Mushoku Tensei: Reencarnação do Desempregado

Mushoku Tensei: Reencarnação do Desempregado – Vol. 18 – Cap. 10 – A Outra Escrava (Parte 1)

 

Vários dias se passaram desde o terrível incidente o qual nomeei como Roubo da Carne Seca. Pursena voltou para Sharia conosco, e Eris ficou mais do que feliz em mimá-la. Ela também se juntou ao nosso bando mercenário, mas isso é outra história.

Hoje, eu estava trabalhando com Zanoba como de costume, tentando melhorar minha Armadura Mágica. Estávamos fazendo alguns pequenos ajustes na Versão Dois enquanto desenvolvíamos uma Versão Três e Quatro mais poderosa.

Eu tinha uma montanha de ideias, mas a maioria era impossível ou quase impossível de concretizar. Nosso desenvolvimento demorou para progredir, mas eu gostava do processo de trabalhar com alguém e dar pequenos passos em direção ao nosso objetivo. Hoje não foi diferente; Zanoba e eu sentamos um de frente ao outro, estudando as plantas espalhadas na nossa frente.

Foi então que Zanoba de repente deixou escapar:

— Parece que Julie está escondendo algo de mim.

— Sério? Julie, de todas as pessoas?

Ele assentiu.

— Sim. Ela está fazendo algo em segredo pelas minhas costas.

— Huh.

Era raro ele se preocupar com qualquer coisa além de bonecas e estatuetas, mas era especialmente estranho que Julie estivesse pesando em sua mente. Talvez ele tivesse começado a percebê-la, já que viveram juntos por tanto tempo.

— Então — falei —, o que quer dizer com “em segredo”?

— Ultimamente ela tem ido ao mercado sozinha. Mesmo que eu pergunte o que comprou, ela não me responde. Na verdade, nem sequer me mostra a estatueta em que deveria estar trabalhando. É como se estivesse fazendo outra coisa sem o meu conhecimento. Tentei perguntar o que está fazendo, mas tudo o que ela faz é me afastar…

— Bem, ela está chegando nessa idade. Talvez seja apenas uma fase?

Julie teve sua primeira menstruação não muito tempo atrás, e as mudanças físicas muitas vezes provocavam mudanças mentais: em suma, Julie estava entrando na puberdade. Ela conhecia Zanoba desde muito jovem, mas ele ainda era um homem. Não era estranho para ela ficar envergonhada por ele descobrir seus segredos. Como, por exemplo, a cor da calcinha dela. Esse tipo de coisa.

— O que você acha que eu deveria fazer? — perguntou Zanoba.

— Não vejo outra opção a não ser deixá-la fazer o que pretende.

Todo mundo passou pela puberdade em algum momento. Era uma parte normal da vida, o período em que uma pessoa gradualmente se transformava de criança em adulto. As mudanças sempre tinham um efeito cascata, o que significava que aqueles ao seu redor tinham que mudar a forma como tratavam a pessoa que estava amadurecendo. Tinha que começar a tratá-los como adultos ou correr o risco de levá-los a se rebelar.

Dito isso, Zanoba precisava de tempo para descobrir como interagir com ela. Não havia um roteiro fixo de como lidar com as pessoas. Era algo que tinha que aprender com o tempo.

— Hm, já que ela é uma escrava, forçá-la a responder seria uma opção, tenho certeza, mas… — Zanoba parou.

— Você planeja fazê-la te contar?

Ele chacoalhou sua cabeça.

— Não, não. Ela pode viver comigo agora, mas na verdade pertence a você, Mestre. Não tenho autoridade para fazer isso. E não me oponho à sua decisão se você a solicitar de mim. — Houve hesitação na forma em que ele disse isso. Chamá-la de minha escrava era apenas uma desculpa; mesmo que ela pertencesse a Zanoba, ele não tinha intenção de forçá-la a obedecê-lo. Não poderia culpá-lo por isso. Eu não era diferente.

— Contanto que não seja nada ruim e não esteja causando problemas, não vejo mal em deixá-la em paz. O que acha?

— Urgh. — Zanoba franziu o cenho. — Na verdade, considero um problema substancial que ela não compartilhe a estatueta que terminou…

— Acho que posso entender o seu ponto, — falei. — Hmm, nesse caso, por que não pedir à Senhorita Ginger para tentar falar com ela?

