Mushoku Tensei: Reencarnação do Desempregado

Mushoku Tensei: Reencarnação do Desempregado – Vol. 14 – Cap. 11 – Um Começo e Um Fim

 

O velho veio do futuro; ao menos foi o que ele disse. Sinceramente, eu não entendi muito bem, mas ele realmente parecia um pouco comigo.

— Futuro… então você é eu no futuro?

— Isso mesmo. Sou você daqui a, mais ou menos, 50 anos.

Ele claramente não fazia rodeios para falar. Porém, como tinha sido muito repentino, eu não sabia se devia acreditar ou não. Por outro lado, ele sabia meu nome. Eu nunca havia o mencionado e jamais teria. Talvez existisse uma forma de utilizar a magia para ler a mente das pessoas.

Dito isso, reencarnei neste mundo com todas as minhas memórias intactas. Então não seria um exagero considerar que a viagem no tempo também pudesse existir. Não tinha como saber se ele estava falando a verdade ou não.

— Desculpa, mas não tenho tempo para te explicar os detalhes sobre a viagem no tempo — falou.

— O que quer dizer?

— Exatamente o que você ouviu. Sei que parece uma frase retirada de um filme Hollywoodiano, mas realmente não tenho muito tempo. Você precisa me ouvir.

Ele fez aquela referência a Hollywood sem nem piscar. Isso significava que tinha que ter alguma conexão com minha vida passada. Talvez realmente fosse minha versão do futuro.

Em seus olhos havia um brilho e uma escuridão oculta. Ele, sinceramente, parecia ser alguém que matava diariamente. Havia uma certa frieza em seu olhar, como se não se importasse com a vida de outras pessoas. Eu estava destinado a me tornar uma pessoa assim no futuro? Não podia ser; era difícil de acreditar. Porém, ainda assim, ele tinha uma expressão honesta em seu rosto.

Certo, vamos assumir que ele seja eu daqui a 50 anos e, pelo menos, escutar o que tem a dizer.

— Não há nada no porão — revelou ele. — Ao menos foi o que pensei quando desci e não encontrei nada. Me senti calmo nos dias seguintes, já que o Deus-Homem havia dito que não precisava me preocupar se não encontrasse nada. — O velho homem contorceu seu rosto para uma expressão de nojo. — Mas eu estava errado, e agora posso te dizer o porquê.

Ele levou um dedo, o indicador esquerdo, até sua testa, como se estivesse se lembrando do incidente.

Espera, o quê? Uma mão normal?

— Preste atenção. Acho que tem um rato no porão; um doente. Ele provavelmente tem dentes roxos, parecidos com pedras mágicas. Não faço ideia de onde ele saiu ou como chegou lá. Provavelmente se escondeu na minha bagagem enquanto eu estava na      fortaleza flutuante de Perugius, mas isso não importa agora.

O velho abriu sua mão e bateu seu outro punho contra ela.

— Ao descer para o porão, você irá assustar o rato que, por sua vez, irá fugir para a cozinha. Lá, ele vai mexer nos restos de comida que você deixou. Aisha vai encontrá-lo morto no dia seguinte e vai jogar tudo fora.

Permaneci em silêncio e somente o escutei.

— Aisha irá se livrar das sobras dando-as para um gato de rua comer.

A mão esquerda dele não é protética. Então ele não sou eu? Ou encontrou alguma forma de restaurar sua mão perdida nesses 50 anos?

— Mas, antes disso, Roxy irá ficar com fome e descerá de seu quarto para comer um pouco das sobras. Consequentemente, vai pegar a doença que o rato estava carregando.

— O quê? A Roxy vai ficar doente? — A menção ao nome dela me fez voltar a focar na conversa.

— Ela vai sofrer da Síndrome da Petrificação.

Senti como se já tivesse escutado esse nome antes. É mesmo. Aparentemente é uma doença que só pode ser curada com magia de desintoxicação de nível Deus. Era uma doença incurável que fazia os infectados se tornarem pedras mágicas lentamente. Mas onde foi que ouvi isso?

— No início nós não percebemos. Afinal de contas, é extremamente raro que alguém se infecte com a Síndrome da Petrificação. Os patógenos só conseguem se desenvolver se uma vida estiver sendo gerada dentro da pessoa.

— Espera, então isso quer dizer…

— Sim, foi uma criança que não nasceu. Essa doença só afeta mulheres grávidas. Fiquei surpreso quando descobri isso.

