Mushoku Tensei: Reencarnação do Desempregado

Mushoku Tensei: Reencarnação do Desempregado – Vol. 16 – Cap. 03 – Movimento Inicial

 

Dois dias se passaram desde que invoquei nossa Besta Guardiã. Pedi para gravar seu nome em uma coleira de couro que enrolamos em volta do seu pescoço, e construímos uma grande casinha de cachorro para ele. Seu trabalho era, essencialmente, ser nossa segurança.

Quando eu acordava de manhã, ele estava esperando na entrada da frente quando Eris e eu saíamos para treinar no quintal. Continuava de pé na entrada como uma sentinela até que fosse hora de dar um passeio.

Assim que voltávamos para o lar, entrava em casa e cuidava de todos. Léo periodicamente fazia rondas no recinto para garantir que nada estava errado. Se estivesse, fazia o possível para remediar. Se Lucie estivesse chorando, ele a confortava. Se Aisha saísse para fazer compras, ele a acompanhava. Quando fosse pedido, até levaria Norn para a escola.

Era como se tivéssemos nosso próprio sistema de segurança.

Léo era incrivelmente inteligente, ouvia com atenção o que minha família lhe dizia e era perfeitamente treinado na utilização do banheiro. Quanto aos truques, ele sabia esperar, deitar, dar a patinha e implorar, e coisas ainda mais complicadas, como girar três vezes e latir, além de dar cambalhotas como um gato.

Também era muito submisso à minha família. Quando Aisha ou Norn se aproximavam nervosamente para acariciá-lo,  abanava o rabo com tanta força que parecia um rotor de helicóptero. Ele gostava particularmente de Roxy e agia como um cavaleiro leal ao seu redor. Sua atitude em relação a ela era marcadamente diferente de suas interações com todos os outros. Quando Roxy acordava, ele a rodeava enquanto abanava o rabo e tentava enfiar a cabeça entre as pernas dela. A primeira vez que fez isso, eu o repreendi, dizendo:  “Eu sou o único que pode lambê-la lá”. Ele agiu desanimado e desistiu, mas, no dia seguinte, estava de volta.

Roxy normalmente se deslocava para trabalhar nas costas de Dillo, mas notei Léo latindo para ele, como se estivesse tentando dizer algo. Eu não tinha como decifrar suas palavras ou saber se Tu as estava ouvindo, mas o tatu parecia se afastar nervosamente de Léo. Também vi Léo no pé da escada enquanto Roxy subia, encarando-a como se estivesse preocupado que ela pudesse escorregar e cair. Sua superproteção quase me fez sentir como um marido patético por não me preocupar tanto com ela.

Eu me perguntava o porquê dele estar tão focado apenas em Roxy, mas talvez fosse porque era um cachorro. Talvez pudesse farejar qual dos membros da nossa família era o mais impressionante.

Pensando bem, Linia e Pursena pareciam ter a mesma habilidade.

Apesar de agir como o servo perfeito para Roxy, Léo e Eris não eram os mais compatíveis. Ou melhor, Léo parecia desencorajado com ela. Ela, por outro lado, adorava animais. Amava enfiar a cara no pelo macio deles e abraçá-los com força. Talvez ela o tivesse encurralado e feito exatamente isso sem que eu soubesse. O poder do Rei da Espada Louco não era brincadeira. Eu mesmo tinha sentido na pele. Quando ela abraçava alguém com toda sua força, era como ser esmagado até a morte por um urso. Sua vida passava diante de seus olhos.

Eu não me importava em ser abraçado assim, mas podia entender o motivo de Léo manter uma distância. Ele só se aproximava dela quando era hora de ir passear, quando os dois checavam o perímetro da casa antes de partirem.

Tive um pressentimento que isso tinha a ver com a resistência dela. Um passeio para ele não era uma caminhada ao redor do quarteirão; eu suspeitava que ele estava circulando em volta de toda a cidade em seus pequenos passeios. Para conseguir isso tão rapidamente exigia uma velocidade impressionante, e a única pessoa em nossa casa que poderia igualar esse ritmo era Eris. Sylphie poderia ser capaz de acompanhar, se tentasse, mas por pouco. De qualquer forma, Léo normalmente escolhia Eris como sua parceira de passeios. Talvez ele a considerasse uma companheira de guarda.

