Pouco antes do retorno de Rudeus ao salão…
As coisas finalmente começaram a se acalmar.
A maioria das pessoas restantes no salão de festas eram os altos nobres de Asura, considerados particularmente poderosos e influentes. Eram os membros das veneráveis casas que serviam ao reino por muitas gerações: Greyrat, Bluewolf, Purplehorse, Whitespider, Silvertoad e afins. A necessidade de ver a conclusão dos eventos de hoje os mantinha aqui, mesmo quando os outros já tinham fugido após o súbito desaparecimento de Orsted.
Claro, a festa não foi retomada. Ninguém havia esquecido do que acontecera antes de seu violento fim. Darius tinha sido humilhado, e Perugius tinha entrado neste salão. Estes dois eventos deixaram uma forte impressão nos nobres de que Ariel seria rainha.
Muitos deles estavam perturbados e confusos pela aparição repentina de Orsted, naturalmente. Mas dado que Ariel se manteve calma, se sentiram obrigados a fazer o mesmo.
Por baixo de sua compostura superficial, entretanto, os nobres estavam aterrorizados. Quando aquele horripilante homem invadiu esta sala, ele havia efetivamente salvado a vida de Ariel. Assassinou Reida e saiu tão logo quanto entrou, sem nem se importar em dizer seu nome. Para os nobres, a explicação mais simples era a de que este homem era um dos servos de Perugius. Seus cabelos e olhos eram bastante parecidos, seus rostos apresentavam uma certa semelhança e a aura de autoridade poderosa de Perugius. Tudo isso os levava a esta conclusão.
Perugius tinha um homem sob seu comando que podia matar um Deus da Água com um único golpe.
E quem Perugius apoiou? Eles ficaram sabendo disso alguns minutos antes.
Qualquer um que se opusesse a Ariel poderia se tornar o próximo alvo daquele monstro. Esta consideração, bem como qualquer outra, os levou a se submeter a ela. Não fizeram perguntas desnecessárias sobre a identidade do homem. Aceitaram a realidade de seu novo mestre como a deles também.
Ariel havia retornado a Asura como uma assassina sem escrúpulos. Darius pode ter escapado do salão, mas estava certamente morto a essa altura. A princesa tinha total intenção de matar qualquer um que se pusesse em seu caminho.
Quase todos na sala, incluindo até mesmo o Primeiro Príncipe Grabel, agora acreditavam nisso. Era uma prova do poder da maldição de Orsted.
Mas havia uma exceção.
Havia um homem no cômodo que conhecia Ariel melhor do que qualquer um no mundo. Um homem que tinha ouvido sobre Orsted pelo Deus-Homem. Um homem que ainda via Rudeus com ressalvas, ainda que os argumentos de Ariel o tivessem silenciado.
Seu nome era Luke Notos Greyrat.
E neste momento, Luke estava se perguntando: ele devia realmente obedecer às vontades daquele horrível e malvado homem, e de seu servo Rudeus?
O coração de Luke batia com incerteza e desconfiança. Ele não podia se livrar do sentimento de que era errado unir forças com Orsted, independentemente do resultado. Até mesmo Darius parecia menos cruel, menos asqueroso.
O Deus-Homem tinha visitado Luke em seus sonhos, brilhando com uma radiância sagrada. Com palavras doces, gentis e amáveis, ele se ofereceu para guiá-lo pela estrada à frente, explicando-o como ajudar Ariel a tomar o trono, e o alertando de que Rudeus tinha sido seduzido pelas palavras de um vil inimigo.
Mas Ariel insistiu que este deus era mau. Ela insistiu que ele estava enganando Luke, e tentando destruir todos eles.
E claro, muitas das afirmações do Deus-Homem acabaram se revelando mentiras. Não… não exatamente mentiras. Suas palavras eram vagas e ambíguas de uma forma que levavam Luke a chegar a conclusões erradas. Talvez ele compartilhasse um pouco da culpa por chegar a conclusões de maneira precipitada.
Em todo caso, Luke era o cavaleiro leal da Princesa Ariel. Ele estava inclinado a seguir sua palavra em vez de um suposto deus desconhecido com motivações obscuras. Mesmo que não conseguisse concordar com ela, estava preparado para respeitar seu julgamento e seguir suas instruções até o amargo fim.
Mas agora, nesta última fase do jogo, seus sentimentos em relação ao assunto mudaram drasticamente. Ver Orsted com seus próprios olhos tinha mudado tudo.
