Mushoku Tensei: Reencarnação do Desempregado

Mushoku Tensei: Reencarnação do Desempregado – Vol. 13 – Cap. 05 – Dignidade Paternal

 

Antes de eu perceber, passaram mais três meses.

Já era verão. A neve derreteu toda e ficamos no meio de um clima quente e seco. Até o momento, passei a maior parte do ano pensando em Lucie. Sempre que eu tinha algum tempo livre, o usava olhando para ela. Afinal, era minha primeira e única criança. Era natural que eu a adorasse.

Neste dia, como em muitos outros, eu estava em seu quarto, observando-a em silêncio. Sempre que eu olhava para aquele rostinho angelical com bochechas rechonchudas, ficava com um enorme sorriso bobo no rosto.

Contudo, eu era tecnicamente o chefe desta família. Não exalava lá muita autoridade, mas queria agir de maneira relativamente digna com minhas esposas e irmãs. Se passasse muito tempo arrulhando meu bebê, igual um pai coruja, a opinião sobre mim com certeza seria afetada.

Por isso, pretendia ser um pai severo. Sabe – rígido, mas justo. Esse tipo de coisa.

Se eu bem conhecesse Paul, ele provavelmente tinha pensamentos parecidos enquanto me olhava quando eu era bebê. Um pai deve inspirar admiração em seus filhos. Deve ser um exemplo para eles e uma meta para que alcancem.

A certa altura, pensei que Paul era desprezível, ou até patético. Mas, agora, sabia melhor das coisas. Ele foi um pai magnífico. Tinha seus defeitos, muitos, mas, ainda assim, era maravilhoso.

Claro, ele não era o mais fiel dos maridos, mas eu não tinha mais o direito de criticá-lo a respeito disso. Era melhor se concentrar nos aspectos positivos.

Neste ponto, eu poderia dizer, cheio de confiança, que queria seguir os passos de meu pai…

— Aaah, aaah!

Opa, ela está agitada de novo.

Hoje eu não tinha Sylphie para tomar o comando, então tive que assumir o controle sozinho.

— Aqui vamos nóóóóós, Lucie! É o papai! Abluhbluhbluh!

— Aahaah! Hyaa ha ha!

Ah, senhor, que fofa. Existe algo no mundo tão adorável quanto o sorriso deste bebê?

Minha esposa, de alguma forma, deu à luz um verdadeiro anjo. Não existe outra explicação para isso!

Hmm, acabei desviando um pouco do rumo. Voltemos ao assunto de “severo e digno”.

Ao meu ver, o pai ideal era próximo o suficiente de seus filhos para ser atencioso, mas distante o suficiente para guiá-los adiante. Normalmente, deveria ser gentil e bondoso com seus filhos. Quando necessário, porém, não deveria hesitar em repreendê-los com firmeza. E quando realmente precisassem de seu apoio, deveria se apresentar de imediato. Ao meu ver, esse era o pai ideal.

Parecia que eu estava apenas descrevendo minhas impressões sobre Paul. Então ele era minha ideia de pai perfeito?

Hmm. Para ser honesto, eu não queria que meus filhos me considerassem “patético”. Mas, bem, foram meio que as fraquezas de Paul que me tornaram querido para ele. Pude aprender muitas lições com seu exemplo. Além disso, embora ele às vezes pudesse parecer lamentável, foi sempre um pai maravilhoso para Norn. Isso era óbvio, considerando o quanto ela o adorava.

Nesse caso, o amor e a compaixão talvez fossem os mais imp…

— Aaah! Aaabaa, baaa!

Ah não, ela está ficando nervosa de novo…

— Oiii, Lucie! O papai voltou! Vou te pegar, viu? Aqui vamos nóóóós!

— Hyaa ha! Hyahahaha!

Assim que tirei Lucie de seu berço e comecei a balançá-la para lá e para cá, ela começou a gargalhar alto. A julgar pelo sorriso angelical em seu rosto, gostava bastante de ser embalada em meus braços grandes e fortes. Meu coração não aguentava tanta fofura.

— Uh, Rudeus…

— Sim, Suzanne?

Enquanto eu confortava Lucie, sua ama de leite, Suzanne, falou do outro lado do cômodo. Ela era uma aventureira aposentada e uma velha amiga minha.

— Não me importo em acalmar a mocinha quando ela se agita, sabe? Isso é parte do trabalho.

— Agradeço a oferta, mas eu gostaria de manter esses momentos felizes para mim, muito obrigado.