Aliás, o território de Léo abrangia um raio de dois quilômetros ao redor de nossa casa. Ele não deixaria nem um gato de rua entrar em seu território. Pelo que parecia, estava cumprindo sua missão de proteger nossa família. Todo esse negócio da Besta Guardiã me deu mais paz de espírito do que eu esperava.

Não havia dúvida de que um cachorro era uma boa escolha.

O único problema era que o tal do cachorro também era o deus protetor da tribo do povo-fera. Quando Ghislaine veio ver Eris, ficou boquiaberta ao encontrar Léo.

— Não consigo entendê-lo quando fala — disse ela —, mas me parece que veio por vontade própria, caso em que a Tribo Doldia não deve ter queixas.

Então posso ficar de boa.

Era hora de passar para o próximo passo do plano. E, bem na hora, Luke apareceu na nossa casa.

Eu tinha saído para fazer uma tarefa rápida, que levou apenas vinte minutos. Quando cheguei em casa, Luke estava parado no portão da frente.

Imediatamente me escondi nas sombras para ficar de olho nele, lembrando o que Orsted me disse sobre o Deus-Homem ser capaz de manipular as pessoas. Também me lembrei da entrada no meu diário que mencionava Luke sendo usado pelo Deus-Homem para derrubar Sylphie. Meu futuro eu era reconhecidamente um pouco paranoico, então sua palavra pode não ser a mais confiável, mas se o Deus-Homem quisesse acabar com Sylphie ou Ariel, Luke seria um fantoche eficaz. Sylphie confiava nele, afinal, independentemente do que ela dissesse sobre ele.

Em outras palavras, Luke tinha a maior probabilidade de ser escolhido como um dos apóstolos do Deus-Homem. Se estivéssemos em guerra com ele, seria primordial localizar seus seguidores e descobrir seus motivos. Com isso em mente, fiquei de olho nele enquanto corria de sombra em sombra até estar perto o suficiente para ouvir sua voz.

— Nunca soube que alguém tão incrível quanto você veio para esta cidade. Você é maravilhosa, adorável. Seus olhos são tão lindos e cheios de determinação, e seu cabelo é macio como seda. É como um anjo… não, como uma deusa da beleza que veio agraciar este mundo com sua presença! Bastou um único olhar para que meu coração fosse roubado!

Suas palavras fizeram minha cabeça doer.

Que monte de clichês fora de moda.

Nem eu diria algo tão sentimental e exagerado. Mas talvez essas coisas fossem perfeitamente normais neste mundo? Se eu dissesse algo assim para Sylphie, talvez ela ficaria vermelha como um tomate. Eu já conseguia imaginá-la sorrindo timidamente e dizendo: “Não precisa se esforçar muito para me bajular. Já sou toda sua, Rudy”. Ehehe.

— Oh, peço perdão pelos meus modos — disse Luke. — Eu nem me apresentei. Sou Luke Notos Greyrat, segundo filho da minha casa. Os Notos Greyrats presidem uma das quatro principais regiões do Reino Asura.

Se ele realmente fosse um dos lacaios do Deus-Homem, fazia sentido que exagerasse quando flertasse com uma garota, especialmente se fosse sob o comando do Deus-Homem. Seria estranho ir tão longe assim, se não fosse o caso. Não faltavam mulheres para rodeá-lo. Baseado no que Sylphie me disse, ele via as garotas como pouco mais do que brinquedos sexuais descartáveis.

Mais importante, com quem diabos ele estava tentando flertar agora? Não consegui ver bem de onde estava me escondendo. Se estava comparando seu alvo a um anjo, a primeira pessoa que veio à mente foi Sylphie, mas não ousaria falar com ela assim. A palavra deusa imediatamente trouxe Roxy à mente, já que era exatamente o que ela era para mim, mas também não poderia ser. Então… Aisha, talvez? Não, ela era mais como um diabinho do que um anjo.

— Perdoe minha audácia, mas poderia me dar a graça de seu nome? Claro, entenderei se não quiser me dizer o sobrenome. Mas te suplico, ó formosa, que pelo menos compartilhe seu primeiro nome como consolo, para que eu possa gravá-lo em meu coração.

