Mushoku Tensei: Reencarnação do Desempregado

Mushoku Tensei: Reencarnação do Desempregado – Vol. 23 – Cap. 09 – Um Deus do Norte, um Mercenário e Muito Mais…

 

Depois de nos separarmos de Sara e seu grupo, decidimos procurar o cavaleiro missionário que havíamos encontrado no início de nossa viagem. O Deus do Norte Kalman pode não estar mais nesta cidade, mas tínhamos informações indicando que alguém parecido com Geese estava. Eu duvidei que fosse ele. No entanto, acompanhar a pista pode nos fornecer algumas informações valiosas.

Também havia a possibilidade de ser uma armadilha para me atrair, mas devo dizer que não vejo Geese montando uma armadilha como essa. Foi uma total coincidência termos encontrado essa informação, então seria muito tênue construir um plano em torno disso.

Não esperava que ele tentasse alguma gracinha quando o Deus do Norte já tinha uma grande chance de ser um dos discípulos do Deus-Homem, o que significa que eu estava preparado e pronto para uma possível luta. Não, ele esperaria por um momento quando eu estivesse mais relaxado. Ele gostaria que eu baixasse a guarda antes de vir até mim.

Não, disse a mim mesmo, esse é mais o estilo do Deus-Homem do que o de Geese.

Seja qual for o caso, os Cavaleiros Missionários aqui em Hammerpolka já deveriam ter apreendido o indivíduo que supostamente parecia ser (ou era) Geese. Nossa primeira tarefa era encontrá-los. O problema era que eu não tinha ideia de onde ficavam seus escritórios.

Eu com certeza vacilei nessa. Deveria ter perguntado onde poderia me encontrar com eles quando chegasse. Devo procurar algo que se pareça com um escritório? Ou pedir a um transeunte para ver se mais alguém sabe?

— Eu já te disse, não vou vender meus amigos.

Enquanto caminhávamos pelas ruas, por acaso ouvi uma voz à minha frente. Foi um rosnado baixo, quase bestial, cheio de determinação. Juro que já ouvi essa voz em algum lugar antes…

— Não tenho intenção de pagar você. Em nome de Millis, estou exigindo que você entregue esse demônio — ecoou outra voz, justa e segura de si.

Ao me aproximar, percebi que havia dois grupos frente a frente em cada lado da rua, encarando um para o outro. De um lado, presumi, era um grupo de mercenários. Não havia uniformidade em suas armaduras ou armas, com cada pessoa equipada de acordo com seu estilo pessoal. Do outro, todos estavam vestidos com a mesma armadura prateada, gravada com o emblema Millis. Os cavaleiros tinham apenas dez pessoas. O bando mercenário os superava em dois para um.

Apesar disso, os Cavaleiros Missionários não mostraram nenhuma intenção de recuar. Achei que parte disso era sua confiança inabalável em sua própria força. Além disso, eles tinham fé absoluta na justiça de sua causa.

— Ah é?! Então deixe-me explicar para você de uma maneira diferente: Eu não esfaqueio meus amigos pelas costas.

Ao lado dos mercenários estava um homem que parecia um bandido de rua comum que havia entrado na idade adulta sem nenhuma mudança no estilo de vida. Ele tinha olhos afiados e estreitos e um rosto familiar. Parecia mais velho do que eu lembrava. Ele até deixou crescer um bigode também.

— Senhor Soldat! — gritei quando percebi.

Sim, esse era definitivamente Soldat Heckler. É difícil acreditar que, depois de encontrar Sara, encontraria outro rosto familiar. Eu devia muito a ele. Quando meu problema de disfunção erétil surgiu pela primeira vez, ele fez muito para cuidar de mim. Com certeza trouxe de volta memórias ver ele e Sara.

— Hmm? — Soldat resmungou para mim, estreitando os olhos. — Quem é… ei, espere. Eu reconheço esse rosto.

— Já faz um tempo… — Eu disse.

— Sim, mas estou ocupado, garoto. Guarde para mais tarde. — Com isso, ele voltou sua atenção para os Cavaleiros Missionários.

Não satisfeito com a expulsão, eu o pressionei:

— Ah, explique o que está acontecendo?

— Hum? Esses caras apareceram de repente do nada, exigindo que entregássemos um dos nossos. Mesmo que não tenhamos feito nada!

Eu acenei com a cabeça pensativa.

— Então é isso. Se você não fez nada, qual é o problema de entregá-lo? Os Cavaleiros Missionários não vão ameaçar ninguém sem um bom motivo.

— Você é um idiota. Claro que vão. Esses são os Cavaleiros Missionários de Millis e querem que entreguemos um demônio. Mesmo que eles não o matem, eu não deixaria passar tirarem um ou dois de seus olhos.

Ah, então é isso que está acontecendo. Esses Cavaleiros Missionários estavam aqui sob minhas ordens na época, e o outro lado estava se recusando a cumprir suas exigências. Soldat meio que tinha razão. Se um grupo de demônios expulsionistas arrastasse seu camarada, talvez ele não voltasse inteiro.

Talvez eu tenha sido muito precipitado. Nem tinha me ocorrido, ou talvez tivesse passado pela minha cabeça, mas achei que realmente não me importaria se fizessem isso com Geese.

No entanto, nunca imaginei que seria um dos companheiros de Soldat. Hmm… acho que se Soldat e Geese estiverem em conluio, eu também terei que enfrentá-lo. Não gostei dessa ideia.

— Quem é o demônio que eles estão tentando pegar? — perguntei.

— Aquele ali. — Soldat fez um gesto sacudindo o queixo. Eu olhei, e havia um demônio lá com face de macaco.

— O que diabos você quer? — O homem em questão rosnou para mim.

Não, não é ele. Seus rostos são parecidos, mas esse cara é muito mais musculoso do que Geese. Era mais um guerreiro do que um espadachim. Ele se parecia muito mais com Goliade do que com Geese.

Dada a situação tensa, pude ver um pouco de medo nos olhos do homem. Ele sabia que estavam enfrentando os Cavaleiros Missionários, mas se manteve firme com uma arma na mão, pronto para lutar. Ele era exatamente o oposto de Geese em todos os sentidos; Geese era magro e despretensioso, do tipo que foge ao primeiro sinal de perigo. Esse cara era um gorila. Geese era mais um chimpanzé.

Talvez eles sejam da mesma tribo?! Porém, tenho certeza de que Geese é supostamente o único membro sobrevivente da tribo Nuka.

— Você! — Eu disse. — Qual é o seu nome e tribo?

— Sou Glanze, da tribo Rokka! E não tenho medo só porque vocês são os Cavaleiros Missionários!

Cara, não se engane. Você está com tanto medo que seus joelhos estão batendo juntos. Não importa, vai ficar tudo bem. Vamos esclarecer tudo isso em um segundo.

— E você não tem nenhuma afiliação com Geese da tribo Nuka?

Glanze fez uma careta.

