A vila era muito parecida com a Vila Migurd. Fileiras de casas de madeira toscamente escavadas ficavam dentro de uma cerca que se erguia quase dois metros de altura em torno do perímetro da aldeia. Perto das casas de madeira, havia um terreno de tamanho modesto, sendo usado para o cultivo. Ao contrário da aldeia Migurd, ali crescia uma grande variedade de vegetais. Eles provavelmente tinham um bom solo.
A carcaça de um animal recém-abatido estava atrás de uma das casas. Uma fera de quatro patas com pelo claro, sendo a verdadeira forma dos monstros ocultos. Aparentemente, depois de algum tempo mortos, deixavam de ser invisíveis. O corpo daquele que nos atacou tinha uma pele colorida depois de morrer.
Eles eram chamados de Lobos Invisíveis. Exatamente o que estava escrito na caixa. No centro da aldeia havia uma fonte e, perto dela, um grupo de pessoas reunidas em torno de uma grande panela para preparar a comida. A cultura deles era realmente semelhante à dos Migurds, mas todos que vinham da Tribo Migurd pareciam estudantes do ensino médio com cabelo azul. Aqui, todos possuíam uma pedra vermelha na testa e cabelos verde-esmeralda.
Eles eram Superd.
Neste lugar eu fiz uma descoberta nova e surpreendente. Os Superd não só tinham pedras vermelhas na testa e cabelos verde-esmeralda… Eles também eram lindos. Neste mundo, as pessoas tendiam a considerar atraentes características mais fortes e melhor definidas. Ainda assim, os Superd eram belos. Eles não eram típicos garotos esbeltos ou com rosto de bebê, mas eram todos bonitos.
Tinha uma garota ali com um “bob nos cabelos” que era super fofa. Ela era magra, embora não fosse tão alta. Seus ombros eram musculosos, seus olhos estavam cheios de determinação. Seios decentemente grandes também. Como se alguém tivesse combinado os melhores pontos de Eris e Sylphie…
Espere, não é bem assim! Não estou pensando em traição. Apenas olhando objetivamente.
Uma vila de beldades. Isso era diabólico. Aha! Afinal, o Povo da Floresta eram demônios! Aqui estava a prova!
— Este lugar é assustador — falei baixinho.
— …Uh-huh. — Dohga grunhiu em concordância.
Dohga estava agachado atrás de mim como se estivesse tentando se esconder. Parecia com medo dos Superd. Ele era de Asura, então provavelmente cresceu ouvindo que eram monstros. Eu queria tranquilizá-lo, mas embora eles não fossem maus como povo, isso não significava que esta vila nos receberia bem. Eu não poderia dizer a ninguém para relaxar ainda.
— Eu me pergunto para onde eles estão nos levando? — Sándor não estava particularmente assustado. Sendo da zona de conflito, ele provavelmente não conhecia os mitos sobre os Superd. Cercado por tantos agora, parecia animado.
— Para Ruijerd, onde mais?
— Ele pode não nos levar primeiro ao nosso destino final.
Eu pensei nisso.
— Então o padrão usual seria o chefe da aldeia, certo?
— Se estamos falando de histórias, uma cela de prisão é outra opção… mas não parece que estejamos em perigo.
O guerreiro Superd virou-se para nós e disse secamente:
— Sigam-me —, antes de continuar andando.
Seguimos como nos dito e foi assim que chegamos a esta aldeia. Não houve muita coisa que você pudesse chamar de conversa nesse meio tempo.
— Os aldeões parecem desanimados, não é? — Sándor comentou. Agora que ele mencionou isso, os Superd pareciam desanimados. Todas as pessoas que vi tinham uma pele pouco saudável e algumas tossiam enquanto preparavam a comida. As crianças, por outro lado, pareciam saudáveis. Perseguiam umas as outras, rindo e gritando, suas caudas arrastando atrás deles.
Huh. Então as crianças Superd tinham cauda.
— Eu esperaria mais algumas pessoas em uma vila deste tamanho.
— Eles provavelmente estão caçando, não estão?
— Certamente não, afinal, já estão dissecando a caça bem ali, não?
— Oh, verdade.
Eles estavam cortando a fera agora, então isso significava que deviam ter voltado da caça. Pode ter havido grupos individuais em vez de um grande grupo de caça na aldeia, e a fera ali poderia ter sido preservada, mas…
— Suponho que eles estejam doentes, afinal.
Não era imediatamente aparente, mas parecia que um frio estranho estava se espalhando pela aldeia. Saber que um deles tinha ido comprar remédios pode ter sido o que me fez pensar dessa forma. Eles pareciam doentes.
Talvez devêssemos usar máscaras, mesmo que seja apenas para ter paz de espírito.
