Outro mês passou e o clima finalmente começou a esquentar. Seria o meu segundo verão em Ranoa.
Mesmo nesta época do ano, não fazia calor de verdade nesta região. Mas as pessoas estavam começando a usar roupas um pouco mais leves. Os alunos da escola trocaram para uniformes de mangas curtas, o que não me importava nada, e Aisha também trocou o seu uniforme de criada. Sylphie até mesmo começou a usar camisas sem manga em casa. Eu não lembrava dela ter roupas parecidas, mas acho que comprou algumas depois que começou a morar comigo.
Eu com certeza não reclamaria por ela estar mostrando um pouco de pele, mas a visão daqueles ombros esguios e brancos tornava a tarefa de conter as minhas mãos difícil. O verão era uma boa estação, sem dúvidas. E, ainda por cima, não havia nenhum visitante desagradável de várias pernas correndo para dentro de casa para mordiscar a comida.
A mudança das estações me lembrou que fazia algum tempo que não via Badigadi. Ele talvez tivesse vagado para algum lugar e esquecido de contar a alguém.
Algumas outras coisas mudaram ao longo do mês.
Primeiro, parecia que Norn tinha feito alguns amigos. A vi se movendo em um grupo de três garotas e dois garotos, incluindo alguns alunos de salas diferentes. Provavelmente foram os primeiros amigos de verdade dela. Eu queria me apresentar a eles, então pedi para levá-los até em casa algum dia, mas ela rejeitou a ideia categoricamente. Acho que pensou que a ideia de apresentá-los à família era muito embaraçosa.
Vendo pelo lado bom, parecia que a forma como invadi a sua sala de aula não lhe causou muitos problemas. Isso era um alívio.
Norn e eu também estávamos, no geral, nos dando melhor. Como um excelente exemplo, ela recentemente me pediu para ajudá-la em algumas matérias. Aceitei alegremente, é claro. Eu estava pronto para ensinar todas as minhas técnicas secretas e tudo o que sabia para ela. Mas então percebi que se eu gastasse muito tempo focado em ajudá-la, Aisha poderia ficar emburrada por ter sido deixada de lado.
Depois de pensar um pouco, decidi encontrar Norn na biblioteca depois da aula para sessões de tutoria regulares e limitar isso a uma hora por dia. Poderíamos revisar as coisas que ela aprendia no dia e revisar o que suas aulas abrangeriam no dia seguinte. Isso podia fazer, por si só, uma grande diferença.
Norn estava obviamente se esforçando para acompanhar isso, mas parecia ter dificuldades em colocar a teoria dos livros em prática. Dito isso, ela não era tão ruim quanto Eris ou Ghislaine tinham sido. Com consistente esforço, me sentia confiante de que ela alcançaria um nível médio em um instante.
— A propósito, Ruijerd disse que era da região de Babynos, certo? — perguntou ela. — Sei que você passou algum tempo no Continente Demônio, Rudeus. Você sabe onde fica isso?
— Hmm. Não lembro de cabeça. Ele não disse que fica perto da região de Biegoya? Mas nunca fui lá.
Nós dois estávamos nos dando bem, agora até mesmo tínhamos conversas casuais durante nossas sessões de estudo. Mas, por alguma razão, Norn queria falar principalmente sobre Ruijerd. Acho que ele era nosso principal interesse comum. Não que eu realmente me importasse, sabe? Na verdade, fiquei feliz por ter mais alguém com quem pudesse conversar sobre ele.
— Entendo… Desculpe por continuar te importunando, mas como é o Continente Demônio no geral?
— Bem, todos os monstros que vivem lá são realmente grandes. A cultura também é diferente… mas, na verdade, tem algumas semelhanças com essa região. A maioria das pessoas de lá são só pessoas comuns que vivem vidas comuns.
Percebi que Norn ainda falava de um jeito meio rígido comigo. Seu tom tendia a ser excessivamente educado, especialmente para uma irmãzinha conversando com o irmão. Aisha e eu tínhamos adotado tons mais informais, mas acho que Norn ainda se sentia mais confortável dessa forma.
— Ah, é mesmo, Rudeus. Ruijerd alguma vez te contou a história da lança dele?
— Sim, nunca vou esquecer essa. Como me fez chorar.
— Com certeza… Espero que ele eventualmente consiga realizar o objetivo dele.
— Eu também…
Já estava na hora de eu levar aquele projeto em particular adiante, não?
O plano era fabricar estatuetas de um guerreiro Superd e vendê-las com um livro. Eu não tinha desistido, de forma alguma, mas Julie ainda era inexperiente e não tinha muita mana, então a produção em massa ainda não era opção.
