Mushoku Tensei: Reencarnação do Desempregado

Mushoku Tensei: Reencarnação do Desempregado – Vol. 11 – Cap. 04 – Os Sentimentos do Irmão

 

Descobri a respeito da situação em certa manhã, enquanto ia para a escola com Sylphie.

Linia e Pursena estavam esperando por mim do lado de fora dos portões. Assim que nos viram chegando, correram e contaram que Norn havia se trancado em seu quarto e que se recusava a sair.

— Vou dar uma olhada! — Sylphie saiu correndo em direção ao dormitório feminino quase na mesma hora.

Eu, por outro lado, fiquei congelado no lugar. Provavelmente devia ter seguido minha esposa, mas a notícia me deixou em estado de pânico. Ser um “recluso” tinha algumas conotações muito pesadas para mim, acho.

— Você não vai junto, Chefe?

— Vai simplesmente ignorar isso?

Eu não sabia o que dizer.

O que devia fazer? O que se supunha que eu devia fazer? Minha mente estava em branco. No meu caso, quando me tranquei no meu quarto já estava tudo acabado. Fiquei recluso pelo resto da vida.

Por que nunca mais saí? Porque achava o mundo lá fora perigoso demais, cheio de pessoas que queriam me fazer mal. Achei que voltaria a ser intimidado caso retornasse à escola. Sim – tudo começou com o bullying. Eu sabia que voltariam a me atormentar assim que eu tentasse abandonar o meu isolamento.

Se quisesse que isso mudasse, precisava dar um jeito na causa para o comportamento de Norn. Antes de tentar persuadi-la, precisava descobrir o motivo pelo qual ela estava se escondendo no seu quarto.

Uma memória do passado correu pela minha mente. Eu estava no refeitório da minha velha escola, pacientemente esperando na fila. Mas, quando minha vez finalmente chegou, um bando de arruaceiros assustadores apareceu na minha frente. Cheio de raiva justificada, eu estupidamente decidi me defender. Dei um sermão em um tom alto o bastante para que todos escutassem, mesmo enquanto zombavam de mim e mandavam eu ir me foder.

Eu podia ver os outros alunos começando a olhar em nossa direção. Sentindo-me cada vez mais orgulhoso de mim mesmo, insisti obstinadamente no assunto, exigindo um pedido de desculpas. Mas, em vez disso, me espancaram. Quando aquilo acabou, pensei que ficaria aleijado pelo resto da vida.

Esse único erro transformou a minha vida em um inferno.

Se houvesse alguma chance de Norn estar passando por algo parecido, eu precisava ajudar. Derrotaria os valentões que estavam a assediando e faria com que ela voltasse a se sentir segura.

Os amigos ou parentes deles podiam vir atrás de mim depois, mas eu também daria um jeito neles, caso necessário. Não me importava se fossem aristocratas ricos, ou até mesmo da realeza. Eu daria tudo de mim para lutar contra eles. Me certificaria de que viveriam para se arrepender de irem contra mim.

Existia a possibilidade de Norn ter desencadeado o conflito inicial. Mas o que quer que estivessem fazendo com ela, evidentemente passou dos limites.

Norn era minha irmã. Não importava se ela odiava Aisha e eu, ou se não queria morar conosco. Ela ainda era minha família. E o irmão mais velho deve proteger suas irmãs, certo?

Poucos minutos depois, eu estava caminhando pelo corredor em direção às salas de aula do primeiro ano com Linia e Pursena logo atrás de mim. Pensei em fazer isso sozinho, mas não achei que minha presença seria suficientemente intimidante. Mas, com essas duas ao meu lado, todos deveriam perceber que eu estaria falando sério.

— Uh, Chefe…

— Não, Linia. Não viu como ele está bravo? Isso é meio assustador.

As duas pareciam um pouco em dúvida a respeito disso. E era compreensível. Eu estava as arrastando para uma situação verdadeiramente embaraçosa. Mas, agora, não deixaria meu senso de vergonha me parar. Neste momento, estava completamente no modo pai coruja.

