Não tenho certeza de quando comecei a sentir medo do meu irmão, mas no começo não era assim.
A primeira vez que me encontrei com Rudeus foi no dia em que ele deu um soco na cara do meu pai.
E eu amava o meu pai. Ele tinha algumas enormes falhas, mas eu sabia que se importava muito comigo e sempre me colocava acima de tudo. Mais importante ainda, naquela época eu tinha menos de cinco anos. A maioria das crianças dessa idade ama os pais de forma incondicional.
E eu amava o meu pai. E Rudeus apareceu do nada e começou a bater nele.
Eu realmente não entendi como a conversa acabou daquele jeito. Nesse ponto, anos depois do ocorrido, posso reconhecer que meu pai foi o culpado pela briga. Rudeus tinha acabado de passar por uma jornada longa e difícil por um país perigoso, e nosso pai zombou dele e ainda por cima o cobrou. Mas, na época, tudo que vi foi meu irmão sentado em cima dele enquanto o socava sem parar. E tudo que eu conseguia pensar era: Ele vai matá-lo. Essa era a única coisa que me importava naquele momento.
Naturalmente, eu não aceitaria que um monstro como aquele fosse parte da minha família.
Naquela época eu não sentia medo de Rudeus. Só o odiava.
Continuei odiando-o por um bom tempo depois daquilo. E todos sentindo a necessidade de elogiá-lo não ajudava. Não era só o meu pai – depois, quando encontrei minha irmã e a criada da família, elas também falavam sobre ele cheias de entusiasmo. Mas quanto mais o elogiavam, com mais teimosia eu o desprezava.
E eu odiava a minha irmã quase tanto quanto odiava Rudeus. Na escola que frequentamos juntas, Aisha insistia em sempre competir comigo. Ela me desafiava na sala de aula e no campo em que costumávamos fazer exercícios, e sempre me derrotava completamente. Ela esfregava todas as minhas falhas no meu nariz.
Com ela por perto, passei todos os dias me sentindo uma perdedora. Nunca pensei que poderíamos ser amigas.
Minha avó estava ciente do estado das coisas, e não gostava nada disso. Ela não sentia nada além de desprezo por Aisha, a quem chamava de “ilegítima”. Mas também tinha grandes esperanças em mim… ou ao menos grandes expectativas. Ela dizia que eu era uma “lady da família Latria”. Pelo visto, isso indicava que eu precisava ser no mínimo “competente”.
Fui forçada a assistir aulas de etiqueta e ter lições para me preparar para cerimônias específicas. Nada disso foi natural para mim; errei várias vezes e era diariamente repreendida. Sempre que eu me envergonhava, minha avó murmurava: “Suponho que o negócio de aventureiro deve poluir o sangue, assim como o espírito.”
Eu sabia que ela estava insultando tanto minha mãe quanto meu pai com aquelas palavras. Meu pai dava duro por mim, e isso era tudo que ela dizia sobre ele. Não demorou muito para eu começar a odiá-la também.
E então, quando a professora do meu irmão apareceu e disse onde minha mãe estava, decidi seguir meu pai em sua jornada, em vez de ficar com minha avó.
Papai ficou hesitante. Ele pensou que seria mais seguro se eu ficasse para trás. Minha mãe era da aristocracia de Millis e meu pai de uma casa nobre Asurana. Nesses termos, pelo menos, eu era de boa linhagem. Graças a isso, meu avô estava disposto a me receber em sua casa de forma permanente.
Mas eu odiei essa ideia, então implorei para que meu pai me levasse com ele. Chorei e supliquei. E, eventualmente, teria que ir junto.
E, ainda… no final, meu pai me enviou para morar com Rudeus.
Ele disse que as coisas ficariam perigosas demais. Disse que Rudeus estava morando no norte, então eu deveria ficar lá e esperar por ele. Disse que iria para lá assim que encontrasse a minha mãe.
Eu chorei. Recusei. Implorei para que me levasse junto. A última coisa que eu queria era me separar dele, ainda mais depois de chegarmos tão longe, sempre juntos. Se Ruijerd não tivesse aparecido naquela hora, eu poderia ter eventualmente conseguido ir com meu pai. E então, provavelmente ficaria doente ou acabaria ferida naquela dura jornada pelo Continente Begaritt. E também acabaria causando todos os tipos de problemas para ele.
Graças a Ruijerd, não foi isso que aconteceu.
