Mushoku Tensei: Reencarnação do Desempregado

Mushoku Tensei: Reencarnação do Desempregado – Vol. 20 – Cap. 07 – O Retorno à Casa de Cliff

 

Millishion, a capital do País Sagrado de Millis. Fazia um tempo desde minha última vez nessa cidade; estive no Continente Millis para montar o círculo de teletransporte, mas não parei na capital daquela vez. Então, essa era apenas minha segunda visita.

Entrei na cidade pelo portão do Norte na primeira vez, e ainda conseguia me lembrar de como ela era. A forma como o rio fluía pelas Montanhas Wyrm Azul em direção ao lago abaixo, o imaculado Palácio Branco flutuando sobre o centro daquele lago, a catedral dourada construída ao lado do rio, o quartel-general da Guilda dos Aventureiros logo a jusante. Por último, mas não menos importante, aquelas sete torres cercando a cidade junto àquelas vastas planícies se estendendo abaixo.

Ah… Como era mesmo? “Este é um lugar não apenas abundante em majestosidade, mas também está em perfeita harmonia com a natureza. Nenhuma outra cidade no mundo chega perto de sua beleza”, certo? Essa paisagem parecia ter sido retirada das páginas de um guia de viagem que li há muito tempo, então fiquei com isso gravado na minha mente. Cara, isso me trouxe lembranças. Qual era aquele livro, mesmo? Ah, sim, Peregrinando pelo Mundo, escrito pelo aventureiro Kant Sangrento. Wow, mude algumas letras e você vai ter um nome cabuloso.

Bom, de toda forma, a vista de Millishion do Sul ainda era belíssima. As altas torres e o imponente castelo dominavam a vista. O castelo era totalmente prateado, reluzindo sob a luz. Seu brilho e tamanho ofuscavam tudo, menos os próprios muros. Havia uma simplicidade estética que permeava seu design, o que tornava o já lindo castelo ainda mais marcante.

— Cara, realmente não uma cidade no mundo mais bela que essa.

— Por baixo da superfície, não há uma cidade no mundo mais podre. Te garanto.

Esse comentário veio de Cliff. Acho que ele me ouviu falando comigo mesmo.

Os olhares de Cliff estavam voltados para o Palácio Branco. Depois de tudo pelo que passou, aquele lugar o assombrava. É claro: estava aqui para ir à guerra.

Sinceramente, pensava que o Reino Asura ocultasse muito mais podridão por baixo de sua fachada. Tanto o coração de Ariel quanto o daqueles nobres estavam repletos de degradação… Pensando bem, a superfície do Reino Asura estava podre. Ele não se importava em esconder o que realmente era. Acho que, de certa forma, a farsa podia fazer com que Millis fosse o pior entre os dois.

— Então, Cliff… Eu sei que você é um gênio, mas…

— Pare com isso. Já passamos dessa fase, não?

— Certo… Mas se algo acontecer, sinta-se à vontade para falar comigo.

Havia muito menos pressão sobre mim naquele momento. Sendo assim, quis ajudar Cliff a suportar seu fardo. Qualquer coisa servia, mesmo algo tão pequeno quanto comprar um café para ele.

— Neste caso… você poderia começar levando esta carruagem até a minha casa?

— Será feito, vossa futura santidade , senhor.

Neste dia, Cliff retornou para Millishion, seu antigo lar depois de ficar fora por quase uma década.

 

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Millishion tinha quatro entradas. Uma no Distrito dos Aventureiros, uma no Distrito Residencial, outra no Distrito Divino e outra no Distrito Comercial. Na última vez que vim, entrei pelo Distrito dos Aventureiros. Se não estou enganado, foi porque os forasteiros que quisessem entrar por qualquer outro portão deveriam esperar por uma boa dor de cabeça. Bem, mesmo que eu esteja enganado, tenho certeza de que circulamos ao redor dos muros da cidade e entramos pela entrada mais lotada. E hoje, estávamos tentando repetir o feito. Mas, diferente da última vez, tínhamos Cliff conosco, então não precisávamos ser seletivos quanto ao portão. Escolhemos a entrada do Sul no Distrito dos Aventureiros simplesmente porque era a mais próxima.