— Quase lá. Continue andando. — Chegamos a uma casa, guiados pelo Superd. Parecia a mais antiga daqui, mas era também a maior. Modelo clássico de chefe de aldeia.
— Chefe, sou eu. Trago visitantes para Ruijerd — disse o Superd. Ele abriu a porta, revelando uma sala. Parecia mais um auditório ou uma sala de reuniões do que a casa de um chefe.
Dentro haviam cinco Superd. Estavam com a aparência ainda mais doentia do que quem nos trouxe até aqui, o que me fez pensar que eram idosos. Difícil adivinhar a idade deles quando todos tinham o mesmo cabelo verde, pele clara e belos traços.
Um dos cinco ficou de pé quando entrei na sala. Aquele traje tradicional familiar, a cicatriz em seu rosto, a lança branca, o protetor de testa que eu conhecia tão bem. Seu cabelo havia crescido, portanto ele não estava mais careca. Desta vez não houve dúvida.
— Ruijerd! — Eu gritei, abrindo um sorriso. Fiquei tão feliz em vê-lo depois de todo esse tempo que tive vontade de correr até ele, mas me contive e parei depois de alguns passos.
Ele, porém, olhou para mim com suspeita nos olhos.
— Rudeus…?
Tinha me esquecido? Isso seria de partir o coração.
— …Você não se lembra de mim? — perguntei.
— Não, você simplesmente não se parece como eu me lembro.
— Oh! Certo, sim, estou meio disfarçado. — Tirei o anel para mostrá-lo a minha verdadeira face. Um murmúrio percorreu o chefe e os outros.
Foi impressionante que ele tivesse me reconhecido com aquela cara. Ou teria sido, se não fosse pelo terceiro olho do Superd.
— Já faz muito tempo.
— Realmente faz.
Ahh, isso era como nos velhos tempos. Havia tanta coisa que eu queria dizer, tanta coisa que queria contar a ele. Sobre Eris, sobre Paul… Também havia muitas coisas que eu queria perguntar sobre esta aldeia, por exemplo, e o que ele estava fazendo. Na verdade, não precisava perguntar sobre a vila. Ruijerd encontrou o que procurava durante todo esse tempo. Ele finalmente encontrou.
— Ruijerd… — Eu estava chorando. Minhas lembranças do nosso tempo juntos estavam preenchendo minha mente. Quando nos conhecemos, ele estava sozinho. Não parecia, primeiro com o Migurd e depois viajando conosco, mas, mesmo assim, sozinho.
Não mais.
— Parabéns. Você encontrou os Superd.
— Eu encontrei… — Ruijerd concordou, seus olhos se enrugaram em um sorriso. Aqui, estava cercado por pessoas como ele. Bem, não exatamente, os outros quatro aqui eram um pouco sombrios, mas Ruijerd parecia feliz entre eles.
— Mas Rudeus, — ele continuou —, por que você está aqui?
Ops, isso mesmo. Eu não vim aqui para uma reunião chorosa. Eu não poderia ficar sentado relembrando os velhos tempos.
Sentei-me de frente para Ruijerd e coloquei meu rosto em uma expressão séria.
— É uma longa história e há muitas coisas que quero lhe perguntar. Está com tempo?
Ruijerd fez uma pausa e disse:
— Chefe?
Bem no fundo do salão estava sentado um homem vestido com mais luxo do que os outros quatro. O chefe, sem dúvida. Ele parecia preocupado com a pergunta de Ruijerd.
— Este humano é confiável? — Ele perguntou.
— Ele é — respondeu Ruijerd.
— Então nem é preciso dizer.
O chefe deu permissão, então Ruijerd e eu começamos a compartilhar o que sabíamos.
Antes de contar minha história, Ruijerd me contou como chegou à aldeia. Aconteceu depois que ele me entregou Norn e Aisha, quando partiu em uma jornada para encontrar os Superd sobreviventes. Planejou ir de país em país e vasculhar o norte do Continente Central, porém assim que deixou a aldeia, Badigadi o alcançou.
— Ele disse que sabia onde encontrar os Superd sobreviventes — explicou Ruijerd.
Embora ele estivesse em dúvida, não tinha outras pistas. Decidiu seguir Badigadi. Os dois viajaram juntos durante anos até chegarem ao Reino Biheiril. Badigadi então o levou para os Superd que viviam na Floresta Sem Retorno, além da Ravina do Dragão da Terra. A Tribo o recebeu calorosamente. Depois da guerra, eles tinham muito o que discutir e pedir desculpas, mesmo assim foram receptivos. Ruijerd começou sua vida na aldeia e lá encontrou um pouco de paz.
— Mas agora chegou uma praga — disse ele.
Uma praga de origem misteriosa. Os primeiros sintomas assemelhavam-se a um resfriado, mas com o passar do tempo os afetados ficariam fracos, sofreriam tremores inexplicáveis e a visão do terceiro olho ficaria turva. No fim, morte. A magia de cura não tinha efeito.