Ainda assim, isso não significava que eu não poderia trabalhar ao menos em um protótipo.
O livro era outro assunto. O principal problema era encontrar tempo para escrever. Passei muitas horas dos últimos meses aprendendo magia Avançada de Cura e Intermediária de Desintoxicação. Eu era bom na memorização que essas matérias exigiam, mas elas ainda me mantinham bem ocupado.
Nesse ponto, eu não tinha certeza do que queria aprender a seguir.
Passar para magia Avançada de Desintoxicação parecia ser o lógico, mas não havia mais nada que realmente chamasse a minha atenção. Não faria mal levar minha magia de Fogo e Vento ao nível Santo, mas esse nível de feitiços tendia a envolver manipulações dramáticas do clima, ao invés de feitiços mais práticos que poderia usar regularmente. Aprender coisas novas era sempre bom, mas eu queria me concentrar em algo mais útil. Quem sabe a habilidade de montar a cavalo.
Enquanto examinava as possibilidades em minha cabeça, ocorreu-me que poderia usar um pouco do meu recém-obtido tempo livre para trabalhar no meu livro sobre os Superds. Provavelmente poderia escrever um pouco inclusive durante minhas sessões com Norn.
Eu estava procurando escrever um resumo franco e direto da trágica história da tribo. Prosa não era meu ponto forte, mas provavelmente conseguiria fazer alguma coisa no caso de me concentrar bastante.
Ou foi o que pensei no início. Mas quando me vi encarando aquele primeiro pedaço de papel em branco, não consegui decidir nem por onde começar.
Seria melhor só anotar os fatos, igual em um roteiro de documentário? Seria mais legível em forma de diário? Sempre ouvi dizer que seria melhor começar com um projeto menor como a primeira peça de escrita criativa, em vez de tentar esboçar uma obra-prima épica logo de cara. Talvez devesse fazer um livreto, algo com não mais do que umas dez páginas. De qualquer forma, eles seriam mais fáceis de distribuir com as estatuetas.
Se eu seguisse esse caminho, provavelmente seria melhor fazer tudo de forma simples e leve. Poderia transformar em uma história básica de bem contra o mal, com Laplace revelado como o verdadeiro vilão.
Espera… mas Laplace não era considerado um herói lendário no Continente Demônio? Se eu fizesse ele parecer totalmente malvado, poderia acabar irritando muita gente.
Certa tarde, enquanto estava lutando com essas questões pela centésima vez, Norn espiou o meu trabalho.
— O que você está escrevendo aí, Rudeus?
— Na verdade, estou tentando escrever um livro sobre o passado de Ruijerd. O problema é: não tenho certeza de como tocar no assunto.
— Hmm…
Com o interesse evidentemente despertado, Norn puxou meu papel e deu uma olhada mais de perto. No topo estava meu título provisório: “A História do Grande Guerreiro Ruijerd e a Perseguição ao Seu Povo.”
Até o momento só tinha cerca de meia página de texto, basicamente um esboço rápido de quem era Ruijerd e como ele era. Claro, fui muito tendencioso, então ele acabou ficando parecido com um herói sagrado.
— Isso é tudo que você preparou até agora?
— Sim, ainda não fiz muito progresso.
O principal problema era que eu não sabia por onde começar a história real, ou como contá-la. Eu ainda me lembrava dos contos de Ruijerd sobre as ações de seu povo durante a Guerra de Laplace e conhecia a história básica da perseguição que sofreram. Ainda assim, já fazia vários anos desde que ouvi as histórias, então algumas partes estavam um pouco confusas. Parando para pensar, eu realmente devia ter feito algumas anotações.
— V-Você se importaria em me deixar ajudar? — perguntou Norn timidamente.
Foi uma oferta muito inesperada. Mas, pelo visto, Ruijerd tinha o hábito de colocar minha irmã em seu colo todas as noites, afagando a sua cabeça e contando histórias do seu passado.
Nada justo. Nunca consegui sentar no colo de Ruijerd! Certo, espera. Vamos tentar agir como adultos.
— Isso seria de grande ajuda, Norn. Apenas certifique-se de não negligenciar os seus estudos, certo?
— Tá bom!
Daquele dia em diante, Norn e eu começamos a trabalhar juntos no projeto. Quando ela tinha um pouco de tempo livre entre as aulas e sessões de estudo, usava isso para escrever as histórias de Ruijerd. Sua escrita às vezes era um pouco infantil e sempre apresentava alguns pontos complicados. Mas, por alguma razão, ler isso me fazia lembrar tão vividamente de Ruijerd que muitas vezes me peguei chorando. Isso era perfurante.
