Mushoku Tensei: Reencarnação Redundante

Mushoku Tensei: Reencarnação Redundante – Vol. 01 – Cap. 10 – A Mulher que Chamavam de Cão Raivoso

 

OUVI DIZER que meu amigo Dohga se casou recentemente. Imperador do Norte Dohga – o homem forte e gentil a quem eu devia minha vida. Para ser honesto, fiquei preocupado no início. Um cara inocente como ele? Alguma mulher encantadora de coração negro deve tê-lo enganado. E se sim, caberia a mim salvá-lo.

Decidi ver o que Ariel sabia. Eu estava todo animado para investigar essa sedutora de homens quando uma carta chegou para Eris. Era de Isolde Cluel. Imperadora da Água Isolde – a beleza saudável que nos ajudou na batalha no Reino de Biheiril. A carta mencionava sua ascensão triunfante ao título de Deusa da Água e sua herança do nome Reida. Dizia também que ela havia encontrado o amor e se casado… com Dohga.

Dohga, de todas as pessoas, havia feito daquela beleza esguia sua esposa. Parabéns eram devidos. Mas mesmo que ela nos tivesse ajudado no Reino de Biheiril, quem sabia que coisas nefastas ela aprontava à noite? Nunca se podia descartar essa possibilidade.

Perguntei a Eris que tipo de mulher ela era. Eris me disse que não era uma má pessoa. Isso não foi suficiente para me tranquilizar, então fui ao Reino de Asura para casualmente sondar os pensamentos de Ariel sobre o assunto, fiz incursões discretas com Luke e, com indiferença, fiz perguntas a Ghislaine. Fiquei nas sombras observando Dohga, fui me apresentar no salão de treinamento do Deus da Água e depois lancei sondas com o chefe da família Cluel…

— Minha nossa — disse Ariel secamente —, você não tem muito tempo livre?

Não era assim! Não estava fazendo isso para matar o tempo, eu devia minha vida a Dohga, e não permitiria que ele sofresse!

De qualquer forma, no final, um fato emergiu: Isolde era do tipo que escolhia um homem por sua aparência.

Então você é uma tentadora de coração negro, afinal, Isolde… Não pense que vou aceitar isso deitado…

Só que, os resultados de minhas investigações revelaram que os dois estavam totalmente apaixonados.

Dohga parecia genuinamente feliz. Corria o boato de que, quando não havia ninguém por perto, Isolde o chamava de “querido” e o cobria de beijos. Apesar de minha informação de que ela escolhia caras com base na aparência, devia ter visto algo em Dohga além de seu rosto que a fez escolhê-lo. Ela pegou um caminho complicado para tê-lo, mas finalmente encontrou uma alma gêmea.

De forma semelhante, até Dohga salvar minha vida, eu pensava que ele era um idiota inútil. Eu tinha um coração negro. Eu era o vilão. Como poderia julgar Isolde? Tendo chegado a essa conclusão, dei minha bênção ao casal e parti para casa.

Mas uau, Isolde e Dohga…? Nunca se sabe quem vai acabar junto. Quer dizer, eu nunca imaginei que acabaria me casando com três pessoas. Com os olhos marejados por meus próprios casamentos, voltei para casa.

Três dias depois:

— Quero ir para a aldeia dos homens-fera! — Era Eris. A notícia do casamento de Isolde a deixou de bom humor, e este era nosso habitual momento de descanso no sofá.

— O que é isso, de repente? — perguntei, sentando-me à direita de Eris. À sua esquerda estava Pursena, enrolada e lendo um livro com a cabeça apoiada no colo de Eris. Entre as duas, eu não tinha espaço suficiente.

Linia e Pursena eram meio que capangas de Eris hoje em dia, mas como Pursena era a assistente de Leo, ela geralmente estava aqui e pendurada em Eris como estava agora. Pursena era um pouco como um cachorro, então provavelmente gostava da atenção de Eris. No entanto, Linia não gostava de Eris. Ela era um pouco como um gato, e Eris era muito intensa. Agora, Leo estava enrolado aos pés de Eris com Lucie e Sieg cochilando em cima dele. Mesmo com os gritos de Eris, eles não mostraram sinal de se mexer. Talvez estivessem acostumados.

Era uma cena positivamente doméstica.

E ainda assim. A aldeia dos homens-fera? Para Eris, aquele lugar era tanto uma droga quanto um paraíso. Seria algo como estamos na aldeia dos homens-fera! Os homens-fera são muito fofos! Ah, olhe o bebê! Bebêzinho! Posso ter um?

Coisa perigosa!

— Lembra da última vez que fomos, e eu fiz amizade com as irmãzinhas da Linia? Quero ver como elas estão!

Minitona e Tersena, não era? Isso mesmo, as duas já deviam ter se tornado candidatas a chefe guerreira, superando suas irmãs mais velhas. Se Pursena não tivesse perdido sua posição, ela poderia ser uma conselheira agora, em vez de uma candidata. Poderia até ser uma mulher de carreira de alto poder servindo como chefe guerreira. Um destino muito diferente de ficar deitada no meu sofá.

Ela pode ter perdido essa posição, mas ainda era a segunda em comando do meu Bando de Mercenários Ruato. Ela se matava de trabalhar nesse papel. O número de mercenários havia aumentado, e parecia que a posição de Linia e Pursena havia subido quanto mais pessoas supervisionavam. Elas não pareciam muito ansiosas com seu lugar na vida.

— Lembra? Você disse que iríamos quando a Lara estivesse maior!

— Bem, eu quis dizer depois que ela fizesse quinze anos…

— O que há de errado em ir mais cedo?

— Bem, eu acho que nada.

Lara seria sua salvadora. Para garantir isso, ela e Leo ficavam tão próximos que praticamente liam os pensamentos um do outro. Talvez não fosse uma má ideia fomentar laços estreitos com os homens-fera desde cedo.

