Na manhã seguinte, fui ao quartel-general do Esquadrão de Busca e Resgate para reportar nossos planos a Paul.
O próprio QG era um prédio de dois andares igual a qualquer outro. Não demorei muito para encontrar meu pai. Ele estava trabalhando duro no que parecia ser uma sala de conferências, discutindo uma coisa ou outra com cerca de uma dúzia de outros homens. Mesmo do lado de fora consegui escutar um trecho da conversa; parecia que estavam se preparando para algum tipo de grande operação.
Pela aparência que Paul tinha naquele outro dia, presumi que ele passava todos seus dias em Millishion bebendo ou sofrendo com a ressaca, mas talvez eu tenha apenas o visto em uma hora ruim. Neste momento, o homem era a perfeita imagem de um líder competente e focado. Fiquei realmente impressionado… pelo menos, até que alguém aludiu ao fato de que ele havia faltado a um mês de reuniões graças ao excesso de bebida. Pelo visto, o cara só tinha voltado a se motivar no dia anterior.
Isso provavelmente era porque queria me mostrar o seu melhor lado. Em outras palavras, voltou a trabalhar por minha causa.
Pela graça da deusa. Garotos adoram se exibir na minha frente…
Com um suspiro teatral, decidi esperar até que Paul conseguisse um pouco de tempo livre.
Ficar sentado na sala do lado de fora podia ser entediante, então optei por vagar pelo prédio, sem nada de exato para fazer. Após alguns minutos de exploração, encontrei minha irmã mais nova, Norn, brincando. Ela estava em uma sala que parecia servir de berçário, brincando com alguns blocos com um bando de outras crianças de sua idade.
— Olá — falei, levantando a mão em saudação quando seus olhos encontraram os meus.
Norn se assustou, então fez uma careta e arremessou o bloco de madeira que estava em sua mão, mas consegui o pegar.
— Saia daqui!
Essa não me parecia a mais amigável das maneiras de se dizer olá. Hmm. Será que fiz algo para deixá-la chateada comigo? A única coisa em que consegui pensar foi na surra que dei em Paul bem na frente dela.
Aham, provavelmente tinha algo a ver com aquilo.
— Hum… O Pai e eu nos reconciliamos, Norn — protestei gentilmente.
—Seu mentiroso! — gritou ela em resposta, e saiu correndo com toda a velocidade que suas perninhas poderiam permitir.
Pelo visto, agora eu era odiado pela minha irmãzinha. Isso foi um pouco deprimente.
Eu não queria que ela ficasse incomodada com a minha presença, então voltei para a coisa mais próxima de uma sala de espera que existia no prédio. Quando me sentei em um canto, várias cabeças se viraram em minha direção. Reconheci pelo menos alguns dos caras que vi “sequestrando” Somal no outro dia.
Comecei a sentir que talvez não fosse muito popular pelo QG.
Mas antes que realmente tivesse tempo para me banhar naquela estranheza, uma mulher familiar entrou no cômodo e todos os olhos se voltaram para ela. Era a senhorita da armadura de biquíni, de volta aos seus velhos hábitos, agora seminua. Ela me viu e imediatamente se aproximou.
— Bom dia — falei.
— Bom dia — respondeu ela com um sorriso e um ligeiro inclinar com sua cabeça. — Está precisando de alguma coisa hoje?
— Sim. Vim aqui para ver meu pai, um… — Qual que era o nome desta moça mesmo? Parecia até que Paul não tinha me falado. — Ah, perdão. Eu não me apresentei, não é? Meu nome é Rudeus Greyrat, senhorita. — Ficando de pé, coloquei uma das mãos no peito e fiz uma reverência aristocrática.
— Uh, ah… m-meu nome é Vierra — respondeu a moça da armadura de biquíni, suas mãos estavam tremulando ansiosamente no ar. — Eu sou um membro do esquadrão do Capitão Paul. — Ela começou a devolver meu cumprimento, oferecendo-me uma visão verdadeiramente irresistível de seu decote.
Esta garota com certeza era um colírio para os olhos. Na verdade, era um colírio para qualquer coisa, sério. Eu tinha acabado de resolver cessar o meu comportamento pervertido, então não queria ficar encarando. Mas não conseguia desviar o olhar. Todas as minhas boas intenções foram abaixo em face da atração gravitacional exercida por seu peito.
Mas que roupa mais injusta.