Luke se considerava um hábil avaliador de mulheres. Em contrapartida, não era muito bom em julgar as qualidades de um homem. Esta era uma fraqueza da qual estava ciente.
Ainda assim, ele sabia sem sombra de dúvida que Orsted era mau.
Não havia a menor chance de que este homem trabalharia com qualquer pessoa para realizar algo positivo. Ele era um vilão nato, um deus sombrio que levava homens à ruína. Ariel estava simplesmente errada em relação a ele. Muito provavelmente, Rudeus havia sido enfeitiçado por ele também.
Mas ainda que este fosse o caso, o que Luke iria fazer? Que ação deveria tomar, agora que tinha certeza de que a princesa estava seguindo um caminho que julgava incorreto?
Podia expressar sua opinião, sim, mas no que isso resultaria? Orsted já havia agido. Ele já havia feito sua parte. Darius e Grabel estavam quase mortos, e Ariel tinha essencialmente garantido o trono. A essa altura, talvez já fosse simplesmente tarde demais.
Luke não era nenhum mestre em magia ou espada. O que podia realizar agora, sozinho? A resposta era nada. Ele sentiu isso em seus ossos.
Eu realmente sou impotente…
Mas assim que estava começando a desistir por completo, viu um movimento pelo canto de seu olho. Um dos nobres estava se aproximando de Ariel a galope.
Se ajoelhando perante a princesa, ele se curvou tanto que sua testa tocou o chão.
— Princesa Ariel!
Era Pilemon Notos Greyrat, pai de Luke.
Com um grande sorriso em seu rosto, ele se dirigiu a ela com uma voz alta o suficiente para que todos no salão pudessem ouvir.
— Parabéns, Vossa Alteza! E pensar que este dia finalmente chegou, após todos os meus anos de espera!
Sua voz soou com alegria, e ele levantou sua cabeça para observar a princesa.
— Eu fingi lealdade à causa de Gabrel, para que pudesse destruí-los quando fosse a hora, mas parece que tal esquema de minha parte não foi sequer necessário. Você se tornou uma figura extremamente formidável durante seus anos fora!
Vários nobres se enraiveceram em desgosto com o oportunismo evidente do homem. Eles sabiam que Pilemon havia pessoalmente enviado assassinos atrás de Ariel, após seu retorno. Eles assistiram com desprezo gélido em seus olhos, maravilhando-se em quão suaves as mentiras saíam de seus lábios.
— Lorde Pilemon…
— Está tudo bem, Alteza, eu sei o que você está pensando. Com poucos aliados, fui obrigado a me comportar de uma forma que alguns podem criticar ferozmente. Mas asseguro-lhe, tudo que fiz foi por sua causa! Agora que o perigo passou, tudo pode ser exatamente como era antes. Eu te ajudarei com minha leal…
Ariel não permitiu que ele continuasse.
— Pilemon Notos Greyrat! — gritou ela, sua voz era alta o suficiente para ser ouvida sobre a voz do homem. — Você tinha sua família a considerar! Tinha sua segurança a considerar! Sua traição foi compreensível, talvez, dada a fraqueza da minha posição!
Pilemon encarou Ariel com os olhos arregalados. Esta era a primeira vez que ela havia gritado com ele dessa forma
— Mas uma vez que você traiu seu aliado, tenha a dignidade de continuar como inimigo até o fim! Na hora da derrota, você retorna ao seu antigo mestre? Não tem vergonha?!
— Ah… uh…
Seus olhos estavam rolando freneticamente, Pilemon tomou um momento para formular uma resposta.
— Minhas… minhas mais sinceras… desculpas…
Alguns dos nobres não conseguiram conter sua risada ante tal patética cena. Um rubor carmesim se espalhou pelo rosto da princesa conforme Pilemon abaixou a cabeça em desgraça.
Mas Ariel não tinha terminado de eliminar sua raiva ainda.
— Uma parte de mim via sua mudança de lados como justificável, visto que você buscava a sobrevivência de sua casa. Contanto que você cedesse sua posição a Luke e se retirasse silenciosamente para suas terras, eu não tinha intenção de puni-lo. Mas agora você se humilha aos pés da mulher que você traiu?! É impossível descrever o quão desprezível você é! Está claro que a continuação da sua existência não será nada além de um fardo a este reino!