Em pouco tempo, chegamos à sala de aula principal de Norn. A aula já tinha começado.

— Com licença — falei, abrindo a porta e entrando.

— Uh, S-Senhor Greyrat? Estamos no meio de uma…

— Gostaria de um momento de atenção de todos, se não se importar.

 

 

 

— Mas…

— Isso não vai demorar.

Tirando a professora do meio do caminho, tomei seu lugar no palanque.

Antes de começar, olhei para todos os presentes. Todo mundo estava me encarando com surpresa. Mas, em algum lugar na multidão, devia haver um valentão que estava mexendo com minha irmãzinha.

Socaram ela? Chutaram ela? Talvez até o momento só tivessem a insultado. Talvez tivessem zombado de uma garota triste e solitária que estava isolada em uma cidade desconhecida.

— Como creio que a maioria de vocês sabe, uma pessoa desta sala está ausente.

Ninguém tinha nada a dizer sobre isso.

— O que não devem saber, é que ela é minha irmã menor.

Isso causou uma reação. Ouvi murmúrios de todos os cantos da sala.

— Ainda não ouvi os detalhes diretamente dela, mas não existem muitos motivos pelos quais uma criança da idade dela começaria a faltar aulas. Acho que o responsável deve ser desta sala.

Examinei a sala toda enquanto falava, procurando por qualquer reação. Vários alunos olharam para baixo assim que se depararam com meu contato visual. A maioria deles eram crianças de aparência meio durona que já estavam começando a violar um pouco o código de vestimenta. Será que era por estarem com a consciência pesada?

Olhando melhor, percebi que um deles era aquele delinquente que conheci há algum tempo. Não conseguia lembrar do nome dele de cabeça. Será que era ele?

Calma. É cedo demais para tirar conclusões precipitadas.

— Não espero muito dos responsáveis — falei. — Talvez estivessem apenas brincando ou tentando conhecê-la melhor, mas as coisas acabaram tomando um rumo estranho. E ela talvez os tenha provocado de alguma forma.

Eu estava observando cada um dos rostos com ainda mais atenção.

Quem foi? Quem a intimidou? Será aquele pirralho riquinho ali? Ou aquele garoto demônio taciturno? Não, pode muito bem ter sido uma garota comum. Crianças comuns, às vezes, podem ser as mais desagradáveis de todas.

— Eu apreciaria muito se algum dos envolvidos se apresentasse e admitisse. Não vou gritar. Só quero que reconheça o que fez e peça desculpas à minha irmã.

E, depois disso, farei picadinho do culpado.

Algumas das crianças da sala eram tão novas quanto Norn, mas a maioria era mais velha. Alguns estavam até mesmo chegando ao final da adolescência. Provavelmente havia ao menos alguns que olharam para o outro lado. Havia até mesmo a chance de que estivessem todos envolvidos nisso. Quanto mais eu pensava no caso, mais irritado ficava.

Por um longo momento, ninguém disse nada. Todo mundo ficou só olhando para mim, todos com os olhos arregalados de surpresa.

— U-Uhm…

Finalmente, uma garota do grupo levantou a mão, mesmo que hesitante. Foi necessária muita força de vontade para me impedir de disparar um Canhão de Pedra nela.

Era do povo-fera, talvez com treze anos, e parecia um cão-guaxinim. Seu rosto era redondo, olhos pequenos e cabelo curto. Sinceramente, ninguém imaginaria que esse tipo de criança fosse uma valentona. Era mais fácil imaginá-la como alvo de intimidação.

— Esses dias eu estava conversando com Norn, e…

— Você acidentalmente disse algo ruim para ela?

Contanto que fossem só algumas palavras desagradáveis, eu poderia pegar leve com ela.

— Não, não! É que, uhm… Já ouvi muitas histórias sobre você, Sr. Greyrat. Mas a Norn ainda é uma garota comum, certo? Acabei apontando que vocês dois são muito diferentes um do outro, e aí ela ficou muito brava comigo…

Isso não fazia sentido. Por que Norn ficaria brava com isso? Ela não queria ser como eu. Ela nem gostava de mim.