Nós dois tínhamos nos conhecido quando eu estava começando a trabalhar como aventureiro solitário. Perdemos o contato por cerca de quatro anos, mas então ela viu meu pedido para o emprego de ama de leite. Vê-la de novo foi um verdadeiro choque.

— Huh. Bem, se você realmente quer fazer isso por conta própria, então fique à vontade.

— Existe algum homem no mundo que não queira acalmar sua filha recém-nascida?

— Não posso dizer que meu marido fica muito ansioso para lidar com isso.

— Que vergonha. Parece que ele precisa ser guiado nas alegrias da paternidade.

Eu lembrava muito bem do tempo que passei com Suzanne.

Eu tinha só doze anos, recém-deixado por Eris e estava indo sozinho para os Territórios Nortenhos, sentindo extrema pena de mim mesmo. Palavras não podem descrever o quão infeliz fiquei ao ter que dissolver nosso antigo grupo, “Fim da Linha”, na guilda em Basherant. Como forma de me distrair dos meus sentimentos, tentei assumir uma tarefa extremamente difícil e perigosa sozinho.

Foi aí que Suzanne e seu grupo entraram em ação.

Seu grupo tinha dois guerreiros, uma arqueira, um curandeiro e um mago. Eram um grupo de rank B, mas eram todos veteranos experientes. Suzanne era uma das guerreiras da vanguarda. Para ser sincero, ela não era uma espadachim das melhores ou coisa assim. Em termos de habilidade de combate, estava mais perto da base do Rank B do que do topo.

Porém, tinha uma reputação de ser bondosa e sabia como manter um grupo trabalhando bem. Quando ela me percebeu tentando partir em uma missão suicida, se aproximou e disse algo como “Que tal fazermos esse trabalho juntos?”

Protestei, falando que queria fazer um nome para mim como um aventureiro solo, mas ela argumentou que eu precisava trabalhar com outras pessoas para construir uma reputação. No final, deixei ela me convencer e trabalhamos juntos.

Na época, Suzanne ficou alarmada com o quão rude eu parecia ser. Meus olhos estavam opacos e sem vida, e ela percebeu que eu não estava dormindo o suficiente. Quando falei em um tom cuidadosamente educado, ela achou isso mais assustador do que reconfortante.

Ainda assim, me acolheu e me ajudou. Até o dia em que deixei aquela primeira cidade para trás, seu grupo me levou em todos os tipos de missões. Até mesmo me convidaram para me juntar a eles permanentemente.

Acabei rejeitando a oferta, mas sempre foram amigáveis comigo quando nos esbarrávamos. Às vezes, até mesmo me levavam para uma taverna para comer.

Olhando para o passado, ficava óbvio que estavam cuidando de mim de todas as formas possíveis. Eu era grato a todos eles.

Depois que nos separamos, Suzanne casou com Timothy, o mago e líder do grupo. Foram para Sharia juntos, já que era a cidade natal de Timothy.

E tiveram dois filhos. O terceiro, infelizmente, nasceu prematuro e logo morreu.

O corpo de Suzanne ainda estava produzindo leite, mesmo com a morte de sua criança, então ela decidiu vender seus serviços como ama de leite. Ela estava verificando as ofertas de emprego quando acabou vendo meu nome.

A propósito, trombei com Timothy e o cumprimentei alguns dias antes. O homem não mudou nada.

— Mas devo dizer, você com certeza mudou…

— Hmm. Mudei?

— Uh, sim. Nos velhos tempos, você nunca teria insultado o marido de uma mulher na frente dela.

Isso era verdade. Quando conheci Suzanne, eu tinha pavor de perturbar as pessoas.

Se possível, ainda não queria ofender ninguém, mas acho que não ficava mais pisando em ovos. Aconteceu muita coisa desde então.

— Sinto muito, Suzanne. Te chateei?

— Nah. Uma provocaçãozinha de vez em quando não faz mal, sabe? Contanto que você esteja dizendo isso na minha cara, sem problemas. No máximo me deixa mais confortável.

Isso provavelmente tinha algo a ver com os amigos que fiz na Universidade. Atualmente eu tinha mais gente com quem poderia conversar casualmente.

Zanoba e Cliff preferem as coisas assim, e também era mais fácil para mim.

— Nossa, você poderia ser um pouco mais casual perto de mim — continuou Suzanne. — Você é tecnicamente meu empregador, sabe?

— Suponho que sim, mas isso não é motivo para tratá-la indelicadamente.

Suzanne revirou os olhos diante disso.

— Como quiser, criança.

Eu devia muito a ela. No final das contas, foi ela quem me ensinou o básico das aventuras nos Territórios Nortenhos. Eu não conseguia ser muito casual com ela.