Ruijerd, vendo um aldeão após outro atingido pela praga, saiu em busca de uma cura. O próprio contraiu a doença, mas pelo bem da aldeia, arrastou seu corpo trêmulo para a Segunda Cidade de Irelil.
A sorte estava com ele e encontrou um comerciante viajante que lhe vendeu remédios. Agora, a aldeia estava a caminho da recuperação.
— Mas há um boato circulando fora da floresta — interrompi. — Estão dizendo que o grupo enviado para investigar os demônios da floresta foi todo morto.
— Acredito que os monstros tenham conseguido sair da floresta enquanto lutávamos com a praga.
Por que os Superd construíram sua vila num lugar como este? Mais ou menos pela mesma razão da história que a velha nos contou na Aldeia da Ravina do Dragão de Terra.
Isto foi há centenas de anos. Depois de serem expulsos do Continente Demônio, vagaram de um lugar para outro pelo mundo apenas para encontrar perseguição onde quer que fossem. Às vezes, cavaleiros e soldados os perseguiam. Os refugiados Superd evitaram terras abertas, em vez disso viajaram através de florestas e contrafortes de montanhas, em busca da sua terra prometida.
Eles viajaram sem parar, buscando uma terra onde os humanos temiam pisar, onde pudessem viver suas vidas em paz. Finalmente, encontraram este lugar: a Floresta Sem Retorno, além da Ravina do Dragão da Terra.
Graças aos Dragões da Terra, monstros grandes não se aproximavam. Tudo o que vivia na floresta eram os monstros invisíveis. Claro, os Lobos Invisíveis eram facilmente tão fortes quanto o seu monstro padrão. A invisibilidade deles era uma vantagem incrível; três deles poderiam facilmente destruir um grupo de aventureiros.
Mas os Superd, com seus terceiros olhos, não tinham problemas para ver os monstros. Embora os Lobos Invisíveis fossem durões, eles não eram páreo para os que viviam no Continente Demônio. Comparados aos monstros de lá, esses lobos eram praticamente cães domésticos. E assim, os Superd se estabeleceram na Floresta Sem Retorno.
Eles tiveram problemas, como era de se esperar. Havia humanos por perto, e só porque os humanos normalmente não iam para a floresta, isso não significava nunca. Não muito depois de os Superd começarem a viver na floresta, uma aldeia humana surgiu nas proximidades. Os aldeões começaram a frequentar a floresta e ocasionalmente chegavam perigosamente perto da aldeia deles. O chefe Superd redigiu um acordo segundo o qual eles reduziriam o número de monstros na floresta e os impediriam de chegar perto da aldeia, e que protegeriam quaisquer aldeões que se perdessem na floresta.
Na história dos aldeões, eles chegaram aqui primeiro, mas isso era uma pequena imprecisão. Isso foi há duzentos ou trezentos anos, então a versão dos aldeões devia estar errada. O Superd que fez o acordo ainda estava vivo. Eles mantiveram uma distância segura da vila dos aldeões e todos se deram bem… até que a agitação causada pela praga perturbou o equilíbrio.
— O reino vai destruir esta aldeia — disse a Ruijerd. Contei a ele sobre os rumores que circulavam no Reino Biheiril e o que o rei iria fazer.
— Isso é o que eles planejaram, não é…? — O chefe e os outros reagiram à minha notícia com desespero. Não houve determinação em resistir aos invasores que vinham destruí-los, apenas uma miserável resignação. Suas cabeças caíram. Eles pareciam derrotados.
— Então não poderemos mais viver aqui…
— Não há lugar para nós?
— Se não fosse por aquela guerra terrível…
Ruijerd olhou para seus rostos tristes com remorso nos olhos, como se tivesse falhado com eles.
— Sinto muito — disse ele, mas os outros rapidamente balançaram a cabeça.
— Nós não culpamos você, Ruijerd. Nós também apoiamos Laplace.
— Às vezes fico amargurado, mas naquela época estávamos todos muito orgulhosos de vocês: dos guerreiros que enviamos para a batalha. Somos igualmente culpados.
— Mas por que somos os únicos que devem sofrer tanto?
— O que fez Laplace fazer tal coisa com o Superd?
Pude ouvir a angústia na voz do chefe, mas nenhum sinal de culpa ou arrependimento. Simplesmente a voz de um homem que se desesperou com o seu destino. Sua voz e linguagem corporal me disseram que ele não via outra saída senão fugir. A guerra terminou há quatrocentos anos. Para os humanos, era uma história antiga. Como o incidente do deslocamento me acompanhou durante todos estes anos, a Guerra de Laplace ainda estava em curso para o Superd, um pesadelo que se recusava a terminar.