E por “simplesmente”, eu quero dizer “somente”. Teria levado menos tempo se tivéssemos andado sem impedimentos do lado de fora da cidade em vez de atravessar o mar de pessoas dentro dela. Nossa pressa trazia perdas. Mas Cliff tinha suas próprias ideias:

 — Faz um tempo que não venho aqui, então quero ver a cidade — disse ele.

Ei, era sua primeira vez em casa em uma década. Ele viveria aqui por muitos anos, mas só poderia vê-la assim apenas uma vez. Caminhar pela rua em direção à sua casa,  lembrar-se sobre como tal coisa ainda continua ali  ou como aquilo costumava estar lá; não era uma oportunidade que aparecia todo dia. Se não fosse agora, nunca teria outra chance.

— Entendo.

E então, concordei com Cliff e assumi as rédeas.

— Isso me traz memórias — Cliff murmurou para si mesmo conforme passávamos por baixo do lindo portão de Millis.

Cliff nasceu no Distrito Divino, então é natural que não tenha visitado muito o Distrito dos Aventureiros. Ainda assim, enquanto olhava para o portão do Distrito dos Aventureiros, ele apertava os olhos como se estivesse projetando alguma memória pessoal na cena. Minha estada nessa cidade, entretanto, durou apenas uma semana; das coisas que me lembro, todas envolviam Paul. Claro que podia ficar um pouco emocional se pensasse demais sobre, mas nada além disso ressoava comigo de alguma forma particular. Quando olhei ao redor, não tive visões do passado. Vi o futuro. Vi o Bando Mercenário que eu construiria nessa cidade.

Aventureiros estavam andando por toda a parte ao nosso redor. Havia muito mais homens-fera, elfos e coisas do tipo do que no Reino Asura. Os ranks dos aventureiros variavam muito, mas você conseguia ter uma certa noção de quem estava em que nível só de olhar. Garotos e garotas de quinze ou dezesseis anos corriam por aí trajando armaduras que eram claramente de segunda mão. Havia um iniciante com uns dezoito anos de idade vestindo uma armadura novinha em folha. Um rank intermediário que já devia estar nos seus vinte e tantos anos tinha um equipamento que era uma mistura de novo com usado. Um veterano tinha um equipamento que parecia desgastado caso não soubesse o que olhar, mas que na verdade era uma mistura de itens mágicos e outras mercadorias de alta classe. A gama de especializações  é bastante ampla para aventureiros, mas considerando que eles viviam aos pés da Igreja Millis, deveriam haver diversos curandeiros e alguns magos.

Em contrapartida, a Cidade Mágica de Sharia tinha diversos guerreiros veteranos e ainda mais magos novatos. Os guerreiros, no geral, buscavam por recrutas na Universidade de Mágica, onde encontravam magos promissores que desejavam se tornar aventureiros. Se tratando de raça, Sharia tinha muitos humanos e homens-fera. A abundância de homens-fera era provavelmente relacionada à longa presença de Linia e Pursena lá. Enquanto isso, em Ars, a capital do Reino de Asura, brotavam novatos de tudo que era lado. A grande variedade de escolas significava que uma especialização não dominava as outras, mas na vasta maioria, a raça humana era prevalente. As poucas raças não-humanas eram tipicamente de rank intermediário  ou veterano, e elas iam para a capital real rapidamente.

A variedade de raças e experiências em Millis provavelmente derivava da proximidade com a Grande Floresta, que estimulava a circulação de homens-fera, elfos, halfling e raças de anões que viajavam para o Sul em direção a Millis. A cidade dava aos aventureiros as oportunidades de se provar capazes para depois viajarem rumo ao Norte para desafiar os poderosos monstros da Grande Floresta. Entretanto, ela não tinha uma Guilda dos Aventureiros, então eles faziam suas bases ou em Millishion ou em Zantport. Como resultado, o quartel-general da Guilda dos Aventureiros dessa cidade hospedava aventureiros de todos os tipos.

Agora, como eu estabeleceria o Bando Mercenário em um lugar como este?

No Reino Asura, eu tinha conexões com Ariel. Só isso fazia tudo ir de forma mais suave. Aquele país tinha três grupos específicos: espadachins, mercadores e nobres. Os primeiros: plebeus que tiveram treinamento formal na arte da espada, mas além de não conseguirem se tornar soldados ou aventureiros, também careciam  de conexões para encontrar algum mentor. Os segundos: pessoas criadas em uma família de mercadores com certa quantidade de estudo que podiam utilizar, mas que perderam a sucessão do negócio familiar para o filho mais velho e foram forçadas a tentar a sorte sozinhas. Por último: os terceiros ou quartos filhos de famílias de baixa nobreza que foram educados em uma vasta gama de áreas do conhecimento (apesar de não dominarem nenhuma delas) e que não tinham esperança alguma tanto em sucessão quanto em casamentos.