— Geese? Bem, sim, acho que eu costumava estar em um grupo com o cara, mas… espere. Não me diga que ele começou a fazer merda de novo?! Estou farto disso! Só porque nós dois somos parecidos, por que eu tenho que ser confundido com ele o tempo todo? A tribo Rokka nem é uma tribo demoníaca! É uma tribo do povo fera!

Bem, de qualquer forma, ele não era Geese. Na verdade, era outra vítima de seus truques. Encontrar Geese aqui teria sido muito fácil.

— Tudo bem, eu entendo. Permita-me falar com eles — disse.

— Falar com eles? — Soldat fez uma careta. — Eles não são do tipo que escuta… hein?!

Eu me afastei dele e fui em direção aos Cavaleiros Missionários, examinando seus rostos. Qual deles era o cavaleiro que eu havia encontrado antes durante nossa viagem? Era impossível dizer, pois todos usavam capacetes com viseiras desenhadas.

— Perdoe-me, mas com qual de vocês eu me encontrei recentemente?

— Este seria eu — respondeu um deles. — Perdão, mas você conhece esse homem?

Eu acenei com a cabeça.

— Coincidentemente, sim, eu conheço. E se eu puder acrescentar, o demônio que eles têm com eles não é o que estou procurando.

— Não é? — O homem parecia confuso, como se não conseguisse compreender como isso poderia ser possível. Ele era um demônio, certo?

Demônio ou fera, qualquer que seja o homem, ele não é Geese.

— Ele afirma não ser um demônio, mas um membro do povo fera de qualquer maneira. Independentemente do mal-entendido, agradeço sua ajuda nesse assunto — conclui.

Aí. Problema resolvido! Satisfeito, apertei o punho no peito e abaixei a cabeça até o homem. Ele e o resto dos Cavaleiros Missionários fizeram o mesmo antes de partirem.

— Parece que você ficou mais carismático desde a última vez que te vi — comentou Soldat, parecendo um pouco exasperado depois de tudo isso.

“Carismático”? Tudo o que eu fiz foi limpar a bagunça em que eu mesmo os coloquei. Não importa, confirmamos minhas suspeitas: o homem visto em Hammerpolka não era Geese.

 

 

Soldat era o líder de um grupo de aventureiros chamado Líder Escalonado, que operava sob o clã Trovão. O clã Trovão passou a ser um dos maiores clãs de aventureiros do mundo inteiro. Recentemente, ordenou que todos os seus membros se reunissem aqui em Hammerpolka.

Qualquer um se perguntaria por que um clã enorme como Trovão estava se reunindo aqui. Antes de entrar nisso, no entanto, devemos primeiro considerar por que clãs tão enormes são formados em primeiro lugar. Na verdade, era muito simples: as empresas mercenárias eram um dos poucos empreendimentos comerciais estáveis e seguros do mundo. A maioria dos clãs era formado para fornecer apoio mútuo entre as partes. As solicitações que uma parte não conseguiu concluir sozinha podem ser compartilhadas entre as partes afiliadas. Esse método também apresentava menos perigo para os envolvidos.

A fundação do Trovão começou quando três grupos do Rank S que operavam nas Três Nações Mágicas decidiram se unir para conquistar um labirinto. Esse empreendimento foi um grande sucesso, catapultando seu novo clã para a fama. Eles continuaram trabalhando juntos sem problemas, aumentando seus números até que pudessem começar a limpar vários labirintos ao mesmo tempo.

Eu mesmo já passei por um labirinto ou dois e poderia dizer por experiência própria que, se você quisesse enfrentar um labirinto particularmente difícil, precisaria de um grupo altamente experiente, de rank S, cheio de guerreiros com bom senso, treinados, equipados com as melhores armaduras e armas possíveis e com reforços esperando nos bastidores.

Dito tudo isso, nem sempre era possível estar perfeitamente preparado para esses labirintos. Não havia horas suficientes no dia para que cada aventureiro pudesse continuar sua vida normal enquanto mantinha seu equipamento, planejava sua programação diária e as incursões subsequentes e fazia todos os preparativos elaborados necessários para se aventurar nas masmorras. Uma equipe só poderia razoavelmente esperar entrar em labirintos uma vez a cada dois meses.

Eu digo isso, mas houve aqueles que conseguiram conquistar labirintos com o mínimo: equipamento abaixo da média, um plano aleatório e preparativos desleixados. Se tivessem sorte, poderiam até encontrar alguns itens mágicos que custariam um bom montante quando retornassem. Mais frequentemente, no entanto, o fracasso significava a morte.

Então, uma pergunta: o que um grupo de aventureiros poderia fazer para se manter em condições ideais para explorar esses labirintos difíceis e garantir que chegariam às profundezas? Se você chutou formar um grande clã, bingo! Você está acerto. Muitas mãos aliviam a carga.

Um clã teria um grupo especializado em batalha que se dirigiria aos andares inferiores do labirinto. Usando as informações que trouxeram de volta, outra parte conduziria uma busca mais completa nos níveis superiores, matando todos os monstros que encontrassem em seu caminho. Finalmente, haveria uma parte de apoio encarregada de planejar, organizar as informações, administrar o dinheiro e manter os equipamentos das outras partes. Ao dividir a tarefa em partes menores, essas partes poderiam trabalhar com eficiência semelhante à de uma máquina para limpar um labirinto inteiro. Os clãs possibilitavam toda essa coordenação. Por isso, os aventureiros do Rank S formavam ou se juntavam a esses enormes clãs.

No entanto, deve-se dizer que nem todos os clãs eram sol e rosas. Clãs em grande escala tinham suas desvantagens.

Quanto maior a família de um clã se tornava — à medida que ganhava cada vez mais membros com habilidades especializadas — maiores eram suas despesas. Isso poderia ser custeado pelo lucro de limpar um labirinto, supondo que sempre tivessem sucesso. O dinheiro ganho com a venda de um único cristal mágico encontrado nas partes mais profundas de um labirinto pode, em algumas situações, render o suficiente para comprar uma luxuosa mansão no Reino Asura. Se tivessem muita sorte, poderiam até encontrar alguns itens mágicos ao longo do caminho. Uma boa quantidade poderia alimentar centenas por um ano inteiro.

Porém, não era uma coisa certa. Eles não conseguiam limpar completamente um labirinto todas as vezes. Outros clãs poderiam eliminá-los, ou sua equipe de vanguarda de nível S pode ser massacrada, ou podem ficar sem fundos no meio do caminho. Na verdade, havia vários motivos, mas todos eles resultavam na queda de um clã no vermelho.

Esses eram os problemas que atormentavam qualquer líder de clã. Por mais ansiosos que estivessem para explorar labirintos, eles acabavam ficando sem fundos e, sem financiamento, não conseguiam enviar seu pessoal. Todo o propósito de um clã era fornecer um ambiente estável para ganhar dinheiro, mas eles próprios acabavam enfrentando problemas financeiros. É um problema irônico, na verdade, mas isso é a vida. Nada nunca sai de acordo com o plano.

Então, como um clã em grande escala resolve esse problema de fluxo de caixa? O método mais confiável era fazer com que cada parte sob seu comando atendesse às solicitações e extraísse uma certa porcentagem dos ganhos para os cofres do clã. Como alternativa, eles poderiam atender a outras solicitações que exigissem vários grupos para concluir. Matando Wyrms desgarradas, por exemplo.