Assim, pelo menos, serei capaz de ouvir o nome do alvo de seus afetos. Quem ele estava tentando conquistar? Quando eu soubesse a resposta, poderia descobrir em quem Deus-Homem estava de olho. Claro, assumindo que Luke realmente fosse um de seus apóstolos. Não podia descartar a possibilidade de que tivesse se apaixonado por um dos membros da minha família à primeira vista.

No entanto, se for o último caso, eu seria um pouco mais do que apenas um bisbilhoteiro.

— Ah, vejo que você se recusa a compartilhar seu nome comigo. Então, pelo menos, imploro que me dê a honra de beijar sua mão. Isso por si só será o suficiente para me consolar. — Ele se inclinou para frente, estendendo a mão em direção à outra pessoa.

Sua cabeça sacudiu momentaneamente. Então todo o seu corpo congelou.

O que aconteceu?

Ficou claro que algo estava acontecendo. Foi um ataque do Deus-Homem sobre ele? Ou estava sendo controlado neste exato minuto?

Enquanto eu contemplava tais perguntas, Luke de repente caiu de joelhos e desmaiou. Ele sequer se mexeu. Perdeu a consciência por completo. Mas o que raios aconteceu?

Espere, tenho certeza que já vi isso antes. O puxão, o colapso e a perda de consciência… Oh, céus, isso faz com que a minha cabeça também doa.

— Hmph.

Depois que Luke caiu, uma mulher saiu do nosso portão e olhou para ele. Ela bateu o pé na cabeça inconsciente dele.

Eris. Foi Eris quem o nocauteou.

— Qual que é a sua, hein? Apareceu do nada e ficou falando abobrinha que nem um doido! — Ela franziu o nariz, chutando-o novamente para empurrá-lo para fora do caminho. Então voltou marchando para casa como se nada tivesse acontecido.

Saí das sombras e fui até Luke. Ele ainda estava inconsciente, o branco de seus olhos aparecendo. Ela deu um belo sopapo nele. Tive que questionar sua moral por se atrever a dar em cima de uma das minhas esposas, mas parando para pensar, lembrei sobre o que reportei a Ariel e Luke quando cheguei em casa, e não contei a ele sobre meu casamento. Na realidade, essa foi a primeira vez que ele viu Eris.

Ainda assim, fiquei chocado por ter tentado dar em cima dela daquela maneira. Talvez a linha do tempo original em que os dois ficaram juntos tenha o influenciado. Ou talvez fosse a prova de que ele realmente estava aliado ao Deus-Homem. Era difícil ter certeza, de qualquer maneira.

Apertei os lábios. Por enquanto, pelo menos, era melhor não o deixar deitado do lado de fora. Decidi arrastá-lo para dentro de casa comigo. Eu poderia começar o interrogatório assim que recuperasse a consciência.

— Cheguei — disse enquanto puxava Luke para dentro.

Eris estava lá para me cumprimentar, embora estivesse em silêncio no início. Seu rosto se iluminou quando me viu, mas no momento em que avistou Luke, franziu as sobrancelhas e cruzou os braços.

— Conhece esse cara aí? — perguntou ela.

— Pois é. Bem, acho que pode dizer que é colega de Sylphie, para ser mais preciso.

— O-Oh… Bem, foi mal. Dei um soco nele.

Oh? Ela está sendo mansa demais.

Balancei a cabeça.

— Está tudo bem. Aposto que foi culpa dele por dizer algo inapropriado.

— Foi — concordou ela.

— Sendo assim, a culpa é só dele.

Ele ganhou o que pediu por tentar colocar suas mãos sujas em minha Eris. Mesmo assim, eu ia deitá-lo em algum lugar para que pudesse descansar.

Ele atrapalharia se eu o colocasse na sala. Talvez eu devesse jogá-lo em um dos quartos vazios no primeiro andar.

— Ei, Rudeus — Eris chamou por mim.

— Sim?

— Você também quer beijar minha mão?

Encarei a mão dela. Estava coberta de calos devido ao treinamento, muito áspera e dura para a mão de uma mulher. Ainda assim, combinava com ela, e eu gostava de suas mãos do jeito que eram.

— Prefiro beijar seus lábios do que a sua mão.

Isso me rendeu um soco rápido no estômago. Ela não colocou tanta força, mas a sua mira foi tão precisa que acertou em cheio no fígado.