Eu me lembrava tão claramente dele. No dia em que conheci meu irmão, Ruijerd estendeu a mão para mim quando acabei tropeçando na rua. Afagou a minha cabeça e me deu uma maçã. Naquela época eu não sabia o seu nome. Em algum momento, descobri que era o guarda-costas do meu irmão, mas nunca tive a chance de perguntar o seu nome.
Ele foi tão gentil na segunda vez em que nos encontramos. Voltou a afagar a minha cabeça e gentilmente me convenceu a fazer a coisa certa.
E, assim, acabei indo para o norte, em direção à nova casa do meu irmão.
Aisha estava transbordando alegria e entusiasmo desde o momento em que pegamos a estrada. Ela abandonou aquela atitude de boa garota que mostrava na frente do Papai e de Lilia e começou a agir como a líder da nossa expedição, surgindo com todos os tipos de planos malucos.
Na minha opinião, ela estava sendo estúpida. Ver ela tentando assumir o controle enquanto tínhamos dois adultos viajando conosco parecia ridículo. Mas, por alguma razão, Ruijerd e Ginger a levaram a sério e até mesmo concordaram com a maioria das suas ideias.
Isso não parecia nada justo. As opiniões dela pareciam sempre ter mais peso. Qualquer coisa que eu dizia era basicamente ignorada.
O principal motivo pelo qual pude suportar tudo foi Ruijerd. Ele ao menos tinha consideração pelos meus sentimentos. Sempre reservava tempo para me confortar e ouvir as minhas reclamações.
Mas até mesmo ele passava muito tempo elogiando o meu irmão.
Chamava Rudeus de homem notável. Até mesmo me disse o quanto estava ansioso para vê-lo. E sempre sorria um pouco quando falava dele, e olha que quase nunca sorria. O Rudeus que eu conhecia e o Rudeus de que ele falava pareciam ser pessoas completamente diferentes.
Talvez tenha sido aí que comecei a sentir medo do meu irmão.
Rudeus era um mago poderoso. Ele era digno de respeito. Todos diziam isso. Mas o Rudeus que eu conhecia era o homem que jogou meu pai no chão e depois o espancou. Ele era uma pessoa violenta. Se eu o chateasse, não havia garantia de que não me bateria igual bateu no meu pai.
Fiquei com medo de revê-lo, e a ideia de morar com ele por meses me assustava. Eu às vezes acordava no meio da noite, tremendo. Às vezes, não conseguia sequer dormir. Bom, Ruijerd pelo menos sempre estava lá para me confortar. Ele me colocava no colo e olharíamos para as estrelas juntos enquanto me contava as histórias do seu passado. A maioria delas era triste, mas, por algum motivo, sempre me ajudavam a dormir.
Quando voltei a me encontrar com Rudeus depois de anos, ele estava bêbado e agarrado a uma mulher.
Pelo visto, era a amiga de infância que ele tinha em Buena Village, e tinham acabado de se casar. Eu nem me lembrava dela. Tinha vagas lembranças de uma criança mais velha andando com Aisha e Lilia, mas não lembrava dela ser nada parecida com essa Sylphie. Ela devia ter mudado muito com o passar do tempo.
Rudeus estava claramente aproveitando a sua vida ao máximo.
Fiquei com raiva ao ver aquilo. Meu pai não perdia tempo brincando com mulheres por anos e anos. Ele disse que colocaria isso em espera até encontrar a minha mãe. Não tocou sequer em Lilia, muito menos em qualquer uma das outras que apareceram em sua vida.
A maior prioridade do meu irmão, por outro lado, era a sua própria felicidade. Isso me deixou louca.
Mas não consegui dizer nada. Eu estava com medo dele. Estava com medo de que, se o deixasse com raiva, ele começaria a me bater.
Ruijerd interviria em minha defesa? Difícil dizer. Ele parecia muito feliz em voltar a ver Rudeus. Talvez não ficasse do meu lado. Talvez diria que eu estava sendo rude ou egoísta.
Não pude dizer nada naquela primeira noite. E então, no dia seguinte, Ruijerd partiu para sempre. Achei que ele ficaria conosco por mais algum tempo. Eu não queria que ele fosse embora. Mas, mesmo assim, foi.
Fiquei com ainda mais medo do que antes. As únicas pessoas que ficaram na casa foram Rudeus, sua esposa e Aisha. Minha irmã mais nova ficou muito feliz por voltar a estar com Rudeus. Sylphie parecia uma pessoa legal o suficiente, mas não estava do meu lado. Eu não tinha ninguém do meu lado.