Sem pensar, deixei escapar:
— Se você quiser, posso negociar com o Reino Biheiril.
— O quê?
— Sou humano e tenho bastante influência política — expliquei. — Todo esse tempo, os Superd caçaram monstros perigosos na floresta para proteger uma aldeia humana. O Reino Biheiril se beneficiou disso. Se eu explicar tudo claramente, acho que posso pelo menos convencê-los a deixar para vocês um canto da floresta para morar.
Eu não sabia qual era a coisa certa a fazer. Minha missão era derrubar Geese. Claro, tornar Ruijerd meu aliado fazia parte do plano, mas depois de todo esse trabalho para evitar a atenção de Geese, eu poderia justificar um curso de ação desnecessário que poderia me fazer ser pego? Se não fizer isso, entretanto, posso muito bem deixar a Tribo Superd para ser massacrada. De que serviam todas as estatuetas e livros ilustrados de Ruijerd que vendi? Fiz tudo isso porque queria ajudar a restaurar a honra deles, para salvar Ruijerd.
Claro, era possível que estivesse confundindo minhas prioridades. Talvez fosse o momento errado, mas quem salvaria os Superd de sua situação senão eu?
— Os humanos nos odeiam. Eles nunca aceitarão isso.
— O ódio que os humanos têm pelos Superd está enfraquecendo. No Reino Biheiril, eles até aceitaram ogros que não parecem nada humanos. Não creio que o reino seja muito resistente à ideia. A Igreja Millis não tem muita influência por aqui. Se eu fizer com que meus aliados espalhem histórias positivas sobre os Superd por todo o país enquanto trabalho com você, acho que as pessoas aceitarão isso. — Eu disse tudo isso muito rapidamente.
No mínimo, o Reino Biheiril não tinha motivos para exterminar os Superd. Sem eles, os Lobos Invisíveis sairiam da floresta e destruiriam a aldeia humana. Eu não sabia até onde os Lobos Invisíveis vagavam, mas os ataques poderiam até ameaçar a Segunda Cidade de Irelil. Eles poderiam alegar ignorância sobre o Superd, se necessário. Isso seria mais benéfico do que matar todos.
— E se as coisas não derem certo com o Reino Biheiril, você sempre pode se mudar para o país da minha amiga.
No Reino Asura seria difícil de comprar a ideia. No final das contas, a Igreja Millis era grande demais lá, mas havia uma vasta floresta na fronteira norte de Asura que não pertencia a nenhuma nação.
Se eles não estivessem tecnicamente dentro das fronteiras e não causassem nenhum dano, o ramo Asura da Igreja não poderia reclamar. Além disso, Ariel tinha ligações com um bando de bandidos na floresta do norte. Talvez eles pudessem chegar a um acordo amigável entre vizinhos. Embora ela possa tentar usá-los para seus próprios propósitos…
— Você tem certeza de tudo isso?
— Podemos ao menos confiar neste homem?
— Qualquer amigo de Ruijerd…
— Mas o que ele está dizendo é inacreditável.
Os outros sentados ao redor do chefe conversavam entre si. Tão falantes que era difícil acreditar que são da mesma raça que Ruijerd. Todos os Superd pareciam tão jovens. Como assistir a uma reunião de uma associação de proprietários de casas em um bairro moderno de graduados universitários. Se ao menos eu pudesse gravar um vídeo dessa cena e divulgá-lo por toda a sociedade humana, então eles pelo menos veriam que os Superd não eram demônios…
— Não podemos tomar uma decisão imediatamente — disse o chefe quando a discussão terminou. Isso era justo. Se um homem estranho aparecesse do nada e dissesse o que eu disse, poderia entender como você ficaria confuso demais para responder.
— Eu entendo — falei. — Os humanos atacarão daqui a dezesseis, talvez dezessete dias. Neste momento, ainda há tempo para argumentar com eles. Por favor, não demorem muito.
Se as negociações fracassassem, eu mesmo defenderia a vila Superd.
— Muito bem. Teremos uma resposta para você em alguns dias — disse o chefe. Ele e os outros se levantaram para sair, com expressões sombrias.
— Huh? Espere, ainda não entendi por que estou aqui — disse rapidamente.
— Você já nos deu muitos pontos preocupantes a considerar. Além disso, o sol se porá em breve. Terminaremos a reunião aqui. Desejo organizar meus pensamentos.
Saindo na hora certa. Que local de trabalho honesto.
— Cuide para que seus convidados recebam comida e camas — disse o chefe a Ruijerd.
— Eu vou.
Não era o fim do mundo. O que eu vim dizer poderia esperar até amanhã, e de qualquer forma, eu não poderia lutar contra Geese e o Deus-Homem a menos que resolvesse o problema com a aldeia. Um passo de cada vez. Amanhã, quando chegarmos ao motivo da minha proposta, voltaria e explicaria.
