O Caçador Imortal de Classe SSS – Cap. 100 – A Peça (1)

 

O sangue que escorria do espelho pingava no chão. No início, eram apenas uma ou duas gotas de sangue, como uma torneira que não estava bem fechada.

No entanto, quando o relógio soou ao longe, o fluxo de sangue mudou. Jorrava incontrolavelmente da rachadura no espelho.

Uma gota de sangue se transformou em um rio, que se dividiu em seis. O corredor logo foi coberto por sangue. Quando o relógio tocou pela décima segunda vez, anunciando que a hora das bruxas havia chegado, estávamos no meio de um tapete de sangue.

Instintivamente, envolvi os ombros de Lady Lírio de Prata com meus braços. A poça de sangue era profunda o suficiente para alcançar meus tornozelos. A sensação pegajosa e viscosa era sinistra. 

— Minha lady, isso é…

— Este é o meu pesadelo — sussurrou Lady Lírio de Prata em meus braços. — Não baixe a guarda, mordomo. Este lugar é, para todos os efeitos, outro mundo. Os outros não sabem e não podem ver o que está acontecendo aqui.

Deste mar de sangue, milhares de bolhas subiam e estouravam, e outras milhares surgiam novamente. Mas algumas das bolhas tomavam formas definidas em vez de estourar.

[O Coração Prateado apareceu.]

Eram demônios que pareciam bocas. Não, eram bocas de verdade, apenas línguas vermelhas e lábios, sem rosto ou corpo, sorrindo.

— Vossa Alteza.

— Eu te odeio.

As bocas das bolhas de sangue subiam e estouravam continuamente. As palavras que murmuravam mal se conectavam. Suas vozes se fragmentavam como um coro desarmônico. 

— Sua Alteza, o Príncipe Herdeiro, é gentil.

— Quando ele não era príncipe herdeiro, ele colhia flores para mim.

— Ele enxugou minhas lágrimas com a manga em vez de um lenço. Ele é tão gentil. 

— É porque ele é tão gentil.

— Ainda assim…

Lady Lírio de Prata perfurou uma das bocas com sua rapieira. Ela explodiu, mas mais bocas – duas ou três vezes mais que antes – surgiram do mar de sangue. As risadinhas sangrentas dos demônios faziam o mar zumbir.

— Que adorável.

Eu também brandi minha espada.

— Qual é o sentido de amar alguém que nasceu perfeito?

O poder de combate dos demônios era insignificante. Na verdade, eles nem lutavam contra nós e apenas recebiam os ataques. 

— Mesmo que ele tenha muitas falhas…

— O verdadeiro amor é abraçar suas imperfeições e guiá-los.

No entanto, seus ataques psicológicos estavam me irritando.

— Estou apaixonada por você, Vossa Alteza.

— Eu também sei amar.

— Sou uma nobre que sabe amar.

A sensação desagradável me fez morder o lábio e brandir minha espada mais rápido para cortar as bolhas de sangue.

— Você vai me matar?

— Não adianta. Quanto mais você pisa numa tragédia, mais viciante ela se torna.

— Você viu aquela Taça Dourada flertando com Sua Alteza?

— Nojento.

O mar de sangue ondulava enquanto os demônios continuavam a rir.

— Ele é inocente, então ainda sonha com uma vida romântica. Ele não ama Taça Dourada. Ela é apenas sua fuga do trono.

— Ele é um pobre homem.

— Pobre, pobre homem.

Droga. Eu já tinha visto algo assim antes.

O Rei Demônio da Chuva de Outono!

Antes de eu a ter sob minhas asas e lhe dado o nome de “Preta”, a Constelação caída era assim. O Rei Demônio fez o céu derramar sangue e ela tinha legiões de monstros à sua disposição. Todas essas eram as habilidades de uma Constelação – esses demônios eram as invocações de Lady Lírio de Prata.

[A presença do Coração Prateado se tornou mais forte.]

Algo além das bocas emergiu do mar de sangue. Mãos. Duas mãos, entrelaçadas como as de uma noiva e um noivo no meio de um casamento.

— Raviel, sua família e a Família Imperial nos prometeram.

— Noivado… é isso?

— Sim, é isso. Mas não quero um casamento por conveniência.

As mãos demoníacas de sangue entrelaçaram seus dedos ainda mais forte, espremendo rios frescos de sangue.

Percebi que a peça dos demônios era uma reencenação de uma memória do passado de Lady Lírio de Prata.

— Ignore o noivado. Os adultos fizeram isso sem nossa permissão. Não importa o que os adultos nos mandem fazer, eu te amarei. 

— Vossa Alteza.

— Estou aqui hoje para te propor formalmente. Raviel, quando crescermos um pouco mais, você se casará comigo?

Dezenas de bocas nos cercaram e responderam simultaneamente.

— Sim, eu me casarei.

— Prometo que te amarei.

— Eu também te amarei, Vossa Alteza. 

Aquele filho da puta nem assumiu a responsabilidade depois de dizer tais coisas?