— Está fora de questão até anoitecer — ralhou Eris, seu rosto ficando vermelho enquanto caminhava em direção à sala de estar.

Ah, beleza. Então estou livre para clamá-los à noite. Mal posso esperar.

Deixando isso de lado… O que devo fazer agora? Pessoalmente, eu queria consultar Sylphie logo para que pudesse transmitir meu desejo de ajudar Ariel. Dessa forma, todos nós poderíamos trabalhar juntos para persuadir Perugius a se juntar a ela. Infelizmente, eu não tinha ideia do que motivou Luke a viajar para cá. Se viesse para causar problemas em nome do Deus-Homem, eu com certeza não poderia deixar isso passar.

Acho que vou esperar Luke acordar.

 

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Enquanto Luke permanecia inconsciente, fui ver Sylphie e as outras. Eu ficaria de coração partido se algo de ruim acontecesse com o restante dos membros da minha família enquanto eu estava preocupado com Luke. Embora era provável que isso não fosse acontecer, já que Eris estava ali.

Léo estava no topo da escada, no segundo andar, sentado de maneira obediente, com uma expressão de alerta. Passei por ele e verifiquei vários dos quartos. O quarto de Roxy estava cheio de roupas, mas desocupado. Considerando que Tu também estava ausente, provavelmente era seguro afirmar que ela já havia saído para a academia.

Sylphie e Aisha estavam cozinhando na cozinha. Saí rápido, não querendo interrompê-las. Encontrei Zenith enfiada na cama, dormindo, com Lilia lendo um livro ao seu lado. Nada de estranho.

Encontrei Eris brincando com Lucie na sala de estar. Lucie agarrou as mãos de Eris e subiu em cima do sofá, enquanto Eris a apoiava nervosamente e cuidava dela. Foi uma visão emocionante, mas só pude saboreá-la por alguns instantes. Então voltei para a quarto onde deixei Luke.

Ele já havia recuperado a consciência quando voltei.

— Tive um sonho com um anjo ruivo. Ela era linda e doce, mas também era tão forte. Minha mulher ideal. Mas quando tentei beijar a mão dela, acordei. — Ele estava sentado, os olhos vazios enquanto murmurava incompreensivelmente para si mesmo.

Deve ter sofrido algum dano cerebral depois do soco da Eris. Espere, não pode ser isso. Ele estava dizendo aquela merda de anjo antes de ela bater nele.

— Por favor, acalme-se, Mestre Luke. Não existe anjo ruivo.

— Ah, Rudeus. — Ele olhou para mim distraidamente. — Espera, o que está fazendo aqui? Hã? Onde estou… estou na sua casa? Eu estava no portão da frente agora há pouco, e aquele anjo… O que está rolando?

Suas memórias estavam confusas. Pelo menos não parecia que tinha encontrado o Deus-Homem durante seu breve lapso de consciência.

— Aah! — Luke olhou para trás de mim e gritou.

Olhei para trás e Eris estava lá. Ela abriu a porta e estava olhando para dentro.

— Hmph! — Ela deu uma olhada em Luke, bufou e marchou de volta para a sala de estar. Pelo que parecia, estava um pouco preocupada com ele.

O coração da minha frágil donzela estava batendo de preocupação. Não me diga que ela já começou a desenvolver sentimentos por ele? Isso não pode ser verdade, certo?

— Ah, espera! Seu nome, por favor, pelo menos me dê seu nome! Se você também puder me dar seu endereço e me dizer sua flor favorita, eu ficaria eternamente grato! Ah, e ficaria encantado se pudesse me dizer que tipo de homem gosta!

— Por favor, acalme-se — eu disse. — O endereço dela é aqui. É aqui que ela mora.

Consegui impedir Luke de segui-la para fora do quarto, mas ele me agarrou pelos ombros e aproximou o rosto.

— Rudeus, se ela mora aqui, isso deve significar que você é parente, certo?! Diga-me, quem é ela?!

— O nome dela é Eris Greyrat. Nós acabamos de nos casar.

— Quê… Você se casou…? — Luke congelou. — Então isso significa… que ela é sua mulher?

— Sim, isso mesmo.

Dada a nossa dinâmica de relacionamento, provavelmente era mais adequado dizer que eu era o homem dela, mas o significado era o mesmo.