Havia uma opção final para esses clãs em grande escala: solicitações exclusivas de governos nacionais ou grandes comerciantes. Os barcos mercantes que se aventuraram entre o Continente Demônio e o Continente Millis eram um ótimo exemplo. Eles sempre tinham guarda-costas a bordo, aventureiros que haviam assinado contratos exclusivos com os estaleiros. Um clã em grande escala havia assumido todas essas posições em Porto Oeste e Porto Leste. O clã efetuava um rodízio entre os membros, ganhando dinheiro para si mesmos por meio do trabalho de guarda-costas entre as missões em labirintos.

Vamos considerar especificamente o Trovão e sua situação financeira. Eram um dos principais clãs dos Territórios do Norte, com contratos vinculando-os a grandes empresas em cada uma das Três Nações e também à Guilda dos Magos. Eles tinham muitas conexões, mas isso implicava muitas obrigações para com pessoas que nem sempre se davam bem. Muitos relacionamentos para gerenciar. E esse era seu próprio desafio.

Como lidavam com isso? Em resumo: sempre que um clã recuperava um item mágico de um labirinto, precisavam decidir se o venderia para a Guilda dos Magos ou para um de seus contatos comerciais. Para evitar atritos desnecessários, eles limitavam a quantidade de clientes ricos com quem tinham contrato e em quais territórios realizavam explorações de labirinto. Mesmo assim, seus membros continuaram a crescer até terem mais de cinquenta grupos e quinhentos membros do clã.

O líder precisava tentar evitar a falência e, ao mesmo tempo, garantir que cada um de seus membros fosse sustentado. Uma avaliação externa fria pode sugerir que eles se dissolvam completamente ou reduzam as operações. No entanto, era preciso coragem para abandonar um exército desse tamanho depois de assumir o controle dele.

O líder do clã estava angustiado com o que fazer. Tentou de tudo. Nada fornecia uma solução duradoura, então foi forçado a fazer uma escolha. Havia apenas um trabalho que lhe permitiria alimentar todos os quinhentos de seus membros e manter aberta a possibilidade de uma futura exploração do labirinto: negócios mercenários. Não foi uma escolha inovadora. Matar pessoas estava fora do alcance da maioria dos aventureiros, mas a aventura ensinou a muitos deles as habilidades, a experiência e o julgamento necessários para serem mortais em uma luta. Foi isso que levou Trovão a se fundir em um cruzamento entre um clã aventureiro e um clã mercenário sem se especializar em um ou outro.

Alguns membros do clã retiraram sua filiação, não querendo deixar os Territórios do Norte que chamavam de lar para se aventurar na Zona de Conflito. Os grupos mais fieis ao Trovão, no entanto, seguiram seu líder a cada passo do caminho. O Líder Escalonado de Soldat não foi exceção. Do jeito que ele explicou, seus dias consistiam em exploração de labirintos e batalhas.

— Realmente não é tão ruim — disse ele. — Há uma necessidade infinita de mercenários aqui, e temos todo o financiamento de que precisamos. Nos últimos dois anos, limpamos cinco labirintos inteiros.

Eu segui Soldat de volta à sala do clã Trovão, onde ele me contou todos os detalhes, nos recebendo como se fôssemos membros. Ele falou tão desapaixonadamente como sempre, como se seu trabalho fosse uma lembrança distante, sua voz de alguma forma simultaneamente entediante e curta.

Soldat continuou:

— Mas há alguns caras aqui que realmente não conseguem aguentar. Derrubar bandidos que atacam você nas rodovias e matar pessoas para viver são duas coisas diferentes, sabe?! Muitos deles planejam conseguir o dinheiro que puderem explorando labirintos, depois se aposentar e voltar para casa.

Ninguém do Líder Escalonado de que me lembrava no tempo que passei com eles permaneceu. Eles se aposentaram ou morreram. Considerando tudo o que fizeram por mim, senti um pouco de tristeza.

— E você, Sr. Soldat? Você não vai se aposentar? — perguntei.

Sua boca caiu até a metade.

— Hã…? — Então ele bufou de tanto rir. — Já pensei nisso, mas… a oportunidade já passou. Ou vou morrer fazendo o que estou fazendo, ou perderei um braço e me verei incapaz de fazer o trabalho por mais tempo e cairei em uma vala em algum lugar. Isso é tudo o que o destino reserva para mim.

Ele parecia desdenhoso, como se não se importasse com o que aconteceu, mas ele disse o mesmo tipo de coisa quando falei com ele.

Eu acariciei meu queixo.

— Sério? A verdade é que você se sente obrigado a cuidar dos novatos. Estou errado?

— Ah? Olha só você, acertando na mosca desse jeito. Quando você era apenas um pirralho, você nunca teria notado esse tipo de coisa, mas acho que você se casou, né? Ficou um pouco mais confiante desde que resolveu seu problema lá embaixo e fez uma criança ou duas, hein? É isso? — Soldat exigiu enquanto brincava com o braço em volta do meu pescoço e enfiava o punho no meu couro cabeludo.

— Ah,ai!

Cara, isso me lembra o passado.

— Então, o que o traz a este fim de mundo na floresta? Este não é um lugar para um homem casado.

— Sim, bem, será uma longa história se você quiser os detalhes completos, mas… — Eu dei a ele um rápido resumo dos eventos que me trouxeram até aqui. — E aqui estou eu, esperando trazer o Deus do Norte, Kalman Terceiro, para o grupo. Tudo parte de um plano maior.

— Huh, então você é o subalterno do Deus Dragão Orsted agora. Bem, você sempre esteve um pouco acima do resto. Acho que isso não é muito surpreendente. — Soldat pareceu um pouco surpreso com esse desenvolvimento, mas, ao mesmo tempo, não duvidou de mim. — Se você está procurando o Deus do Norte Kalman, definitivamente havia um cara que se encaixava aqui há alguns anos.

— Ah, sério? E para onde ele foi?

Soldat deu de ombros.

— Seu palpite é tão bom quanto o meu. Não sei mais do que isso.

Sim, imaginei que ele diria isso.

— Já me encontrei com ele várias vezes. Um cara estranho. Ele tinha idade, mas com certeza tinha muita energia. Estava tentando ensinar esgrima aos nossos membros mais jovens.

— É mesmo?

— Ele também era muito preciso nisso. Você poderia dizer que era o Estilo Deus do Norte que ele estava usando, mas mesmo sem uma espada na mão, ainda era ridiculamente forte. Achei que era alguém um pouco importante. Faz sentido se ele fosse o Deus do Norte.

Hum? Espere um segundo. O Deus do Norte, Kalman Terceiro, não deveria ter uma sede insaciável de reconhecimento? Ele também deveria estar de posse de uma incrível espada grande que recebeu de seu pai. Se ele estava escondendo seu nome, selando sua espada e passando tempo ensinando artes marciais para jovens… Aquele tinha que ser Kalman, o Segundo e não Kalman Terceiro, certo? O que está acontecendo…?