Uma vez que unimos esse grupo diverso em uma equipe, adivinhe só? Conseguimos estabelecer conexões importantes e nos tornamos a solução perfeita para trabalhos que os soldados não conseguiam assumir.

Promovi o quinto filho de uma família de nobres de alto rank para a posição de diretor há um tempo. Ariel foi quem nos apresentou. Cara, aquela entrevista foi uma viagem. Aisha e eu colocamos aqueles óculos falsos triangulares e perguntamos a ele o que tinha feito durante os dois anos de intervalo antes de começarmos a reunião.

A resposta?

— Estava formando minha identidade e ativamente me relacionando com os plebeus. Isso me ensinou não apenas sobre as diferenças em nossas perspectivas, mas sobre a importância de se conhecer profundamente cada parceiro de negócios com quem se trabalha.

Sua resposta foi tão perfeita que tive que tomar nota dele.

Na prática, ele era bastante habilidoso em manter um grupo unido. Sabia as diferenças entre as culturas da nobreza e da plebe de trás pra frente, então quando brigas ocorriam dentro do bando, ele era o cara que entendia ambos os lados e encontrava uma solução. Não tinha bem uma personalidade que atraia a todos, mas era o tipo de cara que ninguém odiava. Ah, o cara também conseguia lidar com o trabalho. Melhor do que eu, com certeza.

Agora que estava em mãos competentes, eu precisava construir uma filial do Bando Mercenário aqui também. Precisava de pessoal e gerenciamento. Precisávamos de uma missão para esse bando. Aisha estava tomando nota; ela adiou o planejamento até que tivéssemos noção de onde queríamos construir. Bem, agora, nós estávamos aqui e procurando.

Era muito cedo para decidir algo, considerando o pouco com o que tínhamos nos deparado até então. Naturalmente, haveria muitos aventureiros aqui no Distrito dos Aventureiros, mas tínhamos o Distrito Divino, o Comercial e o Residencial para explorar também. Os habitantes daqui com certeza saberiam mais do que nós. Era melhor guardar nossas conclusões para depois da visita aos Distritos Divino e Residencial.

— Não percebi da última vez que estive aqui… mas realmente há muitas raças diferentes circulando.

— É por conta da proximidade da Grande Floresta.

Dizer isso me fez dar uma outra olhada ao redor. Esse era um grupo variado: desde de halflings que não pareciam ter nem dez anos de idade, até elfos cujos membros longos e magros me faziam lembrar galhos de uma árvore sem folhas. Mencionei os homens-fera antes, mas não a imensa variedade deles. Vi cães, gatos, coelhos, veados, ratos, tigres, lobos, ovelhas, ursos…

Um pensamento aleatório: quando, tipo, um homem-fera vê animais de fazenda de seu mesmo tipo, como vacas e porcos, ele sente um calorzinho, ou… Não, eles provavelmente se sentem da mesma forma que seres humanos quando veem macacos num zoológico. Apenas um animal.

— Ahh, aaahh…

— Oh, espere, não se levante tão…

Olhei para trás e vi Zenith de pé em cima do carro. Apesar do balanço da carruagem e a tentativa apressada de Aisha para fazê-la se sentar, ela continuava a apontar para algo à frente.

Seu dedo estava apontado na direção de… um macaco. Espera, não, isso era rude. Era só um homem com rosto de macaco. Isso me lembra, acho que nunca vi um homem-fera macaco. Talvez esses animais fossem bastante raros neste mundo. Raros o bastante para fazer com que Zenith apontasse na direção de um com alegria.

Hm? Eu já tinha visto aquele macaco antes? Espere um segundo, aquilo não era um homem-fera…

— Oh.

— Yooo?! É a Zenith e o chefe! O que traz vocês até aqui?

Era um demônio. E não qualquer demônio.

Era Geese.

 

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— Ufa, quem pensaria que a gente ia se esbarrar justo aqui?

No momento em que Geese nos viu na estrada, pulou para dentro da nossa carruagem sem nenhum tipo de hesitação, como se fosse o dono do veículo.