Com essas palavras, o rosto de Pilemon embranqueceu.
— Que a morte seja seu perdão!
Foi neste momento que Luke percebeu algo: Ah. Era tudo uma outra farsa, não era? Ariel provavelmente esperava que isso fosse acontecer desde o início. Talvez houvesse uma chance de que suas palavras fossem verdadeiras, e que ela não planejava executar Pilemon. Sua promessa a Ghislaine estava longe de ser considerada vinculativa. Ela podia ter convencido a mulher de poupar sua vida, e talvez até quisesse fazer isso.
Por muitos anos, Pilemon foi o maior aliado de Ariel. Agora, ele estava agarrado aos seus pés, implorando por misericórdia, mas até o momento da fuga para Ranoa, este homem havia sido a maior figura de liderança de sua facção. Suas ações eram pouco habilidosas às vezes, mas ainda assim havia ajudado Ariel em incontáveis maneiras. Foi Pilemon quem arranjou sua escapada para os Territórios do Norte. E foi Pilemon quem a enviou ao norte com numerosos assistentes, que ajudaram na sua sobrevivência naquela perigosa jornada.
De certa forma, ela devia a vida àquele homem. Ariel não tinha esquecido disso. Mas se simplesmente o perdoasse após sua traição exposta, o mundo veria esse gesto como um sinal de fraqueza. E isso comprometeria sua capacidade de governar Asura.
Ela poderia ter tolerado caso ele fugisse em desonra, mas agora que as coisas tinham chegado a este ponto, sua única opção era arrancar-lhe a cabeça.
— Luke! Me dê sua espada! Eu lhe darei a honra de fazer isso eu mesma!
Pilemon virou-se para seu filho com uma expressão de puro terror em seu rosto. Seus olhos imploravam silenciosamente para que Luke dissesse algo a seu favor.
E quando ele encontrou o olhar de seu pai, Luke hesitou.
Luke
Eu sabia que meu pai era um covarde. Mas eu também sabia quão compreensível isso era.
Ele se tornou o chefe da nossa família muito jovem, e nunca esteve exatamente apto a este cargo. Até mesmo eu, seu próprio filho, podia perceber o líder desastrado, esquisito e ansioso que ele era. Sempre que suas decisões como suserano da nossa região terminavam mal, era comparado desfavoravelmente ao seu severo e rígido pai. Até mesmo seus vassalos sussurravam pelas suas costas que Paul teria sido um senhor muito melhor. Eu vi isso acontecer muitas vezes durante meus anos vivendo na nossa casa.
Meu pai havia padecido e sofrido, sem nenhum benefício. Não me surpreendia que tivesse ficado amargurado e perdido a coragem que possuía.
Agora estava para ser executado bem na minha frente. Suas próprias ações eram as culpadas por isso, mas a promessa de Ariel à Rei da Espada Ghislaine provavelmente tinha algo a ver com essa situação também.
Eu estaria mentindo se dissesse que nunca considerei a possibilidade do meu pai ter participado da morte de Sauros Boreas Greyrat. Eles se detestavam, afinal de contas. Sauros era muito próximo do meu avô, o antigo líder da família Notos. Os dois eram quase como irmãos, na verdade. Em contrapartida, ele criou um desgosto pelo meu pai já logo no começo. No primeiro encontro deles, berrou:
— Mas você é um tampinha mesmo, não é? — na cara do meu pai; e este foi só o início dos seus insultos e críticas. Sauros provocava-o em todas as oportunidades, mesmo depois de meu pai tomar as rédeas da família Notos.
O Incidente de Deslocamento deixou Sauros terrivelmente vulnerável. Eu consigo ver meu pai tomando proveito desta oportunidade para se vingar. Na realidade, era difícil imaginá-lo desprezando essa chance, ainda que as mentiras do Deus-Homem me convenceram do contrário por um certo tempo.
Estudei o rosto do meu pai em silêncio.
Não o via há oito anos. O homem estava muito mais velho e muito menor do que me lembrava. Me encontrei querendo conversar com ele, sem nenhuma mentira ou turbulência.
Quando eu era criança, conversávamos de muitas coisas. Ele não me falava abertamente sobre os assuntos mais importantes, mas quando perguntava algo, sempre matava minha curiosidade. Meu pai não sabia de tudo, claro. Frequentemente me dava respostas que eram incorretas. Mesmo assim, sempre tinha algo a falar para mim. Às vezes me dizia para pensar por mim mesmo, mas ainda assim, estava me dando a melhor orientação que podia.