Refletindo, pode não ser tão louco, afinal de contas. Sem querer me aprofundar na teoria do caos nem nada, mas muitas das minhas ações no mundo tiveram um efeito cascata, mudando o que várias outras pessoas deveriam ter feito durante esse ciclo. Não era estranho pensar que o Deus do Norte, Kalman, o Segundo, havia chegado aqui, onde seu filho deveria estar originalmente. De acordo com Orsted, pai e filho tiveram destinos muito parecidos.

— Entendo — respondi pensativamente. — Obrigado pela informação.

Mais uma vez, tivemos azar. A mesma má sorte de quando fomos conhecer o Deus da Espada. Isso estava se tornando uma tendência. Claro, pode-se argumentar que as coisas haviam corrido um pouco bem demais até aquele momento, mas não pude deixar de sentir um pouco de pânico depois de não conseguir cumprir meu objetivo duas vezes seguidas. Duvidei que os preparativos de Geese estivessem enfrentando esse tipo de dificuldade.

— Bem, como parece que estamos sem sorte, vou para casa — anunciei.

Soldat balançou a cabeça.

— Ida e volta instantânea, hein? Que tal você ficar por aqui e se acalmar? Gostaríamos de recebê-lo aqui.

— Infelizmente, sou um homem ocupado.

— Faz sentido, com você sendo um subalterno do Deus Dragão. Você está muito distinto agora, não é? Vou contar com você quando me aposentar de todo o negócio de aventuras.

— Ah, nesse caso, na verdade eu tenho uma organização inteira sob meu comando: Bando Mercenário Ruato. Estamos mais voltados para cumprir tarefas diversas para as pessoas do que para o trabalho mercenário real. Você seria mais do que bem-vindo para se juntar a nós. Na verdade, você deveria voltar conosco agora mesmo. Não precisa esperar até a aposentadoria!

Talvez não tenha sido a melhor ideia convidá-lo sem consultar Aisha primeiro, mas certamente poderíamos resolver algo. Mesmo que Aisha o rejeitasse, eu poderia empregá-lo em outro lugar. Ele poderia se juntar à Corporação Orsted. Nossa empresa estava de olho no futuro e gostaríamos de receber sangue novo em nossas fileiras. Soldat era forte e tinha o hábito de cuidar dos outros. Poderíamos ter mais pessoas como ele.

Infelizmente, ele não estava pronto para isso.

— Sei que fui eu quem tocou no assunto, mas vou ter que recusar. Posso não parecer o cara mais respeitável, mas tenho homens que me admiram.

Eu quase esperava que ele dissesse algo assim. Era o mesmo cara que estava na linha de fogo para defender um de seus camaradas hoje cedo, embora os próprios temíveis Cavaleiros Missionários estivessem armados até os dentes. Ele já tinha um lugar ao qual pertencia. Algo que achava valer a pena proteger.

— Vou depender de você para cumprir sua palavra se eu for expulso daqui. Quando isso acontecer, provavelmente vou ter perdido um braço. Então posso ser totalmente inútil para você.

Eu sorri.

— Ei, e o que tem se você for? Não me importo, estarei esperando por você.

— Keh. — Soldat deu uma risada desinteressada, como se realmente não acreditasse que eu estava falando sério. Apesar de toda aquela bravata, porém, eu podia sentir que minhas palavras significaram algo para ele.

Essa dinâmica trouxe de volta memórias e, com elas, alegria.

— Bem, de qualquer forma, você com certeza me surpreendeu, estando crescido agora, quando antes era apenas um pirralho sem noção. Lembro-me de como você se afogou em tanta bebida naquela época que pensei que se mataria. Seu rosto também estava cheio de lágrimas e ranho quando te levei para aquele bordel.

Uh-oh. Eu gostaria que você não mencionasse isso.

— Como é? — Eris exigiu.

Está vendo? Eu sabia que ela não deixaria isso passar.

— Oh, hora da história, não é?

— Hmm, Sr. Soldat, talvez devêssemos parar com isso e…

— Claro, por que não? Não é como se você estivesse incomodado com o que aconteceu há tantos anos, certo? Toda essa saga é um grande sucesso com os outros caras do bando mercenário — disse Soldat.

A história do meu fracasso total é um grande sucesso, hein?

As sobrancelhas de Eris se franziram, sua carranca se aprofundou.

— Que saga?

— Sobre esse cara aqui. Não sei como o chamam agora, mas quando ele era um aventureiro, ele se apresentou como Rudeus, o Atoleiro. Ele sorria para todo mundo, agindo formalmente e sendo super educado. Tudo isso apesar de ser um aventureiro de primeira linha. Também não é exagero. Ele derrotou um Wyrm Vermelho errante sozinho.

Er, eu não me dei esse nome. Ou me apresentei dessa forma. Nem derrotei aquela desgarrada sozinho. Mas… acho que esse tipo de história fica melhor com um pequeno floreio.

— Quando ele ainda estava debatendo como se chamar, nosso Atoleiro aqui ainda não passava de uma pequena pocinha, pode esquecer esse lado galanteador, ele mal falava com ninguém. Nunca estava sorrindo também, quase como se tivesse perdido a habilidade de formar um enquanto ainda estava no ventre de sua mãe. Não, o que usava era um ridículo sorriso vazio no rosto, quase como se fosse uma máscara barata que encontrou nos mercados e colocou à força. A coisa mais louca era que você ainda podia ver isso nos olhos dele: ele estava menosprezando todos ao seu redor, quase como se pensasse que era o cara mais infeliz do mundo inteiro, e nenhum de nós jamais entenderia.

Eu mantive minha boca fechada enquanto ele divagava.

— Era um pirralho deprimente. Eu não gostei dele. — Soldat parou por um momento, como se de repente tivesse se lembrado da hostilidade que havia me mostrado naquela época. Ele olhou para mim brevemente, deu uma pequena risada e depois se virou para Eris. — De qualquer forma, esse é o tipo de criança que ele era. Então, um dia, ele apareceu no bar que eu e o resto do Líder Escalonado frequentávamos. Começou a beber quase como se fosse um adulto de pleno direito. Aquilo realmente me irritou. Não consigo explicar exatamente o que me enfureceu tanto, simplesmente não gostei dele. Então me aproximei, pensando em provocá-lo um pouco. O garoto não deve ter a coragem de me enfrentar.

Eu lancei um olhar preocupado para Eris. Ela estava ouvindo silenciosamente, mas havia um brilho perigoso em seus olhos. Não era como se eu esperasse que ela de repente sacasse sua espada e derrubasse o homem ou algo assim, mas não a deixaria dar um soco em Soldat.

— Do nada, o garoto me deu um soco na cara. Ele estava bêbado, claro, mas além disso, estamos falando de um mago batendo em um espadachim, mas eu não o ataquei de volta, porque o Atoleiro aqui estava chorando como um bebê. Como um cara respeitado e íntegro como eu poderia levantar minhas mãos contra um pirralho que estava chorando e dando um soco selvagem? De jeito nenhum.