— Coincidência é uma coisa maluca, mesmo! Pera aí, pra que vocês vieram pra cá?!

Geese parecia bastante feliz em nos ver. Seu sorriso se estendia de orelha a orelha. Um pouco dessa alegria estava começando a me contagiar.

— Parte trabalho, parte família.

— Ah, sim, saquei. Mas escuta, você não vai acreditar pelo que eu passei! É nível de chorar do começo ao fim…

Ninguém pediu por isso, mas Geese começou a contar o que aconteceu com ele depois de sairmos de Sharia. Geese, Talhand, Vierra e Shierra tinham todos chegado ao Reino Asura, como o planejado. Ali, venderam as pedras de absorção por uma quantia absurda de dinheiro. Vierra e Shierra usaram o dinheiro para se aposentar da vida de aventuras. Presumidamente, voltaram para sua terra natal; Geese perdeu o contato com ambas, mas considerando o dinheiro que tinham, imaginou que elas começaram um negócio ou algo do tipo.

Quanto a Geese, bem… por uma ironia do destino não tão inesperada assim, ele se viciou em jogos de azar. Eu não sabia muita coisa sobre, mas, no Reino Asura, parecia haver um distrito de jogos do qual Geese rapidamente se tornou um visitante assíduo. Ele sempre teve um pouco de sorte, mas a fortuna que agora possuía atiçou a cobiça dos donos dos cassinos. Em questão de meses, Geese foi capaz de perder cada centavo que tinha ganhado.

— Vou te dizer, viu, as coisas estavam ficando bastante complicadas por aquelas bandas. Perdi até a minha camisa! Tudo o que me restou para apostar foi a minha vida.

Se Geese tivesse sido largado à própria sorte, teria sido colocado em um par de sapatos de cimento e mandado para dormir com os peixes. Foi Talhand quem o salvou.

Talhand decidiu que já era hora de partir em sua próxima aventura e resolveu dar uma olhada em Geese antes de ir embora. Talhand estava um pouco atônito com a bagunça na qual Geese tinha se metido, mas ainda assim decidiu vender suas recém-forjadas manoplas que tinha acabado de fazer para salvar seu antigo colega de equipe. Aquelas eram manoplas feitas com pedras de absorção também; juntamente de seus gastos com pesquisa, elas representavam as economias de vida de Talhand. Agora ambos estavam falidos por completo. O alto custo de vida em Asura se tornou de repente caro demais, então partiram para o sul.

Se eu estivesse nessa posição, jamais arriscaria meu pescoço por alguém tão ferrado no quesito dinheiro, muito menos viajaria com essa pessoa em seguida. Ainda assim, Talhand e Geese se conheciam há muito tempo, então talvez fosse assim como as coisas aconteciam entre eles. Tipo, talvez Geese tenha sido quem salvou Talhand no passado.

Ei, isso se chama amizade.

O Reino de Shirone estava passando por um conflito interno com o qual eles não queriam se envolver, e considerando que havia rumores de que o Reino do Rei Dragão estivesse contribuindo com isso, eles decidiram não passar por esses destinos e ir direto a Millis; ir pela trilha que já conheciam.

Algum tempo depois disso, Talhand partiu sozinho, deixando Geese para trás. Este provavelmente pensou que ele voltará para sua terra natal.

— O que esse cara tá pensando? Ir para casa, com tantos lugares para conhecer? — Geese resmungou.

Eu? Eu até que conseguia entender. Era saudade de casa. Sabe, a doença da qual Nanahoshi sofria um caso crônico. Uma longa jornada podia fazer com que você quisesse ver sua família de novo.

— Você não vai voltar pra casa, Geese?

— Quem? Eu? Você deve estar brincando. O que vou fazer naquela vilazinha pacata e entediante. Assistir à tinta secar?

Bem, poder não significa sempre. Pessoalmente, sou mais do tipo caseiro. Somente em casa consigo encontrar os peitos de Sylphie (item de restauração de saúde, ativado pelo toque), ou os peitos de Roxy (aumento temporário de sorte, ativado pelo toque), ou os peitos de Eris (poder de avanço no tempo, ativado pelo toque).

— Quero dizer, não estou sozinho. Aquele cara tinha algumas memórias ruins ou qualquer coisa do tipo com a terra natal dele também.