Olhando em retrospecto, sinto que ele cuidou mais de mim do que do meu irmão mais velho. Talvez sentisse uma certa conexão comigo, como um parceiro. Este era meu pai de forma resumida: um homem esquisito que fazia escolhas estranhas das formas mais desajeitadas possíveis.
Mas mesmo com todas as suas falhas, ele contribuiu muito para a causa da Princesa Ariel por muitos anos. Antes da nossa fuga para Asura, dizimou incontáveis inimigos no nome dela, tentando posicioná-la para o trono.
Suas motivações sempre foram egoístas, realmente. Mas como chefe da nossa família, tinha obrigação de protegê-la. Quem podia culpá-lo por juntar-se à outra facção, quando tudo parecia perdido?
Ele enviou seus homens para liderar o primeiro ataque contra nós. Mas, bem, certamente fez isso para proteger a Casa Notos. Devia estar desesperado para ganhar a confiança de seus novos aliados da facção de Grabel.
— Sua Alteza, eu tenho um pedido.
— Qual seria, Luke?
— Você poderia, por misericórdia, perdoar meu pai?
Ariel se virou para mim. Havia uma frieza em seus olhos, a qual eu estava vendo bastante nos últimos dias… Particularmente depois de termos descoberto a traição de meu pai.
— Não posso fazer isso.
— Por causa da Ghislaine?
— Não. Porque eu não posso fazer vistas grossas à traição dele.
Claro que não podia. Meu pai havia abertamente se virado contra ela, tendo enviado suas tropas pessoais em uma tentativa de arrancar sua cabeça. Não importa quão amigos um dia foram, perdoar isso seria muito danoso à reputação dela.
Eu sabia de tudo isso. Pilemon Notos Greyrat estava condenado, e nada poderia mudar isso agora. Talvez aquele deus maligno tenha tido alguma participação nisso tudo. Talvez Rudeus e a Princesa Ariel estivessem sendo enganados. Isso não mudava o fato de que meu pai nos traiu, ou o fato de que ele covardemente tentou desfazer esta traição.
E ainda assim…
Eu não queria ver isso acontecer.
Saquei minha espada.
— Luke?
— Me perdoe!
— Huh?!
Eu não sabia o porquê de estar fazendo isso. Mas antes que eu percebesse, puxei a Princesa Ariel em meus braços… e pressionei a lateral da minha espada contra seu pescoço.
— Luke?! O que você está fazendo?!
Sylphie reagiu imediatamente. Ela me encarou com uma aura assassina em seus olhos. Rudeus dificilmente a teria reconhecido, ela nunca o deixou ver este tipo de fúria em seu rosto.
Em sua mão, segurava o tipo de varinha utilizada por magos novatos. Era basicamente um bastão em miniatura, mais adequado na prática de mágica básica. Mas em suas mãos, poderia disparar feitiços tão poderosos quanto aqueles dos Capitães dos Magos Reais.
Agora, estava apontado na minha direção.
— Você não consegue ver quão bizarro é tudo isso, Sylphie?
— Perdeu sua cabeça?! Tire esta espada de perto dela!
Era uma pergunta razoável: tinha eu enlouquecido? Não estava certo nem do que eu buscava conseguir com tal ato, para ser honesto.
Os olhares dos altos nobres do salão estavam todos virados para mim. Seus rostos estavam confusos e incertos.
Talvez eu tenha me condenado também. Mas que assim seja.
— Sylphie, você realmente confia neste homem?
— Que homem?! Você está falando de Orsted?! O que ele tem a ver com isso?!
— Só responda à pergunta! — gritei ferozmente.
Sua varinha ainda apontava em minha direção, Sylphie parou por um instante, então respondeu em um tom de voz baixo:
— Não confio nele nem um pouco.
— Então por que você obedece a todas as ordens de Rudeus sem questionar? Talvez ele tenha feito isso por sua família, mas ele jurou lealdade àquele monstro!
— Por quê? Porque eu confio em Rudy, esse é o porquê!
Isso não faz o menor sentido.
— Rudeus está agindo em nome de Orsted, como seu subordinado direto. Você não percebeu nenhuma diferença no comportamento dele recentemente? Tem certeza de que Orsted não o está enganando de alguma forma?