— O quê? M-Mas a Roxy não…

— Ela está grávida — disse ele. — Não deveria ser tão surpreendente. Vocês transam, então é óbvio que aconteceria em algum momento.

Espera, a Roxy está grávida?

Uau. Essa era uma notícia extremamente feliz, mas, mesmo assim, estava sendo dita da pior maneira possível.

— Por alguma razão, alguns ratos são resistentes à doença e acabam agindo como transmissores da Síndrome de Petrificação. É possível reconhecê-los só com um olhar, pois seus dentes viram cristais roxos. Eles transmitem a patologia para tudo que mordem. Ela somente pode ser transmitida oralmente e os patógenos não sobrevivem por muito tempo após sair de seu hospedeiro; leva, no máximo, cerca de meio-dia para que morram. Além disso, não é muito contagiante, já que só infecta mulheres grávidas.

— …

— Os patógenos se alojam dentro do feto e o transformam. A partir daí, passam a transformar o corpo da mãe em pedra.

Então Roxy iria se infectar com essa doença?

— Se você for descuidado e descer até o porão, vai assustar aquele roedor. No dia seguinte, Aisha irá reclamar para você sobre um corpo de rato estranho que encontrou na casa. Duas semanas depois, você ouvirá sobre um gato ter sido infectado pela Síndrome da Petrificação; Roxy vai desmaiar de febre pouco tempo depois.

Hesitei antes de, finalmente, perguntar:

— E o que vai acontecer com ela?

— Ela vai morrer.

A resposta foi tão franca e direta que me deixou sem palavras.

— Ela vai perder seus movimentos lentamente até ficar de cama. Seus pés irão começar a se transformar em pedra e, neste momento, você perceberá que ela está com a Síndrome de Petrificação.

— Ela não melhorou no seu caso? Você não procurou uma cura?

A tristeza tomou conta de seu rosto conforme ele passou a olhar para o chão.

— Fiquei desesperado para salvar ela; até mesmo fui para o País Sagrado de Millis para procurar uma cura. Consegui aprender a encantação necessária para curá-la, mas muita coisa aconteceu, então levei tempo demais para voltar. Quando finalmente cheguei, já era tarde demais: metade de seu corpo já havia sido transformado. Ela já havia morrido.

— Não pode ser…

Ele, imediatamente, levantou sua cabeça e me encarou com o olhar intenso que havia voltado aos seus olhos.

— Esse incidente estará conectado com algo que irá acontecer daqui a 30 anos. Tudo acontecerá por causa do que o Deus-Homem disse. Não seja enganado. Você tem as memórias da sua vida passada, então deveria entender: ele é a raiz de todo o mal desse mundo, o chefão.

— Mas por que ele está atrás da Roxy?

— Eu não sei a resposta disso até hoje. No entanto, sei que ele está agindo com algum objetivo em mente. A última coisa que ele me disse foi: “Graças à sua idiotice, tudo aconteceu como o planejado.” — Ele cerrou os dentes. — Merda.

O Deus-Homem realmente disse isso? Hmm…

— Talvez Orsted ou Laplace saibam os objetivos dele. Não consegui os encontrar nesses 50 anos. É provável que você também não consiga, caso tente.

— Nem mesmo Nanahoshi soube onde encontrar Orsted?

Sua expressão ficou triste quando ouviu o nome dela. Talvez ela realmente não soubesse.

— Nunca a perguntei, mas talvez seja uma boa ideia você perguntar. Mesmo que ela não saiba a localização exata dele, é inteligente o suficiente para pensar em todas as possibilidades possíveis com o teletransporte, então deve conseguir pensar em algo.

— O que aconteceu com Nanahoshi?

Ele apertou seus lábios e não respondeu. O olhar triste em seu rosto já expressava tudo que eu precisava saber, mas, após uma pausa, ele finalmente respondeu:

— Ela falhou bem no final. Eu não soube a confortar e, então…

Ela não conseguiu voltar para casa? Então deve ter se desesperado e tirado a própria vida.

— Tá bom. Não precisa falar mais nada.

— É, eu também não quero falar disso. — Ele levantou seu rosto e tentou recuperar sua compostura. — Também há uma outra coisa que é importante. Você descobriria isso daqui a 10 anos, mas o Deus-Homem não é chamado dessa forma pelas pessoas.

— Como assim?