— Oh… — A voz dele foi sumindo.

Por instinto, eu disse:

— Sinto muito.

Luke balançou a cabeça.

— Por que você se desculparia? É como diz o ditado: deus ajuda quem cedo madruga.

— Suponho que seja verdade.

Depois de ouvir sobre a linha do tempo alternativa de Orsted, não pude deixar de me sentir culpado. Luke e Eris originalmente deveriam ser um casal. A situação era parecida com receber uma encomenda e descobrir que estava no nome do vizinho.

Mesmo assim, isso não mudou nosso passado juntos. Eu que fui seu tutor e viajei até o Continente Demônio com ela. Tínhamos compartilhado nossa primeira experiência sexual juntos.

Luke suspirou.

— Não é tão raro ver boas mulheres se apaixonarem por um único homem. Ou para bons homens se apaixonarem por uma mulher solteira. — Seja qual for a razão, ele continuou: — Os homens muitas vezes mantêm um número de mulheres para si mesmos, mas o oposto é praticamente inédito. Foi assim que deus nos fez humanos. Afinal, um homem pode dar sua semente a várias mulheres, mas uma mulher só pode ter o filho de um homem por vez. Parece que existem mulheres demoníacas que podem ter vários bebês de homens diferentes ao mesmo tempo, mas o mesmo não pode ser dito da nossa raça.

Ele estava certo disso a partir de sua perspectiva masculina tendenciosa. Claro, quem era eu para falar? Mas, não querendo me defender aqui,  acho que é perfeitamente razoável que desse certo para ambos os lados. Tipo, uma mulher e vários homens. Um harém inverso.

— Boas mulheres tendem a se reunir em torno do homem que detém mais poder — continuou Luke. — Você tem poder, dinheiro, status e prestígio. Entendo por que aquele anjo, a Senhorita Eris, escolheu estar com você. Então… — Ele fez uma pausa e balançou a cabeça. — Não, não é isso. Eu não vim até aqui para ter essa conversa com você. — Luke soltou outro grande suspiro. — Vim aqui porque tenho algo para te pedir.

— Oh? — Eu me sentei.

O momento era muito conveniente. Fazia sentido pensar que ele era lacaio do Deus-Homem, tentando mudar o curso da história. Eu não conseguia evitar essa suspeita, mas o ouviria de qualquer maneira. Presumi que tentaria encontrar alguma maneira de me levar em direção à minha própria destruição ou tentar impedir a ascensão de Ariel ao trono.

— Você nos emprestaria… quero dizer, emprestaria sua ajuda à Princesa Ariel?

Não consegui acreditar no que acabei de ouvir.

O que estava acontecendo? Ele está pedindo minha ajuda? Não era para me pedir o oposto?

Não, eu tinha deixado perfeitamente claro que iria ajudá-la se necessário. Ele não estava se aproximando de mim com tal pedido do nada.

— É claro. Eu ficaria mais do que feliz, mas por que você está perguntando isso quando eu já disse que ajudaria?

— Suas habilidades com magia e capacidade de fazer amizade com pessoas de personalidades difíceis são surpreendentes. Além disso, demonstrou suas capacidades de luta voltando para casa vivo de uma batalha com o Deus Dragão. Ele até o aceitou como seu subordinado. Verdadeiramente, tais feitos deixam qualquer um sem palavras.

Tudo bem, fico um pouco desconfortável quando você se esforça para me elogiar assim.

— No entanto, temíamos que envolver você perturbasse a felicidade de Sylphie. — Luke ergueu a cabeça. — É por isso que nunca pedimos a sua ajuda até agora. Não podíamos. Nem a Princesa Ariel nem eu desejamos envolver Sylphie nessa luta pelo poder mais do que já a envolvemos.

Ele tinha dito isso antes, quando nós dois duelamos.

— Mas… — Luke baixou o olhar.

Ele era bonito o suficiente para que tal pose o fizesse parecer mais um herói torturado. Não era de admirar que a maioria das mulheres se apaixonava por ele com facilidade.

— Nos últimos seis anos, exercemos nossa influência com as Nações Mágicas para recrutar vários nobres e artesãos ao nosso lado. Entre eles estão alguns nobres que nasceram em Asura, e até mesmo alguns com grande influência política lá. Mas não foi o suficiente para nos assegurar uma vitória decisiva. Afinal, essas pessoas ainda são forasteiras aos olhos do reino.