— Certo — disse Eris, com a voz baixa.

Oh, ela está com raiva, não está? Eu com certeza gostaria que Soldat saísse por cima e parasse por aí.

Por outro lado, essa história não era inteiramente para zombar de mim; no final, Soldat estava me olhando nos olhos. É por isso que eu esperava poder acompanhar a história de Soldat com um pequeno esclarecimento sobre sua intenção de acalmá-la. Supondo, é claro, que ela não o tenha espancado no meio do caminho, o que poderia acontecer.

— Quando perguntei a ele do que se tratava, ele me disse que era sobre a garota com quem ele estava ficando íntimo. Quando os dois estavam prestes a fazer a ação juntos, ele descobriu que não conseguia levantar… a garota anterior o abandonou e o deixou traumatizado. Muito triste, não é? Lá estava o cara que matou um desgarrado sozinho e não conseguia performar no quarto.

Eris não disse nada sobre isso, e eu também não.

— Ainda assim, sou um grande cara. Eu queria fazer algo pelo Atoleiro para ajudá-lo a se recuperar. Ah, mas só para esclarecer, não estou dizendo que toquei nele, ok? Não gosto de outros caras… Ei, isso é uma piada. Você não deveria rir dessa parte.

— Ahaha! Não se preocupe Você também não é meu tipo. — Eu forcei uma risada e respondi a ele em nome de Eris. Enquanto isso, a atmosfera em torno da própria Eris havia se tornado tensa e opressiva. Imaginei que podia ouvir estalidos estáticos no ar.

— Seguindo em frente, então. Decidi consertá-lo e nós dois saímos para visitar um bordel. Olhe, achei que esse tipo de coisa era melhor deixar para as profissionais. Eu o coloquei em um bordel de alta qualidade e me retirei para um bar, esperando a boa notícia. Não tenho ideia do que ele fez no bordel, ou melhor, do que tentou fazer. O que quer que tenha acontecido, não funcionou. Ele era um homem quebrado que nunca mais conseguiria se levantar. Ou pelo menos, partes dele não.

Ah, outra piada. Você deveria rir aqui, Srta. Eris. Vá lá, dê-nos um sorriso. Chega desse brilho assassino.

— Se nem mesmo as profissionais conseguiram consertá-lo, eu sabia que não havia nada que eu pudesse fazer. Passamos a noite bebendo mais cerveja. Espere, ainda nem chegamos à melhor parte. Veja, quando estávamos voltando, ele estava apalpando uma das senhoras do bordel, dizendo: “Uma dama com um pouco de elasticidade nos seios é muito melhor do que uma garota de peito achatado”. Por acaso, porém, aquela garota do grupo dele estava bem perto. Sim, a mesma pessoa com quem ele tentou e falhou em ter intimidades.

Sim, eu me lembro muito bem desse episódio, mas não é a parte de eu tatear os seios de alguém. Havíamos saído do bordel e já estávamos voltando naquele momento.

— Smack! — Soldat verbalizou, imitando o gesto de forma cômica. — “Nunca mais me mostre seu rosto!” — Na verdade, foi muito divertido vê-lo contar isso. Percebi que ele tinha praticado bastante.

— Aí está. Tendo sido completamente rejeitado, Atoleiro resolveu se dedicar à vida única de aventureiro.

Quando Soldat terminou sua história, risadas ecoaram pela sala dos outros membros que haviam escutado sua história. Eu mesmo quase ri, deixado levar pelo ímpeto deles.

Mas acho que seria mais correto chamar de nostálgico do que divertido. Muita coisa aconteceu depois de tudo isso. Depois de me separar de Sara, fui para a Universidade de Magia, conheci Sylphie (que resolveu meu problema lá embaixo), me reuni com Roxy e perdi Paul naquele labirinto. Eu tinha quatro filhos agora. Apenas alguns anos haviam se passado e muita coisa havia mudado.

— Isso realmente traz memórias… — Eu disse.

— Claro que sim. Eu ainda era jovem naquela época. Não tinha uma boa razão para me meter no seu negócio, mas entrei — respondeu Soldat.

Eu dei uma olhada nele.

— Parece-me que você não é muito diferente agora. A menos que eu esteja enganado.

— Haha! Você tem coragem, idiota! — Mais uma vez, ele colocou o braço em volta do meu pescoço, moendo o punho no meu couro cabeludo. Não demorou muito para que ele voltasse a si e olhasse na direção de Eris. — Pensando bem, acho que isso não é realmente um conto para essa beleza ruiva que você tem com você. Quem exatamente é ela? Tenho certeza de que você tinha algo contra ruivas no passado.

— Ah, uh…

Isso mesmo. É melhor explicar tudo isso também.

— Eu não tenho nada contra elas, nem as odeio, nem nada. Acabei tendo um pequeno trauma. Isso é tudo.

Soldat balançou a cabeça.

— Esse é apenas um termo chique para odiar alguma coisa.

Sério? Ao contemplar essa sabedoria questionável, olhei para Eris. Ela estava com os braços cruzados sobre o peito, as pernas abertas embaixo dela em sua postura habitual. Era quase imperceptível, mas percebi pela expressão em seu rosto que ela estava nervosa. Ela devia saber que eu não tinha nada contra ruivas. Deixava claro todos os dias o quanto eu… não. Era melhor não presumir e afirmar isso abertamente.

— Eu não odeio cabelos ruivos — afirmei a ela.

— Eu sei disso!

Soldat assobiou.

— Ah, se exibindo na minha frente, hein? Então, essa beleza aqui é sua mulher?

— Sim, o nome dela é Eris — expliquei. — Eris, como tenho certeza que você já pode contar pela história dele, este é o Sr. Soldat, que cuidou de mim quando eu estava em uma situação difícil.

Ela manteve os braços cruzados enquanto olhava para ele.

— Eris — disse ela, como forma de saudação.

— Ah, sim… e eu sou Soldat, como você sabe… Espere um segundo. Eris? Não é esse o nome da mulher que o colocou naquela situação toda? — Soldat estreitou os olhos.

— Ah, uh, deixe-me explicar. — Assim como fiz com Sara há pouco tempo, dei a ele uma pequena versão de tudo o que havia acontecido. Era muito mais fácil falar com Soldat sobre tudo isso do que com Sara, para ser honesto.

— Hmmm. Bem, desde que você esteja bem com isso, eu acho. — Estranhamente, a reação de Soldat a tudo isso foi muito menos receptiva do que a de Sara. Ele puxou um rosto, encarando Eris. — O Atoleiro aqui estava muito mal naquela época, sabe? Estamos falando mal como um suicídio a menos de um centímetro. Sabendo de tudo isso, você ainda teve a audácia de ficar com ele de novo, hein?

 

 

 

O cabelo de Eris quase parecia arrepiar, como se estivesse crepitando de raiva. Eu saí da minha cadeira e tentei ir até ela para forçá-la a voltar. Até abri minha boca, na esperança de acalmá-la com algumas palavras calmantes: dizer a ela que Soldat não quis ofender ninguém, então não havia motivo para ficar zangado com ele.