— Então talvez ele quisesse voltar e acertar as contas.

Não importa o que pode ter acontecido no passado, o tempo muda as pessoas. Coisas que você jamais conseguiria perdoar na sua adolescência podem ser coisas que você aprenderia a aceitar nos seus vinte e tantos anos. Por volta dos cinquenta, pode ser que você nem se importe mais. Talhand deve ter digerido todas essas histórias dentro do seu coração e voltou para ver seu lar como uma pessoa diferente.

— Bom, já chega de Talhand. Estou de volta às aventuras aqui.

Aparentemente, Geese começou a se aventurar de novo depois que Talhand o deixou. Adendo importante: ele ainda não encontrou nenhum serviço. Sabe, ele era um demônio e não tinha nenhuma proeza a se considerar.

— Então, chefe, o que te trouxe para essas redondezas?

— Bem, você sabe o estado no qual minha mãe se encontra, então a família dela a convidou para cá para darem uma olhada nela. Já iria vir aqui com um amigo, então resolvi visitar.

— Ah… A família de Zenith, huh…

Geese olhava para Zenith com o que parecia ser pena. A expressão dela estava tão neutra quanto de costume, mas parecia estar mais animada do que o normal, de alguma forma. Provavelmente porque Geese estava aqui.

— Bem, ouvi um pouco sobre o tipo de negócio em que a família de Zenith opera… e vou te dizer uma coisa: não é o que eu chamo de divertido.

— Um… O que exatamente você ouviu?

— Não sei os detalhes, mas ouvi que eles são um bando rígido. — Geese deu de ombros.

É, meio que eu sabia disso antes de vir pra cá, obrigado. De toda forma, eu ainda tinha que vir.

— Epa, estamos quase no limite do distrito. Desculpa, mas você pode parar por um segundo? Demônios como eu não vão ao Distrito Divino, a não ser que queiramos nos ferrar.

Segui o desejo de Geese e parei a carruagem. Ele desceu e seguiu pela rua abaixo.

— Olha, vou continuar por essas bandas por mais um tempinho, então não esquenta; essa não foi a última vez que vocês me viram. Força, foco e fé, chefe!

Geese se virou de costas e acenou com sua mão conforme descia pela rua… Até voltar a nos encarar.

— Chefe! Posso te perguntar uma coisinha?!

— O que foi?

— Se lembra do que Paul disse lá na masmorra?!

A masmorra, huh? Várias coisas vieram à mente, mas apenas uma repercutiu em meu coração. Essa deve ter sido a situação a qual ele se referia.

— Sim.

Aparentemente feliz por ouvir isso, Geese confirmou com a cabeça e se virou.

O amigo que apareceu tão repentinamente logo desapareceu tão rápido quanto surgiu. Era inevitável me questionar se nossa reunião foi, de fato, uma coincidência. Não importava. Eu estava feliz em encontrar um velho conhecido e desestressar um pouco.

Tendo isso em mente, continuei em direção ao Distrito Divino.

 

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Quando finalmente chegamos à casa de Cliff, o sol já tinha se posto.

A casa de Cliff era muito mais normal do que eu esperava. A residência consistia em um único prédio que parecia comportar com conforto uma família de três ou quatro. Não se destacava nem um pouco dentre as casas da vizinhança… Espere, o Distrito Divino tinha fileiras consecutivas de casas idênticas. Assumi que a casa de um papa seria um pouco mais parecida com a de Ariel, então isso me pegou de surpresa.

— É bastante pequena.

Em vez de ficar bravo com meu comentário rude, Cliff graciosamente explicou:

— Clérigos que servem na igreja principal são todos designados a casas como essas. Meu avô tem um quarto no quartel-general, então essa casa não é tão útil assim.

Basicamente, eram moradias cedidas pelos arcebispos aos padres.

— Agradeço por me acompanhar até em casa. Já está bastante tarde, então, por favor, durma conosco esta noite.

Tomei um momento para pensar sobre a proposta de Cliff. A casa da família de Zenith estava no Distrito Residencial. Levaria algum tempo até chegar lá. Se chegássemos de madrugada, era provável que isso causasse alguns problemas, e eu não estava emocionalmente preparado para encontrar com eles vestindo minhas roupas de viagem. Podíamos voltar ao Distrito dos Aventureiros e retornar no dia seguinte… Mas fazer toda essa viagem parecia um exagero.