Quanto mais eu lia a sua escrita, mais começava a sentir que ela podia ter algum talento na área. Claro, eu não era um observador exatamente imparcial – mas as pessoas tendem a melhorar mais rápido quando estão fazendo aquilo que gostam. Se ela continuasse nisso por tempo o bastante, talvez desabrochasse e algum dia se tornasse uma autora brilhante.
No momento, porém, me concentrei em consertar seus pequenos erros e frases desajeitadas. Eu estava trabalhando basicamente como um editor.
Tive a sensação de que o livro ficaria muito melhor assim do que comigo tentando escrevê-lo.
Enquanto meu relacionamento com Norn começava a melhorar, também houve um pequeno desenvolvimento com Aisha. E, pela primeira vez, não tinha nada a ver com Norn. As duas ainda não eram lá muito amigáveis uma com a outra, embora Aisha estivesse tomando cuidado para não insultar a irmã, já que a repreendi por fazer isso. Ela sempre era pelo menos superficialmente educada quando sua irmã visitava.
Isso na verdade me preocupava um pouco. Eu não queria que ela sentisse que não conseguia expressar seus sentimentos verdadeiros. Eu estava feliz por Norn começar a se interessar por mim, mas isso não significava que poderia negligenciar o meu relacionamento com Aisha. E então decidi dar-lhe permissão para falar o que tinha em mente.
— Sabe, Aisha… se há algo que você queira dizer, não precisa guardar isso dentro de si.
— Poderia ser mais específico, Rudeus?
— Bem, não sei. Ultimamente tenho passado muito tempo com Norn, certo? Você não está se sentindo um pouco carente de atenção ou algo assim? Ou está trabalhando muito e precisa de férias? Não sente vontade de passar o dia todo na cama?
Colocando um dedo no queixo, Aisha inclinou a cabeça para o lado, perplexa. Que fofa.
— Então você está me dando permissão para ser egoísta?
— Isso mesmo. Você pode ser um pouco egoísta quando estiver comigo. Não precisa se segurar.
— Hmm… bem! Uma coisa me vem à mente.
Aquele sorriso malicioso em seu rosto estava disparando alguns alarmes. O que ela planejava exigir? Espero que não seja meu corpo, mesmo que de brincadeira. Eu teria que arranjar uma desculpa para recusar, e ela então provavelmente ficaria mal-humorada por uma semana.
— Eu gostaria de um salário, por favor!
Bem, não era isso que eu esperava.
— Um salário…?
Assim que pensei nisso, porém, notei que Aisha já estava trabalhando como nossa diligente criada há algum tempo. Era, no mínimo, estranho não a pagarmos. Mas, bem, éramos família, certo? Ela não era uma empregada.
Então, talvez, poderia pensar nisso como uma mesada. Ela ajudava em casa todo dia, então queria ter algum dinheiro extra. Justo.
— Certo, podemos fazer isso.
Concordei com a ideia na mesma hora, mas esperamos até que Sylphie voltasse para casa para discutir os detalhes. Quando lhe ofereci uma quantia relativamente grande de dinheiro, porém, ela recusou e tentou me convencer a diminuir.
Mas que madura. Essa criança tinha mesmo só dez anos?
No final, chegamos a um valor com o qual todos concordamos.
— Mas posso perguntar por que você quer isso? Quer comprar alguma coisa? — Tive de admitir que fiquei curioso para saber o que motivou esse pedido. Aisha poderia comprar o que quisesse, é claro, mas não faria mal saber o que era.
— Bem, uma garota tem suas necessidades.
Nossa, isso realmente esclarece tudo. Eu meio que esperava ouvir quais são essas necessidades…
— Você está curioso, querido irmão? Então tudo bem. Por que não vem comigo da próxima vez que eu for fazer compras?
Ooh. Isso soava como um encontro. Um encontro com a minha irmãzinha! Que conceito adorável.
Avisei Sylphie sobre nossos planos com antecedência. Ela, infelizmente, estaria trabalhando naquele dia. Me senti um pouco culpado por andar pela cidade com outra garota enquanto minha esposa estava de serviço, mas não era traição, já que era minha irmãzinha.
Entretanto, o que Aisha estava planejando comprar? Com sorte não seria um escravo musculoso ou algo do tipo. Eu não queria um machão suado na minha sala o tempo todo, sinceramente. Ter um monstro gigante de seis braços ocasionalmente aparecendo para jantar já era ruim o suficiente… Mesmo com ele sumindo pelos últimos tempos.