Antes que pudesse fazer qualquer coisa, Eris deu uma volta e saiu correndo da sala.

— Whelp. Parece que falei demais, hein? — Soldat colocou a mão na testa, empurrando o cabelo para trás. Ele olhou para mim. — Você não contou a ela sobre nada disso?

— Hã?

— Quero dizer, você não disse a ela o quanto você estava mal naquela época?

— Achei que tinha — murmurei, sem me sentir muito confiante agora.

Pensando bem, não tivemos a chance de conversar com ninguém que me conhecesse naquela época. Soldat era o único que sabia até que ponto as coisas estavam ruins. Sylphie certamente contou a Eris a essência disso. Eu também contei um pouco a ela, mas essa foi a primeira vez que ela ouviu a história completa de alguém que realmente estava comigo na época.

Do ponto de vista de Eris, isso provavelmente serviu como um lembrete do terrível erro que ela cometeu. Isso realmente não me incomodava mais. Pensava nisso como um pequeno pedaço de miséria que havia sido destruído pela minha felicidade atual. Estava livre como um pássaro hoje, fazendo o que queria.

— Bem, se você me der licença, eu vou confortá-la — disse.

— Certo. Até mais, Atoleiro! E não se esqueça de me oferecer trabalho mesmo que eu perca um braço!

— Não vou — prometi com um aceno de cabeça. — Só não perca sua vida junto com ele.

— Nem fodendo eu faria isso. Você não sabe com quem está falando?

Esperava que mantivéssemos o mesmo relacionamento sempre que nos víssemos novamente. Com esse desejo em mente, fui até a porta. Foi quando coloquei minha mão na alça que Soldat gritou novamente.

— Ei, isso mesmo. Eu não sei para onde aquele tal de Kalman foi, mas há um lugar que fui há alguns anos atrás a trabalho que você deveria conhecer.

As informações que ele transmitiu não tinham nada a ver com minha busca por Geese ou com meus planos de derrubar o Deus-Homem. No entanto, era extremamente pertinente para Eris e para mim.

 

 

Conhecer meus velhos amigos Soldat e Sara foi pura coincidência. Pensando bem, já se passaram dez anos desde que Eris me deixou para trás na região de Fittoa. Não havia como saber aonde a vida me levaria naquela época. Eu tinha sido muito egocêntrico para sequer contemplar isso. Mesmo se tivesse, nunca poderia ter previsto voltar aqui com Eris em busca do Deus do Norte. Eu tinha uma casa, esposas e filhos para onde voltar, não teria previsto isso nem em meus sonhos mais loucos.

Não era como se minha vida fosse pura perfeição. Eu tinha um inimigo, o Deus-Homem. Descobri que Geese também estava contra mim. Geese tinha sido meu amigo, um subordinado – pelo menos durante meu tempo na prisão – e um salvador.

E agora, Eris estava abalada. Quando a encontrei, estava na periferia da cidade, na suave encosta de uma colina, depois de se jogar no chão. Seus olhos fixos no céu acima. Eu me perguntei o que estava passando pela cabeça dela e me lembrei de nosso tempo em Roa. Ela costumava se deitar em uma pilha de feno atrás dos estábulos e olhar para o céu assim sempre que as coisas não saíam do jeito que ela queria.

Eu me esgueirei ao lado dela e me sentei. Assim que o fiz, ela estendeu a mão e agarrou a minha.

— Eu fiz algo terrível com você — disse ela.

— Eu não iria tão longe.

— Nunca soube que você tentou se matar antes.

— Bem… eu estava realmente chateado e não estava em sã consciência.

Seus olhos se voltaram para mim.

— Sylphie sabe?

Eu dei de ombros.

— Eu duvido disso.

Toda essa coisa de suicídio foi impulsiva, e Soldat imediatamente acabou com aquilo. Nunca mais pensei nisso depois. Eu realmente não achei que valesse a pena mencionar.

A questão mais importante agora era como consolar Eris. Não tive a sensação de que ela ficaria satisfeita se eu simplesmente dissesse que o que aconteceu entre nós naquela época não me incomodava mais. Foi um pouco leve devido ao peso do assunto.

— O quê? — Eris exigiu taciturnamente.

— Nada, eu acho. Estava pensando que nunca teria conhecido Soldat ou Sara se as coisas não tivessem acontecido da maneira que aconteceram entre nós quando estávamos em Fittoa.

— Sim, bem. Desculpe.

— Não é como se eu estivesse procurando um pedido de desculpas — respondi a ela. — Sara e Soldat eram boas pessoas, não eram? O que estou tentando dizer é que, desde que conheci pessoas como eles, nem tudo foi ruim.

Eris apertou minha mão com força.

Ela mudou muito. Eris não teria sido tão transparente no passado, me deixando ver sua fraqueza assim. É verdade que eu era a principal razão pela qual ela se sentia tão vulnerável no momento.

— Como você sabe, Eris, estou indo muito bem agora. Nós tivemos um filho. O que está no passado está no passado. — Eu massageei sua mão, esperando que isso a tranquilizasse.

— Eu acho que sim. — De repente, ela me puxou em sua direção. Quando percebi, Eris se levantou e me agarrou pelo ombro, colocando seus lábios firmemente contra os meus.

Oh, meu Deus, o que é isso? Sei que sou todo seu, mas… meu bom senhor, estamos ao ar livre e o sol ainda está alto no céu. No entanto, você me beijaria sem avisar? Nesse ritmo, eu passaria de Rudeus, o Abstinente, para Rudeus, o Amoroso.

— Nunca vou desaparecer sem dizer nada. Nunca mais — jurou Eris.

— Certo.

— Sylphie também estava com raiva de mim.

— É verdade.

Vou ficar ao seu lado para sempre, meu lindo príncipe! Não, espere. Não era hora de ser uma donzela apaixonada.

— Eu também serei mais cuidadoso no futuro. — Eu afirmei.

— Está bem.

— Agora, então, que tal irmos embora? Desta vez, voltaremos de mãos vazias, mas na próxima, encontraremos o Deus do Norte Kalman, com certeza. — Eu parei, de repente percebendo algo. Haviam vários homens nos observando de longe. Eles pareciam ser mercenários, a julgar por seus rostos ásperos, e seus olhares estavam inteiramente voltados para Eris. Não senti nenhuma inimizade por parte deles. Nem senti que estavam aqui para desafiá-la, tendo descoberto que ela era uma Rei da Espada. Talvez estejam aqui para pedir que ela treine com eles, como no Santuário da Espada?

— Vocês precisam de alguma coisa? — perguntei, um pouco preocupado que pudessem estar aqui para nos punir por demonstrações tão abertas de afeto em um lugar público.

— Ah, uh, não é como se estivéssemos aqui para começar uma briga nem nada.

Eu também não pretendia isso. Não há necessidade de toda essa gagueira, pessoal. Por outro lado, talvez eu os tenha assustado ao chamá-los de repente.

— Há uma lenda transmitida sobre o espírito divino que nós, Markiens, adoramos…

Eu inclinei minha cabeça.

— Ah é?! Pode me explicar a qual divindade você está se referindo?