Decidi aceitar a oferta:

— Está bem. Obrigado.

Coloquei minha bagagem no chão, levei o cavalo ao estábulo e conduzi a carruagem ao galpão enquanto todos levavam suas bagagens para dentro de casa. Ou teriam levado, mas conforme eu guiava a carruagem, eles abriram a porta da frente e algo parecido com uma fumaça branca saiu de dentro da casa.

— Achoo! — Aisha espirrou de forma adorável após a poeira pinicar seu nariz.

Cough… Isso é horrível… Parece que o vovô não gostava muito de limpar a casa — Cliff resmungou enquanto pressionava um pano contra o nariz.

A casa estava recheada de poeira.

— Não sei se seria o suficiente para agradecer a você por nos permitir passar a noite aqui, mas nós ajudaremos você a limpar a casa… Por “nós”, me refiro a Aisha.

— Oh, muito obrig- hm?

— Eu?!

Aisha deixou escapar uma voz confusa enquanto Zenith me deu um olhar de reprovação. Bem, Zenith não mostrava nenhuma expressão, mas pude sentir a intenção nos seus olhos. Ei, Aisha. Não olhe pra mim assim. Eu já te mandei limpar algo sozinha alguma vez?

Ah, é mesmo. O tempo todo. Em toda chance que tinha. Mas claro, eu era grato por isso, de verdade…

— E-ei, é claro que foi uma piada! É óbvio que eu vou ajudar também.

— Não é nada mais que sua obrigação.

E então começou nossa grande faxina da meia-noite. Após abrir as janelas e fazer ventar sobre uma grande área com a varinha mágica, pegamos as vassouras e começamos a dar um trato no resto. Depois disso, esfregamos o chão dos quartos que pretendíamos usar com um pano molhado. Considerando que aquele lugar não era usado há anos, também dei às camas e lençóis um sopro de ar quente para matar os insetos.

A cozinha estava bastante suja, mas Aisha conseguiu deixá-la apresentável sozinha. Na verdade, enquanto Cliff e eu estávamos limpando a sala de estar, Aisha terminou a maior parte da limpeza dos nossos quartos. Comparada a nós, ela foi três vezes mais rápida: o Cometa Vermelho, Aishar Aznablerat. Com isso feito, usamos o restante das nossas rações de viagem para preparar um leve jantar.

— Parabéns por chegar em casa, Cliff.

— Não celebre tão cedo. Espere até que eu encontre com meu avô.

Brindamos com nossos copos de água e celebramos com carne seca e sopa. Não tinha lá o sabor de uma refeição feita em casa, mas era o que tínhamos. Não queríamos carregar ingredientes em excesso, então estávamos tentando consumir tudo logo.

— Rudeus, qual o seu plano para amanhã? — Cliff perguntou.

— Primeiro, visitaremos a Casa de Latria.

— Entendo. Vocês ficarão por lá amanhã à noite?

— Provavelmente.

Podia não ter a reputação mais generosa, mas Claire ainda era família de Zenith. Não devia ter problema algum em ficarmos por lá durante um tempinho. Eu tinha trabalho a fazer, como fundar a filial do Bando Mercenário e ficar de olho em Cliff, então ficar no lar de Latria limitaria minha liberdade um pouquinho… mas precisava ir até lá primeiro para ter certeza. No pior dos casos, iria apenas dar um oi e ir encontrar algum outro lugar para ficar.

— Precisarei contratar alguém que saiba cozinhar, então… — disse Cliff.

— Bem, que tal se eu mandar Aisha umas duas vezes por semana pra cá?

— Não, está tudo bem. Vocês já tem trabalho o suficiente para se preocupar — disse Cliff, dando de ombros. — Eu tenho outra pessoa em mente, de toda forma.

Foi-nos dado o quarto de hóspedes. Três pessoas em um espaço apertado. Éramos uma família, então nos deitamos na mesma cama… mas Aisha e eu já éramos adultos agora. A cama era bem pequena — nem perto do tamanho certo para três adultos dormirem lado a lado. Demos a cama a Zenith, enquanto Aisha e eu dormimos no chão. Arrumamos um espaço para descansar com almofadas e lençóis que pegamos emprestado de Cliff. O chão estava atapetado, então era simplesmente suntuoso comparando com acampar ao ar livre.