— Ele provavelmente esqueceu.

— Foi uma promessa que fizemos na infância.

— Não tem nada que possa ser feito.

— As pessoas esquecem muito facilmente.

As bocas das bolhas soltaram rajadas de risadas.

— Não tem nada que eu possa fazer!

Não consegui mais conter minha raiva fervente.

Ao dar um passo à frente, concentrei minha aura no pé que liderava.

Artes do Céu Demoníaco,

Oitava Forma:

Morte por Fogo. 

Minha aura se espalhou junto com as ondas do mar de sangue, fervendo-o.

— Olhe para você — disse o Guardião atrás de mim. — Agora esses monstros aleatórios nem conseguem te tocar. Você percorreu um longo caminho, meu Pardal Zumbi.

Normalmente, eu teria dado uma resposta espirituosa à provocação do Guardião, mas não estava com vontade de fazer isso agora. Em vez disso, varri os demônios no corredor com um único golpe. Eles queimaram, mas nem gritaram – apenas riram até o fim, me irritando.

— Droga.

Enquanto queimavam, minhas emoções continuavam a ferver dentro de mim. Eu estava com raiva. Desprezava o Príncipe Herdeiro. Por causa daquele homem, uma pessoa tão nobre quanto Lady Lírio de Prata foi ferida, e ela até fez um desejo que nunca poderia ser desfeito. Isso me enfurecia.

— Quando…! — inspirei profundamente para limpar a garganta. Não importava o quão bravo eu estivesse, não queria levantar a voz para Lady Lírio de Prata. — …Quando você se tornou uma Constelação? Estas são invocações de uma Constelação. São sua criação.

Eles nos reconheciam como aliados. Por isso, nem retaliavam.

Lady Lírio de Prata assentiu, como se soubesse. 

— Foi o que aconteceu no momento em que apunhalei meu coração com a espada.

Depois de algum tempo, o fluxo de sangue inverteu e rastejou de volta para a fenda do espelho como sanguessugas, pouco a pouco.

Lady Lírio de Prata os observava partir.

— Parece que não havia Constelação neste mundo. É difícil dizer se o mundo teve uma, mas foi morta, ou se nunca houve uma desde o início.

Lefanta Aegim provavelmente matou a Constelação, mas agora não era hora de discutir isso. Apenas escutei Lady Lírio de Prata.

— Com o tempo, os demônios ficam maiores e mais poderosos… e seus números também aumentam. Fica mais difícil controlá-los como estamos fazendo agora. E no décimo dia… — Lady Lírio de Prata pausou. Após balançar a cabeça, ela continuou. — …De qualquer forma, quando os últimos dez dias deste mundo começaram a se repetir, eu automaticamente me tornei a representante do mundo. Mesmo que eu não queira, o relógio do mundo gira em torno de mim.

— Hmm. — O Guardião apoiou o queixo na palma da mão. — Isso não é uma Ascensão normal. Em termos de murim, ela usou um método de uma seita desonesta para alcançar seu nível, não o da Facção Justa. A espada perfurando o espelho é apenas um fragmento, mas é uma relíquia que costumava ser da Deusa da Proteção.

— Bom — murmurou o Guardião — se você cravar algo assim no seu coração, você se tornará uma Constelação mesmo que não queira… mas ela não é uma Constelação completa. Ainda assim, está em um loop temporal infinito. Não é um carma que um humano pode suportar. De qualquer forma, deve ter sido o resultado de muitas coincidências sobrepostas.

Uma pessoa pode se tornar uma Constelação mesmo que não queira? Perguntei.

— Sim. Deixa te perguntar, Zumbi: você nasceu humano porque quis?

Sério. De todas as formas que ele poderia ter respondido à pergunta…

— O importante é se eles cumpriram ou não as condições. A intenção deles não importa. Há muitas pessoas que sofrem por serem humanas, e surpreendentemente muitas Constelações sofrem por causa de suas identidades. É muito fácil tornar sua vida miserável. Entendeu, Jovem Céu?

— Phew… — reprimi minha raiva contra o Príncipe. Deixou um gosto amargo na boca.

Lady Lírio de Prata me observava. 

— Que estranho. Você não está decepcionado?

— O quê?

— O que você disse está certo. Independentemente do que aconteceu, esses demônios são minhas invocações. Eles não inventaram palavras para entoar. Eu murmurei essas palavras nos meus sonhos. São meus pensamentos inconscientes. — Lady Lírio de Prata inclinou a cabeça. — Jurei um amor atemporal. Para manter esse amor puro, tenho que remover a poeira e a sujeira que se acumulam no meu amor todos os dias. Esses demônios são a poeira e a sujeira.

Decepção. Frustração. O desejo de ser correspondido. Eram a graxa na mente de alguém e maldições em seu sentido mais puro.

— Eles não são feios? — murmurou Lady Lírio de Prata. — Eu te contei sobre meu amor. Ia parar por aqui – foi por isso que te trouxe aqui: para destruir qualquer ilusão sobre mim.