— Mas! Não podemos simplesmente aparecer sem avisar — apontei.

— Vai ficar tudo bem! Certo, Pursena?

— Apenas aparecer em si não será um problema. — Ela respondeu descuidadamente.

— Não, você também vem.

— Eu vou, mas isso não vai ajudar.

— O quê, você não se importa?

Da última vez, Pursena foi presa por roubar dos estoques da aldeia. Houve circunstâncias atenuantes, então ela foi sentenciada a ser a assistente de Leo. Em teoria, se ela continuasse assim até Lara atingir a maioridade, voltaria a concorrer à liderança da tribo. Parecia que ela havia caído da escada da carreira, no entanto. Era difícil imaginar que os teimosos homens-fera reconheceriam Pursena como líder se ela simplesmente voltasse depois de anos fora.

— Chefe, sou a segunda em comando do Bando de Mercenários Ruato… Você poderia até dizer que sou a sublíder da matilha. Não gosto de estar mais abaixo na hierarquia do que a Linia, mas tenho que me portar com dignidade perto de outras matilhas.

— Espere, vamos lá, você está na disputa para líder da Tribo Doldia…

De jeito nenhum. Ela não tinha desistido, tinha? Ela não estava pensando que, tipo, mesmo que não pudesse ser líder da tribo, ei, ser segunda em comando dos Mercenários Ruato era bom o suficiente, ou algo assim?

No que diz respeito ao mundo, somos uma empresa pequena, sabe?

— Heh heh. Você não vê, Chefe? Eu, a segunda em comando do Bando de Mercenários, me tornarei líder da tribo Doldia. Os Doldias ganharão uma conexão com uma matilha poderosa. É assim que me destacarei do resto quando o líder for selecionado. Meu retorno triunfante, pode-se dizer!

Dado que os Doldias estavam conectados comigo, eles já tinham uma conexão com o Bando de Mercenários… Mas, por outro lado, quão estável era esse vínculo? Provavelmente seria um peso a menos ter um de seu próprio sangue em ambos os campos.

— Ah, mas talvez seja melhor esperar um pouco mais antes de levar a besta sagrada e a Senhora Lara.

— Por que isso?

— Para os homens-fera, a partida da besta sagrada em uma jornada tem um significado especial. Eles vão querer torná-la grandiosa, com uma cerimônia ou uma espécie de festival. Esse dia será quando eles contemplarão pela primeira vez a salvadora. É significativo.

Então não era uma boa ideia fazer a Lara estrear nesta fase.

— A tribo Doldia passará anos se preparando para isso. Eles pedirão a todas as tribos da floresta para ajudá-los a fazer algo grande.

— Certo… Quer dizer, fico feliz em contribuir de uma perspectiva financeira.

Meu dinheiro de bolso pode não ir longe em um festival de homens-fera, mas eu era o chefe da família Greyrat. Pelo bem do grande dia de minha filha, eu bravamente faria o que fosse preciso para garantir o dinheiro. Isso mesmo, eu até imploraria ao meu empregador para me emprestar.

— Você não pode. A tribo Doldia é orgulhosa. É por isso que eles são os líderes dos homens-fera. Eles farão tudo sozinhos.

Era um costume ou uma convenção ou algo assim, então, hein? Bem, se os Doldias eram orgulhosos demais para aceitar ajuda, eu não ia ficar no caminho deles.

— Ainda assim, você poderia pelo menos acertar os arranjos agora.

— Verdade.

Se eu não soubesse que tipo de cerimônia seria, não saberia como preparar Lara para isso. Não achava que seria perigoso, mas me sentiria melhor sabendo.

— Então acho que vamos dar um pulo lá.

— Tudo bem!

Eris se levantou de um salto, e Pursena caiu no chão com um miado. Ela deve ter esmagado o rabo de Leo ao fazer isso, porque ele rosnou. Eris se desculpou profusamente, e então Lara, com os olhos sonolentos, levantou a cabeça e estendeu as mãos para o papai. Eu a peguei no colo.

— Vamos!

— Não tão rápido. Temos que obter a confirmação de Orsted primeiro. Ele pode estar ocupado.

— O quêêê?! — Eris choramingou.

Mas eu não ia abandonar meu trabalho para me divertir. Dito isso, era improvável que o CEO me recusasse qualquer coisa a respeito de Lara. Ele nunca me disse uma vez: “Se você tem tempo para isso, tem tempo para o trabalho.” Era uma má ideia confiar nisso, no entanto.

Eris já estava na porta da sala de estar, mas um pensamento de repente a atingiu.

— Vamos trazer a Ghislaine também!

— Ela não virá, virá?

Eu não tinha total clareza sobre que tipo de tratamento Ghislaine havia recebido na aldeia Doldia, mas, dado o que eu me lembrava da atitude de Gyes, havia ressentimento ali.

— Por que não? — exigiu Eris. — Ghislaine é uma cavaleira de Asura! Ela até tinha a armadura de ouro da última vez! Será um retorno triunfante!

— Isso mesmo — murmurou Pursena. Sem encontrar os olhos de ninguém, ela mexeu desajeitadamente na ponta do rabo. Isso era pressão de grupo. Seu rosto dizia que ela sabia absolutamente como Ghislaine fora tratada na aldeia.

A própria Ghislaine não parecia muito em conflito com a tribo Doldia. Gyes parecia ter reconsiderado sua opinião sobre ela também, então poderia ser bom para eles terem a chance de ter um bom momento juntos. Nesse ritmo, Ghislaine passaria a vida inteira sem retornar à aldeia, e então acabaria em seu leito de morte, sussurrando: “Se ao menos eu tivesse voltado para casa apenas uma vez…”

— Ok. Vamos perguntar a ela.