— A Deusa da Floresta, Laine. Um espírito divino de guerra com o corpo de uma besta.

Laine? Esse nome parecia familiar. A descrição de uma mulher com um corpo de besta me fez pensar se essa não era uma religião bestial. Não fazia muito sentido que os Markien tivessem desenvolvido uma fé em um deus do povo fera, mas ainda assim.

Espere, falando em bestiais… Laine se parece muito com Ghislaine. É certo que Ghislaine estava muito longe da palavra deusa quanto humanamente possível, mas havia um costume neste mundo de as pessoas batizarem seus filhos com nomes de deuses ou figuras estimadas. Essa poderia ter sido a inspiração para o nome de Ghislaine. Pelo que sabia, colocar nomes de animais sagrados antigos de várias gerações atrás em seus filhos era um costume comum entre o povo fera.

— Diz-se que a Deusa da Floresta Laine estava em busca de uma garota com cabelos ruivos. Que se você a informasse da localização dessa garota, ela lhe concederia uma bênção de vitória e boa sorte.

— É isso que está acontecendo?

Agora fazia sentido por que tantas pessoas olhavam furtivamente para Eris na cidade. Não me surpreenderia se houvesse mais lendas sobre mulheres ruivas, como nunca mais ter que passar fome ou ir para Valhalla após a morte, coisas assim.

— Essa é a única razão pela qual estávamos olhando — disse o homem em nome do grupo. — Mas desculpe-nos por olhar.

— Ah, não. Está tudo bem.

Os homens saíram imediatamente depois disso.

— Bem, podemos ter ficado de mãos vazias desta vez, mas há um lugar que gostaria de ir antes de voltarmos para casa. Você se importa?

— Não, tudo bem.

Eu acenei com a cabeça.

— Então é isso. Vamos lá. — Peguei a mão dela, me levantei e saímos da cidade.

Demorou algum tempo para encontrar o local exato que estava procurando. Tudo o que eu tinha era o que Soldat me descreveu, e não era como se ele soubesse o local exato. O nome do país havia mudado, assim como suas fronteiras. Planejei continuar procurando por vários dias, pelo menos, mas por pura sorte a encontramos. Ou talvez Ghislaine tenha, em algum momento, descrito a área para mim e essa memória ainda persistisse. Mais importante ainda, acabou ficando muito mais perto do que eu pensava.

Nosso destino estava no meio de uma colina na base de uma árvore. Tábuas de madeira podres foram transformadas em marcadores improvisados espetadas no chão. Uma estava quebrada. Achei que alguém havia arrancado uma peça para usar como lenha, ou talvez ela tenha se desintegrado sob os elementos devido a um artesanato de má qualidade.

Esses marcadores, feitos por mãos desajeitadas, mas determinadas, pretendiam indicar duas sepulturas. O marcador quebrado tinha apenas meio nome: “lda”. O ininterrupto dizia: Philip Boreas Greyrat. Provavelmente era seguro presumir que o quebrado já havia sido: Hilda Boreas Greyrat. As letras em si estavam mal formadas, as linhas criadas por mãos instáveis. Quase ilegível. Ainda assim, conhecia a escritora desses nomes. Conhecendo-a, ela estaria em profunda negação na época, recusando-se a aceitar que os dois haviam partido. Deve ter sido muito difícil. Agora eu podia perceber o quão doloroso e triste deve ter sido. Isso deve ter sido parte do motivo pelo qual ela estava tão grata por ter aprendido a escrever.

— Mamãe e papai morreram aqui, hein — disse Eris após uma longa pausa.

— Sim, Parece que sim.

O desastre de todos esses anos atrás teletransportou Philip e Hilda para cá. Para os residentes da Zona de Conflito, era suspeito encontrar dois nobres asuranos aqui, de todos os lugares. Por que eles vieram? E com qual finalidade? Eles nem tinham permissão para dar suas respostas antes que seus captores concluíssem que eram espiões.

Philip tinha sido um orador suave, eu me lembrei. Calculista, inteligente. Ninguém poderia contestar que ele era um jogador político experiente. Achei que ele devia ter tentado negociar com seus captores. Dada a rapidez de seu teletransporte, no entanto, ele estava fadado a estar em estado de choque. Incapaz de explicar como ou porquê foi transportado para cá, ele não tinha como comprovar sua identidade, nem teria conhecimento do ambiente político deste lugar, como quem estava no comando ou mesmo o nome do país.

Quem poderia ter sobrevivido a uma situação como essa? Com sua amada esposa nas costas, precisando de sua proteção, mas totalmente sem aliados?

Eris e eu poderíamos ter tido o mesmo destino, se não fosse pelo resgate oportuno de Ruijerd e pelo conselho do Deus-Homem de confiar nele. Também houve outros casos como o dele; Lilia e Aisha se viram em uma situação precária. Para muitas pessoas, no momento em que foram deslocadas, suas vidas foram perdidas.

O incidente de deslocamento foi uma calamidade quase incalculável. Eu não tinha considerado a gravidade disso na época, assumindo que essas coisas eram bastante normais aqui neste mundo, mas nada de semelhante havia acontecido desde então. Fiquei impressionado com o desastre sem precedentes que enfrentamos.

— Meu pai deve ter odiado como as coisas aconteceram — comentou Eris.

— Tenho certeza que sim.

— Se ele ainda estivesse vivo e pudesse nos ver agora, me pergunto o que ele pensaria sobre isso. — Ela manteve o olhar fixo no túmulo enquanto falava. Eu fiquei atrás dela, olhando para suas costas.

— Acho que ele ficaria encantado.

Philip tinha sido um homem ambicioso. Ele queria uma união entre Eris e eu para que pudesse usá-la para chegar ao topo da família Boreas. Se o incidente de deslocamento nunca tivesse ocorrido, ele certamente teria me pressionado a fazer exatamente isso. Não importa o quanto eu protestasse contra por minha promessa a Sylphie de frequentar a Universidade de Magia juntos, ele teria inventado uma maneira de me conquistar e arranjado para que Sylphie fosse minha segunda esposa. Ele poderia realmente ter assumido o poder político dessa forma? Nunca saberíamos.

— Acho que sim… — Eris murmurou.

De certa forma, as coisas terminaram mais ou menos do jeito que Philip esperava. A monarca reinante de Asura estava em dívida comigo, minha voz ganhou influência e eu tinha conexões com a nobreza asurana. Eu quase não tinha muita responsabilidade, mas isso não importava. Se Philip estivesse vivo… se simplesmente tivesse sido transportado para outro mundo como eu, apenas para voltar agora, dez anos depois do fato, então ele tentaria usar minha posição atual para se aproximar de Ariel. Conhecendo sua personalidade como eu conhecia, pude imaginá-lo assumindo o cargo de conselheiro dela e manipulando as coisas nos bastidores.

— A mamãe também deve estar satisfeita, certo?

Eu acenei com a cabeça.

— Definitivamente.