— Ah…

A professora, parada em um canto da sala, parecia ter se lembrado de algo. Voltei minha atenção para ela. À primeira vista, a mulher parecia uma maga de meia-idade comum. Nem pensei que pudesse ser a culpada, mas adultos, claro, também podem ser valentões.

— Pensou em alguma coisa, Senhorita?

— Bem, ontem eu estava devolvendo o dever de casa de Norn, e…

— Ela não conseguiu terminar todas as tarefas que você passou, então você fez ela ficar nua na frente de todos os colegas por uma hora inteira?

— O quê? N-Não, não! Ela não se saiu muito bem no dever, então falei para ela aprender com o seu exemplo e começar a se esforçar mais.

— …

— Por um momento pensei que ela fosse chorar, mas ela começou a balançar a cabeça e disse que faria o possível.

Espera, o quê? Ela quase chorou?

— Ah, espera, isso me lembra…

De repente, várias pessoas começaram a falar de todos os cantos da sala. E todos tinham histórias parecidas para contar.

Depois de sair da sala de aula, nós três fomos para o refeitório. A essa hora do dia, estava totalmente deserto.

Sentei em qualquer lugar e desabei sobre a mesa. Isso realmente doeu.

Resumindo, era tudo culpa minha. Cada vez que Norn perdia a paciência, era por causa de alguém mencionando o meu nome ou comparando-a a mim.

A maioria dos alunos de sua sala sabia que éramos irmãos. Isso, por si só, não era muito estranho. Tínhamos os mesmos pais e éramos parecidos. Mas, sempre que alguém mencionava isso, Norn reagia mal. Ela odiava ser comparada a mim, mas ficava igualmente chateada quando alguém se referia a mim como uma forma de elogiá-la.

Seus colegas não tinham qualquer culpa nisso. Nenhum deles estava deliberadamente tentando perturbá-la. Alguns estavam inclusive tentando ser legais, dizendo que ela não parecia nada com seu irmão valentão e assustador.

O verdadeiro problema era que quase todos da escola me conheciam. E, assim, mesmo sem realmente querer, tendiam a me citar quando estavam perto dela. E isso parecia ser sempre difícil para Norn. Em sua escola anterior, ela era constantemente comparada a Aisha, e nunca de forma positiva. Ela era a irmã menos talentosa, e ficavam esfregando isso na sua cara todos os dias.

Finalmente estava em uma nova escola, vivendo sozinha, sem Aisha pairando sobre ela feito uma sombra. Mas, antes que tivesse a chance de recuperar o fôlego, todos começaram a compará-la a mim. Não importava aonde fosse, ela era forçada a enfrentar o fato de que era a menos talentosa de toda a sua família.

Isso devia ser difícil. E, então, ainda por cima, houve aquele incidente com as calcinhas.

Por sorte, ninguém ficou traumatizado com aquela bagunça toda. Ariel fez um ótimo trabalho de acompanhamento às vítimas e, agora, a maioria delas podia olhar para o passado e rir. Pelo visto, Linia não tinha forçado as garotas a se despirem contra a vontade, apenas as importunou para trocarem suas roupas íntimas. Parecia que alguém tinha visto isso acontecer, de longe, e passou uma versão exagerada dos eventos para o conselho estudantil.

Ainda assim, eu só conseguia imaginar como foi que Norn se sentiu ao descobrir sobre isso. Já era difícil se sentir inferior ao irmão, mas se sentir inferior a um completo pervertido devia ser muitas vezes pior.

— Uff…

O que diabos estava acontecendo comigo, afinal? Tirei conclusões precipitadas e invadi a sala de aula dela, igual um idiota. Eu não era um pai coruja – era um idiota coruja.

— Sinto muito por arrastar vocês para isso — murmurei, olhando para minhas fiéis subordinadas. — Acho que fui meio estúpido.

— Isso não é verdade. Tentar ajudar a família nunca é estupidez.

— Isso mesmo, Chefe.

— Se a criança ficar muito tempo naquele quarto, o cérebro dela vai acabar derretendo.

— Verdade verdadeira, mew.