Se fosse algo que Julie não se sentisse confortável em compartilhar com um homem, talvez estivesse mais propícia a compartilhar com uma mulher. Ela era uma jovem entrando na puberdade, então provavelmente era difícil para ela discutir certas coisas com o sexo oposto. Isso foi o que eu presumi, de qualquer maneira.

— Hm? Ah, que ideia esplêndida! — O rosto de Zanoba se iluminou. — Certamente Ginger será capaz de lidar com o assunto sem problemas!

Era difícil acreditar que Julie já estava entrando na puberdade. O tempo passou rápido. Provavelmente não demoraria muito para que minha pequena Lucie chegasse ao mesmo estágio em sua vida. Ela tem se acostumado mais comigo ultimamente, e uma relação afetuosa de pai e filha estava começando a florescer entre nós. Infelizmente, eu tinha certeza de que chegaria o dia em que ela voltaria a ser exigente e obstinada, dizendo coisas como: “Não quero que você lave minha calcinha com a cueca do Papai!” e “Odeio tomar banho depois do Papai. Isso é repugnante!” Urgh, só de imaginar, meu estômago deu um nó.

Prometo que não vou forçá-la a tomar banho comigo, então, por favor, pelo menos esteja disposta a sentar na mesma mesa de jantar.

— A propósito, Mestre, há outro tópico que eu gostaria de abordar com você, — disse Zanoba.

— Oh?

— Você tem algum interesse em caixas?

— Caixas?

Ele se referia a uma caixa de suor? Tipo, uma sauna? Uma caixa de suor se refere a um lugar onde muitas pessoas se reuniam, pelo que entendi da gíria dos jovens. Como eu tinha um bando mercenário e, portanto, muitas oportunidades para grandes reuniões, talvez valesse a pena investigar. Claro, eu estava interessado.

Espere, não há nenhuma maneira de ser isso o que ele quer dizer. Estamos falando de Zanoba. Deve ser uma caixa do tesouro ou algo assim. Sim, isso era mais provável. Provavelmente havia muitas dessas caixas lá fora, incrustadas com pedras preciosas e coisas assim. Eu tinha visto umas assim na fortaleza de Perugius, e eram a própria definição de luxo. Mas estavam vazias.

— Sim. Na verdade, encontrei um artesão maravilhoso. Também gostaria que você visse seus produtos — disse Zanoba.

Para ser totalmente franco, eu não estava realmente interessado. Por outro lado, era raro Zanoba me convidar para ver um artesão como este.

— Que tipo de caixas? — questionei.

— Aquelas com os designs mais incríveis. Já vi algumas desse calibre antes. Na verdade… Ah, não. Seria melhor vê-las com seus próprios olhos do que me deixar explicar!

Huh. Eu pensava em Zanoba como um cara que só amava estatuetas e nada mais, mas parecia que ele também tinha um olho perspicaz quando se tratava de outros tipos de artesanato. Para alguém tão exigente como ele regar qualquer coisa em louvor, me deixou profundamente curioso.

— Nesse caso, acho que vou dar uma olhada — falei.

Ele sorriu de orelha a orelha.

— Eu sabia que você diria isso, Mestre.

 

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A loja em questão estava no fim do bairro artesão. Perdi a noção de quantos quarteirões passamos pelo caminho. Muito menos pessoas circulavam pelo bairro artesão do que o distrito comercial, e os edifícios eram peculiares, sem nenhuma característica distintiva. Além disso, poderia facilmente se perder nas ruas sinuosas.

Apesar da tranquilidade das ruas, ainda havia algumas pessoas rondando. Eram principalmente artesãos exigentes, que andavam com carrancas permanentes gravadas em seus rostos, como se tivessem esquecido de como sorrir. Se eu fosse uma criança e desse uma olhada para as pessoas daqui, começaria a chorar.

Zanoba caminhou com propósito, sem perder tempo. Quando chegamos a bifurcações na rua, ele sabia exatamente para onde virar. Descemos um pequeno lance de escadas, depois subimos um conjunto muito maior. Passamos por ruas decoradas com varais e passamos por uma oficina que produzia uma estranha fumaça roxa. Enfim, chegamos.

A loja era do tamanho de uma pequena casa civil. Não era grande e também não havia placa na frente. Um rastro fino de fumaça subia de sua chaminé, indicando que alguém estava dentro, mas a maioria das pessoas nunca adivinharia que isso era uma loja.

