação.

— Por que isso soa mais como um insulto do que um elogio?

— É um pouco dos dois — sua voz calma riu na minha mente. Sylvie pulou para dentro da minha capa, já que precisava estar escondida da vista enquanto me passava como escravo.

— Você tem certeza de que ninguém suspeitará de nós?

A voz profunda de Olfred retumbou por trás da máscara.

— Ninguém vai procurar pelas lanças, e há muitos aventureiros que gostam de usar máscaras.

Respondi, seguindo ao lado de Mica por trás do nosso mestre temporário.

— Além disso, há um velho ditado que diz que o melhor lugar para se esconder é à vista de todos. Quem suspeitaria de um nobre e seus dois escravos que foram atacados por bandidos no nosso caminho para o norte para escapar das batalhas?

— Enquanto você faz uma observação, nunca ouvi falar desse ditado. Talvez seja usado apenas por humanos? — perguntou Olfred.

— Algo assim. — ri, lembrando agora que eu tinha aprendido isso na minha vida anterior.

Nós caminhamos por horas em silêncio. Constantemente usava o Caminho Ilusório para fortalecer minhas pernas com mana, enquanto escondia as flutuações, satisfeito por Mica e nem Olfred serem capazes de notarem algo errado.

Executei o plano que Virion e eu tínhamos pensado com Sylvie. Supondo que Olfred e Mica fossem traidores, não sabia o que planejavam fazer comigo. No pior dos casos me matariam quando tivessem a chance, enquanto outro cenário eles me levarem ao Vritra. Em qualquer um dos casos, os dois anões não me atacariam tão descaradamente com Sylvie por perto. Mesmo que pudessem nos dominar, seria uma luta dura e iria atrair atenção, mesmo nas áreas mais remotas.

Se eu fosse com eles, levaria eu e Sylvie ao retentor ou foice para nos dispor ou nos capturar rapidamente. Dito isto, a única maneira real de certificar-se de que o plano deles nos levasse ao esconderijo era agir intencionalmente como se não os pudesse encontrar.

Com Realmheart, poderia usar as flutuações visíveis de mana para encontrar a base do Vritra. Depois de alguns dias levando-os na direção errada, desistiriam e iriam voltar—no caso em que minhas suspeitas estejam erradas,  ou me forneceriam sugestões ou dicas que levariam Sylvie e eu à nossa morte.

— Seu plano baseia-se em muitas suposições. — observou meu vínculo, arrastando-se para dentro do bolso da minha capa. — E se eles te levarem aos Vritras à força?

— Duvido muito que quisessem revelar sua posição. Você não pode ficar muito melhor do que ter um dos membros do conselho como espião. É por isso que é seguro para mim assumir que eles tentariam evitar suspeitas até ter certeza de que podem se livrar de nós sem chamar a atenção.

— Então vamos fugir se parecer que estão tentando nos levar até eles?

Sylvie perguntou, seu tom duvidoso.

— Se pudermos voltar depois de encontrar a localização da base do Vritra sem lutar com Olfred e Mica, esse será o melhor cenário.

Respondi seguindo de perto o nobre mascarado que estava posando como meu mestre. Mas por precaução, Virion enviou outra lança atrás de nós.

Sylvie não respondeu, mas uma onda de surpresa inundou minha mente.

— Você não pode senti-la, pode?

— Não, não posso. — admiti.

— É a lança élfica?

Mhm. Apesar de seu comportamento, recebeu o codinome “Phantasm” por causa de sua capacidade de enganar e se esconder dos oponentes.

— Um assassino. — observou Sylvie.

Nós dois conversamos mentalmente, diminuindo a passagem do tempo enquanto caminhávamos pelas planícies acidentadas.

Ao longo do caminho, ativei Realmheart em breves momentos, tentando captar qualquer flutuação de mana ao nosso redor. Tive que ter cuidado para não deixar as duas lanças veem meus olhos, mas meu capuz e franja comprida foram capazes de esconder o fato de que minhas pupilas mudaram de azul para uma lavanda clara.

Enquanto continuamos nossa jornada para o noroeste, as árvores se tornaram mais abundantes à medida que as planícies se transformavam lentamente em acres de floresta. Com rotação de mana, a habilidade que aprendi com Sylvia, constantemente reabastecendo meu suprimento de mana enquanto usava o Caminho Ilusório para ocultar a flutuação de mana ao meu redor causado pelo uso de magia, o tempo que passei andando se tornou uma espécie de treinamento.