— Uhu! — Eris saiu triunfante da sala. Leo a seguiu com Sieg ainda em suas costas. Restaram apenas Pursena e Lara, que havia adormecido novamente em meu peito. Para não acordar minha menina, voltei a me sentar no sofá. Pursena sentou-se conosco, como se nada tivesse acontecido, e colocou a cabeça em meu colo. Mexi os joelhos para tirá-la.

— Ai.

— Você não pode simplesmente colocar a cabeça nos joelhos da esposa de um homem.

— Egoísta! E você é o marido.

— Na verdade, sou a noiva corada de Eris.

— Vai se ferrar.

Isso não é egoísmo. O que acontece quando você começa a cheirar a feromônios na frente da minha filhinha, hein?

Pursena inclinou a cabeça para colocar os pés em meus joelhos. Eh, nada mal. Ela não estava com suas saias de esposa hoje, então suas pernas estavam cobertas, e eu gostava da sensação do rabo de Pursena roçando em mim.

— Só me diga uma coisa… — comeceu. — O que vocês acham da Ghislaine?

— Acho que meu pai e os outros têm alguns problemas, mas para nós ela é como uma tia legal. Não é todo dia que alguém sai da aldeia para viver de sua espada e se torna uma espadachim. Ela é uma inspiração para nossa geração.

— Hã. Tudo bem.

Eu não estava totalmente confortável com isso, mas se Pursena disse, acho que faz sentido. Talvez eu conseguisse um pouco de carinho. Se Ghislaine dissesse que não queria ir, então seria isso. Não conseguia vê-la recusando se Eris a convidasse, no entanto, então presumiria que ela viria e partiria daí.

O CEO prontamente deu sua aprovação. Ele até me deu um presente para levar comigo. O novo contratado não calava a boca: “Onde você vai?! Com quem?! Rei da Espada Ghislaine! Quando é a luta?!” Pensei que mesmo que eu entrasse em detalhes, ele não entenderia, então respondi vagamente. Pareceu satisfazê-lo. O garoto era mais idiota do que eu pensava.

O dia chegou. Linia e Pursena ficaram cara a cara com Ghislaine.

— É uma honra conhecê-la, miau! Sou Liniana Dedoldia, miau!

— Ouvi falar tanto de você! Sou Pursena Adoldia!

Elas estavam se comportando da melhor maneira possível. Era como quando um aluno sênior voltava para o Dia dos Esportes depois de se formar.

— Sempre admirei como você saiu para fazer um nome para si mesma, miau!

— Pensamos que um dia, depois de nos tornarmos conhecidas, viríamos nos apresentar!

Ghislaine tinha a compostura de uma chefe da máfia aposentada. Ela com certeza não se diminuía, mas também não era arrogante–  a quietude de um grande cão de guarda. Era a mesma velha Ghislaine que eu conhecia.

— Você pode mesmo ir? Parecia que você tinha coisas para fazer…

Ghislaine estava no campo de desfiles, em profunda conversa com Sandor e Isolde sobre algo. Parecia que ela estava ocupada…

— Estou ensinando novas técnicas aos cavaleiros.

— Ah, certo. Isso era uma coisa, não era?

Eu tinha ouvido falar sobre isso de Ariel. Asura atualmente tinha três instrutores de espada: um praticante do Estilo Deus da Espada, um praticante do Estilo Deus da Água e um praticante do Estilo Deus do Norte. Um deles era um homem-criança geriátrico que não tinha o menor interesse em ensinar luta de espadas e só queria mandar em algumas crianças. Com três guerreiros de três estilos diferentes, você podia imaginar como eles batiam de frente.

Por sugestão de Sandor, eles estavam tentando algo novo: pegar os melhores pontos do Estilo Deus da Espada, do Estilo Deus da Água e do Estilo Deus do Norte para desenvolver um novo estilo de luta de espadas para os cavaleiros do Reino de Asura. Um Rei da Espada, a atual Deusa da Água e o antigo Deus do Norte ensinavam cada um seus próprios estilos, e então o antigo Deus do Norte amarraria tudo. Pensei que eles provavelmente acabariam com uma nova seita do Deus do Norte, mas Ghislaine disse: “Eu lhes ensinei da maneira que sei fazer. Estou deixando os detalhes para ele.” A presença de Ghislaine foi uma influência inesperadamente boa. Ela levava seu trabalho a sério, mas não era delicada com isso. O estilo de luta de espadas dos cavaleiros de Asura acabou sendo modelado principalmente no Estilo Deus da Espada, com um pouco do Estilo Deus da Água e do Estilo Deus do Norte incorporados.

— Você não está ocupada o suficiente com isso?

— Oh, absolutamente. Só não consigo dizer não para a pequena Eris — respondeu Ghislaine. Segui seu olhar e, com certeza, lá estava ela, de braços cruzados e de mau humor.

— Não sou mais uma mocinha!

— Verdade, você está casada agora — disse Ghislaine com uma risada. Linia e Pursena riram disfarçadamente.

— O quê? — exigiu Eris.

— Você parece satisfeita hoje, miau!

— Você é uma criança.

— Tanto faz… — Sem mudar de pose, Eris virou a cabeça, fazendo beicinho. Eris ainda adorava Ghislaine. Ela tinha um novo lar agora e uma família, mas para Eris, Ghislaine era a única família que lhe restava da Cidadela de Roa em Fittoa, sua casa de infância. Ghislaine era como uma parente distante querida. A ideia de fazer outra viagem com ela emocionava Eris.

— Vamos então? — Eu disse. E assim, partimos mais uma vez para a aldeia Doldia na Grande Floresta.

POV GHISLAINE

EU DEFINITIVAMENTE NÃO TIVE o que se pode chamar de um começo de vida tranquilo.