— É aqui. — Zanoba abriu a porta e um sino ecoou para alertar o proprietário de que ele tinha clientes.

Quase não havia luz lá dentro. Na verdade, as únicas fontes de iluminação eram os raios de luz solar que entravam pela janela. Algumas vitrines não decoradas formavam linhas aleatórias, bloqueando a maior parte da luz da sala. Ainda assim, havia o suficiente para ver que mercadoria possuía.

As prateleiras de cima tinham bonecas em roupas extravagantes. Eram semelhantes a bonecas de porcelana, mas feitas de madeira. Essas bonecas estavam guardadas em caixas de madeira luxuosamente decoradas, todas organizadas em fileiras. Essas bonecas e as caixas que as continham eram extremamente elaboradas, o que contrastava fortemente com a atmosfera geral da loja e com o design simples das próprias vitrines.

Estas devem ser as caixas que Zanoba estava falando.

— O que acha, Mestre? — perguntou.

— Agora entendo do que você estava falando. Essas caixas são realmente legais.

— Eu sabia que você concordaria.

Honestamente, as caixas eram muito mais bem construídas do que as bonecas. O artesão havia combinado a madeira das caixas com o design de cada boneca antes de cuidadosamente esculpi-las e decorá-las com joias, e forrá-las com tecidos caros. Cada caixa quase parecia uma cama intrincada para sua respectiva boneca. Claro, não havia duas caixas iguais; todas foram feitas sob encomenda. Minha única crítica era que as bonecas pareciam muito inorgânicas em comparação com a vibração orgânica das caixas em que estavam contidas. Na verdade, minhas estatuetas ficariam muito melhor aninhadas nessas caixas, ampliando seu charme. Tive a sensação de que o criador valorizava mais a qualidade de suas caixas do que das próprias bonecas.

— Hm?

Olhei um pouco mais de perto e notei letras pequenas, nomes, gravados nas caixas. Leila, Abbey, Sofia, Clara, Francine, Natalie…

— Zanoba, que nomes são esses? — questionei.

— Esses são os nomes das bonecas.

— Ah, certo.

Eu nunca tinha nomeado minhas estatuetas assim, principalmente porque eram baseadas em pessoas reais. Dito isso, no meu mundo anterior, muitas pessoas nomeavam suas bonecas de porcelana ou ursinhos de pelúcia. Nomear objetos como esse geralmente significava que as pessoas permaneceriam apegadas a eles por muito mais tempo. Embora as bonecas fossem menos deslumbrantes do que as caixas que as continham, certamente não era porque o artesão amava mais as caixas. Afinal, um pai amaria menos os seus filhos simplesmente porque eram feios? Só para esclarecer, minhas filhas são tão bonitas e adoráveis quanto as joias mais preciosas.

— Permita-me apresentá-lo ao criador — disse Zanoba.

Ele passou entre as fileiras de bonecas e se dirigiu mais para dentro da loja. Corri atrás dele, passando as vitrines para uma área com uma atmosfera ligeiramente diferente. Este cômodo tinha apenas uma janela, e a luz dela se derramava diretamente sobre uma grande bancada. Uma série de ferramentas estavam espalhadas sobre ela, algumas eu conhecia bem: madeira, cola, cavilhas de madeira, uma escova de cerdas rígidas, um pincel de pintura, uma lima, um raspador, uma faca de trinchar e um cinzel. Eram todas coisas que se usaria ao fazer uma boneca. Esta loja claramente também operava como oficina.

Um homem estava sentado na bancada, de costas para nós, focado intensamente no que quer que estivesse criando. Assim que Zanoba percebeu que o homem não havia nos notado, pegou um sino e tocou três vezes.

Ding, ding, ding.

Um som limpo e claro ecoou pelo cômodo. Os ombros do homem saltaram quando ele ouviu.

— Quem está aí? — grunhiu enquanto lentamente se levantava e se virava para nós.

O homem era tão alto quanto Zanoba, com um olhar penetrante, bochechas encovadas, cabelos desgrenhados e mãos calejadas. Seus olhos se arregalaram enquanto examinava a área, procurando o culpado que havia tocado a campainha. Quando avistou um rosto familiar, seus lábios se curvaram e sua voz subiu vários decibéis, bem como oitavas.

— Ora, ora! Olha quem temos aqui! Se não é o Mestre Zanoba.

— Isso mesmo — disse Zanoba. — Estou de volta, Mestre Belfried.