— Bem, acho que está tudo bem para mim, desde que eu receba meu salário.

— Claro. E garanto que vou dar um belo extra.

A mulher falava como se estivesse fazendo tudo pelo dinheiro, mas estava sendo maravilhosa.

No começo fiquei um pouco nervoso, desde que lembrei de algumas histórias de terror sobre babás sádicas que ouvi na minha vida anterior. Mas Suzanne era tão terna com Lucie que ninguém perceberia que ela não era a mãe.

Claro, tínhamos Lilia e Aisha o tempo todo em casa para ficar de olho nas coisas. E eu sabia desde o começo que ela não era o tipo de pessoa que maltrataria uma criança.

— A propósito, como estão seus filhos?

— Ah, os meninos continuam com tudo, como sempre. Agora estão dando trabalho para a Vovó e para o Vovô.

Suzanne e Timothy estavam morando com os pais de Timothy no momento. Era a única razão pela qual ela conseguia trabalhar como ama de leite em tempo integral, mesmo tendo duas crianças correndo pela casa.

Ela costumava reclamar com Lilia sobre como era difícil viver sob o mesmo teto que a sogra. Lilia provavelmente estava mais inclinada a se identificar com a sogra, mas acho que ela tinha mais ou menos a idade de Suzanne. Pareciam estar se dando bem; eu às vezes via elas tomando chá juntas.

— Estive pensando… Você também queria um garoto?

— Na verdade não. Por que iria?

— Bem, sabe… todo mundo quer um herdeiro, certo?

— Ah. Claro.

Tive algumas discussões do tipo quando minha filha nasceu. Zanoba e Ariel também tocaram no assunto. Obviamente era uma questão importante para famílias reais e casas nobres – em Asura, ouvi até mesmo histórias de garotos recém-nascidos sendo levados por parentes distantes para serem adotados pelo ramo principal da família Boreas.

— Bem, acontece que na verdade não sou nobre ou um homem de negócios rico. De qualquer forma, isso não me incomoda. Só quero ver minha criança crescer feliz.

E até fiquei feliz por ter conseguido a opção mais fofa. Eu estava em um número significativamente menor nesta casa, sim… mas não posso dizer que me importava em ficar cercado por garotas adoráveis e mulheres charmosas. E também não era como se estivessem me intimidando. Eram quase boas demais.

— Ei, esse é o espírito. Gostaria que meu marido aprendesse algumas coisas com você. Assim que engravidei, ele começou a falar sobre as coisas que gostaria de fazer se tivéssemos um garoto. Não parou nem pra pensar em outra opção!

— Bem, no final você conseguiu seus garotos, então acho que acabou tudo bem.

— É, acho que sim. Mas tenho alguns sentimentos confusos a respeito disso. A terceira era uma menina, sabe?

— Ah, certo… sinto muito. Isso foi algo estúpido para se dizer…

Por um instante, imaginei como me sentiria se Lucie tivesse nascido morta. O simples fato de pensar nisso já era horrível o bastante.

— Está tudo bem! Vamos tentar de novo.

Mas Suzanne parecia quase indiferente a isso. Perder um bebê era realmente algo tão corriqueiro assim? Eu sabia que ao menos eu teria levado isso muito a sério. Não foi fácil para Sylphie engravidar, então não havia como dizer quanto tempo levaríamos para conseguirmos outro tiro certeiro.

E, mais importante, Sylphie ficaria arrasada. Era fácil imaginá-la chorando e me pedindo desculpas por perder nossa criança.

Gah. Só de pensar nisso meu estômago começava a doer.

Mas não fazia sentido ficar pensando nessas coisas, certo? Lucie estava bem, assim como Sylphie. Já tinha passado tempo suficiente para que eu me sentisse relativamente confiante de que não era só um sonho.

Em vez de pensar em como as coisas podiam ter dado errado, eu deveria estar curtindo a minha boa sorte.

— De qualquer forma… assumo que vocês em algum momento dissolveram o grupo, certo?

— Sim, não muito depois de você deixar a cidade. Quando se é tão medíocre quanto nós éramos, fica bem difícil quando se perde um membro importante do grupo, sabe? Patrice disse que voltaria para Asura para virar um soldado, e meio que nos afastamos lá mesmo.

— Você sabe o que aconteceu com Sara…?

— Você está curioso?

— Sim, um pouco.

Sara era o nome de uma arqueira que fazia parte do grupo de Suzanne. Era raro que um aventureiro confiasse em arco e flechas, mas ela tinha talento natural para acertar disparos oportunos e precisos em batalha, o que a tornava bastante eficiente em sua função. Tínhamos idade relativamente semelhante, e no começo ela foi abertamente hostil comigo… mas, com o tempo, ficamos cada vez mais amigáveis.