— Ele é um deus dos humanos. Em outras palavras, é o Deus dos Homens. Todos que ouviram falar dele, o conhecem como “o Deus dos Homens”. Apenas os que o conheceram sabem do nome “Deus-Homem”. Eu não faço ideia do motivo de ele querer ser chamado assim, mas assumo que seja a maneira dele tirar sarro das pessoas.

Agora fez sentido. Era por isso que algumas pessoas (Orsted) reagiram de maneira tão exagerada após escutar esse nome. As únicas pessoas que o conheciam eram as que tinham o encontrado e sido enganadas por esse deus.

— No início, ele parecia falar somente coisas que me beneficiavam. — O velho fechou sua mão novamente. Seu ódio parecia queimar como uma chama intensa em seus olhos. Uma sede de sangue irradiava dele, mas, por algum motivo, eu não achava assustador. — Ele não mentiu nenhuma vez para você, até agora. Pelo menos até onde eu e você sabemos.

Seu punho começou a tremer e algo brilhou dentro dele, estalando igual eletricidade.

— Mas havia um motivo por trás disso tudo: ele queria fazer você perder sua cautela, para que o obedecesse sem questionar.

Embora eu estivesse impressionado e encarando as faíscas que estavam saindo de sua mão, também me preparei para caso ele tentasse algo.

— Não se deixe ser enganado! Você já leu mangás, não leu? Sabe que as pessoas que mais falam sobre confiança são sempre as que te enganam.

— Sim. Eu sei, mas…

Ele rebateu:

— Não, você não sabe de nada! Depois da Roxy, será a Sylphie. Você vai estar extremamente triste pela morte da Roxy, então não vai nem mesmo pensar na Sylphie por um tempo. Por causa disso, ela vai ficar chateada e vai começar a sofrer de depressão. Com isso, o Deus-Homem vai se aproveitar desse momento para manipular o Luke.

— O Luke? Sério?

— Sério. Depois você vai ouvir isso da garota que estava saindo com ele na época: “Ele, de repente, acordou com pressa em um dia e afirmou ter ouvido a voz de Deus.”

— E… o que acontece depois disso?

— O Luke aconselha a Ariel a voltar depressa para Asura e Sylphie te abandona para ir junto com eles. Ariel continua em desvantagem após não conseguir o apoio de Perugius, mas ainda tenta se agarrar à sua pequena chance de vitória e começa uma guerra civil. No entanto, ela é derrotada e Sylphie morre em batalha.

A Sylphie… morre?

— Você vai perder as duas. — O homem balançou sua cabeça e cerrou seus dentes. — Ainda consigo escutar a voz do Deus-Homem revelando todas as suas artimanhas para mim. Aquela risada aguda… a sensação da mão dele tocando no meu ombro enquanto me dizia “obrigado por toda a ajuda.” Merda… porra!

Foi possível ver uma eletricidade tão brilhante quanto o sol do meio-dia ao redor dele, quando bateu seu punho em minha mesa. A luz desapareceu em um instante, mas a minha mesa permaneceu com uma parte queimada. Após finalmente recuperar sua compostura, o velho respirou fundo.

— Vou dizer mais uma vez: não confie nele. Caso contrário, vai se arrepender. — Após terminar de falar, ele colocou a mão em sua barriga. Sua expressão estava cada vez pior. — Eu não tenho muito tempo, mas acho que, mesmo depois de eu dizer tudo isso, você não vai saber o que fazer. — Seu rosto estava extremamente pálido e marcas escuras estavam começando a aparecer abaixo de seus olhos.

O homem respirou pela boca e forçou o ar a sair de novo. Ele parecia estar à beira da morte. Estava doente?

— Primeiro… Isso, a Eris.

Franzi a testa após ouvir o nome dela.

— Quero que escreva uma carta para ela o mais rápido possível. Diga que você pode ter a traído um pouco, mas que ainda a ama.

— Não, eu não amo — falei sarcasticamente. — Ela é a culpada de eu ter sofrido de disfunção erétil.

— Você é um homem, não é? Perdoe ela. Você consegue fazer isso.

Franzi minha testa.

Ele soltou uma risada autodepreciativa.

— Bom, eu não consegui. Nós dois não nos demos bem por vários anos.

— Como assim?

— Ela me deixava à beira da morte frequentemente, me seguia em todos os lugares que eu ia e, toda vez que me encontrava, me atacava bruscamente. Mas, mesmo assim, controlava a força de seus socos. Ela conseguiria me matar, caso realmente quisesse, mas nunca me atacou quando eu estava mal. Na verdade, quando eu estava em apuros, ela me ajudava das sombras; parecia o Vegeta de Dragon Ball.