— Você é sempre mais do que bem-vindo. E o que lhe traz aqui hoje? — Sua voz ecoou pela sala, e de alguma forma combinava com o homem. Fiquei mais surpreso com o quão amigáveis os dois eram. Talvez fossem irmãos em uma vida passada ou algo assim.

— Voltei para apresentar meu mestre a você — disse Zanoba. — Você se lembra? Falei sobre ele antes.

— Ah, ele! — Belfried assentiu. — O homem responsável por aquelas lindas garotas, sim?!

— Exatamente! — Zanoba se virou para mim enquanto gesticulava para Belfried. — Mestre, este é o dono desta oficina, Mestre Belfried. Ele é o talentoso artesão responsável pelas excelentes caixas, ou melhor, camas de boneca, que você viu decorando a loja.

Sua voz foi infundida com mais respeito do que o normal enquanto ele enchia o homem de elogios. Deve ser bom receber uma apresentação tão chique assim.

— E Mestre Belfried, este aqui é meu mestre, o grande e poderoso mago Rudeus Greyrat. Ele mesmo é um artesão eminente cujas estatuetas nenhuma outra pessoa viva poderia imitar, o tipo de talento raro que provavelmente será lembrado por muitas décadas após sua morte.

Suas palavras transbordaram de tanta reverência enquanto me apresentava, esse exagero realmente me deixou bastante desconfortável. Eu verdadeiramente não me importava sobre como as pessoas falariam de mim depois que eu morresse. Provavelmente só falariam mal de mim como um assassino que mantinha inúmeras esposas.

— Ouvi muitos rumores sobre você — disse Belfried. — Você não é apenas um mago de alto nível, mas também um artesão profundamente instruído!

Balancei a cabeça.

— Eu lhe asseguro, em comparação a Zanoba, sou muito ignorante sobre essas coisas.

— Ah, você é muito modesto!

Eu não queria que me colocassem em um enorme pedestal. Realmente, eu era um amador completo comparado a Zanoba e Perugius, que eram muito mais dedicados às artes plásticas. Eu apenas tinha o conhecimento sobre as estatuetas que possuía da minha vida anterior, mas mesmo isso era superficial, na melhor das hipóteses.

— De qualquer forma — falei —, aquelas caixas eram absolutamente fantásticas. Mesmo de relance, eu…

— São camas — interrompeu Belfried, seu tom severo. —  É onde minhas filhas dormem. Por favor, peço que se refira a elas como camas.

Huh. Ele era muito exigente sobre isso.

— Certo. Camas, então — me corrigi. — Entendo. São fruto de um artesanato tão fino que “cama” parece o termo mais adequado para elas.

— Penso em pedir-lhe para colaborar comigo em algum momento, então pediria a você para estar atento sobre como fala das camas das minhas meninas no futuro.

— C-Certo.

Bem, eu poderia fazer isso se fosse tudo o que ele quisesse.

Olhei para Zanoba, que parecia particularmente apologético. A julgar pela maneira como ele falou, também deve ter invocado a raiva de Belfried dessa maneira. Ainda assim, eu tinha certeza de que ele se referiu a elas como caixas quando falou comigo.

Belfried parecia um pouco exigente, mas sua habilidade e atenção aos detalhes com essas “camas” eram excelentes. Zanoba estava certo sobre uma coisa: podemos realmente querer colaborar com esse homem no devido tempo. Assim como alguém preferia colocar suas pinturas caras em molduras de qualidade semelhante, era melhor colocar estatuetas extravagantes em caixas que lhes convinha. Não precisávamos dessas caixas em nossos planos para a estatueta de Ruijerd, mas talvez pudéssemos encontrar um uso para elas em uma ocasião diferente. Por exemplo, se dermos um presente a Perugius ou quisermos vender algo à nobreza Asurana. Havia muitas maneiras de suas habilidades serem úteis.

— Mestre Belfried, sei que você pode ser um artesão extremamente talentoso, mas a insolência que você mostrou ao meu mestre é…

— Está tudo bem, Zanoba — interrompi. — Não vejo nada de errado com o pedido dele. É importante ser específico sobre certas coisas.

Zanoba franziu a testa como se não estivesse totalmente convencido, mas Belfried realmente parecia considerar suas caixas como camas para suas bonecas. Ele as fez com o desejo de dar às suas bonecas um lugar confortável e sereno para dormir, e foram esses sentimentos que o impulsionaram a aperfeiçoar seu ofício com essa qualidade.