Não é que eu nutrisse esperanças de trazer Sylphie para meu lado. Mas desde seu casamento com Rudeus, senti como se ela tivesse parado de tomar muitas de suas próprias decisões. Em vez de verbalizar suas opiniões, deixava estes assuntos com seu marido, ou fazia exatamente como ele lhe pedia.
Ironicamente, eu era quem ensinou a ela se comportar desta maneira. Eu dizia a ela que uma esposa devia escutar silenciosamente seu marido se quisesse ficar em suas boas graças. Minha própria mãe tinha sido uma mulher que se expressava bastante, e meu pai nunca a amou de verdade. O casamento deles terminou em separação.
— Você está pensando por si mesma, Sylphie? Rudeus também pode errar, assim como qualquer um!
— Você acha que eu não sei disso?! Eu penso sobre isso constantemente! — Sylphie gritou, indignada. — Mas Rudy está fazendo o que ele acha ser melhor para nós, ok? Ele engole o próprio orgulho e se submete a nós! Ele faz tudo o que pode, não importa o quão humilhante seja! O que eu devo fazer, discutir com ele e tornar as coisas ainda mais difíceis? Pelo menos dessa forma eu posso tirar um pouco do peso de seus ombros!
A resposta de Sylphie foi clara e firme. Na sua cabeça, Rudeus vinha em primeiro lugar, antes mesmo de si própria. Parecia que ela havia mudado bastante nestes últimos anos. Mas talvez eu só não conhecia a garota tão bem quanto achava.
— E se sua lealdade cega colocar a Princesa Ariel em perigo?!
Conforme eu disse essas palavras, pressionei minha espada contra o pescoço da minha mestre. Estava usando a lateral da lâmina. Isso não me preveniria de ser executado como um traidor, claro, mas eu não podia correr o risco de cortar a Princesa Ariel. Era simplesmente errado marcar a pele de uma mulher com cicatrizes.
— Você é quem está com a espada contra o pescoço dela!
Um excelente ponto, devo admitir…
Naquele momento, a porta do salão se abriu e Rudeus entrou no cômodo.
Seus olhos me encontraram e se arregalaram em choque.
— Escute, Sylphie — falei —, ao aceitar tudo o que Rudeus fala, você está se tornando um peão daquela horrorosa criatura, Orsted.
— Ok. E então?
— Considere o que isso possa significar em uma situação como essa.
Eu olhei para Rudeus. Ele estava examinando o salão, talvez tentando entender o que estava acontecendo. Seu olhar parou em um certo momento, então ele desviou seus olhos, com uma expressão desapontada.
Olhando naquela direção, percebi que estava olhando para Perugius. Mesmo com todo o drama se desenrolando em sua frente, o homem estava sentado casualmente em sua cadeira, observando completamente despreocupado. Havia um pequeno sorriso de contentamento em seus lábios.
— Se você quiser salvar a Princesa Ariel, mate Rudeus aqui e agora — falei.
Os olhos de Sylphie se arregalaram.
— Qual seria sua resposta se eu fizesse tal demanda?
Ela não se virou, ainda que claramente soubesse que Rudeus estava bem atrás dela.
— Você podia ser forçada a ter de escolher entre um dos dois. E então, o que faria?
Eu sabia que era uma pergunta repulsiva e injusta. Nem sabia porque estava fazendo esta pergunta. Era isso realmente o que eu queria dizer?
— Eu escolheria Rudy.
Sylphie não precisou de muito tempo para pensar sobre isso. Sua resposta foi quase instantânea.
— Eu odeio dizer isso na frente da Princesa Ariel. Mas se Rudy não fosse a pessoa mais importante do mundo para mim, eu jamais teria casado com ele em primeiro lugar. Eu jamais teria tido um filho com ele.
Essas palavras me deixaram um pouco triste, e eu imagino que a Princesa se sentiu igual.
Rudeus levou ambas as mãos à boca, mas falhou em cobrir completamente seu sorriso presunçoso. O homem podia ser realmente desagradável em alguns momentos.
— Eu ficarei com Rudy não importa o que aconteça — disse Sylphie. — Não sei como isso vai acabar. Até onde eu sei, Orsted pode decidir que ele não precisa mais de nós… mas não importa quão feias as coisas fiquem, eu estarei lá ajudando Rudy. Até porque, eu assinei esse contrato, não?