Vegeta? Sério…?

— De qualquer maneira, ela não é o príncipe dos vegetais1Referência a uma paródia do Vegeta. Ela sempre te amou; só quer ficar com você. Foi por causa desse sentimento que se esforça ao máximo em tudo que faz. No entanto, também é horrível com as palavras e não sabe se expressar, então tudo que consegue fazer é “falar com os punhos”.

Até agora isso parece perfeito, mas eu já tenho duas esposas e uma filha. Claro que devo ter amado a Eris em algum momento, mas… isso ficou no passado. Talvez seja um passado que eu ainda precise superar, mas já foi.

— Eu já tenho a Sylphie e a Roxy.

— Não tem problema. Sylphie é mente-aberta e a Roxy não acha que te merece, então também irá te perdoar. Eris também aceitará, se explicar tudo antes de a encontrar. Além disso, você ainda ama ela, não ama? Ah, talvez seja melhor te avisar: Esteja preparado para levar um soco dela. Esse é o tipo de mulher que ela é.

— Eu entendi o que você quis dizer, mas…

— Você estará cercado de mulheres que te amam. Qual é o problema nisso? Parece maravilhoso. Não me diga que não vai aguentar o tranco…

— Não fale como se não tivesse nada a ver com você.

— Eu já perdi todo mundo — disse. — Estou te falando isso porque você é eu.

Suas palavras pareciam ter um peso estranho, mas…

— Ainda tenho que assumir a responsabilidade de cuidar de Roxy e de Sylphie.

— “Se formos falar de responsabilidade, você também tem esse dever com Eris. Ela se esforçou por você durante esse tempo todo. Se não percebeu, ela só é péssima em se expressar, mas nunca parou de se esforçar pelo seu bem. Se acha que deve algo para alguém, então que tal olhar para ela e para o quanto ela se empenhou?” A Ghislaine vai jogar isso na sua cara enquanto você… observa o corpo de Eris.

O corpo…?

— A Eris também morre…?

— Sim, me protegendo. Acho que foi… quando desafiei Atofe pela segunda vez. Aquela rei demônio era mais terrível do que eu tinha pensado. Deixei minha guarda baixa — disse ele enquanto apertava seus lábios, como se fosse uma memória distante.

Quão forte eu vou ser no futuro para conseguir deixar minha guarda baixa contra alguém como Atofe? Ele realmente é eu? Estou duvidando cada vez mais.

— Você tem que enviar essa carta, entendeu? Se começar a agir agora, pode não ser tarde demais para evitar ter os mesmos arrependimentos que eu.

— Hm, tá bom. Já que você insistiu tanto nisso, eu envio; mas para onde?

— Para o Santuário da Espada. Você provavelmente já deve ter percebido que ela está lá.

O Santuário da Espada não era tão distante de Sharia. Ele estava certo: eu realmente tinha uma sensação de que ela pudesse estar treinando lá.

— Tá bom.

— Não escreva nada que possa afastar ela — avisou. — Se ela se desesperar, será o seu fim.

— Eu sei.

Eu sabia muito bem o tipo de pessoa que Eris era, ou, pelo menos, costumava saber. Se o que ele tinha falado era verdade, então ela nunca quis me abandonar. Eu simplesmente não tinha percebido isso durante esse tempo todo. Após pensar no que ele falou, lembrei de que ela realmente era péssima com as palavras. Não seria surpresa nenhuma se seus sentimentos não tivessem sido expressados direito naquela carta e isso gerasse mal-entendidos, consequentemente fazendo com que eu ficasse sem rumo.

— Uff… — O velho suspirou e, em seguida, tremeu por parecer ter lembrado de algo e levantou seu rosto. — Além disso, esqueci de te dizer uma coisa importante: não trate o Deus-Homem como seu inimigo.

— O quê? Mas você disse que ele estava me enganando.

— Sim, mas você não conseguiria derrotá-lo. Eu mesmo não consegui, já que nunca o encontrei. — A voz dele estava repleta de angústia.

Ele quis dizer que nunca o encontrou fisicamente? Então o espaço em que o Deus-Homem vive não está neste mundo?