— Falando em colaboração… — Belfried fez uma pausa, parecendo se lembrar de algo. Seu olhar se voltou para Zanoba. — Aquela sua pequena fabricadora de estatuetas veio à loja outro dia.

Fabricadora de estatuetas?

— Julie veio aqui? — perguntou Zanoba.

Ah, então era dela que estava falando.

Eu não conseguia me livrar da minha imagem mental dela como uma amadora inexperiente, e foi por isso que pareceu tão estranho ouvir Belfried se referir a ela como uma espécie de artesã profissional. Era verdade, no entanto, que suas habilidades aumentaram imensamente. Fora o uso de magia, suas habilidades superam em muito as minhas. Ela provavelmente era uma excelente fabricadora de estatuetas para os padrões deste mundo.

— Isso é estranho. Não pedi a Julie para comprar nada — murmurou Zanoba.

— Devo dizer, Senhorita Julie, ela… oh, mal consigo falar sobre isso! — Belfried continuou divagando, ignorando completamente a reação de Zanoba. Por qualquer motivo, ele parecia extremamente entusiasmado.

Não me diga que esse cara é um verdadeiro lolicon que de alguma forma testemunhou Julie fazendo algo pervertido. Quero dizer, nós dois podemos ter algo em comum, mas eu definitivamente não quero que ele chegue perto das minhas filhas nesse caso.

— O que Julie fez? — Zanoba estreitou os olhos em suspeita.

— As palavras, eu… receio não conseguir encontrar as certas para expressar o que aconteceu! — Belfried chorou de prazer.

Zanoba e eu trocamos olhares.

Deixe-me tentar perguntar. Não se preocupe, pode deixar isso comigo. Posso não parecer, mas como o rosto da nossa empresa, recentemente mergulhei no negócio de extrair informações das pessoas. Até lidei com um interrogatório para descobrir o verdadeiro criminoso por trás de um roubo.

— Por favor, acalme-se e explique-se — falei. — O que exatamente Julie veio fazer aqui?

— Uma estatueta, ela trouxe uma estatueta com ela.

Eu o encarei.

— Uma estatueta?

Ele não estava exatamente respondendo minha pergunta, mas eu estava disposto a deixar isso passar por agora.

— Sim. Era uma que eu nunca tinha visto antes na minha vida. E era incrível. Absolutamente, positivamente incrível. Uma obra-prima!

Mais uma vez, Zanoba e eu trocamos olhares. Julie nos mostrou todas as peças que havia feito. Zanoba tinha guardado a maioria delas em segurança em seu armazém. Ela precisaria de sua permissão para pegar uma. No entanto, Zanoba mencionou que ela não o deixava ver seu trabalho mais recente.

— Ah, não consigo parar de tremer, só de pensar nisso. Viu? Minhas mãos estão tremendo porque a alegria é avassaladora. — Belfried estendeu as mãos para que víssemos, e elas estavam exatamente como ele havia descrito… embora eu pessoalmente sentisse algo muito mais sinistro do que alegria. — E então pensei comigo mesmo: preciso derramar esses sentimentos, esse carinho, esse prazer, em meu próprio artesanato. Dê uma olhada por si mesmo! — Belfried correu de volta para sua mesa e pegou algo antes de voltar para nós. Estava segurando uma caixa em suas mãos.

Não, não uma caixa. Preciso chamar de “cama” enquanto estou aqui nesta loja.

Era branca com decorações douradas. O forro era composto de um luxuoso tecido rosa claro que complementava perfeitamente o resto das cores. Embora não tivesse pedras preciosas, ao contrário das outras que eu tinha visto, essa simplicidade só aumentava sua elegância. Quase me lembrou uma cama de dossel do palácio.

— Esta é a cama que fiz para ela! — declarou Belfried. — Posso contar o número de vezes que me senti tão criativamente inspirado. Isso é o quão impactante foi! Ahh, esta é a primeira vez que sou capaz de criar uma cama tão fantástica em apenas alguns dias.

Foi impressionantemente bem feita; não havia dúvida sobre isso. Eu tinha visto muitas obras de arte deslumbrantes de todos os lugares, e foi por isso que reconheci instantaneamente isso como uma joia rara. Estava um passo acima das espécimes nas vitrines, com artesanato digno de um rei. Até Perugius provavelmente reconheceria sua qualidade.