— Hhm — eu disse.

— No entanto, Lorde Perugius poderia virar o jogo para nós. Ele tem enorme influência no reino, além de sua força de carisma e impressionante poder marcial. Se o tivéssemos ao nosso lado, isso contribuiria para o caminho da Princesa Ariel até o trono. A vitória não estaria garantida, é claro, mas ao mesmo tempo não acho que podemos ter sucesso sem a ajuda dele. A Princesa Ariel precisa de alguém de reputação impressionante para apoiá-la.

Luke estava falando sério. Ou pelo menos não detectei nenhum engano ou segundas intenções. Ele acreditava sinceramente que Perugius era necessário para Ariel reivindicar o trono. Orsted, da mesma forma, tinha uma alta opinião sobre Perugius.

Ele balançou a cabeça, acrescentando:

— Mas, apesar disso, Sua Alteza quase desistiu de tentar persuadi-lo a se juntar a nós.

— Bem, dado o que está acontecendo, eu realmente não posso culpá-la — eu disse. Quando os vi pela última vez, Perugius tinha tanto interesse por ela quanto no chão em que pisava. Em outras palavras: nada.

— Claro, encontrá-lo foi pura sorte, para começo de conversa — disse Luke. — A Princesa Ariel diz que vamos nos virar sem ele. Concordei com ela. Se passarmos mais alguns anos fortalecendo nossas fraquezas, provavelmente seremos capazes de reivindicar a vitória sobre seus oponentes.

Essas foram palavras intrigantes. De acordo com Orsted, restavam pouco mais de vinte dias antes da notícia de que o governante do reino havia adoecido. Se Luke estivesse em contato com o Deus-Homem, ele não estaria falando como se tivessem vários anos pela frente, considerando que ele o teria alertado do que estava por vir.

— Realisticamente, no entanto, seria difícil. Sem a ajuda de Lorde Perugius, sofreríamos grandes perdas mesmo que ganhássemos. E outros problemas podem surgir depois que ela garantir a coroa.

Com base no que ele estava dizendo, Ariel tentava desencadear conflitos internos no reino. Ela precisava assumir a liderança nesta luta pelo poder, enganando seus oponentes e vencendo-os em seu próprio jogo para que pudesse ser a última sobrevivente. Estava de olho na posição suprema de poder no país mais poderoso do mundo. Esse trono não poderia ser reivindicado apenas com palavras. Eles precisariam lutar por isso.

Mas a luta continuaria mesmo depois que a meta fosse alcançada. Se ainda existisse resistência a seu governo, caso ainda tivesse aqueles que alegassem que ela não era digna, Ariel poderia perder tudo depois de usar todo o seu capital político para se tornar rainha.

Perugius, no entanto, poderia atuar como um impedimento para tal oposição. Como um dos três heróis que mataram o Deus Demônio, ele ainda dominava o reino. Nem todo nobre se ajoelharia com ele presente, mas certamente calaria muitos deles se o Rei Dragão Blindado Perugius anunciasse seu apoio ao governo de Ariel. Por este motivo Luke estava desesperado para ter seu apoio.

— E… a fim de ter certeza absoluta de que podemos alcançar a vitória, eu gostaria de sua ajuda — disse Luke.

— Você sabe que eu não sei nada sobre política, certo? É perfeitamente possível que eu não seja de nenhuma ajuda.

— Você é alguém muito maior do que parece imaginar. Será muito útil apenas ao ser você mesmo.

Cocei minha cabeça.

— Eu não sou tão bom.

— Bom ou não, é um guerreiro confiável e tem contatos. Conhece Lorde Perugius, o Deus Dragão, um rei demônio, o neto do papa Milis, toda a tribo Doldia e a Sete Estrelas Silenciosa. Seus contatos por si só são impressionantes, e nem estamos pedindo que você os use. É o fato de você estar tão bem conectado que prova que possui algo especial. Eu gostaria que compartilhasse um pouco disso com a Princesa Ariel.

Fiquei em silêncio.