Deitei minha cabeça no travesseiro e virei de lado. Quando fiz isso, percebi que meus olhos encontraram os de Aisha, que aparentemente tinha feito sua cama bem ao lado da minha.

— He he. Você acha que a Senhorita Sylphie vai sentir ciúmes se eu disser a ela que dormi com você, Irmãozão?

— Qual é, já fizemos isso diversas vezes na estrada.

— É. Mas, você sabe, mesmo assim. He he. — Aisha gostava de companhia enquanto dormia, então não conseguia segurar sua risada.

Ah, que sorriso adorável. Se fosse Sylphie ali, eu já estaria todo galudo e a puxaria pra perto de mim. Sylphie teria se contorcido para caber melhor no meu abraço. Entretanto, eu não ficaria excitado com Aisha, e ela não tinha nenhuma vontade de se contorcer para entrar no meu abraço. Eu amava Aisha, e Aisha me amava, mas não era um relacionamento pelo qual eu sentia qualquer desejo sexual. Se eu tivesse que descrever a situação, era algo bastante similar com o que sentia por Lucie. Sabe. Amor familiar.

— Eu sei que isso é meio aleatório — comecei —, mas o que você pensa agora sobre o que Lilia sempre te diz?

— O que minha mãe sempre me diz? Como o quê?

— Você sabe, tipo me servindo — ou se servindo para mim. Coisas do tipo.

Aisha parecia surpresa pela pergunta, então levou sua mão ao queixo para considerar o assunto com mais profundidade.

— Hmm, tipo, eu não sou contra… Mas também, é só meio que diferente do que com a Senhorita Sylphie. Tipo… Bem, eu não tenho certeza de como é, mas…

— Não, eu entendi. Você está certa, é só meio que diferente.

Era tudo subtexto, mas nós mais ou menos entendíamos um ao outro. Tínhamos que sentir o que o outro estava querendo dizer.

— Heh heh, fico feliz que você entenda. É por isso que eu te amo, Irmãozão! — Aisha disse enquanto se contorcia na minha direção e pressionava seu corpo contra o meu. Ela era macia e quente, como um travesseiro próprio para abraçar. Enquanto eu provava da sensação, Aisha perguntou outra coisa, como se o pensamento tivesse acabado de ocorrer para ela.

— Eu me pergunto… Será que um dia vou me apaixonar por alguém e querer ter meus próprios filhos?

Essa provavelmente era a coisa que ela quis dizer por “diferente” mais cedo.

— Boa pergunta. Bem, por que não?

— Mas com quem isso aconteceria…

Ah, quem seria o amor de Aisha? Sim, eu podia imaginar. Ele seria o tipo que é perfeito em tudo, ou seria totalmente inútil? Era provável que Aisha se adaptasse a qualquer parceiro que ela escolhesse, mas não conseguia imaginar ela gostando de alguém que exigisse que ela mudasse para aceitá-la. Com quem Aisha normalmente passava seu tempo? O Bando Mercenário… diversos homens-fera, ao que parece. Aisha, com aquele bando de animais selvagens? Não, senhor. Não vou dar minha irmãzinha para qualquer um que aparecer no caminho dela!

Se eu perguntasse a Oersted, ele provavelmente saberia com que tipo de parceiro Aisha se casaria… Entretanto, acho que não farei isso. Eu ficaria mal por ela se descobrisse que ela acabaria ficando pra titia.

Oh, certo. Devo me certificar de algo antes de adormecer.

— Aisha, estamos levando minha mãe para a casa da família dela amanhã… Então, o que você vai fazer?

— …

Aisha saiu dos meus braços e se distanciou, voltando para onde ela estava deitada, a princípio.

— Eu vou. A mamãe não pareceu deixar isso como opcional.

— Entendo…

— Sim.

Ouvir que Aisha iria me tranquilizou. Amanhã, eu visitaria a casa de Zenith. Estava prestes a fazer a clássica bajulação, mas o pensamento de ir a uma casa de tão alta classe sozinho me deixava nervoso.

— Bem, eu agradeço a ajuda.

— Não se preocupe, estou com você.

— Sério, você salvou minha pele. E obrigado pela faxina hoje a noite também. Bom, boa noite.

— Mmh, de nada… Boa noit… Fwah

Escutei o murmúrio sonolento de Aisha enquanto fechava meus olhos.

 


 

Tradução: gtc

Revisão: B.Lotus

 

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