No final, nosso relacionamento emergente implodiu graças aos meus problemas de “desempenho” , mas eu ainda tinha um pouco de interesse em saber como ela estava.

— Bem, ela continua por aí, ganhando a vida como aventureira. Não se vê muitos arqueiros por aí, já que é bem mais fácil aprender a lançar uma bola de fogo, mas ela agora tem habilidades e experiência. Ela ficará bem em qualquer lugar que for.

— Ah. Certo.

— Se houver algo que você não disse, então deveria ir procurá-la em algum momento. Nunca se sabe quando um aventureiro pode acabar morto.

— Não acho que isso seja realmente necessário.

Nosso pequeno caso estava no passado. Encontrá-la para falar sobre aquilo não me faria nenhum bem.

E era difícil pensar que Sara quisesse se lembrar daquela bagunça toda.

— Bem, se você diz… Hmm?

Suzanne de repente desviou o olhar de mim e o dirigiu à porta.

Quando virei, vi Zenith parada ali, em silêncio. Lilia estava à espreita logo atrás dela.

— Mamãe?

Zenith não respondeu, é claro, mas Lilia balançou a cabeça.

— Perdoe a intrusão, Mestre Rudeus.

Com os olhos meio desfocados, Zenith avançou lentamente, depois se sentou ao meu lado – se posicionando para que pudesse dar uma boa olhada no rosto de Lucie.

— Não se preocupe, Mamãe. Lucie está muito bem.

Isso não resultou em nenhuma reação. Zenith ficou olhando para o bebê tão atentamente que parecia ter esquecido que havia mais gente no quarto.

Depois de sua chegada à minha casa, senti que ela se tornou visivelmente mais ativa. Quando Norn estava por perto, tentava alimentá-la na mesa de jantar; quando avistava Aisha, iam para o jardim e começavam a arrancar as ervas daninhas juntas. E quando eu estava cuidando de Lucie, ela fazia essas visitas para checar como estávamos. Também existiam diferenças sutis em como reagia a Roxy e Sylphie.

Sua expressão facial nunca parecia mudar, e ela ainda não falava nada. Mas estava se movendo. Estava mudando. Talvez estivesse lentamente avançando para algo semelhante a uma recuperação.

— …

— Kyaa hah! Gaa!

Zenith estendeu as mãos. Sorrindo de orelha a orelha, Lucie as agarrou brincando.

— Aw, a pequena Lucie com certeza ama sua vovó, não é?

No começo fiquei nervoso com isso. Os sintomas de Zenith pareciam com demência; me preocupei com a possibilidade de ela acabar machucando Lucie sem motivo algum, mesmo sem querer. A essa altura, porém, estava óbvio que não tínhamos nada com que nos preocupar. Tudo que ela sempre fazia era observar Lucie em silêncio. Nunca vi nenhum indício de emoção negativa nela. Parecia, no máximo, com uma mulher normal pacificamente olhando para sua neta.

Me senti meio culpado por ter duvidado dela no começo. Não era como se ela já tivesse se tornado violenta com alguém.

— Ahaha! Gyaaaha!

De certa forma, parecia que Lucie também entendia que suas intenções eram boas. A garota fica toda sorridente sempre que Zenith visitava. Sinceramente, era muito reconfortante.

 

 

Mas, claro, havia muito que não sabíamos sobre a condição de Zenith e sobre como ela poderia se desenvolver. Era difícil imaginar algo de ruim acontecendo nessas visitas, mas dado o quanto continuava incerto, provavelmente era melhor que fossem sempre supervisionadas.

Afinal, acidentes podem acontecer, mesmo quando as intenções são boas.

— …

Zenith, de repente, olhou para mim. Parecia quase como se estivesse tentando me passar alguma mensagem com o olhar… não que eu fizesse ideia do que pudesse ser.

— Waaah! Waaaaah!

Segundos depois, Lucie começou a se agitar ruidosamente.

— Perdão, Senhorita Zenith…

Lilia se abaixou e gentilmente afastou Lucie de mim e de Zenith. Suzanne se moveu e recebeu o bebê. Ela começou a acalmá-la ao mesmo tempo em que verificava sua fralda e procurava por erupções na pele.

Um momento depois, porém, balançou a cabeça.

— Parece que alguém está com fome.

Já era essa hora? Sylphie a amamentou antes de sair, mas já deviam ter passado algumas horas desde então. Huh.

— Bem, então acho que vou sair do quarto.