— Oh, Mestre Zanoba, não posso acreditar que você me provocaria assim, tendo sua pequena fabricante de estatuetas exibindo um trabalho desse calibre.

— Hm, mas receio que eu mesmo esteja completamente no escuro… — Zanoba olhou para mim.

Fiquei um pouco perdido, mas imaginei que Julie tinha trazido uma estatueta. Foi tão impressionante que levou Belfried a fazer uma cama por sua própria escolha. Isso era o que eu tinha concluído. O problema era que Zanoba não lembrava de ordenar que Julie fizesse tal coisa. Isso deve significar que ela fez isso por vontade própria. Mas por quê?

— Por que Julie trouxe essa estatueta aqui? Ela disse alguma coisa? — questionei.

— Não faço a menor ideia. Fiquei tão animado no momento em que vi a estatueta que não ouvi o que ela havia dito. Embora a maioria das pessoas traga suas filhas adoráveis aqui porque querem dar-lhes uma cama onde possam dormir em paz. Talvez fosse essa a intenção dela?

Huh… Difícil acreditar que havia tanta gente querendo uma cama para a boneca. Isso era tão de nicho que apenas clientes com esse interesse específico provavelmente viriam a esta loja. Julie poderia ser um deles?

Zanoba pigarreou e disse:

— Quando alguém casa uma de suas filhas, seu noivo ficará muito mais feliz em ter uma cama para colocá-la.

Casar? Cama? Pisquei para ele. Ah, já entendi. Em outras palavras, ter uma caixa para colocar uma boneca aumentava seu valor ao vendê-la. Fazia sentido.

— Precisamente — disse Belfried. — Era por isso que eu esperava que esta pudesse se casar em minha casa. Tentei comprá-la por duzentas moedas de ouro Asuranas, mas… infelizmente, sua fabricante de bonecas fugiu de mim.

— Duzentas moedas de ouro Asuranas…? — Olhei para o homem.

— Oh! Mestre Rudeus, por favor, não me olhe assim. Você deve pensar o pior de mim, tentando comprar uma peça de tal qualidade por míseras duzentas moedas. Mas juro para você, era tudo o que eu tinha na época! Agora tenho trezentos para oferecer. Não, não! Estou disposto a oferecer até trezentos e cinquenta!

O que me chocou foi o fato de uma estatueta chegar a um preço tão alto, para começar. Mas isso significava que Julie estava tentando vendê-la?

— Mas por que ela tentaria vender? — murmurei comigo mesmo.

Belfried me deu um olhar interrogativo.

— Por que não? Quanto mais dinheiro, melhor, não? Dinheiro nunca é demais.

— Estou mais curioso a fim de saber para que fim ela o usaria. Ela nunca precisou de nada até agora… pelo menos, não pelo que fiquei sabendo. — Olhei para Zanoba. Era possível que Zanoba não tivesse fornecido algo para ela, o que a levou a precisar de dinheiro. Se, por exemplo, Zanoba estivesse de repente se afogando em dívidas insanas como alguém que eu conhecia.

Zanoba balançou a cabeça.

— Ultimamente, suas habilidades melhoraram imensamente, então tenho dado a ela um salário generoso.

Fui eu que tive a ideia de pagá-la. Zanoba ficou chocado com o conceito de dar dinheiro a uma escrava, mas não se incomodou. Julie estava trabalhando duro o suficiente para merecer. Pagá-la era algo natural.

— Hmm… Sim, isso mesmo, Mestra Julie é uma escrava, não é? — Belfried acariciou o queixo. — Nesse caso, talvez ela esteja tentando comprar sua liberdade?

— Sua liberdade? — repeti.

— De fato.

Os escravos geralmente eram comprados e vendidos por moedas, comprados em um lugar e depois leiloados em outro. Seus direitos individuais divergiam com base no país em que estavam e quem os possuía. Havia alguns países que priorizavam o tratamento adequado dos escravos, e outros que se preocupavam muito menos com isso.

Se tornar um escravo era algo muito simples. Se não tivesse dinheiro, então poderia visitar um traficante de escravos e se vender. Havia muitas pessoas que preferiam pertencer a outra pessoa do que morrer. Isso ocorria especialmente nos Territórios Nortenhos. Além do clima ruim, as pessoas que vivem lá eram na maioria pobres. Se alguém não conseguisse encontrar algum tipo de emprego, corria o risco de morrer de fome ou de hipotermia.