De vez em quando, os homens-fera dão à luz crianças conhecidas como “ferinhas”. Não há nenhuma razão cósmica por trás delas. Elas nascem com presas e atacam como animais agressivos e aterrorizados. Nunca aprendem a falar.

Eu era uma delas. Quase não tenho memórias da minha infância, mas em minhas primeiras lembranças, meu coração era dominado pela raiva. Tudo em meu corpo era constrangedor e torturante. Eu voltava essa raiva para todos ao meu redor – eram meus inimigos. Nunca pensei sobre por que me sentia assim. Ainda não sei agora. Até hoje, essa raiva ainda se esconde nas profundezas do meu coração, mostrando sua cara feia a cada irritação. Tudo o que me lembro são os gritos de raiva dos adultos e o medo nos rostos de meus irmãos.

A maioria das ferinhas se acalma à medida que cresce. Quando completam cinco anos, seus únicos sintomas são serem um pouco lentas e mal-humoradas. Não eu. Meu quinto aniversário veio e se foi, e eu ainda estava correndo solta. Eu era um terror. Cinco anos é uma idade em que você é mais ou menos capaz de usar um pouco de razão, mas eu não tinha um pensamento na cabeça. Estava constantemente tendo acessos de raiva e quase matei as outras crianças.

Não havia motivo para isso; se não gostasse do rosto de alguém, eu simplesmente agia. Na Aldeia Doldia, crianças indisciplinadas como eu são despidas e encharcadas com água gelada. Às vezes, são até trancadas a noite toda em um celeiro escuro. Isso geralmente nos acalma, talvez seja instintivo. Mas as ferinhas são diferentes, ou pelo menos eu era. Não sei. Acho que outras podem ter quebrado sob esse tipo de tratamento.

Crianças como eu são tão difíceis que às vezes sofrem “acidentes”. São deixadas na floresta à noite, quando estão rastejando de monstros. Coisas assim.

Eles tentaram fazer isso comigo também… Não, eles fizeram isso comigo. Eu não entendia o que estava acontecendo, mas de alguma forma sabia que toda a aldeia estava tentando me expulsar, eu tenho um instinto de sobrevivência, afinal. Mas não morri, graças a um espadachim viajante no meio de seu treinamento de guerreiro – fui acolhida por Gall Falion.

— Você não a quer? Então me dê — disse ele. Ele me adotou como se eu fosse uma vira-lata rejeitada e me tirou da aldeia. Não pense que gostei dele só porque me resgatou. Eu não teria sido uma criança fofa. Eu mordia, arranhava e uivava, mas Gall Falion ignorou isso, me subjugou, colocou uma coleira em meu pescoço e uma espada em minhas mãos.

Então, ele disse: 

— Se quer saber minha opinião, você foi feita para brandir uma espada. Se entrar em uma briga, use isto.

Olhando para trás, Gall Falion – meu mestre – devia ser louco. Pense bem, ele me deu uma espada e depois me disse que eu poderia usá-la no que quisesse. Estamos falando de mim. Eu não teria confiado em mim com uma lâmina.

Ainda assim, ele não era completamente imprudente com a vida dos outros. Por um tempo, evitamos áreas habitadas. Vagamos pela floresta caçando feras e monstros.

De manhã, meu mestre me espancava até virar polpa. Quando isso terminava, ele me arrastava para a frente de algum monstro e me fazia lutar contra ele, e eu lutava por minha vida. Às vezes me machucava, mas nunca me machuquei gravemente, e não morri. Ele devia ter uma noção de quão forte eu era em relação aos monstros que enfrentávamos, porque ele só me colocava contra criaturas que eu podia vencer por um triz. À tarde, comíamos os monstros que matávamos. Depois disso, eu podia fazer o que quisesse pelo resto do dia.

No início, ataquei meu mestre e tentei matá-lo. Eu não poderia estar mais em desvantagem. Ele me ignorou e depois me deu uns tapas. Mas nem isso foi suficiente para me intimidar. Levantei-me e fui para cima dele de novo. Como regra, ele encontrava meus ataques com um sorriso no rosto. Ele nunca me deu nenhuma instrução formal sobre como usar minha espada, e eu não teria ouvido de qualquer maneira. Houve um caso que foi diferente, no entanto: quando o ataquei sem minha espada. Se eu jogasse minha espada de lado durante uma luta, ele estalava a língua uma vez, depois me dava um soco ainda mais forte do que o normal e me nocauteava. Quando eu acordava, minha espada estaria amarrada à minha mão.

Eu era uma idiota, mas depois de um ano disso, até eu aprendi um pouco. Sabia que não podia vencê-lo, e se eu atacasse aleatoriamente, só levaria uma surra. É incrível que eu pudesse raciocinar tanto, mas acho que até uma fera sabe quando está vencida.

Essa foi minha primeira lição de vida. Por volta dessa época, minha instrução de espada começou. Ele usava palavras: “Faça isso, faça aquilo. Pense racionalmente. Desgaste seu oponente de forma constante, um movimento de cada vez…”

Não sou inteligente. Para cada cem lições, eu lembrava de dez. Isso quase não mudou, para ser honesta.

Mas meu mestre era paciente. Ele devia saber que até eu melhoraria se treinássemos a mesma coisa repetidamente. Suponho que eu tivesse talento, porque melhorei rapidamente. Ao mesmo tempo, talvez graças ao treinamento, comecei, pouco a pouco, a ver a influência da ferinha desaparecer.

Talvez fosse por extravasar meus impulsos todos os dias correndo por aí matando monstros, porque, quando via outras pessoas, não ficava tão enfurecida como antes. Ou, bem, isso só acontecia se elas não tentassem falar comigo – se o fizessem, então eu atacaria. Eventualmente, meu mestre decidiu que era seguro me levar para a cidade. Eu estava mais acostumada com as pessoas, mas era sufocante no início. Na maioria das vezes, era recebida com hostilidade. Ainda me sinto assim.