— Não me importo se você quiser ver, sabe.

Foi uma demonstração de gentileza de Suzanne, mas recusei educadamente. Éramos velhos amigos e tudo mais, mas isso não significava que eu devia ver os seios de uma mulher casada. E ela também era tão bem dotada quanto Zenith ou Lilia. Eles inclusive pareciam um pouco maiores do que antes. Será que era por causa de todo o leite ali?

Se eu tivesse um vislumbre daquelas coisas, o Velho Sábio Eremita dentro de mim poderia despertar de seu sono. Isso, por si só, poderia não ser grande coisa. Mas e se Lilia, digamos, mencionasse isso para alguém? Sylphie e Roxy podiam ficar desanimadas. Era inegável que elas estavam mais para o lado do peito plano do espectro, mas eu não escolhia as mulheres com base em seus corpos. Eu não queria que se sentissem constrangidas por causa disso.

De qualquer forma… era só eu ou Zenith também tinha notado que Lucie estava pronta para ser alimentada? Talvez tenha adquirido um sexto sentido para esse tipo de coisa após criar suas três crianças.

 

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Saí para o corredor e olhei pela janela mais próxima. Infelizmente, era um dia cinzento e chuvoso. Era difícil adivinhar exatamente que horas eram, mas como Lucie estava com fome, devia ser perto do meio-dia.

Eu, de alguma forma, consegui passar minha manhã toda com o bebê. Mas, na minha opinião, foi um tempo bem gasto. Não existia nada mais importante do que passar um tempo com sua criança.

No momento, porém, fui para meu escritório – uma pequena sala no primeiro andar que reservei para minhas pesquisas.

A mesa estava coberta por relatórios manuscritos e algumas pedras mágicas.

Eu não passei os últimos seis meses apenas brincando com minha filha e minhas irmãs, esquecendo de todo o resto. Também estive estudando os prêmios que trouxe do Continente Begaritt.

Foram essas pedras que deram à hidra sua capacidade de ignorar feitiços, nos forçando a um perigoso combate a curta distância. Elas absorviam qualquer magia que entrasse em contato. À primeira vista, pareciam escamas verde-claras comuns. Se não fosse pela transparência, sequer seriam identificáveis como pedras.

Consegui aprender alguns fatos básicos sobre isso na biblioteca da Universidade de Magia.

Primeiro de tudo, costumavam ser chamadas de “pedras de absorção”. Hidras Manatite as produziam naturalmente dentro de seus corpos. Uma vez que aquela espécie foi extinta há milhares de anos durante a divisão dos continentes, isso agora era incrivelmente raro e valioso.

Muitos dragões produziam pedras ou cristais mágicos dentro de seus corpos. Este era apenas um caso particularmente incomum em questão. A pedra em meu cajado, por exemplo, foi recuperada de uma espécie dracônica de serpente marinha.

Os efeitos dessas pedras variam muito, mas boa parte delas tinham aplicações mágicas diretas de algum tipo. Algumas podiam aumentar a capacidade mágica ou diminuir a quantidade de mana necessária para lançar feitiços; outras tornavam os feitiços duas vezes mais poderosos sem aumento no custo de mana. Não era tão surpreendente que também houvesse algo capaz de absorver magia.

A parte complicada era descobrir exatamente como essas pedras faziam isso.

Quando simplesmente as deixava em uma mesa como esta, não sugavam a mana de tudo que estava ao redor. Algo claramente precisava acontecer primeiro. Depois de alguns experimentos, logo percebi que as pedras tinham uma parte “dianteira” e uma “traseira”. Era bem difícil distinguir um lado do outro, mas definitivamente existiam.

Quando eu colocava minhas mãos na parte traseira de uma pedra e a alimentava com um pouco de mana, a parte da frente começava a absorver magia enquanto soltava um gemido agudo.

Em outras palavras, essas coisas não funcionavam automaticamente. Era preciso ligá-las e desligá-las. Parecia com as ventosas nos tentáculos de um polvo.

Parecia que a hidra contra a qual lutamos estava ativando sua “armadura” absorvente de magia ao ver os feitiços serem disparados, tornando meus ataques inúteis no último instante.

Era difícil imaginar que muita gente pudesse reagir tão rapidamente, mas animais selvagens costumam ter uma visão dinâmica e reflexos muito melhores do que qualquer ser humano.

Fazendo mais experimentos, também percebi que a pedra não exatamente  “absorvia”  magia como eu esperava. Quando eu a segurava em minha mão direita e lançava um feitiço com a outra, o feitiço desaparecia, mas eu não recuperava a mana gasta. Na verdade, eu tinha certeza de que isso me custava um pouco de mana – a mesma quantidade que usava para lançar o feitiço original.