— Nós conseguimos. — Mica suspirou quando finalmente alcançamos a estrada principal. A trilha de terra era larga o suficiente para acomodar duas carruagens com um grande espaço entre elas, embora houvesse rastros de rodas pelo uso, parecia não haver carruagens à vista.

— Para onde agora, garoto? — A voz profunda de Olfred tocou.

— Nós seguimos a estrada para a cidade mais próxima. — simplesmente respondi.

— Mais caminhada? — Mica gemeu em protesto.

— A cidade mais próxima não está muito longe. — consolei.

Mica e eu mantivemos nossas cabeças baixas enquanto seguíamos atrás de Olfred no lado da trilha. De repente, peguei o leve ruído de cascos e rodas de madeira.

Ambas as lanças se animaram menos de um segundo depois, captando o som também. Nós três paramos e esperamos a carruagem aparecer na nossa linha de visão. Puxada por dois cavalos marrons, um manchado, perto de seu focinho, a carruagem de madeira era conduzida por um cavalheiro mais velho com uma roupa de viagem verde e marrom junto a um jovem que não parecia muito mais velho que eu.

À medida que se aproximavam, era evidente como os dois cavalos estavam desnutridos. Suas costelas estavam claramente visíveis enquanto seus casacos e crinas perderam qualquer tipo de brilho que normalmente recebem dos nutrientes em seus alimentos.

Olfred acenou com os braços na carruagem que se aproximava.

— Olá!

Com um rápido puxão dos reinados, os cavalos e a carruagem pararam empoeirados.

— Você está perdido?

Disse o homem mais velho, seus olhos examinando as roupas de Olfred, enquanto o mais novo olhava para Mica e eu, desconfiado.

— Meus escravos e eu estávamos a caminho do norte quando nossa carruagem foi atacada por alguns bandidos.

Explicou Olfred, sua voz firme e dramaticamente contou uma história de aflição.

— Eles cortaram meus cavalos e tentaram nos roubar. Felizmente, meus escravos foram capazes de combater os bandidos.

— Essas duas crianças?

Os olhos do homem mais velho se estreitaram.

Olfred balançou a cabeça.

 — Não, não. Escravos diferentes, mas infelizmente eles não duraram muito tempo pela infecção de suas feridas.

— Mmm. E a máscara? — O motorista perguntou com uma sobrancelha levantada. Ele e o homem mais jovem agarraram os punhos dos punhais embainhados em suas cinturas. Pela forma desajeitada que seguravam os punhais, parecia que suas armas eram mais para intimidação.

— Meu pai insistiu que eu escondesse minha identidade nesses tempos perigosos. — respondeu Olfred com uma risada fraca enquanto levantava as mãos em submissão percebendo as armas também.

— Tempos perigosos, de fato, como você já experimentou.

O homem mais velho afrouxou o aperto na arma.

— Escravos de luta são difíceis de encontrar e ainda mais difícil de comprar desde que a guerra começou. Sinto pela sua perda.

— Uma grande perda. — concordou Olfred.

— Bem, os tempos são difíceis para todos nós. Não sei se meus cavalos aguentam o peso de mais pessoas.

O homem mais velho passou os dedos pelos barba desgrenhada quando soltou uma tosse.

— Naturalmente, você será compensado. — respondeu Olfred calmamente enquanto procurava sua capa de pele e pegava duas moedas de prata.

O homem mais jovem estendeu a mão e pegou as moedas de prata, testando sua flexibilidade com os dentes antes de dar uma aprovação ao motorista.

— Prossiga

O homem mais velho fez um gesto para Olfred.

— Mas seus escravos terão que andar.

— É claro. — disse Olfred sem hesitar.

Peguei um olhar da expressão devastada de Mica antes que ela abaixasse a cabeça novamente. Sem dizer uma palavra, puxei a lança infantil e esperei a carruagem retomar antes de segui-lo com Mica.

— Mica vai matar aquele velho. — Mica murmurou, com o rosto escondido sob o capuz.

— Apenas aguente um pouco mais. A próxima cidade fica a apenas uma hora de distância.

— Você está familiarizado com este campo rural? — Mica perguntou.

— Claro, — disse suavemente. — Afinal, aqui é minha cidade natal.

 


 

Tradução: Reapers Scans

Revisão: Reapers Scans

QC: Bravo

 

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