Com isso, minha reunião com o chefe acabou.
Nos deram uma casa vazia para passar a noite. Dohga trancou-se lá dentro enquanto Sándor, fascinado, saiu para observar a aldeia ao anoitecer.
Fui para a casa do Ruijerd. Ele servia como uma espécie de conselheiro na aldeia e morava numa casa bem nos fundos.
Uma casa, de Ruijerd. Só de olhar, senti algo quente crescendo em meu peito. Ele havia sofrido perseguição e pressão sem fim à vista, mas agora aqueles dias tinham acabado. Ele possuía uma casa aqui. Mesmo se fosse embora por um tempo, poderia voltar para uma cama quente e uma família sorridente.
É uma coisa maravilhosa ter um lar… Droga, vou começar a chorar de novo.
— Sente-se ali, — Ruijerd me disse quando entramos.
— OK!
Sua casa era simples. A disposição me lembrou das casas Migurd. Havia uma espécie de lareira afundada no centro da sala, peles de animais espalhadas pelo chão, roupas, outras peças penduradas nas paredes e dividida em três partes. Ruijerd entrou no que parecia ser um depósito e ouvi líquido se espalhando. Ele provavelmente mantinha estoques de comida e água lá.
O que poderia ser o último? Eu me perguntei. Um quarto?
Realmente era básico. Podia haver peles de animais empilhadas no chão, mas as paredes eram de madeira nua. Ele poderia pelo menos ter colocado um Lobo Invisível na parede como troféu…
Meu olhar capturou o pingente de Roxy que eu dei a ele pendurado na parede. Ele guardou isso todo esse tempo.
Não pude deixar de notar o tamanho do lugar.
— Hum, Ruijerd? — perguntei.
— Sim?
— Você mora aqui sozinho?
— Eu moro.
Sozinho, nesta casa grande. Tentei me imaginar morando sozinho em minha própria casa. Eu dormiria no mesmo quarto que estou agora. Jogaria coisas que não precisava no porão, como faço agora. Usaria a cozinha, a sala de jantar e o banheiro, mas provavelmente não a sala de estar. Duvido que usasse os outros quartos também. Neste momento, cada cômodo da nossa casa tinha uma pessoa que o organizou como queria. Todos aqueles quartos, vazios. Houve um tempo em que eu não teria me importado. Agora a ideia era insuportável.
— Você não quer se casar ou algo assim?
— Você acha que eu poderia me casar?
Oh droga. É isso mesmo, depois do que Ruijerd fez com sua esposa e filho… provavelmente não.
— Sinto muito — falei.
— Não se desculpe. Não estou ainda pensando no passado distante. Não tenho uma parceira, só isso. — Ruijerd sorriu. Ele se sentou na minha frente, tão relaxado como se estivesse cumprimentando a família. — O que você tem feito?
Se eu soubesse que acabaria aqui, teria trazido Eris… Não, isso poderia esperar até que tudo acabasse. Se sobrevivermos, poderemos ver Ruijerd a qualquer momento. Todos estavam trabalhando agora para garantir que todos sobrevivam.
— É uma longa história. Está tudo bem? — perguntei. Esperaria até amanhã, mas não havia mal nenhum em informar Ruijerd primeiro. Eu estava morrendo de vontade de contar tudo a ele.
— Diga-me, — ele disse.
— OK. — Contei a ele tudo o que aconteceu desde que nos separamos. Sobre a morte de Paul, meu casamento com Roxy, como me reencontrei com Eris e me casei com ela também. Ruijerd ouviu amigavelmente. Seu rosto escureceu um pouco com a morte de Paul, mas talvez porque eu não estivesse particularmente chateado. Ele não perguntou sobre isso, em vez disso, perguntou por Eris.
— Eris pegou o gosto em ser uma guerreira no final?
— …Hum, acho que sim.
— Tomar três esposas, no entanto. Isso é bem a sua cara. Você já tem filhos?
— Sim, quatro.
— É mesmo? — Ele não disse que queria conhecê-los. Ainda assim, os traria na próxima vez. Eu queria especialmente trazer Arus. Queria que Ruijerd conhecesse o filho que tive com Eris. Depois de derrotar Geese, é claro.
— Ruijerd — falei, sentando-me direito. Eu tinha confundido a ordem, mas agora era hora do que eu realmente queria falar.