Seriam necessários experimentos mais profundos para ter certeza do significado disso, mas eu já tinha uma hipótese para trabalhar. Basicamente, estava suspeitando que a pedra convertia a mana com que era alimentada em ondas que poderiam instantaneamente desintegrar qualquer outra coisa feita de mana. Os resultados pareciam com o feitiço Atrapalhar Magia, mas senti que essas pedras eram ainda mais eficientes em obliterar os feitiços com os quais interagiam.

Ainda havia muita coisa que essa teoria por si só não poderia explicar, é claro. Por exemplo, as estatuetas que criei com magia não eram afetadas pelas pedras, mesmo quando muito próximas.

Estatuetas de barro eram imunes às ondas, mas o projétil do meu Canhão de Pedra não era. Eu não fazia ideia do motivo para isso. Será que a mana das estatuetas tinha se estabilizado com o tempo, tornando-as imunes a interrupções? Hmm.

Mas não fazia muito sentido ficar insistindo nesse mesmo ponto. Eu nem tinha uma boa noção do que “mana” realmente era. Em vez de procurar uma explicação abrangente, eu queria me concentrar em como poderia usar essas coisas. E em como poderia neutralizá-las no futuro.

Com isso em mente, prossegui com outro experimento.

Tive a sensação de que poderia usar essas pedras para destruir algumas coisas que o Atrapalhar Magia não poderia. Círculos mágicos, por exemplo.

Cliff me ajudou com esse experimento. Como esperado, consegui destruir um feitiço de Barreira e o círculo mágico que foi usado para lançá-lo. O desenho em seu pergaminho original não foi afetado, mas enquanto o feitiço estivesse em uso ativo, as pedras de absorção poderiam apagar o círculo.

Porém, não eram capazes de afetar um círculo no interior de um implemento mágico. Talvez fosse porque o círculo foi esculpido no próprio implemento, em vez de desenhado em sua superfície.

Isso faria sentido. Pensando em nossa batalha contra a hidra, notei que ela nunca desativou o círculo mágico em seu covil, apesar de se debater pelo lugar todo.

De qualquer forma, a lição mais importante era que essas escamas não podiam destruir tudo que fosse de natureza mágica.

Dito isso, elas provavelmente eram mais do que eficazes o bastante para lidar com a maioria das ameaças que eu pudesse encontrar. Com uma dessas no bolso de trás, poderia me libertar da próxima vez que caísse em uma armadilha e acabasse preso dentro de um feitiço de Barreira. O ideal seria evitar de cair em armadilhas, mas ter algo para segurança não faria mal.

No momento, estava pensando em incorporar uma das pedras em minha mão protética em algum lugar. Talvez na palma da mão.

Podia ser complicado usar essa mão para ativar a pedra e lançar magia, mas imaginei que pegaria o jeito com um pouco de prática.

— Olá, irmão querido. Você tem um convidado.

Eu estava trabalhando em meu escritório há algum tempo quando Aisha apareceu para anunciar que tínhamos visitas. Seu rosto estava calmo e composto; ela entrou no modo de criada profissional.

— Quem é?

— Príncipe Zanoba. Ele está esperando por você na sala de estar.

Hmm. Será que ele precisa de algo?

Não que eu me importasse com ele visitando por puro capricho, é claro… Talvez só queira  um pouco de companhia.

— Entendi. Obrigado, Aisha.

Casualmente levantei da cadeira.

Zanoba vinha fazendo progressos em sua pesquisa sobre o autômato. Minha prótese Zaliff era um produto desses esforços. E, no final das contas, as pernas e pés do autômato funcionavam de forma semelhante às mãos e aos braços. Desta vez ajudei a fazer o protótipo. Zanoba desenhou as plantas, eu criei a maquete, seção por seção, usando minha magia, e Cliff inscreveu os círculos mágicos necessários.

Era um processo lento e delicado. Passamos quase um mês fazendo uma única perna. Esperançosamente, algum dia começaríamos a vendê-la junto com nossas mãos artificiais, mas estávamos bem longe de produzir essas coisas em massa.

Enfim. Agora que tínhamos uma boa compreensão dos membros, Zanoba estava finalmente começando a investigar o corpo do autômato. Isso envolvia localizar as pequenas costuras entre suas seções e, depois, cortá-las cuidadosamente para estudar as “entranhas”.