Hilda lamentava há muito tempo que seus filhos tivessem sido levados para a casa principal dos Boreas, o suficiente para que ela inicialmente tivesse descontado suas frustrações em mim. Nem preciso dizer que não participei de nada disso. Ela abriu seu coração para mim no final, mas não foi muito tempo depois, antes que pudéssemos realmente ter uma boa conversa, que o Incidente de Deslocamento ocorreu. Nunca mais a vi depois disso. Nunca iria.

Independentemente disso, Eris e eu nos casamos e tivemos um filho juntos, que chamamos de Arus. Ele era neto de Hilda. Puxa, ela teria adorado ele. Eu podia imaginá-la se preocupando com ele constantemente para compensar os filhos que deu à luz, mas não teve permissão para criar.

No entanto, Hilda era uma nobre de coração, então provavelmente teria discriminado os filhos de Sylphie e Roxy. Isso teria causado algumas brigas… Mas não, talvez porque era da nobreza asurana, ela teria sido mais compreensiva do que a maioria sobre meu casamento polígamo. Então, novamente, talvez ela tivesse dito a Eris: “Você pode ser a terceira esposa agora, mas você só precisa envenenar as outras duas para conseguir a posição de primeira esposa!”

Não, seja sensato. Ela não teria dito algo assim. Talvez eu tenha sido um pouco tendencioso com base nos encontros intimidantes que tive com ela.

Eu tinha certeza de que ela ficaria satisfeita com nosso casamento. Era isso que contava.

Por um tempo, o silêncio caiu entre nós. Suspeitava que Eris também estava perdida nas memórias de sua vida em Roa.

Eris estava se movendo sem parar desde que tudo isso começou. Foi uma longa viagem do Continente Demônio de volta à região de Fittoa. De lá, ela foi imediatamente para o Santuário da Espada e se dedicou ao treinamento. Nós dois nos reunimos, tivemos um filho juntos e, enquanto tentávamos criar Arus, ela estava me seguindo aqui, ali e em todos os lugares como minha guarda-costas pessoal. Ela teve algum tempo para respirar e se perder em alguns momentos de nostalgia?

— Ei — retrucou Eris. — O que você está fazendo?

Eu comecei a mexer na terra do túmulo, fazendo com que ela perguntasse em pânico.

— Eu estava pensando em movê-los — expliquei. — Este lugar parece um pouco solitário para eles.

— Ah… você está certo. Eu vou ajudar.

Teria sido uma questão simples usar minha magia de terra para levantar a terra e pegar seus restos mortais, mas optei por fazer isso manualmente com Eris. Esculpimos a terra dura até encontrarmos seus ossos. Lavei-os cuidadosamente antes de embrulhá-los em um pano que trouxe comigo.

— Tudo bem. — Eu disse. — Vamos embora.

— Está bem. — Eris se levantou.

O Reino Asura seria um lugar melhor para seus túmulos, certo? Seria mais fácil visitá-los se os colocássemos em Sharia, mas achei mais apropriado levá-los para casa, para o lugar ao qual estavam mais acostumados. A região de Fittoa ainda estava em desenvolvimento. Nem mesmo um vislumbre de sua antiga glória havia retornado. Achei a capital, Ars, mais apropriada. Sim. O cemitério usado pela casa Boreas provavelmente seria o melhor.

— Rudeus — chamou Eris, interrompendo meus pensamentos.

— Hmm?

— Obrigada por me trazer aqui.

— Sim. — Eu acenei com a cabeça, tocado por sua sincera expressão de gratidão.

Depois disso, Eris e eu paramos no Reino Asura, onde enterramos os ossos de Philip e Hilda. Consultei Luke sobre onde seria melhor colocá-los para descansar, então ele nos guiou até um local apropriado. Como mencionei acima, havia um cemitério onde muitos outros membros dos Boreas foram enterrados, mas as circunstâncias nos forçaram a colocá-los para descansar em um cemitério próximo. Este era um pouco mais isolado, criado pelo rei anterior há cerca de dez anos em segredo. Luke só soube disso muito recentemente.

Um marcador neste cemitério dizia: Aqui repousa o feroz leão.

Ninguém fez qualquer alusão a quem essa frase poderia estar se referindo. Os guardiões do túmulo devem ter jurado sigilo, porque nenhuma pergunta a eles rendia respostas. Eu poderia adivinhar a identidade da pessoa, em parte porque isso explicaria por que Luke decidiu nos trazer até aqui.

Foi lá que colocamos Philip e Hilda para descansar. Eris e eu juntamos nossas mãos respeitosamente na frente de seus novos túmulos e juramos que os visitaríamos novamente.

 

 

Nossa visita ao Santuário da Espada e nossa busca na Zona de Conflito pelo Deus do Norte, Kalman Terceiro, terminaram em fracasso. Foram duas vezes que falhei, sem falar que fizemos um desvio considerável no caminho de volta. Eu meio que esperava ganhar um sermão por isso. Já poderia imaginar isso como um daqueles programas de variedades: Orsted puxando uma corda e o chão cedendo embaixo de mim, me fazendo cair.

Bem, não importa o que aconteça, não poderia ser culpado pela forma como as coisas aconteceram. Nenhum de nós esperava que o Deus da Espada desaparecesse repentinamente, e já levamos em consideração a possibilidade de não conseguirmos localizar o Deus do Norte.

Senti uma sensação crescente de impotência ao perder a oportunidade de conhecer duas pessoas que poderiam ter fornecido um poder de fogo considerável para o nosso lado. Todavia, quanto mais nos afastávamos dos loops que Orsted conhecia, mais encontrávamos o inesperado.

Planejei ser sincero com Orsted sobre desviar meu caminho para visitar os túmulos de Philip e Hilda. Isso levou muito mais tempo do que minha busca pelo Deus do Norte Kalman, apesar de este ser o propósito original de nossa viagem.

— Eu voltei, Sir Orsted — anunciei. — Infelizmente, o Deus da Espada e o Deus do Norte foram…

— Hmph. — Ele levantou a cabeça, com uma expressão tão intimidadora que me interrompeu. Eu podia ver a raiva em seu rosto.

Eu sabia. Ele está chateado comigo por ter feito esse desvio. Espere, não. Não era raiva. Seu rosto era exatamente assim normalmente.

Mesmo que não estivesse com raiva, eu estava curioso sobre o que ele estava estudando antes de eu entrar. Ele tinha várias tábuas de pedra alinhadas à sua frente. Quase pareciam lápides, mas lembrei que eram os dispositivos de comunicação que configuramos anteriormente. As placas abaixo de cada uma indicavam onde estavam conectadas. Não era tão ruim quando tínhamos apenas o Reino Asura, Millis e o reino do Rei Dragão, mas como nos teletransportamos por todo o Continente Demônio, seus números aumentaram. Parecia mais uma sala de servidores do que o escritório do CEO.

— Olhe isso — disse Orsted secamente. Seus olhos pousaram em uma das tábuas que brilhava fracamente. Este estava ligado à fortaleza de Atofe. A mensagem inscrita nela era curta e simples: Capturamos Kishirika Kishirisu.

 


 

Tradução: NERO_SL

Revisão: Pride

 

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Bravo

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