No dia do nosso encontro, Aisha me levou ao mercado e foi direto para uma loja de produtos gerais que vendia todo tipo de coisas diversas para o dia-a-dia. As prateleiras estavam cheias de bugigangas, mas não havia outros clientes à vista. Pelo visto, vendiam principalmente artigos de segunda mão.
Depois de olhar um pouco as coisas, Aisha comprou três pequenos vasos de flores.
— O que você vai fazer com isso? — perguntei. — Jogar na cabeça de qualquer Rei Demônio que estiver passando ao acaso?
— Uh, não. Eu ia plantar algumas flores neles — disse Aisha, timidamente olhando para mim. — Contanto que você não se importe, é claro.
Só havia uma maneira possível de responder a isso.
— Claro que não me importo.
Ainda assim, eu realmente não tinha imaginado Aisha como o tipo de garota que gostava de flores. Pensava nela principalmente como uma criança gênio e enérgica. Em minha mente, seus hobbies eram limpar, contar dinheiro e equilibrar orçamentos.
Cultivar plantas estava mais para um passatempo lento e contemplativo. Era preciso deixar a natureza seguir seu curso, observando os resultados se desdobrarem ao longo de semanas ou meses. E mesmo um gênio não teria 100 por cento de sucesso no cultivo das coisas.
Mas será que não era exatamente por isso que a atraiu? Ela estava acostumada a ser capaz de manipular as coisas a seu gosto. Isso estaria parcialmente fora de seu controle.
— Então você não deveria comprar um pouco de terra? — falei. — A terra por aqui não é das mais férteis, então não será fácil de cultivar as flores.
— Eu ia pedir para você fazer um pouco para mim com a sua magia, Rudeus. Você se importaria? — Ela me encarou com olhos suplicantes. Havia apenas uma resposta possível.
— Claro que não me importo.
Afinal, eu era um homem. A ideia de cavar e semear algumas sementes tinha certo apelo para mim. Depois eu teria que preparar um solo incrível para ela. Do tipo que permite cultivar baobás a partir de sementes de tulipas.
— Que tipo de flores você estava pensando em plantar?
— Na verdade, colhi um monte de sementes diferentes no caminho para cá. Vou usar elas.
— Isso pode não crescer direito, você deve saber.
— Hmm. Acho que provavelmente vai dar certo.
Nós dois vagamos pela loja por algum tempo, conversando a respeito dos planos de Aisha. Antes de sairmos peguei um par de brincos para Sylphie – em forma de lágrima, com pequenas pedras azuis no meio. Isso definitivamente ficaria bem nela.
— Isso é um presente para Sylphie?
— Aham. Sou o tipo de homem que não considera a esposa garantida.
— Certo, Sylphie é uma mulher de sorte. Mas quando ela está ocupada, querido irmão, você talvez possa também me dar um pouco de amor.
Ah, os olhos para cima de novo. Como sempre, havia uma única resposta possível.
— Não mesmo. O velho me espancaria até eu perder os sentidos.
— Saco…
Pagamos nossas compras e deixamos a lojinha para trás.
Nossa próxima parada foi uma loja especializada na venda de móveis e tecidos. Havia enormes rolos de tecido feito à mão pendurados por todo lado. A Princesa Ariel tinha até mesmo me recomendado esta loja antes, quando eu estava comprando tapetes para a casa. Eles vendiam produtos de boa qualidade por uma ampla gama de preços e pareciam atrair uma boa clientela. Mas eu não sabia como minha irmã tinha descoberto sobre isso.
Dentro da loja, Aisha rapidamente escolheu algumas cortinas. Eram rosa e com babados que com certeza eram caros.
Quando levou aquilo ao balcão, entretanto, começou a implacavelmente pechinchar com o balconista. Ela usou até meu nome e o da Princesa Ariel, recorrendo a todas as cartas que tinha para usar. No final, conseguiu derrubar o preço para algo apenas moderadamente caro.
— Você tem o suficiente para pagar por isso, Aisha? Se quiser, posso ajudar um pouco.
— Está tudo bem! Tenho a quantia exata.
Entregando o restante de sua mesada, Aisha terminou sua compra. Ela usou cada moeda do dinheiro que recebeu. A garota tinha jeito com o dinheiro. Para ser sincero, foi um pouco assustador.
— Seria bom guardar um pouco de dinheiro para depois, sabe — avisei ao sair da loja. — Despesas inesperadas podem surgir do nada.
Caramba, você pode ser teletransportada para o Continente Demônio sem qualquer motivo.