Bem no meio do peito da coisa, ele encontrou uma pedra mágica. Era uma coisa cristalina vermelha e bonita, com um tamanho incomum. Após estudá-la, entretanto, percebeu que não era apenas uma simples pedra. Era uma combinação de várias outras menores, cada uma delas coberta por minúsculos círculos mágicos.

Era claramente o “núcleo” do autômato. Se conseguíssemos decifrar todos os padrões gravados nele, seríamos teoricamente capazes de fazer a mesma coisa.

E então, assim que levássemos nossa pesquisa a patamares ainda mais elevados, o sonho da Criada-Robô finalmente se tornaria realidade!

Infelizmente, Zanoba estava sofrendo para enfrentar esse novo desafio.

Os círculos no núcleo eram incrivelmente estranhos e complexos. Além do mais, os padrões estavam cheios de fragmentos de escritas antigas – notas, avisos, passagens de livros obscuros – e desenhos preliminares riscados. Resumindo, estava claro que o criador do autômato ainda estava aperfeiçoando o modelo do núcleo, mesmo enquanto o construía.

Parecia que a obra-prima que encontramos era na verdade uma falha ou um protótipo. Não tinha como dizer o que seu criador realmente queria.

Entender isso tudo seria muito mais difícil do que qualquer desafio que enfrentamos até o momento. Mas Zanoba não se intimidou. Ele parecia, no máximo, ainda mais determinado do que antes para cumprir a “missão da sua vida”.

Para qualquer coisa que valesse a pena, ele tinha meu apoio moral.

— Ei, Zanoba. Desculpe por te deixar esperando.

Quando cheguei na sala de estar, ele saltou do sofá, onde estava tomando chá até um momento antes.

— Ah, Mestre Rudeus! Minhas desculpas por aparecer assim!

Julie e Ginger, que estavam paradas em um canto da sala, seguiram seu exemplo e baixaram a cabeça em silêncio.

— Então, o que posso fazer por você?

— Eu só estava pela vizinhança, então pensei em passar por aqui e dizer olá.

Huh. Portanto, era realmente apenas uma visita social.

— Entendi. Bem, sinta-se em casa.

Esse era um comportamento bastante incomum para Zanoba, mas eu não iria mandá-lo embora nem nada do tipo.

Quando me sentei em uma cadeira, Julie trotou até o meu lado.

— Olha, Grão-Mestre Rudeus. Terminei mais uma.

Ela estendeu uma estatueta para eu examinar. Foi sua mais recente tentativa de realizar a estatueta de Ruijerd que pedi para que ela produzisse como tarefa.

— Bom trabalho — falei, estudando a coisa de vários ângulos. — Você está melhorando rápido. Continue produzindo para mim, certo?

— Certo! — Julie disse com uma reverência alegre.

Enquanto eu viajava pelo Continente Begaritt, Julie terminou sua estatueta original de Ruijerd. Fiquei genuinamente surpreso com o quão boa ficou. Ficou claro que ela usou minha própria versão como modelo, mas, sinceramente, a dela ficou melhor.

Por um lado, a postura era perfeita. Mesmo um completo amador perceberia que estava olhando para um personagem fodão.

Quando o mostrei para Norn, ela não pôde deixar de murmurar “Eu quero um” bem baixinho, então dei o original de presente para ela. No momento, ela o mantinha em uma prateleira em seu dormitório.

Reconhecendo o sucesso de Julie pelo que era, a encarreguei de produzir o máximo de cópias da estatueta que fosse possível. Ainda demorava um bom tempo para fazer uma, mas isso não era um problema lá tão grande. O trabalho era uma boa forma de aumentar sua capacidade de mana e, com sorte, teríamos uma boa pilha delas pronta para uso assim que estivéssemos prontos para vender o livro de Norn.

— Ontem vi a Senhorita Norn na escola.

— Ah, é mesmo? Vocês se esbarraram? Ela disse alguma coisa?

— Ela me agradeceu. Então também agradeci a ela.

— Aw, isso é bom. Bom para você, Julie.

Estendi a mão e afetuosamente afaguei a cabeça dela. Ela enrijeceu um pouco ao meu toque, mas não recuou.

Norn, por acaso, tinha recentemente terminado seu livro sobre Ruijerd. Mesmo após começar a praticar com a espada comigo, ela continuou escrevendo. O livro era curto e a prosa um pouco estranha e desajeitada. Também cobria apenas uma parte da vida de Ruijerd: a história daquelas lanças amaldiçoadas, começando com o serviço leal de Ruijerd ao seu lorde e terminando com sua vingança.

Mas, apesar de todas as falhas, ela conseguiu capturar perfeitamente a personalidade de Ruijerd. Seu orgulho, dor e ousadia transpareciam com surpreendente clareza. Com um pouco de edição aplicada, eu estava confiante de que poderíamos vendê-lo como um livro infantil.