— Ela pode até mesmo ficar tão estúpida quanto a Linia.

— Sim, ela pode… mrrrrow!!

Não consegui nem sorrir enquanto Linia e Pursena continuava aquela rotina de comédia de sempre. Eu sabia como esse tipo de situação podia ser complicada. As pessoas não se trancam porque isso é divertido, sabe? Sempre existe uma razão pela qual se forçam a ficar trancados, e arrastar essas pessoas para fora do quarto à força não serve de muita ajuda. Na verdade, isso costuma só piorar o problema.

Dito isso, esse não era o tipo de coisa que poderíamos simplesmente ignorar. Se Norn ficasse lá por muito tempo, acabaria se arrependendo. Mesmo um ou dois meses perdidos poderiam acabar com sérias consequências.

Eu sabia de tudo isso graças à amarga experiência própria. Mas isso não era algo que poderia simplesmente explicar para uma criança que acabou nessa situação.

Eventualmente, mesmo os piores casos começam a desejar poder voltar a fazer as coisas de forma diferente. Mas leva muito tempo para que as coisas cheguem a esse ponto. O verdadeiro arrependimento não chega em um ano – ou dois, ou até mesmo dez – ele passa despercebido. E, nesse ponto, é tarde demais para voltar em qualquer uma das escolhas tomadas.

Acredito que isso é parte do motivo pelo qual tantos pais pressionam seus filhos. Todo mundo se arrepende. Às vezes, acaba descontando esses arrependimentos nos outros.

— Digam-me uma coisa, vocês duas. Digamos que sejam menos talentosas que seus irmãos e que as pessoas não parem de lembrá-las desse fato. Qual é a melhor coisa que poderiam fazer quanto a isso?

Linia e Pursena se entreolharam e encolheram os ombros.

— Não sei, Chefe. Nós duas somos muito boas, sabe?

— Aham. Não deixamos a desejar em nada.

Espera aí, pensei que foram enviadas para a escola porque eram burras e preguiçosas demais para liderar suas tribos. Não é? Tipo, queriam colocar vocês em forma antes de passar qualquer poder para as duas, certo?

Bem, tanto faz. A total falta de autoconsciência delas evidentemente não estava as prejudicando. Essa abordagem, porém, não funcionaria com Norn. Ela era uma garota sensível, não uma narcisista com o cérebro do tamanho de uma ervilha.

— Ah, conheço uma pessoa assim! — disse Linia com orgulho. — Tia Ghislaine! Ela costumava ser uma velhaca que começava brigas o tempo todo. Mas aí começou a treinar e acabou virando Rei da Espada!

— Hmm. Certo, esse não é um exemplo ruim…

Ghislaine era um caso excepcional, mas definitivamente havia uma chance de que Norn tivesse algum talento inesperado que ainda não tínhamos descoberto. Não havia razão para ela competir comigo ou com Aisha nas coisas em que éramos bons. Se não quisesse ser comparada a nós, poderia simplesmente fazer algo que nenhum de nós tentamos. Eu não sabia bem o que esse algo poderia ser, mas o mundo é grande. Claro, ela poderia procurar algum campo de interesse, fora do campo da magia ou esgrima.

Mas também existia o risco de não ser particularmente talentosa em qualquer coisa que decidisse fazer da vida. Afinal, com Zanoba era assim. Mas, apesar da sua falta de talento como artesão, o príncipe continuava aproveitando a vida. Ele fazia suas próprias estatuetas, as colecionava e apreciava. Isso era o suficiente para deixá-lo feliz, e isso era tudo o que realmente importava.

Provavelmente seria difícil convencer Norn disso. Nenhum desses argumentos funcionaria comigo naquela época.

— Mas como vou falar sobre isso tudo com ela?

— Não pense muito nisso, Chefe. Vá lá e dê uns cascudos nela!

— Aham. Só diga para ela levar o traseiro dela para a sala de aula.

Elas com certeza faziam parecer simples… mas eu talvez estivesse perdendo tempo demais enquanto pensava nesses detalhes. Norn, afinal, tinha apenas dez anos. Talvez só estivesse de mau humor.