— Meu corpo inteiro tremeu quando percebi que jamais conseguiria me vingar por Roxy ou por Sylphie. Dei meu melhor para derrotá-lo, mas não consegui nem mesmo chegar perto dele. Posso manipular a eletricidade e a gravidade, mas o Deus-Homem jamais chegaria perto o suficiente para que eu fizesse uso disso contra ele.

O homem apontou para um tinteiro que estava em minha mesa, que levitou por alguns segundos antes de cair novamente em minha mesa fazendo barulho enquanto espirrava algumas gotas de tinta.

— Eu posso levitar as coisas, posso enviar mensagens a longas distâncias e, até mesmo, fazer um braço crescer de novo. Além de tudo isso, também consegui viajar no tempo e voltar para o passado — pausou. — Por mais que essa magia tenha sido uma falha.

Uma falha? Qual parte dessa magia era uma falha? Ele estava bem na minha frente, não estava?

— Tenho certeza de que já começou a perceber isso, mas, neste mundo, a magia é onipotente. Assim que entender isso, vai conseguir fazer qualquer coisa, ainda que precise de tempo, pesquisa e prática para aprender.

Ele levantou sua mão esquerda enquanto falava. A maneira como tinha a movido fez parecer que estava se gabando, mas seu rosto já havia ultrapassado a palidez; estava completamente branco. Os círculos ao redor de seus olhos estavam cada vez mais escuros e seus lábios estavam começando a ficar azuis.

— Mas todo esse poder não adiantou de nada. Já era tarde demais. Quando finalmente consegui ficar forte, todas as pessoas que queria proteger já tinham partido.

Ainda tinha um pouco de brilho em seus olhos, mas a força já tinha os deixado. Sua respiração estava irregular e rouca.

— Você entendeu o que eu disse? Vou dizer mais uma vez: odeio o Deus-Homem, mas também não consigo ganhar dele. Não há como derrotá-lo. Eu não consegui encontrar uma forma de alcançá-lo sozinho; os objetos necessários para chegar até ele não existiram durante meu tempo de vida. Por isso, não lute com ele. Não faço ideia de qual é seu objetivo, mas faça o que eu disse, mesmo que tenha que o bajular. Não se oponha a ele, deixe-o fazer o que quiser. E, então, enquanto todas as pessoas que você ama estão vivas…

Toda a força em sua mão se esvaiu, fazendo com que ela caísse. Ele levantou seu rosto e vagou com seu olhar pelo teto.

— Você precisa fazer três coisas: converse com Nanahoshi, escreva uma carta para Eris e duvide do Deus-Homem sem se opor a ele. Só isso.

Eu não o respondi. Tudo tinha ocorrido tão de repente que eu não sabia o que dizer. Mas uma coisa estava clara: ele estava desesperado para me dizer algo.

— V-Você não pode dar um conselho mais concreto do que esse? — perguntei.

— Conselho, né? Aah, isso é nostálgico. É verdade que eu costumava ser um preguiçoso quando estava na sua idade… Bom, eu amaria te dar mais detalhes e dizer tudo que sei, sabe…? Mas meu tempo acabou.

— Você só fala isso: que está sem tempo e que seu tempo acabou. O que isso quer dizer? Está com pressa para assistir um episódio especial de anime?

— Não, isso quer dizer que tudo acabou. Aliás, já que estamos nesse tópico, não dependa dos outros. Você não dependeu de ninguém quando chegou neste mundo. — Ele olhou para mim com a mesma emoção em seu olhar que teria ao olhar para seu neto.

Pensando bem, realmente estive dependendo muito das outras pessoas recentemente.

— Além disso, seu futuro já deve ter sido alterado pela minha vinda ao passado. As coisas que eu disse talvez não aconteçam mais. Porém, eu vir ao passado não mudará a história que eu vivi…

Em seguida, a luz sumiu de seus olhos; seus dois braços ficaram fracos e ele levantou seu rosto enquanto tentava puxar o ar dolorosamente.

— Ugh… Você vai… ter uma vida… diferente da minha… Vai obter o sucesso… e falhar… assim como sempre foi. Irá refletir… sobre seus erros… e se arrependerá também…

O velho se mexeu, o que fez com que caísse da cadeira.

— Ei, você está bem?! — Corri para seu lado e me assustei ao segurá-lo em meus braços. Mesmo parecendo ser bem musculoso, ele era inacreditavelmente leve. Provavelmente não estava pesando nem mesmo 40 quilos.

O que diabos há de errado com o corpo dele?