Talvez eu suspeitasse de um motivo oculto por trás dos elogios de Luke pelo fato de eu não ter muito contato com ele. Ainda assim, eu me perguntava… Ele era realmente o fantoche do Deus-Homem ou não? Orsted já havia me ordenado a ajudar Ariel, então eu teria ajudado se Luke tivesse pedido ou não. Entretanto, ele ter previsto minhas ações me fez questionar se estava fazendo isso por vontade própria.

Talvez eu devesse tentar algumas perguntas capciosas e ver o que ele diz.

— Quem ordenou que você viesse me ver? — perguntei.

— Ordenou? Se está se referindo à Sua Alteza, ela não fez tal pedido.

— O que significa que alguém te aconselhou a vir até mim?

Luke balançou a cabeça.

— Foi decisão minha apenas.

— E o nome Deus-Homem lembra alguma coisa?

— Deus-Homem? Lembro-me de ouvir esse nome quando visitávamos Lorde Perugius. Quem exatamente é esse?

Bem, se estivesse em conluio com o Deus-Homem, não mostraria suas cartas na manga tão facilmente. O Deus-Homem nunca me pediu para manter nossa associação em segredo, mas não havia como saber se não proibiria outras pessoas de falar sobre ele.

Luke me olhou, perplexo com minha pergunta, mas depois de alguns momentos, ele coçou a parte de trás da cabeça e disse:

— Acho que parece que estou me contradizendo. Desejamos a felicidade de Sylphie, e é possível que possamos roubá-la disso envolvendo-a em nosso conflito com o reino. Se eles nos rotularem como insurgentes, nem mesmo as Nações Mágicas serão capazes de nos proteger.

Essa parte também me assustava. Não havia como sabermos o que aconteceria se fizéssemos de Asura um inimigo. De acordo com meu diário do futuro, Sylphie morreu como resultado, e o Reino Santo de Millis conseguiu matar Zanoba. Claro, eu poderia lutar decentemente. Se liberasse minha magia em seu potencial máximo, poderia até eliminar um enorme número de inimigos de uma vez. Eu até seria temível em combate corpo-a-corpo assim que minha Armadura Mágica fosse reparada. Orsted admitiu que não podia se conter ao me encarar naquela armadura.

Dito isto, era ingênuo esperar vencer todas as batalhas que se travava de frente. Nem mesmo um idiota enfrentaria um lutador profissional de mãos vazias. Para derrotar alguém assim, é possível apunhalá-lo pelas costas, envenená-lo ou usar dinheiro para pressioná-lo a se submeter. Se não pode derrotar alguém usando apenas o poder, só tinha que usar alguns outros meios.

Meu futuro eu havia fortificado suas defesas ao estabelecer uma forte relação com o Reino Asura. O suficiente para que não viessem atrás dele, pelo menos. Melhor ainda, eles ainda o valorizavam o suficiente para recusar o pedido do Reino Santo para entregá-lo.

O que aconteceria desta vez? Com Léo em nossa casa, os outros países se conteriam, não querendo prejudicar seu relacionamento com a tribo Doldia? Quão bom protetor ele provaria ser? Orsted me garantiu que eu ficaria bem enquanto tivesse minha Besta Guardiã. De acordo com ele, Léo seria perfeitamente capaz de manter minha família segura, já que tinha seu próprio destino forte.

Mas aquele cachorrinho pode realmente proteger minha família sozinho?

— No entanto — disse Luke —, já que você tem o Deus Dragão te apoiando, acho que não vai manchar toda a alegria de Sylphie se a envolvermos agora.

Eu não estava tão certo sobre isso. Havia lugares onde a influência de Orsted não tinha poder. As pessoas deste mundo poderiam ter ouvido falar dos Sete Grandes Poderes, mas não pareciam perceber o quão fortes eram, ou quão inumanas suas habilidades eram.

— Ter o apoio do Deus Dragão não significa que minha vida não estaria em risco — eu disse.

— Isso é verdade — admitiu Luke. Ele respirou fundo e olhou diretamente nos meus olhos. — Mas é exatamente por isso que só precisamos do seu apoio na superfície por ora. Quero que a Princesa Ariel seja rainha, custe o que custar. — Ele olhou para mim com brilho nos olhos.

Encontrei seu olhar sem vacilar, surpreso com o quão forte era. Sua determinação me lembrou a de Ruijerd, como se ele estivesse disposto a jogar tudo fora para atingir seu objetivo.

— E por que isso? — perguntei.