Digo, esse ainda era apenas o segundo dia dela trancada, certo? Ainda era cedo demais para chamá-la de reclusa. Passar alguns dias sozinho quando está se sentindo mal não é algo incomum.

Dito isso, ela obviamente estava sofrendo. Eu estava dizendo a mim mesmo que Norn só devia precisar de espaço, mas isso era verdade? Talvez estivesse apenas procurando um jeito de evitar o problema.

Como seu irmão mais velho, eu poderia ter ao menos tentado apoiá-la a se ajustar de forma mais ativa. Manter a distância podia ser mais fácil, mas não significa que fosse a melhor escolha. Se estivéssemos falando de uma criança com idade para frequentar o ginásio, poderia ser diferente, ou até mesmo um estudante do segundo grau, mas Norn tinha apenas dez anos. Dar mais atenção do que ela queria provavelmente seria a escolha certa.

Antes que eu percebesse, estabeleci um plano de ação.

— Então tá. Vou falar com ela.

— É esse mesmo o espírito, Chefe!

— Sim. Vá animá-la.

Claro, eu era a causa dos problemas de Norn, então parecia bem possível que ela não quisesse ouvir qualquer palavra que eu tivesse a dizer. Mas eu não ia me estressar pensando nisso. Primeiro o mais importante: tinha que ir vê-la e ouvir o que ela tinha a dizer.

— Ah. Mas não tenho certeza de como vou chegar lá…

O quarto de Norn ficava no dormitório feminino. Hoje em dia eu poderia passar por lá em segurança, mas isso não significava que me deixariam entrar.

— Você pode entrar escondido, isso é óbvio.

— É hora de fazer uma operação secreta, Chefe. Deixe o planejamento conosco!

A “operação secreta”, felizmente, não se provou muito complicada. Eu tinha muitos amigos lá; Sylphie e Ariel também estavam naquele dormitório. Quando expliquei a situação para a princesa, ela concordou em me ajudar na mesma hora. Claro, Goliade e as outras participantes do esquadrão de autodefesa não seriam tão facilmente convencidas, então ainda precisava continuar sendo uma visita secreta.

Linia, Pursena e Sylphie cuidariam do suporte operacional. Sylphie ficou ansiosa para ajudar, mas parecia um pouco abatida com a situação.

— Sinto muito, Rudy. Prometi que ficaria de olho em Norn, mas ela não quer falar comigo…

— A culpa não é sua, Sylphie. O único culpado sou eu.

Expliquei o que descobri sobre a situação, incluindo o fato de que a tristeza de Norn tinha muito a ver comigo.

Sylphie escutou em silêncio, mas no fim franziu a testa e balançou a cabeça.

— Nada disso soa como culpa sua, Rudy.

— O quê? Mas eu… uh…

Hm. Pensando bem, eu talvez realmente não tivesse feito nada tão errado. Não que eu tivesse lidado muito bem com a situação.

De qualquer forma, não importava. Eu ainda precisava dar um jeito em tudo.

 

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Naquela noite, esperei até a hora do jantar e fui para o dormitório.

No momento, a maioria dos residentes estava no refeitório. Surgiram boatos de que Ariel faria um discurso improvisado, e ela sempre acabava atraindo uma enorme multidão.

Mas isso não significava que os dormitórios ficariam totalmente desertos. Ninguém conseguiria colocar todos os alunos de uma só vez no refeitório, mesmo se tentasse. Ainda assim, notei que todas do esquadrão de autodefesa estavam sendo incentivadas a ir até lá.

Deslizei ao longo da lateral do prédio o mais furtivamente possível, procurando por um quarto em específico. Depois de algum tempo, encontrei – uma janela com uma única flor colocada contra o parapeito da janela.

Peguei uma pedra e joguei lá. Um momento depois, foi aberta. Após isso, foi questão de me elevar do chão com o feitiço Lança de Terra e escalar para lá.