— Jamais… pense que… você pode… fazer igual a mim… e voltar do futuro… para corrigir seus erros. Essa magia foi uma falha… Não tem como… viver tudo de novo.

Seus olhos sem vida vagaram de um lado para o outro enquanto ele deslizava suas mãos trêmulas para dentro de seu robe.

— Usei esse diário como guia… para qual data eu deveria voltar… e o trouxe comigo. Escrevi… tudo nele. Por favor… faça o que puder… para garantir… que não se arrependa. Não deixe aquele desgraçado rir de você… como fez comigo.

Seus olhos inexpressivos começaram a lacrimejar enquanto ele retirava um livro enorme de seu robe. Suas páginas estavam desgastadas pelos anos de uso, mas parecia familiar; era o mesmo que eu havia feito momentos atrás.

A mão do homem caiu no chão assim que eu peguei seu diário. Contudo, não foi isso que chamou a minha atenção. Quando ele retirou seu diário, foi possível ver um pouco o que estava dentro de seu robe. Não havia nada onde seu estômago deveria estar.

— O que aconteceu com seu corpo?

— Ha… minha magia… estava incompleta. Não consegui trazer meu corpo inteiro… de volta no tempo.

— O quê? M-Mas você acabou de dizer que consegue até mesmo fazer seu braço crescer de novo.

— Não tenho mais nenhuma mana. Sinto muito… talvez tivesse sido melhor se Cliff ainda estivesse vivo… Só um pouco mais de tempo… ainda tenho informações…

— Sinto muito. Você já fez o suficiente. Não precisa dizer mais nada.

— Não quero que você… se arrependa… ou que as coisas aconteçam como o Deus-Homem quer… Por que justo agora…? Justo quando falta dizer tantas coisas… Se eu, pelo menos, pudesse ver elas de novo…

Ele já não estava mais olhando para mim ou para qualquer outra coisa. Já havia começado a dizer coisas vagas; suas frases não faziam mais sentido. A escuridão se espalhou por seus olhos, como se a sombra da morte estivesse o cobrindo.

Então é assim que as pessoas ficam antes de morrer… Não, enquanto morrem.

— Ah.

Seus olhos recuperaram o foco por um instante. Ele olhou para algo atrás de mim e levantou uma de suas mãos trêmulas naquela direção.

— Aah… Sylphie, Roxy… vocês são lindas demais…

Uma lágrima escorreu por sua bochecha enquanto a luz de seus olhos desaparecia por completo. Seu corpo perdeu toda a força e sua cabeça caiu para trás.

Ele havia morrido.

Olhei para trás, mas a porta ainda estava fechada. Como o homem havia feito um escândalo, pensei que alguém tivesse acordado e corrido para ver o que tinha acontecido. Ele devia ter alucinado em seus últimos suspiros.

Logo após eu pensar nisso, escutei passos apressados de alguém descendo as escadas.

— …!

Após eu sair rapidamente do quarto, encontrei Roxy e Sylphie segurando uma vela e uma arma em cada mão.

— Rudy, ouvi algumas vozes e um barulho. Tem alguém aqui?

— Talvez seja um ladrão.

As duas pareciam aliviadas por me ver, mas ainda estavam com a guarda alta.

Deveria contar sobre o velho para elas? Eu hesitei. É melhor não.

— Não há ninguém. — Finalmente falei. — Eu estava dormindo e tive um sonho estranho, então acabei lançando um feitiço sem querer. Creio que o barulho tenha sido causado por isso. Foi mal.

— Foi só um feitiço que você usou enquanto dormia? — perguntou Sylphie, sem acreditar. — Mas eu acho que escutei alguém gritando. Está tudo bem? Hmm… se está sendo difícil para você, que tal dormirmos no mesmo quarto? Sabe, a minha avó disse que sentir o calor de outra pessoa é o melhor remédio para o sofrimento de alguém.

— Não precisa. Tenho certeza de que eu faria alguma safadeza se dormisse com você, o que não seria bom, já que não se recuperou totalmente, não é?

Após eu recusar a oferta tentadora da Sylphie, Roxy fez uma careta.

— Se está tão ruim assim, você pode dormir comigo, por mais que eu tenha começado a suspeitar que… De toda forma, se puder ficar apenas nos toques…

— Nah, estou bem por hoje.

Apesar de Roxy não ter terminado o que estava dizendo, suas palavras me fizeram lembrar o que o velho havia dito; que ela estava grávida. Ela também achava isso, levando em conta a forma como havia falado.