Meu mestre me disse: “Ignore. Ser forte os calará. Eles se tropeçarão para lamber suas botas. Alguns até se apegarão a você como cachorrinhos.”

A ideia de um estranho se apegando a mim como um cachorrinho era nojenta.

Então eu conheci Eris.

Eu estava errada. É melhor ser amada do que odiada.

De qualquer forma, finalmente consegui entrar nas franjas da sociedade, embora ainda não tivesse tido uma conversa real com ninguém. Eu não tinha muitas palavras à minha disposição. Ok, para qualificar, meu mestre sempre falava comigo na língua dos homens-fera, e eu vivi na aldeia Doldia até os dez anos, então eu conhecia a língua. Eu só nunca tinha conversado com ninguém. Não me lembro quando tive minha primeira conversa real, mas provavelmente foi com meu mestre. Eu poderia estar xingando-o ou fazendo uma pergunta, não me recordo. Mas este era meu mestre. Ele teria respondido sem fazer um grande alarde do evento, e é por isso que não registrei.

Por volta de quando aprendi a falar com as pessoas, nossa jornada chegou ao fim. Chegamos ao Santuário da Espada, e foi lá que fiz meu novo lar. Não havia necessidade de conversa, e eu podia nocautear qualquer um que mexesse comigo. Na aldeia Doldia, as pessoas me olhavam com cara feia por isso, mas aqui, isso me rendeu respeito. Ninguém reclamava, e eu podia fazer o que quisesse. Se eu continuasse nocauteando as pessoas, o Santuário da Espada era o paraíso. Simples assim.

Mas então, talvez por ter ficado muito confortável, meu mestre me expulsou. Era a lei do Santuário da Espada que, uma vez que você passasse de Santo da Espada, saía para completar seu treinamento de guerreiro, então talvez fosse isso. Ninguém me disse nada sobre isso. Fui simplesmente expulsa. Disseram-me para ir ver o mundo exterior. Saí para o mundo, me tornei uma aventureira, conheci Paul. Então nos separamos.

— E então você me conheceu! — disse Eris alegremente.

Em uma carruagem, rolando pela estrada para o Santuário da Espada através da Grande Floresta, compartilhei minha história de vida. Me perguntei se era realmente interessante ou não, mas Eris estava ouvindo, extasiada. Linia e Pursena também estavam ouvindo com interesse.

— Isso mesmo. — Eu disse. Eris parecia presunçosa por saber o resto da história. Quando cheguei à parte sobre visitar o Santuário da Espada, ela disse com conhecimento de causa: “Sim! Quando você os derruba o suficiente, eles te respeitam!”

O Santuário da Espada era como um segundo lar tanto para mim quanto para Eris. Esquece, para Eris, era um terceiro lar. Para mim… Era o meu primeiro.

Os olhos de Linia e Pursena estavam um pouco vidrados, com a boca entreaberta. Há muito tempo, isso me encheria de raiva. Agora, eu não me importava tanto.

— Miau, que vida heróica! Se fosse eu, teria me tornado uma boa menina no momento em que jogassem água em mim, miau. Agora que me lembro, eu fiz isso mesmo, miau.

— Tudo o que tinham que fazer comigo era me mandar para a cama sem jantar. Mas, ao contrário da Linia, eu sempre fui uma boa menina, então estava apenas fazendo o que era natural.

— Eu também sou uma boa menina, miau.

— Vocês duas são boas meninas em comparação comigo. — Eu disse. Ambas coçaram a nuca, envergonhadas.

— Depois disso, conheci Rudeus. E quando finalmente me estabilizei, o Incidente de Deslocamento aconteceu.

— Isso mesmo! Você se reuniu com Eris em Fittoa, e depois voltou para o Santuário da Espada para treinar, miau?

— Sim, isso mesmo.

— Quando terminou seu treinamento, você e o chefe foram para Asura e você se tornou serva de Ariel, certo?

— Mais ou menos. Quando tudo terminou, Sua Majestade me disse que queria que eu ficasse e me deu esta armadura.

Agora eu estava vestida com uma armadura dourada. Quando disse à Rainha Ariel que ia para a aldeia Doldia, ela a trouxe, dizendo que eu absolutamente tinha que usá-la. Eu a tirei para viajar, mas agora que estávamos quase lá, a coloquei de volta.

— Ariel é esperta, miau.

— Sim. É importante mostrar sua força.

Linia e Pursena eram jovens Doldianas. Ah, certo – Linia era filha de Gyes. Cada uma delas foi para a escola e se formou como a melhor de sua turma. Agora, elas gerenciavam o Bando de Mercenários e tinham mais de quinhentas pessoas sob seu comando. O bando trabalhava para Rudeus, o que basicamente significava que trabalhavam para Orsted. Eram garotas espertas a quem fora dada a responsabilidade de uma matilha por uma Grande Potência. Eram sucessos retumbantes. Gyes devia estar orgulhoso. Eu gostaria de me lembrar de seu rosto.

— Ninguém acreditaria que a Ghislaine que eles conheciam subiu para se tornar uma dos Sete Cavaleiros de Asura, miau.

— Sim. Mas uma olhada nessa armadura dourada brilhante realmente deixa claro. Você até tem o brasão de Asura aí. Este é o seu retorno triunfante. Todos vão te ver de forma diferente.

— Oh…? — Eu não entendi muito bem, mas se essas duas talentosas Doldianas disseram, devia ser verdade.

— Sim! Não vou deixar ninguém dizer o contrário! — A respiração de Eris estava mais pesada desde que eu coloquei esta armadura. Ela disse que combinava comigo, mas era brilhante demais para mim… Suponho que seria útil no escuro.