Para testar essa teoria, li o rascunho para Julie, que o adorou. Ela me fez ler três vezes seguidas e provavelmente teria continuado caso Ginger não tivesse intervindo.

Pelo visto, ninguém nunca tinha lido histórias assim para Julie quando era pequena. Talvez fosse cultural. Os anões aparentemente tinham alguns tipos de contos de fadas tradicionais, mas talvez não escrevessem livros infantis. Ou seus pais talvez estivessem ocupados demais para gastar muito tempo entretendo-a. Bem, não que isso realmente importasse.

De qualquer forma, como Julie tinha gostado tanto do livro, eu planejava apresentá-la a Norn qualquer hora dessas, mas parecia que fizeram isso sem minha ajuda. Norn provavelmente ficou um pouco envergonhada ao saber que já tinha uma fã. Mas era bom saber que começaram com o pé direito. Reconhecer os talentos de cada um é um excelente primeiro passo para construir um bom relacionamento profissional.

Isso tudo indicava que estávamos fazendo um excelente progresso nos preparativos para nossa campanha de RP Superd. Eu também estava mantendo minha pesquisa e meu treinamento. De modo geral, senti como se estivesse fazendo bom uso do meu tempo. Se eu me forçasse a assumir algo mais além do que já estava lidando, provavelmente acabaria me sobrecarregando.

Talvez seria ótimo me concentrar em uma única área específica na qual me especializar, mas minha sensação era de que nunca seria o melhor em seja lá o que tentasse. Isso foi verdade na minha primeira tentativa de vida, e provavelmente também seria nesta.

Sempre haverá alguém melhor por aí. Talvez no momento eu fosse o melhor mago da Universidade, mas o mundo estava repleto de pessoas incrivelmente poderosas.

Existe talento genuíno – o tipo de talento com o qual é impossível competir, não importa o quanto tente.

Mas eu também não sentia necessidade de me esforçar para ser o melhor em qualquer coisa. Meu objetivo era ser flexível o suficiente para competir em várias frentes. Se não pudesse vencer alguém em uma luta um contra um, simplesmente encontraria uma forma de contornar isso.

A teoria disso parecia boa. Mas, claro, às vezes é possível acabar se deparando com uma Hidra Manatita. Eu queria me tornar poderoso o suficiente para proteger minha família. Lutar não era a minha especialidade, mas eu teria que encontrar maneiras de ficar mais forte.

— Ah, é mesmo. Quer dar uma olhada em Lucie, Zanoba?

— Ooh! Você está disposto a me mostrar sua filha?! Tem certeza?!

— Digo… sim. Existe algum motivo para eu não fazer isso?

— Suponho que não! No entanto, acredito que há certos países onde a tradição é esperar até que uma criança faça cinco anos antes de permitir que alguém de fora da família a veja.

— Sério? Huh. Pessoalmente, prefiro exibi-la a todos que puder…

De qualquer forma, não havia razão para pensar muito nesse assunto. Eu só tinha que continuar lentamente me movendo, sempre em frente.

Continuei com meu treinamento diário e exercícios com magia, estudando meus projetos de pesquisa e fazendo muitos amigos interessantes. Em comparação com minha última tentativa de viver, estava me esforçando muito mais e conseguindo cada vez mais com o passar dos dias. Era justo dizer que eu estava fazendo um bom trabalho – ao menos para os meus padrões.

Em outras palavras, não precisava de pressa. Se eu me esforçasse demais, acabaria entrando em colapso físico ou mental. Minha pressa também poderia me deixar descuidado. Eu não queria me deparar com outro desastre, igual aconteceu com aquela hidra.

Então, por enquanto, continuaria seguindo meu próprio ritmo. Um passo de cada vez.

Eu queria fazer com que meus esforços de autoaperfeiçoamento fizessem parte de minha rotina diária. Esse esforço, com sorte, valeria a pena na próxima vez que me encontrasse diante de um grande desafio.

Hmm. Porém, qual era o próximo passo que eu deveria dar?

Substituí minha mão por uma prótese. Minha pesquisa estava indo muito bem. Meu relacionamento com minhas esposas era excelente, minhas irmãs e minha filha estavam bem e nossa família tinha uma sólida segurança financeira.

Talvez já fosse hora de pedir para Roxy me ensinar um pouco de magia de água de nível Rei.

 

Lendas da Universidade #5: O Chefe tem uma queda por crianças.

 


 

Tradução: Sahad

Revisão: Guilherme

 

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