— Está tudo bem mesmo, sério — assegurei a ambas. — Vocês duas podem voltar a dormir. Vou dormir depois de arrumar meu escritório.

Sylphie assentiu lentamente.

— Bom, já que você diz, tudo bem. Mas pode falar com a gente, caso precise de nós, viu?

— Nós somos casados, então não hesite em falar com a gente. De toda forma, boa noite.

As duas ainda pareciam estar muito preocupadas quando voltaram ao segundo andar. Observei elas irem antes de voltar para meu escritório.

Primeiro era necessário confirmar a veracidade do que o velho havia me dito. Eu não fazia ideia de quem ele era na verdade: se realmente era eu do futuro ou se era alguém completamente diferente. O que ele havia dito parecia ser verdade, considerando que havia arriscado a própria vida para me avisar. O complicado era que havia sido tão repentino que estava sendo difícil de acreditar.

— …

No entanto, havia um pensamento que não saía de minha cabeça.

Eu não quero perder elas.

E também não queria morrer com arrependimentos, como havia acontecido com ele.

Acompanhei elas até seus quartos para garantir que estavam seguras e as proibi expressamente de sair de novo nesta noite. Passei por todos os quartos no segundo andar e os fechei pelo lado de fora para prevenir que saíssem. Após isso, desci as escadas e vasculhei o primeiro andar para ter certeza de que ninguém estava lá. Assim que tive certeza de que a barra estava limpa, voltei para meu escritório para despir o velho.

— Quê…?!

Ele não tinha um estômago. Sob suas costelas somente havia um buraco onde só era possível ver ossos e pele. Ele praticamente não tinha vísceras. Deixando isso de lado, o resto de seu corpo era incrível. Era difícil de acreditar que esses eram os músculos de alguém em seus quase setenta anos. Além disso, estava repleto de cicatrizes de batalha. Havia uma particularmente estranha em seu peito; era como se sua pele tivesse sido colada de volta. No entanto, até mesmo as suas sardas estavam exatamente nos mesmo locais que as minhas.

Até onde vi, era extremamente igual a mim. A única coisa que nos diferenciava era que tinha uma mão esquerda funcional. Ele mencionou que ele mesmo havia a restaurado.

Ele deve ter sido muito habilidoso em magia de cura para conseguir fazer isso.

Ele não estava carregando nada além do diário e não estava utilizando nenhum acessório ou nem mesmo um cajado. Tudo que ele estava vestindo por baixo do robe era uma camisa, uma cueca e uma calça. Também não havia nada em seus bolsos.

Tenho certeza de que eu carregaria algum tipo de lembrança se Sylphie e Roxy morressem.

Por outro lado, ele devia ter passado por diversas coisas ao longo desses 50 anos que poderiam fazer com que perdesse essas recordações.

Após deixar esses assuntos de lado, enrolei o corpo do velho em um lençol que estava por perto e passei pela cozinha enquanto o carregava em direção à porta dos fundos.

Parei quando encontrei algumas sobras da noite anterior no balcão; estavam empilhadas em um prato. Eram as sobras que ele havia dito que o rato comeria. Provavelmente seria melhor eu me livrar delas.

Fui para o nosso jardim dos fundos e carreguei o corpo do velho para um terreno baldio próximo. Lá, fiz uma cova, o coloquei dentro e o incendiei. Meu feitiço foi poderoso o suficiente para o reduzir a pó e ossos em alguns segundos. O fedor da carne queimada se espalhou pelo ar; era ainda mais nauseante ao saber que estava saindo do meu próprio corpo carbonizado.

— Ugh…

Meu estômago revirou com esse pensamento, o que fez com que eu precisasse correr para o canto do terreno para vomitar.

Assim que terminei a cremação, usei minha mana para conjurar um pote para que colocasse seus ossos. Eu iria o enterrar no mesmo local onde enterrei Paul. Se ele realmente fosse uma versão minha do futuro, ali seria onde ficaria mais feliz.

Preenchi o buraco novamente depois de terminar de coletar seus ossos. Em seguida, voltei para casa pela porta dos fundos e fui direto para meu escritório. Deixei os restos mortais do velho ao lado de suas roupas e peguei o meu cajado.

Desta vez, o meu destino era o porão. Ativei o meu olho demoníaco no caminho.