Ainda assim, se eu dissesse que não estava nervosa, estaria mentindo. A Aldeia Doldia que eu lembrava me rejeitara.

— Hrm?

— Oh.

— Estamos perto — disse Linia. Ainda não conseguíamos ver nada, mas havia um cheiro familiar no ar: o cheiro da Aldeia Doldia. Más lembranças. A base do meu rabo começou a coçar, e senti um rosnado subir pela minha garganta. A vontade de correr me dominou.

— O que você acha, Rudeus? — perguntei. — Vai ficar tudo bem?

Essa não era uma pergunta que a antiga eu teria feito. Talvez tivesse perguntado algo assim a Paul há muito tempo, quando fazia parte das Presas do Lobo Negro. Como ele respondeu, mesmo?

— Eh? — Rudeus respondeu de onde estava sentado na caixa do cocheiro. — Ah, sim, deve ficar? Se começar a parecer arriscado, eu resolvo. Deixa comigo.

Agora eu me lembrava. Paul geralmente respondia dessa forma também. Eh, vai ficar tudo bem. Mesmo que não fique, as coisas vão se resolver de alguma forma.

Parecia que foi ontem que Geese, Talhand e Elinalise reviraram os olhos e suspiraram para ele, mas no final, ele estava certo. A única vez que não deu certo foi quando Paul se casou com Zenith e depois morreu.

— Sim, deve ficar tudo bem… Tenho o presente do Sir Orsted para eles e uma caixa de doces… Oh! Hmm, temos Linia e Pursena conosco também… — As palavras se infiltraram da caixa do cocheiro.

Rudeus parecia um pouco indisposto. Ele estava segurando o estômago. Era um tique que ele tinha quando eu lhe contava histórias do meu passado. Quem sabia o que era aquilo?

Ele realmente cresceu bem. Fora uma criança inteligente que cresceu esperta, e tinha um talento para se dar bem no mundo. Agora, ele era um dos Sete Grandes Poderes e o braço direito de Orsted. Se ele disse que resolveria, era o que faria.

— Então até você fica nervosa às vezes, Ghislaine, miau.

— Eu entendo. Papai e os outros são teimosos. Eles acham muito difícil aceitar Doldias como nós, que se acostumaram com a vida na cidade, eu acho.

— Não se preocupe, Rudeus é incrível! — disse Eris, soando tanto como eu me lembrava dela que me arrancou um sorriso. Olhando pela janela, pude ver vários guerreiros correndo ao lado da carruagem. Pude dizer que estavam nos observando, escondidos nas sombras das árvores, ágeis como gatos e ferozes como tigres. Estavam a favor do vento. Eu não conseguia sentir o cheiro deles, mas o odor que pairava sobre toda esta área era inconfundivelmente o de uma tribo, eu havia voltado para casa, para a Aldeia Doldia.

POV GYES

PARA OS DOLDIAS DA MINHA GERAÇÃO, Ghislaine Dedoldia era um objeto de medo e desprezo. Ela era anormal além de tudo o que já tínhamos visto. Crianças como ela eram tradicionalmente chamadas de “ferinhas”, mas ela? Ela era outra coisa, nem mesmo uma pessoa.

Não era apenas as palavras que não chegavam até ela. Nada do que fazíamos para nos comunicar com ela funcionava, e não conseguíamos dizer o que ela queria. Ela sempre cheirava a raiva e frustração, e se você sequer encontrasse seus olhos, ela atacaria. Ela quase me matou inúmeras vezes.

Toda vez que ela tentava, era despida e encharcada com água da cidade, e depois trancada em um celeiro, mas nada ajudava. Essa punição era um extintor infalível de raiva, e acalmava as pessoas tão rapidamente que você sentia pena delas. Funcionava com todo mundo.

Mas não com ela.

Você podia encharcá-la com água ou trancá-la no escuro o dia todo, mas ela só ficava mais furiosa, seus ataques mais intensos. Nada mudou quando nosso pai tomou a decisão de matá-la, apenas para falhar na tentativa. Quando ela foi levada por um estranho espadachim viajante, senti um alívio avassalador. Ela não morrera na Aldeia Doldia, mas eu podia descansar em paz. Uma criatura como aquela não viveria muito, pensei. Ela morreria em alguma vala solitária.

Então, quando o nome “Rei da Espada Ghislaine” chegou até nós pelo vento, não pensei nada a respeito. Ghislaine, espadachim da tribo Doldia? Não era possível. Pensei que algum idiota que conhecia o nome de Ghislaine o havia roubado para dourar sua reputação.

Com uma mistura de medo e horror, nossa geração permaneceu em negação. Quando as crianças ouviram as histórias de Ghislaine, seus olhos brilharam. Elas não a conheciam, então para elas, devia soar como alguém que havia deixado a aldeia e feito fortuna. De qualquer forma, eu nunca imaginei que ela chegaria à idade adulta. Não havia como uma criatura que deixava tanta destruição em seu rastro sobreviver. Agora que eu era adulto, entendia o quão lamentável ela fora como ferinha, mas ainda assim, o ressentimento ainda estava firmemente alojado no fundo do meu coração. Toda vez que ouvia seu nome, pensava: Ghislaine, tendo sucesso no mundo? Nem pensar.

Há mais de dez anos, crianças humanas nos trouxeram um guerreiro demônio. Foi assim que ouvi a história da vida inacreditável de Ghislaine. Ghislaine, ensinando crianças a lutar com espadas enquanto ela, por sua vez, aprendia a ler e fazer contas… Isso é uma piada?, pensei. Ela comeria crianças assim que olhasse para elas. Está em sua natureza.

Mas uma das crianças, Rudeus Greyrat, me disse algo. Ele disse: “As pessoas podem mudar.”

Impossível. Eu sabia que devia ser alguém que tivesse assumido o nome. Ou melhor, eu esperava que sim.