— Agora sou um seguidor do Deus Dragão Orsted — falei. Expliquei onde as coisas estavam agora. Contei-lhe como há muito tempo, o Deus Dragão Orsted e o Deus-Homem eram inimigos; contei a ele que a princípio fiquei do lado do Deus-Homem, mas ele estava me enganando o tempo todo. O Deus-Homem viu meus filhos como um obstáculo e tentou assassinar minha família, mas uma versão minha do futuro veio e o deteve na hora certa. O Deus-Homem, zangado, propôs-me que lutássemos então com Orsted e eu concordei. Ele me derrotou, mas acabou não sendo um cara tão mau, e consegui escapar das garras do Deus-Homem. Desde então, tenho lutado contra o Deus-Homem como seguidor de Orsted.
Neste momento, estávamos reunindo aliados para derrotar o Deus Demônio Laplace quando ele ressuscitasse daqui a oitenta anos. A preparação para a batalha estava indo bem, mas então Geese desertou para o lado do Deus-Homem. Depois veio a carta de Geese e a informação de que ele estava aqui no Reino Biheiril. Enviamos aliados de confiança por todo o reino para detê-lo.
— Ruijerd, estou procurando por você desde que soube que teria que lutar contra Laplace no futuro. — Fiz uma reverência e então fiz meu pedido. — Espero que você ajude… Não, quero que você lute contra ele comigo.
Ruijerd também guardava rancor de Laplace. Como tal, quando imaginei esta cena, ele concordaria prontamente.
— …
Mas não respondeu e o silêncio se prolongou ainda mais. Ele se afastou de mim, parecendo angustiado.
— Huh? — Eu nem tinha considerado que poderia dizer não. Achei que se dissesse o nome de Laplace, Ruijerd olharia para mim, inexpressivo como sempre e diria “estarei lá”, como se soubesse que esse dia chegaria.
Mas não foi isso que aconteceu. Ruijerd se afastou de mim. Era um gesto de recusa. Sua linguagem corporal estava me dizendo NÃO em letras maiúsculas.
Uma voz dentro de mim exclamava: Você está falando sério? mas, ao mesmo tempo, outra disse: Sim, é justo.
Pensando agora, ele encontrou os Superd. Seu povo. Ainda guardava rancor de Laplace, ainda tinha raiva, mas sua batalha acabou. Tudo acabara quando ele lutou sua luta final e decisiva na Guerra de Laplace e se vingou.
Além disso, a aldeia Superd estava em perigo. Ele não poderia fazer promessas precipitadas, não até que isso fosse resolvido.
— É a vila Superd? Se sim, você pode deixar isso comigo. Nos anos desde a última vez que te vi, fiz muitas conexões. Posso fazer as pessoas verem as coisas do meu jeito agora.
— Não é isso.
Aparentemente eu estava errado, mas não pude desistir. Queria uma resposta agora, então procurei algo que pudesse usar para persuadi-lo. Como foi sua vida depois da derrota de Laplace? O que ele queria e o que estava tentando alcançar? Proteger os Superd? Para manter seu povo seguro depois de ter passado tanto tempo procurando por eles? Eu presumi que sim, mas havia mais uma coisa importante.
— Então… trata-se de restaurar a honra dos Superd? O Reino Asura e a Criança Abençoada de Millis estão lutando contra Laplace. Se você lutasse ao lado deles, esse fato ajudaria muito a restaurar seu…
— Não é isso. — Eu estava convencido de que estava certo, mas Ruijerd me calou.
— Então o quê? — Sem dizer uma palavra, Ruijerd levantou-se. Havia algo parecido com hostilidade em seus olhos, mas estava misturado com confusão e indecisão.
Talvez houvesse algum outro motivo que eu não conhecia.
— Rudeus, venha comigo — disse ele, então pegou a lança encostada na parede e se dirigiu para a porta da frente. Eu levantei rápido e corri atrás dele. Conversamos por tanto tempo que agora estava escuro lá fora. A lua era visível apenas através das brechas nas árvores, mas eu não conseguia nem ver meus próprios pés.
Ruijerd deixou a aldeia. Peguei um pergaminho Luz de Lamparina para iluminar o ambiente. Ruijerd seguiu em frente no escuro como se dissesse que não precisava de luz. Chegamos a uma clareira na floresta e ele parou.
— Rudeus.
— Sim? — Ele estava prestes a me dizer algo que eu não queria ouvir. Possibilidades desagradáveis encheram minha mente.
— Na reunião, eu menti — disse ele. Fiquei em silêncio. — Os Anciãos acreditam que essa mentira é verdade.
Uma mentira.
— A praga não foi curada. O remédio não funcionou. Não estamos no caminho de qualquer tipo de recuperação. — Lembrei-me da mulher que vi tossindo na aldeia, da atmosfera de doença que enchia a aldeia e do que Sándor disse sobre o número reduzido de pessoas. — Neste momento — continuou Ruijerd —, tudo o que estamos fazendo é abrandar a sua progressão.
— Como? — Eu disse finalmente. Ruijerd estendeu a mão para tocar seu protetor de testa.