O velho havia me dito para não ir. Ele havia me avisado de que o rato fugiria, comeria nossas sobras e que a doença que ele carregava seria passada para Roxy. Mas eu tinha que ter certeza se o rato realmente estava lá ou não. Se eu não visse com os meus próprios olhos, não seria capaz de acreditar no que ele havia me dito, Além disso, se ele estivesse certo, eu não poderia deixar aquele roedor à solta.

— …

As escadas que levavam para o porão estavam escuras. Utilizei um pergaminho de Espíritos Luz de Lâmpada para iluminar a área. Depois de descer, respirei fundo e coloquei a minha mão na porta.

— Hm…

Havia poeira acumulada no canto da escadaria, o que me ajudou a encontrar o que estava procurando: pistas. Pegadas de rato, especificamente. Também era possível ver onde o rabo dele havia sido arrastado. Essas pegadas tinham somente um destino: o porão. Não havia traços de que ele havia saído.

Eu não conseguia criar coragem para abrir a porta. Ao invés disso, usei magia para fazer um buraco do tamanho do meu punho nela. E, então, coloquei mana em meu cajado e o passei pela abertura. Pensei em gelo o suficiente para cobrir um quarto inteiro. Lá dentro havia alguns itens mágicos e o fertilizante que Aisha havia usado no jardim, mas tudo isso era irrelevante.

— Nova Congelante — sussurrei. Gelo surgiu em todo o cômodo em um instante. Apenas para garantir, repeti o feitiço. — Nova… Congelante.

Um sopro frio saiu de meu cajado e cobriu todos os cantos e buracos do porão. Passei meu Espírito Luz de Lâmpada pela abertura e olhei lá dentro para ter certeza de que o gelo estava cobrindo todo o local. E, então, finalmente abri a porta, entrei e a fechei atrás de mim.

— …

Eu, imediatamente, encontrei o rato. Ele havia morrido, congelado, próximo à porta escondida que levava ao meu templo pessoal. A boca da criatura estava meio aberta e com dentes roxos dentro dela. Eles realmente pareciam pedras mágicas.

Fiz uma varredura pela área para garantir que um segundo não havia se esgueirado junto. Após ter certeza de que não havia mais nenhum, criei uma caixa com magia de terra, usei gravetos para pegar o corpo do rato de forma segura e o coloquei dentro. Em seguida a selei para que ninguém a abrisse de forma descuidada.

Seria melhor se eu o queimasse e me livrasse dele ou se o enviasse para a Guilda de Magos para ser estudado?

A última parecia ser a melhor opção. Se eu reportasse o que tinha escutado do velho sobre a Síndrome de Petrificação quando entregasse o corpo do rato para a guilda, poderiam verificar a veracidade do que ele havia dito, por mais que eu não soubesse se conseguiriam extrair o patógeno de um corpo congelado.

Ao sair do porão, tranquei a porta e selei o buraco que havia feito antes. O velho havia dito que a doença não podia ser transmitida pelo ar e que não era muito contagiosa, mas era melhor prevenir do que remediar.

Voltei para meu escritório. Já estava completamente desperto após tudo aquilo, então não conseguiria dormir tão cedo.

Bom, o que eu deveria fazer primeiro? Na verdade, o que posso fazer agora mesmo?

Deveria ler o diário desgastado que o velho havia trazido consigo? Talvez pudesse me avisar sobre acontecimentos futuros, apesar de que ele também havia dito que a história já havia sido alterada. Falando em termos de ficção científica, eu já estava em uma linha de tempo alternativa, que havia sido criada pela volta do meu eu do futuro ao passado. Era provável que boa parte das coisas que ele havia enfrentado não acontecessem comigo, mesmo se eu lesse tudo contido neste caderno e me preparasse para isso.

Olhei para o tinteiro e para as manchas que haviam sido deixadas em minha mesa. As marcas de queimadura também haviam permanecido onde ele tinha batido com a mana concentrada em sua mão. Ver isso fez com que eu lembrasse do que ele havia me dito: “você precisa fazer três coisas”. A primeira coisa da lista era algo que eu conseguiria fazer de imediato.

Sentei, peguei um papel e segurei minha caneta.

— …

Primeiro deveria escrever uma carta para Eris. Ela tinha sido minha primeira parceira sexual e alguém que eu tinha amado antes dela desaparecer do nada. Eu ainda tinha sentimentos complexos em relação a ela.

Mas o que eu deveria escrever? Me perguntei enquanto encostava a minha caneta no papel.

 


 

Tradução: Jeagles

Revisão: Guilherme

 

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