Desde aquele incidente, adquiri o hábito de sempre esconder um pouco de dinheiro dentro das roupas. Eu mantinha algumas moedas até na sola dos sapatos.
— Certo! Da próxima vez vou economizar um pouco!
Mesmo assim, vasos de flores e cortinas rosas com babados, hein? Até o momento eu realmente achava que Aisha fosse só uma garotinha neurótica, mas ela também tinha um lado feminino.
— Sempre quis algumas coisas fofas assim, sabe — disse ela.
— O quê, Lilia não comprava isso para você?
— Mamãe sempre disse não. Ela acha que uma criada decorando com base em seus gostos pessoais é errado. Espero que você não se importe, Rudeus…
A garota não era só inteligente; também era boa em brincar com as emoções alheias. Ela não só colocou os braços em volta da cintura, estava até mesmo olhando para mim com os olhos do Bambi. Eu sabia que isso era tudo atuação, é claro, mas era tão fofo que eu nem me importava.
Havia apenas uma resposta possível, claro.
— Está tudo bem, Aisha.
Que bom que eu não era um velho assustador ou algo assim. Eu podia acabar a sequestrando.
Nas semanas seguintes a esse breve encontro, o quarto de Aisha ficou cada vez mais feminino. Ela parecia gostar de coisas pequenas e fofas, e sempre encontrava vasinhos para plantar flores e alinhava bonecas do tamanho de punhos em suas prateleiras. Em algum momento, ela até bordou desenhos charmosos na bainha do seu avental. Eu estava começando a ficar um pouco preocupado com a possibilidade de ela evoluir para uma gyaru, caso continuasse assim.
Ainda assim, minhas duas irmãs estavam se saindo bem. Eu estava contente.
Embora não fosse minha irmã, Nanahoshi também estava finalmente recuperando o seu ritmo. Em nosso último experimento, ela conseguiu invocar uma garrafa de plástico. Essa garrafa estava no parapeito da janela do seu laboratório, servindo como um vaso para uma única flor. Com esse sucesso em nossos currículos, passamos para a segunda fase do seu plano.
— A partir de agora, tentaremos convocar matéria orgânica do nosso velho mundo — declarou ela em certa tarde.
— Matéria orgânica?
— Isso mesmo. Eu estava pensando que poderíamos começar com comida.
Depois de minha contribuição para seu sucesso recente, Nanahoshi parecia um pouco mais disposta a confiar em mim do que antes. Ela até mesmo teve tempo para revisar as fases do seu plano comigo:
Invocar um objeto inorgânico.
Invocar algo composto de matéria orgânica.
Invocar algo vivo – uma planta ou um animal pequeno.
Invocar uma coisa viva que se enquadre em certos critérios específicos.
Devolver um ser vivo invocado ao local anterior.
A garrafa de plástico que invocamos anteriormente podia não ser tecnicamente um objeto orgânico, dependendo de como definisse o termo, mas ela não parecia considerar isso um grande problema.
— Hmm. Essa etapa com os critérios específicos é mesmo tão importante?
— Bem, eu diria que sim. Quando eu estiver me teletransportando de volta para casa, não quero voltar para um país estrangeiro ou coisa assim.
Resumindo, ela queria se aproximar cada vez mais de invocar algo tão complexo quanto um ser humano e, no final, se teletransportar precisamente para o Japão. Cada etapa do experimento era elaborada para atingir esse objetivo específico.
Em nosso atual estágio, ela já era capaz de estabelecer algumas condições sobre o que invocava, mas elas eram bem amplas. Os resultados individuais variavam muito. Se ela tentasse invocar um gato, por exemplo, poderia obter um gato malhado, um gato rajado, um tigre ou uma pantera.
Sua pesquisa estava atualmente focada em encontrar formas de tornar seus feitiços mais precisos. Ela queria ser capaz de invocar um gato doméstico, não um felino – e também queria especificar até mesmo o tipo de gato doméstico invocado.
— Mas definir as condições é bem difícil — murmurou ela, mais para si mesma do que para mim. — Acho que alguma hora terei que ver o velho de novo.
O velho era presumivelmente a autoridade em magia de invocação que ela mencionou em uma ou duas ocasiões.
— Esse cara sabe muito sobre essa, uh, invocação condicional?
— Bem…
Nanahoshi levou a mão ao queixo e pensou por um momento, então balançou a cabeça para si mesma e começou a explicar.
— Deixe-me elaborar isso um pouco. Neste mundo, a magia de invocação é geralmente dividida entre invocação de espírito maligno e invocação de espírito.
— Sério?