— Hm…

Me encontrei dentro de um quarto escuro com um forte cheiro de animal. Não me importei muito com o cheiro. Talvez porque os animais em questão também fossem jovens mulheres. Animais tendem a ser mais tolerantes com odores emitidos por parceiros em potencial, não é?

— Obrigado pela ajuda.

— Que nada, Chefe.

Linia já estava esperando por mim há algum tempo. Seus olhos de gato brilhavam um pouco na escuridão.

Meus olhos estavam começando a se ajustar, então dei uma olhada ao redor. A organização era perfeitamente típica. Um beliche de duas camas, um par de mesas e cadeiras e um armário compartilhado.

Isso é um pouco difícil de dizer, mas o quarto parecia um pouco bagunçado.

— Não fique olhando muito, Chefe. Isso é constrangedor, sabe?

— Certo. Foi mal.

Dei alguns passos cautelosos adiante e tateei ao redor, procurando pela maçaneta. Mas, em vez disso, minha mão se fechou em torno de algo estranhamente macio.

— Ooh. Esse é um dos sutiãs da Pursena.

— …

Eu não tinha certeza de qual era o tamanho dela, mas, pelo visto, devia ser bem impressionante.

— Nyheh. Sinta-se à vontade para levar esse para casa com você, Chefe.

— Não acho que você deve decidir isso.

Joguei o sutiã de lado com um suspiro. Normalmente, poderia aproveitar a oportunidade para pressionar aquilo contra a boca e respirar fundo algumas vezes, mas no momento não tinha tempo a perder.

Linia passou por mim e bateu na porta. Alguns segundos depois, outra batida respondeu do lado de fora.

— Parece que está dando tudo certo.

Abrimos a porta e rapidamente deslizei para o carrinho da lavanderia que estava esperando bem ali na frente, escondendo-me sobre uma pilha de lençóis.

Só pelo cheiro, poderia dizer que tinham saído da cama de Sylphie. Havia cobertores e camisas por lá, para dar um pouco mais de volume, e todos tinham o cheiro dela. Mas eu não conseguia juntar forças para ficar excitado.

Norn era, no momento, a única coisa em minha mente.

Minha irmãzinha estava sofrendo. Ela estava sozinha naquele quarto, totalmente isolada, fugindo do mundo. E eu tinha que ajudá-la. Afinal, era seu irmão.

— Certo. Vamos lá.

Enquanto o carrinho sacolejava pelos corredores, voltei meus pensamentos para o problema em questão.

Se fosse só um acesso de raiva, seria uma coisa. Mas e se fosse algo mais sério? Eu seria de alguma utilidade? Até o dia em que meus irmãos me jogaram na rua, eu nunca consegui sair de casa. Se houvesse algum argumento que pudesse ter me persuadido a sair, eu não sabia qual seria.

— Chegamos, Chefe.

O carrinho chegou ao seu destino antes que eu pudesse chegar a qualquer conclusão.

Estávamos do lado de fora do quarto de Norn.

Empurrei a porta o mais silenciosamente possível e entrei.

O quarto estava totalmente escuro, então fui até o canto para acender uma das velas.

À luz fraca, pude ver Norn sentada em sua cama, segurando os joelhos contra o peito. Seus olhos estavam abertos e ela estava olhando diretamente para mim.

— …

Aproximei-me com calma e me sentei na cadeira mais próxima.

Afinal, o que deveria fazer em momentos como este? O que eu gostaria que alguém dissesse? Eu não conseguia lembrar. Todas as palavras que ensaiei evaporaram da minha mente.

Bem, eu ao menos lembrava das coisas que eu odiava escutar. Principalmente dos clichês baratos. Mesmo no pior dos casos, eu ao menos não cairia naquele padrão de “faça como eu quero ou vá para a rua”. Nem “você vai voltar para a escola agora mesmo”. Nem “estou pagando sua mensalidade por um motivo, mocinha”. E nem “deixe de ser um estorvo”.

Falas como essas só serviam para me irritar ainda mais.

Linia e Pursena talvez estivessem certas, de determinada forma – uns cascudos poderiam ser o mais simples. Norn só tinha dez anos, então podia ser o suficiente para obrigá-la a fazer o que eu queria. Mas, a longo prazo, isso não seria uma solução. Outra crise surgiria em breve, e ela ficaria cada vez mais desafiadora.