Agora, Ghislaine estava na minha frente.

Com ela estavam o Mestre Rudeus e a Senhora Eris. Minhas filhas tolas também vieram. Quando perguntei por que tinham vindo, disseram que era para discutir o que aconteceria quando Lara, a filha de Rudeus e a salvadora escolhida da besta sagrada, atingisse a maioridade.

Era verdade que a tribo Doldia realizava uma cerimônia no nascimento da salvadora, a companheira da besta sagrada. Toda a Grande Floresta seria envolvida no evento. Era um grande empreendimento que exigia vários anos de preparação. O Mestre Rudeus era de outra espécie, e eu duvidava que ele tivesse um conhecimento especialmente profundo da tribo Doldia, mas ele ofereceu sua ajuda. Foi muito apreciado. Suponho que Linia e Pursena o tenham convencido.

Depois que deixaram a aldeia para cuidar da besta sagrada, não tive mais notícias delas, mas pareciam ter se saído bem. Enquanto estavam lá, estavam até servindo ao Mestre Rudeus como líderes de uma matilha chamada Bando de Mercenários Ruato. Como pai, eu estava orgulhoso. Não seria suficiente para apagar seus erros da última vez, mas era uma conquista grande o suficiente para satisfazer Minitona e Tersena, cujas tensões sobre a escolha do próximo chefe estavam aumentando. Minitona e Tersena eram ambiciosas. Elas treinariam ainda mais duro depois de ver o sucesso das meninas.

— Quando a salvadora… Quando Lara partir em sua jornada com a Besta Sagrada, todas as tribos que vivem na Grande Floresta devem consentir e estar presentes na cerimônia. Com todas as suas conexões, Mestre Rudeus, ficaríamos muito gratos por sua ajuda.

— Fico feliz em ouvir isso. Pensei que você poderia me dizer que faria tudo sozinho e eu teria que calar a boca e entregá-la.

— Ha ha. Eu poderia ter dito isso a outro humano, mas não a um que entende o quanto esta cerimônia significa para a tribo Doldia.

Minha conversa com Rudeus foi agradável. Talvez fosse minha imaginação, mas parecia que ele estava delicadamente evitando o assunto de Ghislaine. Cheirava a esse tipo de coisa.

— Tudo bem, vou notificar todas as tribos e você cuidará dos preparativos. A roupa de Lara é a única coisa que precisamos preparar, então?

— Não há necessidade; há trajes tradicionais. Só que…

— O que foi?

— Os monstros que usamos para o material vivem nas profundezas da Grande Floresta. Por gerações, foi o chefe guerreiro quem foi caçá-los. Agora, bem, a aldeia não tem chefe guerreiro…

— Ah…

Lancei um olhar para minhas filhas. Uma olhou para o outro lado, como se não tivesse ouvido. A outra estava chupando um osso carnudo que trouxera. Inúteis.

— Ainda não determinei os detalhes, mas em alguns anos, desejo enviar uma caçada a esses monstros que também servirá como ritual de seleção para o chefe guerreiro.

— Isso será uma grande dor de cabeça.

— Você me entende, então?

O Mestre Rudeus assentiu profundamente. Pensei nisso da última vez que nos encontramos, mas ele havia crescido. Era impossível acreditar que era o mesmo menino que se escondera em um baú de madeira para espionar minhas filhas enquanto tomavam banho. Que desgraça minhas filhas eram em comparação. Quando previ que teríamos mais negócios com os humanos, as enviei para uma escola distante para que também pudessem aprender sobre a sociedade. Foi assim que elas desperdiçaram essa educação. Mas enquanto pareciam inúteis para mim, na sociedade humana, eram a líder e a segunda em comando de um bando de mercenários – líderes de matilha. Talvez o problema fosse eu.

— Você não se importa de fazer assim, Pursena?

— Por mim, tudo bem. Quer dizer, ficaria feliz em fazer isso agora. Vou acabar com a Minitona e a Tersena.

— Você parece confiante.

— Por que não estaria? Com quem você acha que eu treino? — Ela olhou para a Senhora Eris… Teria ela olhado para Ghislaine? Será que Ghislaine não apenas treinou Eris, mas Pursena também…?

— Não estou na Grande Floresta há um tempo, então pode demorar um pouco para encontrar os monstros. Isso não será muito difícil de superar.

Ao lado de Pursena, Linia assentiu com um sorriso conhecedor. No passado, quando Pursena ficava assim, Linia a teria provocado imediatamente ou insistido que era melhor. Agora ela apenas assentia silenciosamente. Elas estavam tão sérias, então. Eu tinha minhas dúvidas, mas se estavam se preparando adequadamente, ficaria satisfeito.

Então havia uma chance de que Pursena se tornasse chefe guerreira. Eu não tinha certeza de como me sentir sobre isso.

— Então, quando o dia for marcado, enviarei notícias.

— Entendido. Deixarei um mago do Bando de Mercenários aqui como contato.

O Mestre Rudeus pretendia deixar uma tabuleta de mensagem mágica na aldeia, e eu deveria manter contato dessa forma. Que conveniente que Linia e Pursena estivessem em posição de usar tais coisas. As duas estiveram longe da Aldeia Doldia por muito tempo, então seus hábitos de pensar não eram muito naturais para mim, mas novos conhecimentos e bens poderiam dar nova vida à aldeia. Isso não poderia ser uma coisa ruim.