Invocação de espíritos malignos parecia se referir a invocar monstros específicos. Invocaria uma criatura inteligente usando um conjunto complexo de círculos mágicos, pagaria alguma forma de compensação a ele e o colocaria ao seu serviço. Esse era o tipo de invocação em que as pessoas pensavam quando usavam a palavra “invocação”.
Normalmente, isso era o mesmo que invocar monstros ordinários variados, do tipo que poderia encontrar na selva. Também era possível, entretanto, invocar feras lendárias que acreditavam residirem em outros mundos. A invocação de espírito maligno também não se limitava a coisas vivas – também era possível focar em objetos inanimados. Nanahoshi obtendo aquela garrafa de plástico seria tecnicamente categorizado como um feitiço de invocação de espírito maligno.
Se eu dominasse isso, poderia ser capaz de invocar a calcinha que a Mestra Roxy estivesse usando!
A invocação de espírito, por outro lado, era um tipo de técnica muito diferente. Na verdade, isso envolvia a criação de entidades artificiais de mana. Projetar esses tipos de feitiços parecia, de certa forma, semelhante a programação.
— Só para você saber, é melhor não discutirmos isso abertamente — disse ela.
— Por quê?
— A maioria das pessoas pensa que os espíritos são seres vivos que residem no Mundo Árido, e que estamos apenas trazendo-os para o nosso.
Em outras palavras, era considerado apenas mais uma variação da invocação de espíritos malignos.
Os espíritos malignos eram mais difíceis de controlar, mas podiam pensar e agir por conta própria e se adaptar a circunstâncias desconhecidas. Em contraste, os espíritos eram muito fáceis de controlar, mas geralmente agiam só em alguns padrões definidos. Dito isso, se tivesse a habilidade de “programação” para elaborar um código muito complexo, poderia ser capaz de criar um espírito que se passasse por humano. Ela tinha visto alguns deles na casa do velho mencionado.
— E também vale a pena mencionar… aqui está aquele círculo mágico que te prometi antes.
Nanahoshi me entregou um pergaminho. Havia um círculo mágico denso e complicado inscrito no centro, cobrindo cerca de meia página.
— O que é?
— Um pergaminho de invocação para um espírito luz de lâmpada.
Um espírito luz de lâmpada era uma coisa simples que flutuava atrás do invocador enquanto emitia uma luz brilhante. Era capaz de entender comandos simples como “ilumine aquela área”, mas, com o passar do tempo, sua mana diminui até desaparecer. Era um espírito bem básico, mas se usasse mana suficiente, poderia existir por um período relativamente longo de tempo.
Não era o feitiço mais emocionante que já aprendi. Para ser sincero, eu esperava algo um pouco mais chamativo como recompensa.
— A propósito, este círculo mágico é uma criação original daquele velho de quem sempre falo — disse Nanahoshi. — Nem mesmo a Guilda dos Magos sabe sobre isso.
— Hein? Sério?
Quando soube que era um produto de edição limitada, porém, de repente me pareceu muito mais emocionante. Acho que, no fundo, eu continuava com o coração de um japonês.
— Sim. Da próxima vez vou te dar algo ainda mais impressionante, certo? Prometo.
Nanahoshi juntou as mãos em um gesto de súplica. Eu não tinha visto ninguém fazer isso há muito tempo. Isso me deixou um pouco nostálgico.
— Acho que você deveria ser capaz de usar sua magia de terra para fazer um modelo disso — disse ela. — Assim, você pode imprimir cópias infinitas. Tenho certeza de que a Guilda dos Magos pagaria muito bem por eles.
— Não tem problemas se eu vender cópias? O cara que fez isso não vai ficar irritado?
— Confie em mim, ele tem coisas mais importantes na cabeça. Duvido que se importe.
Hmm. Bem, era bom saber que não precisaria sempre escrever pergaminhos mágicos à mão.
— Se você decidir vender para a guilda, certifique-se de mencionar o meu nome — acrescentou ela. — Isso deve garantir que não tentarão te passar a perna.
— Entendido. Obrigado.
Decidi manter essa ideia arquivada por um tempo. Ter uma potencial fonte de renda guardada nunca faz mal.
De qualquer forma, o fato de esses espíritos serem puramente artificiais era interessante. Pensei que isso poderia ser relevante para o projeto de Zanoba. Combinando diferentes disciplinas da magia, talvez pudéssemos nos tornar robôs capazes de dizer “hawawa” toda vez que ficássemos confusos.
— Ah. A propósito, Nanahoshi… se você pode invocar objetos aleatórios do nosso velho mundo, não há uma chance de que possamos trazer algumas coisas realmente úteis?