E, além de tudo, a culpa de ela estar se trancando era minha. Que direito tinha eu de dar um sermão, ou até mesmo de bater nela? Dependendo como visse as coisas, inclusive devia um pedido de desculpas a ela.

Não que pedir desculpas fosse mudar alguma coisa. Os rumores sobre mim não acabariam e Norn continuaria sendo comparada a mim.

— Norn, eu…

— Uhm, Rudeus…

Nós dois falamos ao mesmo tempo.

Parei no meio da frase, para que Norn pudesse continuar. Mas ela também ficou em silêncio. Foi uma sensação horrível. Meio que senti como se tivesse perdido a minha única chance.

Mas eu precisava acreditar que não era esse o caso. E então me forcei a começar a conversa.

— Sinto muito, Norn. Não foi fácil para você, não é?

Parei por um momento, mas ela não respondeu.

— Você finalmente foi para uma escola nova, mas agora todo mundo está te importunando por minha causa. Não sei nem o que dizer, sério… — continuei.

Norn não respondeu.

— Acho que eu realmente… nem te entendo direito…

Ainda sem resposta. E, apesar de tudo o que eu pensei pelo caminho, acabei ficando sem palavras. Eu não sabia nada sobre ela. Mantive distância da minha irmã, dizendo a mim mesmo para não me intrometer. Sequer tentei conhecê-la.

— Sei que deve ser difícil para você, mas não sei o que fazer… — voltei a falar.

Norn ainda estava em silêncio. Eu não podia nem imaginar o que ela estava pensando. Não sabia nem se ela estava me ouvindo.

Já era uma causa perdida? Deveria recuar e esperar a chegada de Paul? Talvez devesse dar um tempo nisso e procurar ajuda de pessoas que eu conhecia. Nanahoshi talvez pudesse oferecer algumas dicas sobre o que uma garota jovem pode estar pensando. Elinalise talvez pudesse descobrir uma forma diferente de persuadi-la. Não havia motivo para eu tentar resolver isso sozinho, certo?

— Ah…

De repente, me vi lembrando de algo em que não pensava há muito tempo.

Quando me tranquei pela primeira vez, isolado do mundo, um dos meus irmãos costumava visitar o meu quarto. Ele sempre me olhava bem nos olhos e me disparava todos os tipos de argumentos que poderiam soar razoáveis.

“A vida sempre tem seus altos e baixos, sabe? Mas existem pessoas por aí que estão piores do que você. As coisas podem estar difíceis agora, mas se você fugir de todos os seus problemas, continuará fugindo para sempre. Isso, com o tempo, fica muito pior. Você não precisa voltar para a escola agora, mas por que ao menos não sai e come comigo?”

Em minha mente, respondi a essas palavras cuspindo em seu rosto. E, na realidade, o ignorei.

Mesmo assim, ele passava algum tempo ali, mesmo após seus sermões. Ficava me observando de perto, parecendo ter algo mais a dizer. Mas eu continuava ignorando, confiante de que ele não era capaz de entender os meus sentimentos.

Talvez fosse assim que ele se sentisse naquela época.

Costumávamos ficar sentados da mesma forma por horas, às vezes em silêncio absoluto até que ele finalmente se levantasse e fosse embora. Depois de um tempo, ele parou de me visitar. Tudo que eu podia fazer era imaginar no que estava pensando. Embora não aparecesse mais, um monte de outras pessoas começaram a me visitar. Talvez fosse ele quem estivesse arranjando aquilo.

No final, também não dei atenção a qualquer uma daquelas pessoas.

Este podia ser um ponto de virada crucial. Se eu recuasse nesse momento, tinha a terrível sensação de que Norn poderia ficar neste quarto para sempre.

Eu não podia simplesmente dar as costas e ir embora. Não desta vez.

Por um longo momento, estudei minha irmã em silêncio na escuridão.

 


 

Tradução: Taipan

Revisão: Shibitow

 

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