A conversa parou. Discutimos a cerimônia e a seleção do chefe guerreiro. Não havia mais nada. Eu queria dizer a eles para irem comer e descansar aqui por esta noite, mas…

A presença silenciosa de Ghislaine durante tudo isso me inquietou. A Ghislaine que eu conhecia nunca poderia ter ficado sentada em silêncio por tanto tempo, ela teria enlouquecido no meio do caminho. Alguém teria se machucado. Eu queria perguntar se era realmente ela, mas não havia como duvidar de seu cheiro distinto. Fazia a base do meu rabo coçar. Há muito tempo, eu teria fugido assim que sentisse o cheiro se aproximando…

— Ghislaine. — Seu nome veio aos meus lábios sem ser chamado. Não chegaríamos a lugar nenhum sentados aqui em silêncio. Eu era o chefe da tribo Doldia agora. Meu silêncio me envergonharia.

— O quê? — O rabo de Ghislaine se contraiu, e ela olhou para mim.

— Como ousa mostrar seu rosto?

Um suor frio brotou em minhas costas enquanto eu falava. A Ghislaine de antigamente teria me espancado até quase a morte só por isso. Claramente, ela passara esses anos se aprimorando como uma lâmina. Se este fosse nosso primeiro encontro, eu teria pensado que ela era alguém que eu deveria respeitar. Mas se a Ghislaine de muito tempo atrás empunhasse essa força, ela a teria usado para arrancar minha cabeça. Ela poderia ter assassinado qualquer um dos aldeões. Eu deveria expulsá-la antes que fizesse algum dano.

Mas a Senhora Eris se dera ao trabalho de trazer Ghislaine aqui. Eu tinha que enfrentá-la, como alguém que se recusava a esquecer o que ela era, e como o chefe atual.

Eris começou a se levantar, com a mão na espada, mas pensou melhor. Ela se sentou novamente, com a testa franzida. Ghislaine estendera a mão para contê-la.

Finalmente, Ghislaine falou. 

— Treinei no Santuário da Espada e ganhei o título de Rei da Espada. Minha força é reconhecida. Agora sirvo ao governante do Reino de Asura. Olhe para minha armadura. É um posto muito bom. Eles me tratam bem… É assim que ouso. — Ela falou, um pouco hesitante, mas seu rosto estava impassível.

— Pensei que você guardaria rancor desta aldeia…

— Rancor? Por quê? — Ghislaine inclinou a cabeça para mim.

— Por quê? Nós te expulsamos. Tentamos te matar. Lembra?

Ghislaine fez uma pausa e depois disse: 

— O que mais você faria com uma fera que não entendia a linguagem? Não posso te culpar por isso. — Ela continuou, com naturalidade: — Quando me foi concedido o título de Rei da Espada, meu mestre me disse algo. Ele disse: ‘Você é o Rei da Espada Ghislaine da tribo Doldia. Use esse nome com orgulho. Sempre que fizer um juramento, faça pelos Doldias.’

— Orgulho?

— Sim.

Vá para o inferno. Você não tem o direito de se chamar de Doldia, eu queria gritar, mas não consegui. Por quê? Eu não sabia. As palavras de Ghislaine foram estranhamente reconfortantes.

— O nome da tribo Doldia me ajudou e nunca me atrapalhou. Não guardo rancor.

Uma lembrança da minha juventude, antes de me tornar chefe guerreiro, voltou a mim, lá atrás, quando os rumores do Rei da Espada Ghislaine chegaram à aldeia. O nome tinha um certo grau de notoriedade, mas as histórias não eram vergonhosas. Pelo contrário, a maioria delas era elogiosa. Uma contava como ela havia conquistado um labirinto desafiador. Como aventureira, era uma grande honra. Ghislaine da tribo Doldia havia feito isso.

Nem pensar que isso pode ser verdade. Deve ser uma impostora. Eu disse isso na época, e os outros da minha geração se juntaram a mim. Mas eu não senti nem um pingo de orgulho? Eu tinha orgulho de fazer parte da tribo Doldia. Não fiquei satisfeito em ouvir que um dos nossos estava fazendo um nome para si? Mesmo que ela tivesse sido expulsa…

— Se alguma coisa, sinto vergonha. Sinto muito por ser uma tola. — Ghislaine abaixou a cabeça.

Ela se desculpou. Ghislaine havia se desculpado.

— E-eu… entendo — fechei os olhos.

Fui eu quem fora um tolo. Ghislaine apenas sofrera dos piores sintomas de ser uma ferinha. Até nossos pais a deram como um caso perdido, mas as ferinhas levam tempo. Agora que ela tivera, Ghislaine se tornara uma bela mulher. A aldeia a expulsou, mas ela recuperou o juízo e cresceu. Não apenas isso, tinha orgulho de ser uma Doldia. Ela ainda anunciava sua herança agora que adquirira fama. Ela mantinha a cabeça erguida. Hoje, neste dia, ela voltara para casa.

Este foi um esforço de boa-fé. Eu sabia o que dizer a ela.

— Rei da Espada Ghislaine Dedoldia. Fico feliz em vê-la de volta à aldeia Doldia, e como seu chefe, Gyes Dedoldia, eu a recebo.

— Você é muito gentil. — Ghislaine se levantou, depois se ajoelhou e abaixou a cabeça. Era assim que os espadachins do Estilo Deus da Espada cumprimentavam uma pessoa de posto superior. Era apropriado e uma grande honra para mim, e vindo de Ghislaine.

Ghislaine me via como seu superior…?

— Fique aqui esta noite, e amanhã, conte-me sobre suas viagens.

— Como desejar. Tenho muitas histórias interessantes.

Eu a recebi. Não podia esquecer tudo o que acontecera entre nós, mas era hora de dar lugar à próxima geração. Não pude deixar de me preocupar com minhas filhas, que eram daquela geração… Mas se Ghislaine pôde mudar, talvez elas também pudessem. Afinal, meu pai e meu avô antes dele teriam tido preocupações como as minhas, mas eles cumpriram seu tempo como chefe. Minha vez chegara, e a delas também chegaria…

Foi assim que o retorno de Ghislaine Dedoldia aconteceu.


 

Tradução: Gabriella

Revisão: Pride

 

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