De primeira, parecia uma ideia decente, mas ela balançou a cabeça.
— Nesse estágio, só sou capaz de invocar objetos simples compostos de uma única substância consistente. Embora eu suponha que isso nos dê uma gama bem ampla de possibilidades.
Uma única substância consistente, hein? Isso explicava por que a garrafa de plástico não tinha tampa ou rótulo. Mas se ela ficasse melhor em estabelecer as suas condições, talvez pudéssemos invocar objetos complexos, peça por peça, e depois juntar tudo.
— Além disso, puxar muitas coisas do nosso velho mundo para este não é uma boa ideia. Acho que já mencionei isso, não?
Ah, ela ainda estava preocupada com aquela coisa de “bagunçar a linha do tempo”?
— Sinceramente, sinto que você está sendo um pouco paranoica com isso… — falei.
— Você é bem-vindo para testar essa teoria depois que eu estiver de volta em casa e em segurança. Prefiro não correr riscos.
Uau. Fria!
Zanoba, enquanto isso, finalmente conseguiu terminar aquela estatueta de wyrm vermelho. Não parecia exatamente com o que eu tinha visto, com chifres na testa e tudo mais… mas parecia legal, e isso que era o mais importante.
Julie ficou muito feliz com esse presente tardio. Ela não era o tipo de criança que sorria muito, mas passou um bom tempo segurando a estatueta, soltando um e outro ooh e aah enquanto a examinava de diferentes ângulos.
— Muito obrigada, Mestre! Obrigada, Grão-Mestre!
Virando-se para encarar nós dois, ela executou uma reverência meio dura, mas respeitável.
— De nada — disse Zanoba com um aceno de cabeça senhorial. — Continue com o trabalho duro.
— Sim senhor! — respondeu ela alegremente.
Julie estava atualmente falando a Língua Humana com muito mais fluência. Mas isso não foi por causa de nada que eu fiz. Ginger tinha o hábito de corrigi-la sempre que ela errava, e as pessoas sempre aprendem mais rápido quando tem alguém para apontar os erros.
— Você não é uma garota de sorte, Julie? Certifique-se de cuidar bem do presente — disse Ginger.
— Sim! Muito obrigada também, Senhorita Ginger.
Ginger tinha se tornado uma presença constante no quarto de Zanoba. Ela costumava se manter posicionada junto à parede, saindo para buscar bebidas para Zanoba ou para cuidar das necessidades dos visitantes. No momento, estava alugando um apartamento em um prédio próximo à Universidade. Uma vez perguntei por que ela simplesmente não se mudava para um quarto vazio designado a guarda-costas ao lado dos aposentos de Zanoba, mas ela disse que seria “presunção” demais viver ao lado do príncipe.
O arranjo deles parecia mais um casamento estranho do que uma relação mestre/serva. Ou o vínculo entre líder de culto e sua mais fiel discípula. A mulher provavelmente cortaria o próprio estômago no momento em que Zanoba assim ordenasse.
— Você precisa de algo, Rudeus?
— Só estava me perguntando por que você jurou lealdade a Zanoba.
Ginger balançou a cabeça diante da minha pergunta abrupta, parecendo bastante satisfeita.
— A mãe do príncipe me pediu pessoalmente para cuidar dele. E, naquele momento, jurei me dedicar ao seu serviço.
— Hmm. Bem, que legal. Prossiga.
— O que você quer dizer? A história é essa.
Espera, como assim? Isso foi o suficiente para você suportar tudo isso?!
Mas, bem, fazer um juramento de fidelidade provavelmente era coisa séria. Se fosse quebrar essa promessa por causa de maus-tratos, provavelmente não teria a feito. Certa vez, li em algum mangá que a sociedade feudal era composta de alguns sádicos de nascença e um enorme número de masoquistas. Ginger talvez se enquadrasse na segunda categoria.
Quando eu pensava assim, fazia um pouco mais de sentido… embora a realidade provavelmente não fosse algo tão bruto.
Cliff também estava progredindo em suas pesquisas. Ele recentemente completou seu primeiro protótipo de ferramenta mágica capaz de suprimir os sintomas da maldição de Elinalise. Ele, certo dia, me contou isso pessoalmente, parecendo ainda mais orgulhoso de si mesmo do que de costume.
— Essencialmente, isso força a mana externa a neutralizar o fluxo de mana interna. Não é o suficiente para eliminar a maldição, mas serve para retardá-la.