Estava presa até meu pai chegar. Teria que viver com medo por meses e mais meses.
Rudeus provavelmente seria bom com Aisha, mas rigoroso comigo. Ele elogiaria minha irmã e diria para eu me esforçar mais.
Aisha sempre dizia que eu não conseguia fazer nada direito. Dizia que eu não me esforçava. Mas havia coisas que eu simplesmente não conseguia fazer, não importa o quanto tentasse. Mesmo quando queria melhorar, mesmo quando dava tudo de mim, ainda não conseguia me comparar a ela. O que eu deveria fazer?
Por enquanto, tudo que poderia fazer era ficar fora do caminho. Eu me escondi, esperando que ninguém ficasse bravo comigo. Esperando que ninguém me dissesse o quão inferior eu era.
A cidade lá fora estava coberta de neve. Fiquei com medo de ser jogada, sozinha, no frio.
Rudeus decidiu que eu precisava começar a frequentar a escola.
Essa “universidade” parecia muito diferente da escola que frequentei em Millishion. Eu poderia me matricular no primeiro ano, mas isso não significava que todos os meus colegas teriam a minha idade. Havia todo tipo de gente estudando lá, e a maioria das pessoas era mais velha do que eu.
Para ser sincera, eu não queria ir. Sabia que acabaria voltando a ser comparada com Aisha. Minha irmã, porém, não tinha intenção de voltar a frequentar uma escola. Essa, ao menos, era uma boa notícia para mim. Sem ela por perto, talvez pudesse me sair um pouco melhor.
Meu irmão, entretanto, colocou uma condição para isso. Ela teria que fazer o exame de admissão da universidade. Era um teste que todos tinham que fazer para entrar – ou seja, eu também o faria.
Isso me desencorajou profundamente. Não havia como passar em um teste sem nem mesmo estudar para ele. Mas, quando falei isso para Rudeus, ele disse que poderia me comprar uma vaga na Universidade. Foi algo tão imprudente e rude de se dizer que, apesar de tudo, fiquei com raiva. Então Aisha ficou com raiva de mim por eu ter ficado brava, e acabamos brigando.
— Parem com isso, as duas.
O tom frio do meu irmão foi como uma pontada bem no meio do meu peito.
Por um momento, pensei que ele me socaria. Fiquei com tanto medo que até chorei um pouco.
Teria que continuar vivendo assim, sempre recuando de medo?
No dia do exame, Rudeus me falou sobre os dormitórios. A Universidade de Magia, aparentemente, permitia que seus alunos vivessem em enormes prédios que ficavam no campus, tudo para ajudar a se tornarem mais independentes. Parecia a solução para todos os meus problemas.
Eu não tinha dúvidas de que minha irmã seria aprovada no exame, ou seja, não teria que ir para a escola. Então, se eu me mudasse para os dormitórios, não precisaria mais ver ela ou Rudeus. Ninguém me compararia a ninguém. Poderia ser eu mesma e viver a minha própria vida.
Quanto mais pensava nisso, mais perfeito parecia.
Poucos dias depois, recebemos o resultado do teste, e meu irmão perguntou o que eu queria fazer. Hesitante, admiti que queria morar nos dormitórios.
Tive medo de que ele ficasse com raiva. Meu pai queria que eu ficasse com Rudeus, e provavelmente disse, em sua carta, para ele tomar conta de mim. Achei que meu irmão poderia ficar com raiva. Talvez até me bater por ser tão egoísta.
Mas, para a minha surpresa, Rudeus concordou na mesma hora.
Foi Aisha quem ficou com raiva. Ela achou que era injusto que eu conseguisse o que queria. Até então, ela sempre tinha recebido um tratamento melhor do que eu. Acho que não gostou do fato de que Rudeus a testou, mas não a mim.
Ainda assim, por que meu irmão concordou com o meu pedido? Eu não sabia. Eu não o entendia direito. Olhando para o passado, percebi que ele não ficou chateado comigo nenhuma vez, desde que cheguei, exceto pela vez em que briguei com Aisha.
Talvez simplesmente não tivesse interesse em mim…
Talvez pensasse que cuidar de mim não era nada mais do que um incômodo, e viu isso como uma oportunidade de ouro para se livrar de mim. De acordo com tudo que eu sabia, ele, de qualquer forma, já planejava me mandar para os dormitórios.
Isso seria conveniente, no que me dizia respeito. Mas, por algum motivo, pensar nisso me deixou um pouco triste.