Essas palavras me acertaram como uma flecha no peito.
Ela estava certa. Eu senti isso no fundo do meu estômago. Encontrei uma das respostas que eu estava procurando.
— Ah…
Soltei um pequeno suspiro. O que eu estava fazendo aqui? O que estava pensando?
Meu papel era ajudar a Princesa Ariel, mesmo quando ela tropeçasse, mesmo quando fizesse uma má escolha, e mesmo se sua causa parecesse perdida. Eu queria ser o único homem que estaria sempre lá por ela, não importasse as circunstâncias. Isso era o que estava no contrato que eu assinei, como seu cavaleiro.
De que importava se Orsted era um deus malvado? É verdade, eu preferia ter obedecido ao Deus-Homem àquela criatura. Mas eu seguiria ele em vez de Ariel?
A pergunta não valia nem a pena ser considerada. Era meu dever respeitar suas decisões, obedecer seus comandos, e arriscar minha vida para protegê-la se ela fizesse uma escolha errada. Não devia ser mais complicado que isso.
Minhas próprias palavras voltaram para me dar um soco na cara.
— E agora, Luke?
Imagino que a Princesa Ariel tinha ouvido meu suspiro. Ela escolheu este momento para quebrar seu silêncio.
— Agora que Sylphie escolheu Rudeus, você cortará minha cabeça?
— Huh?
— Se sim, gostaria de um tempinho para conversar com meu irmão primeiro. Talvez ele permita a Sylphie e aos outros que saiam a salvo de Asura. Você se importa?
Sua voz parecia… estranhamente calma.
— Não vai perguntar por que estou fazendo isso?
— Não.
Isso me deixou triste. Eu mal podia me defender, agora que as coisas tinham ido tão longe assim… Mas parecia que a princesa realmente acreditava que eu a havia traído. Estive do seu lado desde que éramos crianças, apoiando-a em todas as formas que pude. Eu colocaria seus interesses e necessidades na frente dos meus. E ainda assim ela acreditava que eu seria capaz de me virar contra ela, justo no fim da nossa longa jornada.
Assim pensei, até ouvir as palavras seguintes:
— Só há uma coisa que eu quero dizer a você, Luke.
— Hm…?
— Eu sou sua princesa.
Eu quase desabei em lágrimas. Aquelas palavras eram recompensa o bastante para mim. Mesmo depois do que eu fiz, a Princesa Ariel ainda me via como seu cavaleiro. Ela nunca acreditou que eu poderia traí-la. Ela estava confiante em relação à minha lealdade, mesmo agora, com a lâmina da minha espada pressionada contra seu pescoço.
Joguei minha espada para o lado. Ela caiu no chão, e a tensão no ar foi finalmente quebrada. Após soltar a Princesa Ariel, fui para trás e me ajoelhei perante ela. Quando olhei para cima, vi que ela me encarava com a mesma familiar frieza no olhar.
— Diga-me, Luke. O que você é?
— Eu sou… seu cavaleiro.
A princesa sorriu gentilmente com essas palavras.
Estudei sua face por um momento, então me inclinei para frente e segurei meu cabelo, expondo meu pescoço.
— Estou pronto, Vossa Alteza. Me dê a punição justa ao meu desacato.
Eu não queria morrer. Havia muito ainda que eu pudesse fazer.
Mas que seja. Eu podia aceitar isso.
— …
Princesa Ariel se abaixou para pegar minha espada, ergueu-a desajeitadamente com uma mão, e bateu na minha cabeça com a lateral de sua lâmina. Um choque de dor irradiou pelo meu crânio.
— Parece que seu lendário desejo por mulheres te levou a um estado de loucura, Luke. Não consigo imaginar outra razão pela qual teria agarrado uma princesa em seus braços e a molestado de tal maneira
— …?
— Normalmente, um crime assim necessitaria de severa punição. Mas eu te deixarei seguir livre desta vez, visto que eu estava com vontade mesmo de receber umas apalpadas.
Olhei para a Princesa Ariel. Ela encontrou meu olhar cum um sorriso brincalhão e uma piscadela. Quanto tempo fazia que eu não via essa expressão em seu rosto? Nesses dias, seus sorrisos têm sido, na maioria, forçados. Mas quando éramos crianças, ela sempre sorria para mim assim.
— Haha!
Parecia que eu tinha sido perdoado. Minhas palavras e ações deveriam, sem sombra de dúvida, terem sido consideradas como traição. Mas ela sequer ia me punir por isso.