Além disso, era bastante fácil sair dessa vida, pelo menos em teoria. Como um escravo era vendido por dinheiro, também podiam ser comprados com dinheiro. Alguém poderia economizar as moedas para comprar a si mesmo, e ser livre depois disso. O montante necessário dependia de uma série de fatores: o país de residência, por quantos anos o escravo havia sido mantido e quanto dinheiro havia sido gasto com o referido escravo. Havia até algumas nações onde os escravos não podiam ter salário.

Compramos Julie por um preço ridiculamente baixo. Embora tivéssemos ensinado a ela uma série de habilidades diferentes, ela poderia facilmente comprar sua liberdade com duzentas moedas de ouro Asuranas e ainda ficar com algum dinheiro sobrando. Não que quiséssemos deixá-la ir. E havia algo mais importante que me incomodava.

— Não posso acreditar que ela faria uma coisa dessas sem falar comigo primeiro… — Zanoba baixou o olhar, uma sombra caindo sobre seu rosto, o que tornava difícil distinguir suas feições.

Mas eu podia entender o choque dele. Tínhamos feito o melhor que podíamos pela Julie. Ela estava em um estado horrível quando a compramos, mas demos a ela comida, roupas, um lugar quente para dormir, a educamos e ensinamos habilidades práticas. Até lhe demos um salário. Nós a compramos por uma razão específica; Zanoba, sendo uma Criança Abençoada, não consegue criar a arte que ele mesmo queria. Eu também queria produzir estatuetas de Ruijerd em massa no futuro. Tínhamos sido bastante rigorosos com Julie, na esperança de eventualmente cumprir esses objetivos, mas nunca fomos cruéis com ela.

Claro, se Julie realmente quisesse ser livre, nós a libertaríamos. Mas isso não diminuiu o choque de descobrir que ela estava agindo pelas nossas costas para obter os fundos para isso. Era como se ela não confiasse em nós.

— … Não — murmurei para mim mesmo.

Ser escravo não era um passeio no parque. Eu nunca tinha sido um escravo antes, então não era certo menosprezar as lutas que eles enfrentavam. Tendo visto a situação de Linia por mim mesmo, era muito mais fácil imaginar pelo que alguns deles passavam. Qualquer um ficaria estressado por não ter verdadeira liberdade pessoal. Eles realmente não podiam dizer o que estavam pensando ou fazer as coisas que queriam.

— Pensei que tínhamos feito o certo por ela, mas acho que talvez tenha sido muito difícil para ela ser uma escrava por esse tempo todo — falei.

Ela tinha apenas recentemente começado a transição para a idade adulta. Talvez isso a tivesse levado a contemplar seu futuro com mais seriedade. Sem dúvida, ela se viu diante de uma série de preocupações, estava realmente tudo bem em continuar fazendo estatuetas como antes? O que aconteceria no futuro dela?

Também era possível que ela tivesse ficado com medo de ser escrava de um homem adulto, agora que seu corpo começou a amadurecer, independentemente de quanto Zanoba fosse um cavalheiro. Dada a relação de mestre-servo, Zanoba mostrou pouca hesitação em despi-la, assim como ocorreu durante aquele susto da menstruação não muito tempo atrás. Julie ainda podia ser jovem, mas isso ainda devia ser embaraçoso e assustador para ela.

— Mas se for esse o caso, o que acontecerá com nossos sonhos? — Zanoba se perguntou em voz alta. — Você pagou uma quantia considerável para ajudar a  criá-la, não é, Mestre?

O valor que eu havia contribuído não era nada comparado aos investimentos de Zanoba. Na verdade, fiquei um pouco preocupado pensando no quanto ele havia investido em seu desenvolvimento. Não era apenas ouro, era tempo e esforço.

— Seja qual for o caso, Julie é uma pessoa como qualquer outra — falei. — Se ela está tão ansiosa para se libertar, então não sinto que temos direito de detê-la.

— Ngh… — Zanoba grunhiu e cruzou os braços sobre o peito, ainda ansioso. Ele continuou a gemer baixinho por um tempo depois disso refletindo sobre.

Provavelmente foi difícil para ele aceitar isso. Apesar da minha postura de deixá-la ir, não seria fácil para ele desistir de suas bonecas e estatuetas, por isso a intensa reflexão.