Ele começou a explicar os detalhes em uma linguagem técnica complexa. A maior parte da coisa se tratava de como ele “alinhava” a mana externa com a “frequência” da mana da maldição de uma forma bem específica. Ele também passou um bom tempo enfatizando a sua genialidade, então acho que vou omitir essa parte.
Resumindo, ele encontrou uma forma de tornar a maldição de Elinalise menos severa.
— Porém, ainda existem dois tipos de problemas — disse ele.
A essa altura da conversa, Cliff finalmente me deixou ver o dispositivo. Era uma espécie de tanga voluptuosa – o tipo de coisa que seria usada por um lutador de sumô. Para ser sincero, eu consideraria aquilo como uma fralda de adulto.
— Entendo. Bem, o problema mais óbvio seria que não está exatamente na moda.
— De fato. Eu não poderia pedir para Lise andar por aí vestindo essa coisa, é claro.
Os dois na verdade tinham brigado por causa disso – e eles quase nunca brigavam. Elinalise tinha até mesmo dito que não se importava com a aparência, mas Cliff teimou e se recusou a ceder. Acho que ele era orgulhoso demais para suportar a ideia de fazer sua namorada andar por aí parecendo ridícula.
Eles se reconciliaram durante uma noite de amor, aliás. O amor deles continuava nauseante como sempre.
— Zanoba e Silente se ofereceram para ajudar e desenvolvemos um plano para miniaturizar o dispositivo. Eu também gostaria de torná-lo significativamente mais eficaz. Mas eu sou um gênio, então tenho certeza de que será só questão de tempo.
Seu objetivo final era fazer um dispositivo que não fosse maior do que uma calcinha comum. Era difícil dizer se isso era viável, mas se conseguisse, talvez pudéssemos preparar inclusive um par de luvas para Zanoba. Isso poderia lhe dar a chance de fazer estatuetas com as próprias mãos.
Então, por fim, tive a sensação de que ele poderia ser naturalmente desajeitado, mesmo sem a superforça.
— Então, qual é o outro problema que você mencionou?
Cliff franziu a testa.
— Na verdade, é essa a razão pela qual te chamei aqui hoje, Rudeus.
— Oh?
— A questão é… o implemento atualmente consome mana demais para ser considerado prático.
Pelo que eu me lembrava, os implementos mágicos exigiam que alguém os enchesse de mana antes que pudessem funcionar. Os menos eficientes não eram considerados especialmente úteis para aplicação no mundo real. Idealmente, Cliff queria algo que Elinalise pudesse sempre usar, mesmo enquanto consumia apenas a quantidade de mana que ela pudesse gastar. Mas, agora, o dispositivo estava com tanta sede de energia que Cliff não conseguia mantê-lo em funcionamento por uma hora inteira.
— Vamos tentar continuar aprimorando o modelo, mas eu realmente gostaria da sua ajuda. Sem você, só seríamos capazes de carregá-lo algumas vezes por dia.
— Ah, é mesmo. Então tá. Vou ajudar assim que puder.
Cliff se considerava um mago gênio, e sua capacidade de mana com certeza era das grandes. Mas, mesmo assim, não era o suficiente. Era exatamente nisso que eu poderia ser útil.
Daquele dia em diante, também comecei a ajudar nos experimentos de Cliff.
Aliás, o dispositivo não fazia nada a respeito da excitação de Elinalise.
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Ultimamente, eu sentia que minha vida tinha se acomodado a um ritmo suave e agradável.
Acordei de manhã, fiz meu treinamento, tomei café da manhã e fui para a Universidade. Parei para ver Zanoba e depois Cliff, verificando o andamento de suas pesquisas e, ocasionalmente, oferecendo alguns conselhos. Depois do almoço, fui ajudar Nanahoshi com seus experimentos de invocação. E, assim que as aulas terminaram, tirei uma hora para dar aulas particulares para Norn.
No caminho de volta para casa, fui fazer compras com Sylphie e Aisha nos cumprimentou na porta da frente. Sylphie e eu tomamos banho e nós três jantamos. Em seguida, praticamos magia na sala de estar e conversamos sobre como foi o dia.
Depois que Aisha foi para a cama, trabalhei no projeto de fazer bebês com Sylphie e, logo em seguida, caí em um sono profundo com minha esposa me servindo como travesseiro de corpo. Todos os dias se pareciam com os anteriores, mas eu ainda sentia que estava fazendo constante progresso em direção aos meus objetivos.
Será que isso era o que chamam de felicidade?
Não era algo que provei muito na minha primeira tentativa de viver. E, supondo que Paul voltasse são e salvo em mais ou menos um ano, as coisas deveriam melhorar sem parar.
Tradução: Taipan
Revisão: Gabs
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