Toda a coisa de morar em dormitórios era nova para mim. Isso era realmente emocionante.
Pela primeira vez na vida, teria uma colega de quarto. Iria morar com uma garota mais velha chamada Marissa. Ela era um demônio.
Minha avó sempre disse que demônios são criaturas do mal – monstros que devem ser expulsos e destruídos. Se eu não tivesse conhecido Ruijerd, provavelmente continuaria acreditando nisso. Mas eu tinha conhecido Ruijerd, então me apresentei educadamente a Marissa que, em troca, também me recebeu calorosamente. Eu precisava de muita ajuda, já que estava começando no meio do ano letivo, e Marissa estaria lá para me ajudar. Ela me ensinou como funcionavam as refeições, onde ficavam os banheiros e as regras do dormitório.
Enquanto ela me mostrava o lugar, uma garota demônio assustadora do “esquadrão de autodefesa” nos viu e se apresentou para mim.
— Aqui somos todos uma grande família — disse ela —, então temos que cuidar umas das outras.
Fiquei um pouco intimidada por ela, mas Marissa me disse que tratava-se de uma pessoa de bom coração que levava suas responsabilidades a sério.
No geral, fiquei ansiosa pela minha nova vida. Ter que voltar para a casa do meu irmão uma vez a cada dez dias era irritante, mas ele não me fazia muitas perguntas específicas, então não era grande coisa.
E então comecei minha nova vida como estudante interna.
Na mesma hora, percebi que as aulas eram muito difíceis. Acho que era em parte porque os professores explicavam tudo de um jeito diferente, se comparado a Millis. Poderia ser diferente se eu tivesse visto todas as aulas desde o começo, mas entrei no bonde andando. Muitas das palestras eu simplesmente não conseguia acompanhar.
Em Millis tínhamos aulas de religião, mas essa matéria nem existia aqui. Em vez disso, tínhamos aulas práticas de magia. Eu também não era muito boa nisso. Os professores não se importavam em explicar o básico.
Isso era um pouco desanimador. Mas se minhas notas fossem péssimas, poderia acabar sendo arrastada de volta para a casa do meu irmão. Tentei estudar no meu dormitório, mas não estava dando certo. E então, quando eu estava ficando sem saídas, Marissa foi legal o suficiente para começar a me dar aulas particulares. Com a paciente ajuda dela, finalmente consegui enfiar alguns conceitos que deveria estar aprendendo em aulas na minha cabeça.
Aisha provavelmente entenderia tudo de primeira. Eu às vezes me odiava por ser tão estúpida.
O campus era bem grande e eu costumava me perder.
As aulas práticas de magia e preparo físico eram particularmente ruins. Faziam isso em um monte de salas diferentes e eu nunca conseguia lembrar como chegar nelas. Em cada vez que me perdia, precisava pedir informações a algum veterano ou esperar até que alguém da minha sala fosse me encontrar.
Certa vez, enquanto perdida, me encontrei até com Rudeus. Ele, por alguma razão, estava caminhando com a aluna mais importante de toda a escola. Foi incrivelmente embaraçoso.
Todos na universidade tinham medo do meu irmão.
Pelo que parecia, ele era o chefe de uma pequena gangue de seis integrantes que faziam tudo o que queriam por aí. Duas dessas pessoas moravam no meu dormitório. Eram garotas altas e de aparência assustadora que andavam por aí como se fossem as donas do pedaço. Marissa tinha avisado que, se possível, era melhor não ficar no caminho delas.
Existiam rumores de que Rudeus ordenou que aquelas duas pegassem uma calcinha de cada garota bonita da escola.
A esposa do meu irmão sabia disso? Provavelmente não. Para começar, eu não sabia o que ele pretendia fazer com todas aquelas calcinhas, mas isso me deixou muito brava. Meu pai estava arriscando a vida para salvar a minha mãe, e meu irmão estava só bancando o idiota. Minha opinião sobre ele estava ficando cada vez pior.
Mas, apesar das suas ações bizarras, a reputação do meu irmão era estranhamente positiva. As pessoas diziam que ele nunca incomodava alunos comuns. Embora fizesse o que queria, não machucava ou assediava ninguém. Na verdade, supostamente disse para todos os valentões pararem de implicar com os mais fracos. Uma das crianças mais assustadoras da minha sala até mesmo se gabava por uma vez ter conversado com Rudeus.