Bem, como devo convencê-lo, então?

Graças a Manopla Zaliff, ele tinha o controle motor refinado para não esmagar as coisas agora, e mesmo que liberasse Julie, talvez ainda pudesse contratá-la a fim de trabalhar para ele. Esses seriam provavelmente os melhores argumentos.

— Hm… — murmuei para mim mesmo, meio que balbuciando.

Zanoba finalmente se virou para mim, como se tivesse chegado à sua decisão.

— Você tem razão — falou. — Julie trabalhou duro sob nossos cuidados. Talvez o mínimo que possamos fazer é conceder qualquer desejo que ela tenha.

Isso foi um pouco inesperado. Conhecendo Zanoba, imaginei que ele se recusaria a recuar. Afinal, isso significava perder a pessoa que fazia de tudo para fazer estatuetas para ele todos os dias. Acho que mesmo com sua forte propensão por bonecas, ele não poderia tratá-la como uma máquina depois de viver com ela por tanto tempo. Ele até lhe deu um nome semelhante ao do irmão mais novo.

— Bem, vamos voltar por enquanto. Devemos perguntar a Julie quais são suas reais intenções — falei.

Até agora, estávamos apenas tirando conclusões precipitadas. O mais importante era o que Julie queria. Se ela realmente pretendesse se libertar sem dizer uma palavra a Zanoba, eu teria que dar uma boa conversada com ela. Entendo que não era um tópico fácil de abordar, mas algumas coisas precisavam ser comunicadas.

E assim voltamos para a Universidade.

Foram dez minutos de carruagem e, por motivos além da minha imaginação, Belfried decidiu nos acompanhar.

— Quero ver aquela estatueta de novo — disse ele.

Eu não estava acreditando. Seus bolsos tilintavam, cheios de moedas, o que era uma clara indicação de que não havia desistido de comprar a estatueta de Julie. Tive dificuldade em acreditar que Zanoba aceitaria a venda de bom grado se a estatueta fosse realmente tão fenomenal quanto Belfried alegou. Embora eu ache que Zanoba não compartilhe a adoração profusa de Belfried por isso. Afinal, todos tinham seus próprios gostos e desgostos. Ainda assim, era bom que o homem pretendesse negociar o que queria. Ele parecia bastante excêntrico, mas pelo menos era um comerciante adequado.

— Voltei! — declarou Zanoba, abrindo a porta sem se preocupar em bater.

Por dentro era o mesmo que eu lembrava. A amante de Zanoba, a estátua de bronze de uma mulher nua, não estava à vista. E, claro, nem Julie nem Ginger estavam por ali quando entramos. Na verdade, Julie estava visivelmente ausente.

— Bem-vindo de volta, Mestre! — Julie saiu correndo de um dos cômodos internos.

Esquece. Acho que ela está aqui.

Ela tinha uma faca de aço na mão, usada para esculpir pedra. Aparentemente, não estava usando a bancada na sala principal e, em vez disso, estava praticando sua arte em outro lugar. Ou talvez escondendo, pelo que parecia ser possível.

Zanoba deve ter percebido a mesma coisa. Entretanto, Julie não mostrou sinais de estar em pânico com o nosso retorno abrupto. Ela na verdade parecia mais encantada do que quando a tinha visto antes. Se ela estava realmente planejando comprar sua liberdade e escapar pelas costas de Zanoba, então ser capaz de sorrir tão inocentemente assim era uma atuação impressionante. Também muito perturbadora.

Tudo o que posso dizer é que as mulheres podem ser assustadoras às vezes.

— Oh! — Seu rosto ficou nublado no momento em que avistou Belfried,  ela recuou um passo como se estivesse em pânico.

Oh? O que é isso, hm? Ela viu Belfried e percebeu que alguém a par de seu segredo estava presente?

— Olá, Julie. Obrigado por ter visitado no outro dia. — Belfried sorriu macabramente para ela.

Um arrepio percorreu Julie, ela lançou um olhar suplicante para Zanoba, implorando por ajuda. Zanoba cantarolava baixinho enquanto se dirigia a ela. Ele cruzou a distância entre os dois em pouco tempo e olhou para ela. Julie olhou ansiosa para ele, esperando.

— Julie… Você deseja deixar de ser minha escrava?

Ela arregalou os olhos.

 


 

Tradução: Taipan

Revisão: Guilherme

QC: Delongas

 

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