— Agora então…
Parando para respirar, a Princesa Ariel se virou para meu pai pálido. Assim que seu olhar se direcionou a ele, meu pai se prostrou no chão perante ela.
— E o que faremos com você?
O assunto em relação à sua punição havia ficado incerta. Agora que ela havia perdoado minha traição, o clima no ambiente havia mudado. Quase parecia como se ela tivesse que encontrar alguma forma de perdoá-lo.
Mas os erros de meu pai eram graves. Ele havia se unido aos nossos inimigos e tentado matar a princesa. Ela não podia simplesmente inventar uma história conveniente para dispersar esta história, como ela havia feito comigo.
Precisávamos achar alguma justificativa. Alguma razão para o perdão.
Enquanto eu tentava pensar em alguma coisa, Rudeus deu um passo adiante e começou a falar:
— Quando o encurralamos, Darius revelou que ele era quem planejou a morte de Sauros. Lorde Pilemon era só um peão do seu jogo, ao que posso entender.
— E quanto a Darius? — perguntou a princesa.
— Ele está mor… Nós o matamos.
— Entendo. Neste caso, acho que devemos direcionar a culpa toda a ele.
Conforme ela falava essas palavras, a Princesa Ariel se virou para alguém atrás de mim. Me virei e vi que Ghislaine e Eris tinham vindo para trás de mim em algum momento. Elas poderiam ter me esfaqueado pelas costas se eu continuasse a segurar a Princesa Ariel por mais tempo.
— Ghislaine, você pode aceitar isso? — disse a Princesa Ariel.
— Bem…
Ghislaine pareceu nitidamente descontente com a sugestão. Talvez ela estivesse determinada a matar meu pai não importasse o motivo. Mas antes que ela pudesse fazer uma objeção, Eris puxou sua cauda. Com uma expressão de surpresa, Ghislaine olhou para sua discípula.
Eris cruzou seus braços e levantou seu queixo, dizendo:
— Ghislaine! Já nos vingamos pelo Vô Sauros, ok? Não seja gananciosa!
— Se você diz, Lady Eris…
Com essas palavras, a Princesa Ariel se virou para meu pai com uma expressão de satisfação em seu rosto.
— Aí está, Lorde Pilemon. Cuidarei do seu julgamento em uma data futura.
— S-Sim, Vossa Alteza!
Meu pai se jogou ao chão novamente, humilhando-se em gratidão. Ele não sairia dessa sem ser punido, mas parecia que sua vida havia sido poupada.
— Me… Me desculpe, Luke…
As palavras eram quase inaudíveis, mas eu estava perto o suficiente para ouvi-las com clareza. E uma onda de alívio tomou conta de mim.
Olhei ao redor do salão. Rudeus estava conversando baixinho com Sylphie, que abraçava ele, enquanto alisava o cabelo da esposa. Ela abaixou seu olhar timidamente, mas parecia bastante satisfeita. Eris e Ghislaine estavam discutindo tão alto que eu pude ouvir a conversa com clareza. Eris estava orgulhosa, explicando que tinha que avaliar o ambiente às vezes. Pela forma como disse, era uma frase que Rudeus a havia ensinado.
Perugius estava na mesma posição. Ainda plantado em sua cadeira, estava olhando na nossa direção com uma expressão bastante entretida. Eu não conseguia imaginar o que o famoso Rei Dragão Blindado achou tão interessante, para ser honesto.
Meu pai ainda estava se humilhando no chão. Ele parecia muito pequeno, mas a cor estava voltando aos poucos ao seu rosto.
A cavaleira novata Isolde estava choramingando baixinho conforme embalava o corpo da Deus da Água em seus braços. Ela não parecia ter vontade de vir em nossa direção.
Parecia que Darius estava morto. Príncipe Grabel, que tinha perdido seu maior aliado, se jogou em sua cadeira, exausto. Havia um pequeno grupo de nobres ao seu redor, mesmo agora… Mas era difícil imaginar ele tomando qualquer atitude.
Os nobres da facção da Princesa Ariel possuíam expressão de total perplexidade. Triss estava entre eles, ao lado de seus pais.
Não tínhamos mais inimigos para combater.
A batalha por Asura estava terminada.
Tradução: Gtc
Revisão: Guilherme
QC: Delongas & Taipan
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