— Com isso. — Debaixo da faixa, vi um vermelho… não, a joia não era vermelha. Era azul. A joia em sua testa que deveria ser vermelha mudou para um azul brilhante. Estava cercado por marcas pretas. O tipo de coisa que um garoto de quatorze anos poderia rabiscar na mão esquerda.
— O que… é isso?
Percebi a expressão no rosto de Ruijerd e a aura perturbadora que emanava das marcas, então não tive coragem de fazer uma piada.
Talvez seja porque sou mais forte do que costumava ser, sinto que estou mais sintonizado com o quão fortes e perigosas as outras pessoas são…
— Estou possuído pelo Rei Abissal Vita — disse ele.
Rei Abissal Vita: um residente do “Inferno”, um labirinto no Continente Celestial. Um potencial discípulo do Deus-Homem.
— O Rei Abissal Vita dividiu seu corpo entre os infectados da aldeia. Suas ramificações estão impedindo o progresso da praga.
— Se você está… possuído… você está bem?
— Não tive nenhuma anormalidade. O progresso da doença diminuiu e os sintomas diminuíram. Isso é tudo.
— Por acaso, ele não disse nada para você?
— Não.
Tudo o que ouvi de Orsted sobre Vita foi o nome. Eu não sabia como era ou que convicções tinha. Acontece que ele possuía pessoas, o que significava que era uma forma de vida que poderia se dividir. Algum tipo de bactéria, eu acho?
— Mas o Rei Abissal Vita deveria estar no labirinto do Inferno, no Continente Celestial… Como?
— Quando as coisas estavam difíceis para a aldeia, um homem veio até mim com uma garrafa. Vita estava na garrafa.
— Aquele homem… não era… ele, era?
— Era Geese.
Não…
— Geese disse que haveria uma grande batalha neste país e que queria que eu o ajudasse quando isso acontecesse. Eu disse que sim. Eu estava relutante em confiar em uma entidade sombria como o Rei Abissal Vita, mas estava sem opções. E o progresso da doença realmente desacelerou. Todos foram salvos. — Ruijerd sorriu com tristeza. — Só que nunca imaginei que o inimigo de Geese naquela batalha seria você…
Meu coração estava batendo forte. Eu havia considerado brevemente que Ruijerd poderia ter se voltado contra mim. Agora que isso estava acontecendo, meu pulso não parava de acelerar.
— A praga não foi totalmente curada. Disseram-me que se o Rei Abissal Vita morrer, suas ramificações também morrerão. Se isso acontecer, a aldeia será novamente consumida pela doença.
Eu não disse nada.
— Eu tenho que lutar com você — disse Ruijerd com a mesma expressão séria que sempre usava. — Não porque eu queira, é claro. Sem você eu nunca teria chegado até aqui. Eu ainda estaria vagando pelo Continente Demônio com a cabeça cheia de ideias tolas.
— Eu devo muito a você, Ruijerd. Eu não quero lutar com você.
— Devemos. É uma história que se repete desde o início dos tempos.
— Sim, eu aposto. — Duas pessoas em dívida uma com a outra tornam-se inimigas. Isso os tortura, mas eles lutam até que um morra, e o sobrevivente fica com um buraco no coração. A mesma história provavelmente se repete sempre que há uma guerra.
Certamente desta vez era diferente. Certamente desta vez havia algo que eu poderia fazer. Éramos a exceção, é claro, tínhamos que ser a exceção. Havia uma maneira de evitar brigas. Se a nossa razão para lutar desaparecesse, por exemplo. Eu só tinha que eliminar isso. Se eu soubesse o que era.
Orsted e o Deus-Homem eram um dos motivos, mas eu não poderia trair Orsted neste momento. Isso era sobre Ruijerd e eu. A razão pela qual ele tinha que lutar comigo: seu povo, seus companheiros Superd. Se não existisse mais Superd… não, isso seria monstruoso. Então uma lâmpada acendeu na minha cabeça. A praga. A praga que estava os devorando. Se eu descobrisse como curá-la, teria todos os Superd do meu lado.
— Se eu encontrasse uma maneira de curar completamente a praga, você os trairia e se juntaria a mim?
O rosto de Ruijerd escureceu ligeiramente com a palavra “trair”. Seu olhar era intenso, mas eu não desviei o olhar. Geese pode ter trazido Ruijerd para o seu lado primeiro, mas ele me contou sobre isso. Se estivesse totalmente do lado de Geese, poderia simplesmente ter me matado sem dizer nada. Ruijerd não tinha certeza. Foi por isso que me trouxe aqui.
A boca de Ruijerd se torceu e sua testa franziu. Eu me considerava amigo dele e tinha certeza de que ele pensava o mesmo a meu respeito, mas para salvar seu povo também estava sujeito a Geese, e por extensão, ao Deus-Homem, que dava suas ordens a Geese. Afinal, Ruijerd era um homem de consciência.