Ele era melhor que qualquer um da Universidade em magia e, pelo visto, também era um bom professor. As pessoas diziam que ele estava dando aulas particulares para uma garota ainda mais jovem do que eu.
Meus colegas de classe, meus professores e até mesmo Marissa diziam que eu deveria tentar seguir os seus passos. Queriam que eu fosse como ele. Que fosse como… o irmão que eu temia, odiava e não compreendia.
Eu não queria ser como ele.
Mas, mais do que tudo, saber que não poderia me comparar a ele era doloroso. Ele era melhor do que eu em tudo, igual Aisha.
Não importa o quanto eu tentasse, nunca seria páreo para ele.
Eu odiava o Rudeus. Achava que ele era uma pessoa terrível.
Mas o fato era: eu não conseguia nem competir com ele.
Um dia, voltei para o meu dormitório e me joguei na cama.
Um grande misto de emoções começou a crescer dentro de mim há semanas. Amargura, tristeza, autopiedade, raiva e sabe-se lá o que mais.
Eu não conseguia mais conter essas coisas. Não pude evitar de me quebrar.
Marissa chegou ao quarto um pouco depois. Ela me viu chorando no travesseiro e gentilmente me perguntou qual era o problema, mas eu só disse “Não é nada” e puxei o cobertor sobre a cabeça.
O que eu deveria fazer?
Estava errada a respeito de Rudeus? Ou era todo mundo?
Provavelmente era eu… Ele não devia ser uma pessoa tão ruim quanto eu pensava que era.
Eu era muito nova quando vi Rudeus batendo no meu pai. Depois daquilo, meu pai tentou me explicar que tinha acontecido muita coisa e eu nunca consegui entender o significado disso. Mas, agora, depois desse tempo todo, finalmente começou a fazer algum sentido para mim. Afinal, até eu estava no meu momento de “acontecer muita coisa”.
Se eu me esforçasse, mudasse as coisas e conseguisse me animar, seria realmente um saco se alguém dissesse: “Nossa, olha pra você. Deve ser bom levar uma vida tão despreocupada.” Eu, na verdade, provavelmente gostaria de socar essa pessoa. Mesmo se fosse meu próprio pai.
No fundo, Rudeus e eu devíamos ser pessoas parecidas. Afinal, ele não era um monstro desumano.
Mas, dito isso… como eu deveria conversar a respeito dessas coisas com ele? O que ele iria querer de mim? Aliás, como ele conseguiu fazer as pazes com o Papai?
Pensei e pensei nisso. Nada me surgiu à mente, mas minha barriga eventualmente começou a doer. Meu estômago doeu e comecei a sentir náuseas. Então me enterrei ainda mais na minha cama e não fiz nada.
Não pude fazer nada. Eu não conseguia nem mesmo enfrentar o meu irmão.
Nessas horas, Papai sempre estava lá por mim. Quando algo ruim acontecia e eu me enterrava na cama, ele aparecia e afagava as minhas costas por um tempo. E, depois que nos separamos, Ruijerd assumiu o seu lugar. Ele me colocava no colo, acariciava a minha cabeça e me contava histórias.
Aqui eu não tinha ninguém assim. Marissa era legal comigo, mas não estava do meu lado. Tudo o que ela sugeriu era que eu deveria falar com meu irmão ou tentar voltar para as aulas.
Eu já sabia disso. O problema era que meu corpo não queria se mover.
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Quanto tempo passou desde que me enfiei na cama?
Continuei pensando nas mesmas coisas pelo que pareceram muitas horas, depois adormeci de exaustão. Repeti esse ciclo algumas vezes, então deviam ter passado alguns dias.
Eu estava sentada na beira da minha cama. E, por algum motivo, Rudeus estava bem na minha frente. Ele estava sentado em uma cadeira e olhando para mim.
— Norn, eu…
— Uhm, Rudeus…
Parecia ser a primeira vez que falei o nome do meu irmão em voz alta.
Nós dois quebramos o silêncio exatamente ao mesmo tempo. Eu não parecia estar alucinando. Como ele entrou no dormitório feminino?
Fiquei tão confusa que não sabia o que fazer. Meu irmão também estava quieto. Ficamos algum tempo só nos encarando.
Devia ser a primeira vez que olhei tão atentamente para o rosto de Rudeus. Ele parecia um pouco ansioso. Suas feições me lembravam um pouco do meu pai, isso era meio reconfortante. Mas é claro que eles seriam parecidos.