Depois de uma longa pausa, Luke respondeu:

— Foi o último pedido de um amigo falecido. — Eu logo soube que ele estava se referindo a Derrick Redbat. — Por favor, poderia emprestar sua força à Princesa Ariel?

Presumi que não estava me prometendo nada em troca, pois veio por vontade própria, não por um pedido de Ariel. Em vez de oferecer um acordo, ele estava pedindo um favor.

Esfreguei o queixo. Em retrospectiva, eu ainda era eu mesmo quando o Deus-Homem estava puxando as cordas. Ele me deu conselhos, mas eu estava desesperadamente quebrando a cabeça para interpretar suas palavras e descobrir a melhor forma de proceder. Talvez o mesmo fosse verdade para Luke. Talvez ele estivesse tentando o seu melhor para procurar um caminho a seguir. Se fosse esse o caso, eu queria ajudá-lo.

Restava um único problema. Meu oponente não era Ariel nem o Reino Asura. Era o Deus-Homem. Se houvesse alguma possibilidade de que juntar-me a Ariel tinha algo a ver com o plano do Deus-Homem, eu primeiro precisava consultar Orsted.

— Você me permitiria procurar o conselho daqueles ao meu redor antes que eu lhe dê uma resposta? — perguntei.

Luke sorriu, apesar de parecer que queria chorar. Pelo que parecia, pensou que essa fosse minha maneira de recusá-lo. Ele se levantou e, depois de uma longa pausa, disse:

— Tudo bem. Desculpe incomodá-lo.

— Não se preocupe. Darei minha resposta oficial em alguns dias. Prometo.

Seus ombros caíram enquanto saía do quarto. Eu o segui, com a intenção de acompanhá-lo até a saída. Atravessamos o corredor e fomos em direção à porta da frente. Léo estava no topo da escada, da mesma forma que antes, olhando para nós. Ele soltou um rosnado baixo, como se quisesse deixar Luke saber que não passaria por ele até o segundo andar.

Isso significa que Luke é mesmo suspeito? Embora eu não tivesse ideia se Léo podia farejar os fantoches do Deus-Homem apenas com o olfato.

— Oh… — Eris espiou da sala de estar ao ouvir o rosnado.

Luke imediatamente colocou a mão no peito e se curvou.

— Senhorita, percebo que eu ignorava sua identidade antes, mas ainda peço desculpas pelo meu comportamento rude. Espero que nos encontremos novamente algum dia.

Eris se abaixou para pegar a saia e fazer uma reverência, mas percebeu tardiamente que usava calças. Ela fez uma careta, sentindo-se estranha, e cruzou os braços sobre o peito.

— Eu me certificarei de entretê-lo adequadamente na próxima vez.

— Aprecio o que diz, mesmo. Bem, se me der licença.

Antes que ele tivesse a chance de sair, alguém bocejou de cima de nós.

— Eris, por favor, não grite assim. Todo mundo ainda está dormindo — disse Sylphie enquanto descia as escadas. Ela deve ter ido lá para cima depois que eu a verifiquei mais cedo na cozinha. Seus olhos ainda estavam pesados de sono. Aparentemente, ela voltou para a cama. Quando seu olhar pousou em Luke e em mim, ela disse:  — Oh, bem-vindo de volta, Rudy… hm? Luke, você por aqui? Por quê? Aconteceu algo com Sua Alteza?

— Eu… tinha uma tarefa para resolver e decidi dar uma passada.

— Huh. Bem, não precisa ter pressa, então. Posso preparar um chá para você — ofereceu Sylphie.

— Não, eu deveria ir embora.

— Tudo bem. Voltarei em breve, por isso tome conta da princesa por mim até lá.

— Pode deixar. — Luke sorriu desolado ao sair. Sylphie e eu o seguimos até o portão e nos despedimos. Sua figura recuando me lembrou de um assalariado solitário, completamente exausto enquanto voltava para casa do trabalho.

— O que deu nele? — perguntou-se Sylphie.

Eu não respondi, mas não pude deixar de sentir como se algo tivesse sido colocado em movimento. Não importa como eu decidisse agir sobre isso, não poderia fazer um trabalho meia-boca. Com isso em mente, era hora de reportar a Orsted.

 


 

Tradução: Taiyo

Revisão: Guilherme

 

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