— Eu lhe disse que o Deus-Homem me traiu — falei. — Não há como garantir que ele não fará o mesmo com os Superd. Até Geese foi traído. O Deus-Homem matou todo o seu povo. Ele o seguiu depois disso. É possível que, uma vez terminada a batalha, o Rei Abissal Vita simplesmente se levante e vá embora, e os Superd morram de qualquer maneira.
Mesmo que você tivesse uma dívida com o Deus-Homem, havia grandes chances de ele acabar te traindo de qualquer maneira. O Deus-Homem era um idiota assim. Vindo de mim, era apenas especulação do inimigo, mas eu não poderia deixar Ruijerd no escuro sobre com o que havia concordado.
Ele não disse nada, apenas me olhou em silêncio. Nós nos entreolhamos por um tempo, até que finalmente Ruijerd falou.
— Se tal cura realmente existir, então sim. Eu quero lutar ao seu lado também.
— Ruijerd…! — Eu gritei, um suspiro de alívio explodindo de mim.
Graças a Deus. Isso não vai resultar em nós matando uns aos outros.
— Mas existe tal cura?
— Orsted sabe todo tipo de coisa sobre o mundo. Se eu perguntar, ele pode saber de alguma coisa.
Mas será que Orsted me contaria? Não tinha me contado antes disso. Ele nem tinha me contado que os Superd estavam aqui.
Eu perguntaria a ele apropriadamente sobre tudo isso. Poderia me preocupar se deveria lutar contra Ruijerd depois disso.
— Olha, tenho certeza de que há uma maneira de combater isso. Por favor, me dê algum tempo antes de começar a me chamar de seu inimigo.
Eu estava adiando o problema. Essa não era uma boa jogada. Ainda haveria tempo para sermos inimigos mais tarde, se acontecesse de não haver nada a ser feito.
— Orsted veio aqui uma vez, antes de Geese.
— O quê? — A revelação repentina me surpreendeu. Orsted esteve aqui? Quando?
— Há cerca de dois anos, quando as pessoas adoeceram pela primeira vez. Ele não fez nada. É claro que não sabíamos da ligação dele contigo, então o expulsamos… Se o que disse for verdade, vocês já eram aliados naquela época.
Que diabos? Que diabos?
— Você tem certeza de que pode confiar nele?
Orsted não me contou sobre os Superd. Até agora, havia uma pequena chance de que ele não soubesse, mas isso havia desaparecido. Confiança… Uma cura… impossível. Eu não sabia o que fazer.
Mesmo assim, respondi:
— Eu tenho.
Orsted sempre foi bom para mim. Talvez ele tivesse um bom motivo aqui também. Os Superd podem atrapalhar no futuro, por exemplo. Poderíamos esclarecer tudo se eu falasse com ele sobre isso. Orsted tinha vindo para a aldeia, mas não matou todos eles. Talvez tivesse vindo aqui com a intenção de fazer isso, mas não o cumpriu. Eu tinha uma teoria sobre isso.
— Tenho certeza de que posso confiar em Orsted — falei. Eu estava com Orsted até agora. Não tinha nenhuma dúvida disso. Verdade que às vezes ele não me contava as coisas e deixava de entrar em contato tanto quanto deveria, mas quando se tratava do nosso objetivo de derrubar o Deus-Homem, eu podia confiar nele.
— Eu realmente não gosto de colocar as coisas assim, mas você não precisa confiar em Orsted. Confie em mim. Eu nunca faria nada para machucar os Superd.
Ruijerd se afastou de mim. Ele cruzou os braços, pensando. Olhou para o céu, como tendo alguma ideia. A lua pairava enorme acima de nós.
— …Ngh! — Ruijerd de repente agarrou o peito e se agachou.
— Ruijerd?! — Corri até ele, frenético. No momento seguinte, sua cabeça se levantou e ele agarrou meu ombro.
Algo estava errado. Algo mudou no rosto de Ruijerd. Seus olhos estavam completamente azuis. O branco, a íris e as pupilas ficaram todos de um azul profundo. Sua boca estava meio aberta. Ele parecia incoerente. A gema em sua testa recuperou a coloração vermelha, mas as marcas ao redor emitiam um brilho perturbador. Quando vi isso, entendi.
— Você está sendo controlado?!
Merda. Ele claramente me disse que estava possuído. Só porque disse que nada tinha acontecido até agora, isso não significava que eu deveria ter entrado nessa conversa.
Quando percebi isso, já era tarde demais. O rosto de Ruijerd se aproximou do meu e ele me beijou. O líquido fluiu para minha boca e então, contorcendo-se como uma criatura viva, deslizou pela minha garganta.
Tradução: Bucksius
Revisão: Merovíngio
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