— Sinto muito, Norn. Não foi fácil para você, não é? — disse Rudeus, com sua voz hesitante. — Acho que eu realmente… nem te entendo direito… Sei que deve ser difícil para você, mas não sei o que fazer.
Era só eu ou ele estava muito nervoso? Isso também me lembrava do meu pai.
— …
Meu irmão voltou a ficar em silêncio. Ele ficou só sentado lá, em silêncio, sem se mover.
Estava me olhando ansiosamente, mas não se moveu da cadeira. Meu pai provavelmente já teria me abraçado, e Ruijerd já teria afagado a minha cabeça. Mas meu irmão nem mesmo se aproximou de mim.
— Ah.
De repente, entendi o porquê.
Ele não podia se aproximar de mim. Estava com muito medo de que eu pudesse rejeitá-lo.
No instante em que esse pensamento passou pela minha cabeça, senti todas as minhas emoções negativas começando a se dissipar. Eu não odiava mais o Rudeus. Também não o achava assustador. Ele era muito parecido com o meu pai.
Ele nunca iria me bater, não importa o quê. E provavelmente nunca mais bateria no meu pai.
— Sniff…
Eu precisava perdoá-lo.
— Hic!
Agora as lágrimas estavam rolando pelas minhas bochechas. Minha garganta ficou seca.
Depois de um momento, comecei a soluçar.
— Sinto muito, Rudeus! Sinto muito…
Lentamente, com cautela, meu irmão se levantou e sentou ao meu lado. Ele gentilmente colocou a mão na minha cabeça e me abraçou contra o peito dele. Sua mão era quente e seu peito firme.
E o cheiro dele também parecia com o do meu pai.
Passei o resto da noite chorando em seus braços.
Rudeus
No final, não fiz quase nada.
Norn não me contou o que estava acontecendo. Ela nunca me contou por que estava para baixo ou o que estava acontecendo. Só chorou por bastante tempo.
E então, quando finalmente terminou, olhou para cima e murmurou:
— Agora vou ficar bem.
Era isso.
Mas, por alguma razão, ela realmente parecia, pela primeira vez, bem. Ela até conseguiu me olhar nos olhos.
Fiquei imensamente aliviado. Algo me disse que ela ficaria bem.
Então, deixei o resto para Sylphie e saí do quarto da minha irmã.
Depois daquele incidente, Norn ficou visivelmente mais alegre.
As mudanças não foram exatamente dramáticas. Ela só começou a me dizer olá quando nos cruzávamos pelo corredor. Nós ainda não conversávamos muito, e ela não começou a ficar em cima de mim igual a sua irmã. Provavelmente ainda estava sendo comparada a mim nas aulas, mas acho que isso parou de a incomodar.
Eu ainda não entendia o que ela estava sentindo. Não fiz nada de significativo. Isso me fez sentir um pouco patético. Eu sabia como era ser desprezado e como era se isolar no próprio quarto. Mesmo assim não consegui pensar em nada útil para dizer.
No final das contas, acho que Norn resolveu tudo sozinha. Ela processou seus sentimentos e deixou os obstáculos pelo caminho para trás.
Essa foi uma conquista realmente impressionante.
Paul e Aisha pareciam pensar que Norn era só uma criança tímida e desajeitada, sem qualquer talento especial. Mas eu agora tinha uma opinião bem diferente a respeito dela. Ela conseguiu sair de um buraco em que fiquei preso por uma vida toda.
Se eu tivesse metade da força dela, minha primeira vida talvez não tivesse sido tão miserável. Eu talvez não teria levado um soco na cara do meu irmão de bom coração.
Mas era impossível ter certeza, é claro. Minha situação era diferente da de Norn. Mesmo se eu tivesse me resolvido com meus sentimentos, talvez nunca teria saído do meu quarto. Talvez precisasse renascer e encontrar Roxy para que isso fosse possível.
De qualquer forma, eu não poderia mudar o passado. Os relacionamentos que rompi nunca poderiam ser reparados. E eu nunca teria certeza do que estava passando pela cabeça do meu irmão naquela época.
Ainda assim, meio que senti… como se algo que ficou preso na minha garganta por muito tempo tivesse sumido. Se Nanahoshi algum dia conseguisse voltar ao nosso velho mundo, eu teria que pedir para ela levar uma mensagem para o meu irmão.
“Obrigado por tentar entrar em contato comigo naquela época. E sinto muito.”
Tradução: Taipan
Revisão: PcWolf
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