— Decepcionado? — expirei bruscamente, mas não foi um suspiro. Aquela respiração foi o produto da minha luta para conter minha raiva. — Feio? Não sei muito, mas posso te assegurar que nunca ficarei decepcionado com você por causa de algo assim.

— …Assim?

— Você me contou seu segredo e abriu seu coração para mim. Minha lady, uma pessoa verdadeiramente feia nunca mostra seu coração aos outros. Eles só sabem ferir pessoas… apenas fingem ser despreocupados e calmos.

Se foder, Imperador das Chamas.

Com esse pensamento, dei um passo mais perto dela. 

— Se alguma coisa, eu sou pior. Você ficaria enojada se soubesse o que eu penso.

— Estou curiosa.

— Se você me trouxe aqui para se livrar de mim, fez a escolha errada, minha lady. Não me apaixonei por você porque você era perfeita.

Lady Lírio de Prata pausou porque eu disse amor. Isso fez meu rosto corar, mas eu não ia me conter.

— Faz apenas um dia que você se apaixonou por mim — disse ela com uma leve carranca. — Você me lisonjeia demais.

— O fato de ser apenas um dia é um problema? Estaria tudo bem se fosse depois de um ano? Que tal mil dias? Devo voltar então? Posso ver que tipo de pessoa você despreza. Esses são os que eu também desprezo. Também posso dizer o que te machuca. Amo o jeito que você leva sua vida, também. Posso dizer isso porque vivo o mesmo tipo de vida que você.

Minhas palavras a estavam alcançando? Eu estava me expressando claramente? Não conseguia dizer. Nunca tinha dito algo assim para mais ninguém, então não estava acostumado. Mas queria a mulher à minha frente. Desejava que ela me tivesse também. O que eu queria era que nós dois nos tivéssemos e compartilhássemos uma vida.

— Eu te amo tanto quanto amo a mim mesmo, e espero que seja assim que você me amará também.

Esses eram meus sentimentos genuínos. Tudo o que eu sabia era ser 100% verdadeiro com meu coração. 

— Vou fazer você me amar. Não vou te dizer para abandonar o Príncipe Herdeiro, mesmo que eu não peça, você o abandonará em algum momento.

— Meu coração… — Ela hesitou. 

— Sim, este mundo está mantendo seu coração cativo, mas não importa. Se esse é o problema, eu o resolverei. Talvez você ainda ame o Príncipe depois disso – então eu me tornarei esmagadoramente melhor que ele e ficarei por perto para chamar sua atenção.

— O Príncipe Herdeiro te deu uma nostalgia inesquecível quando você era jovem? Isso não importa — sussurrei para ela. — Somos regressores, e somos apenas nós dois neste mundo.

Eu podia dizer que meu rosto estava vermelho agora, mas disse o que precisava dizer.

— Haverá muito tempo que só você e eu poderemos desfrutar. Usarei esse tempo para te enterrar em memórias felizes que farão sua nostalgia pelo Príncipe Herdeiro desaparecer. Vou tentar ao menos.

— Hmm. — Os cantos da boca de Lady Lírio de Prata subiram ligeiramente. — Você vai repetir os últimos dez dias para sempre? Eventualmente, você se cansará e desistirá.

— Isso não me assusta. Não é a primeira vez que repito os mesmos dias.

— E se eu me cansar de você e pedir que desapareça da minha vista?

— Farei como você pedir — estendi a mão e peguei a mão dela, que estava livre depois que ela perdeu a lanterna na luta contra os demônios.

Exigia coragem, mas, felizmente, eu tinha toda a coragem necessária.

Balancei a cabeça. 

— Mas isso nunca vai acontecer.

— Como assim?

— Você nem se cansou do Príncipe Herdeiro, e eu sou uma pessoa melhor que ele. Se estou te incomodando, por favor, me diga agora. Eu desaparecerei.

Lady Lírio de Prata observou meu rosto em silêncio.

— …Isso é um problema — disse ela, por fim. — Eu deveria te achar irritante, mas não acho. E também não acho que isso vá acontecer tão cedo.

De repente, ouvimos um grito urgente vindo de longe no corredor:

— …domo!

A residência de Lady Lírio de Prata, onde até os servos dormiam, de repente ficou barulhenta.

— Onde…! Mor…! 

Logo ouvimos passos, os servos haviam acordado. O prédio se iluminava aqui e ali. Em pouco tempo, o servo de cabelos grisalhos veio correndo em nossa direção.

— Desculpe, minha lady.

Lady Lírio de Prata soltou minha mão. 

— O que é todo esse barulho tão tarde da noite?

— Lamento dizer isso, mas…

A voz distante começou a se clarear.

— Mordomo! Onde está você, meu mordomo!

Meu rosto endureceu. A voz que era familiar demais.

O servo de cabelos grisalhos se curvou para nós. 

— Lady Taça Dourada está causando um tumulto.