— Sinto muito por ter sido tão rude no outro dia. Meu pai é meio mulherengo, por isso acabei tendo a ideia errada.
— Não, não! Está tudo bem. Posso entender por que você acha isso, considerando como eu estava vestida. — Vierra enfatizou suas palavras balançando a cabeça vigorosamente. Como resultado, algumas outras partes de seu corpo também balançaram. A armadura de biquíni parecia estar fixada em algum lugar, mas não era o suficiente para impedi-la de balançar diante de movimentos repentinos. Afinal, aquelas coisas eram bem grandes.
Opa. Eu estava fazendo isso de novo.
Com uma verdadeira demonstração de força de vontade, consegui desviar os olhos.
— Sabe, senhorita, não sei se é boa ideia andar com essa armadura por aí, já que tem homens por todos os lados. Imagino que algumas pessoas podem acabar achando isso meio chamativo. Será que você não poderia ao menos usar uma capa?
Vierra sorriu sem jeito.
— Sinto muito, mas há uma razão para eu usar isso.
Talvez eu estivesse imaginando coisas, mas do nada parecia que tinha um monte de gente olhando para mim. Será que falei algo que não deveria? Bem, tanto faz. Depois poderia perguntar sobre isso para Paul.
— Sabe quando meu Pai sairá da reunião?
Vierra pensativamente inclinou a cabeça para o lado.
— Bem, atualmente ele está com um mês inteiro de trabalho atrasado. Então imagino que vai ficar ocupado por um bom tempo.
— Então tá bom. Quando você tiver uma chance, poderia avisá-lo que estou planejando deixar Millishion daqui a sete dias?
— Sério? Mas que rápido.
— Bem, é o cronograma que seguimos até agora.
— Entendo… Nesse caso, deixe-me buscar Shierra para você. Um momento, por favor.
Com isso, Vierra saiu enquanto tagarelava com uma pessoa ou outra. Poucos minutos depois, voltou com uma curandeira de rosto familiar.
Quando a garota viu que eu estava olhando para ela, soltou um breve suspiro e deu um passo atrás de Vierra antes de dizer qualquer coisa.
— A agenda do capitão está lotada no momento, mas ele tem algum tempo livre durante a noite, daqui quatro dias. Então gostaria de marcar um jantar com ele?
— Um, não tem problema se ele estiver muito ocupado, sabe.
— Quando ele fala com você, o capitão sempre parece cheio de vida e energia. No momento ele está muito ocupado, mas espero que mesmo assim vocês se encontrem.
A voz de Shierra soou bem composta, mesmo considerando que ela ainda estava se escondendo atrás de Vierra. Essa garota realmente parecia me odiar. Ou talvez sentisse até medo de mim. Isso era meio lamentável, mas… tudo bem.
— Daqui a quatro dias, certo? Então tá bom. Devo me encontrar com ele na pousada?
— Vou fazer uma reserva para vocês em um restaurante que nosso esquadrão sempre visita. Então vá direto para lá.
Shierra começou a calmamente me passar a hora e local exatos. Iríamos comer em um lugar chamado “Millis Indolente” no distrito comercial. Só para garantir, perguntei sobre o código de vestimenta, mas parecia não existir nenhum.
Bem, isso parecia no mínimo meio estranho. Foi tudo como se eu estivesse agendando uma reunião de negócios com o CEO de alguma grande empresa. Agora Paul tinha até uma secretária cuidado da agenda dele, hein? Ele realmente tinha subido na vida.
— Você levará alguma companhia?
O rosto de Eris surgiu em minha mente, mas no mesmo instante me lembrei dela gritando: “Vou matar aquele idiota estúpido!” enquanto saía furiosa para tentar assassinar Paul.
— Não, acho que vou sozinho.
Com isso, acertamos todos os detalhes, então me despedi.
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Bem. Uma semana passava voando, então teríamos que usá-la bem. Com isso em mente, fui para a Guilda dos Aventureiros de Millishion.
O prédio era grande, assim como já era de se esperar da sede de toda a organização. Tinha dois andares de altura e ocupava muito mais espaço do que qualquer outra filial da Guilda que eu já tinha visto. Claro, eu tinha visto alguns arranha-céus nos velhos tempos, então a visão não era bem de tirar o fôlego.
Uma vez lá dentro, comecei a trabalhar reunindo informações.
A princípio perguntei sobre a Região de Fittoa, mas ninguém parecia saber de nada que Paul já não tivesse me contado. Nesta cidade, pelo menos, o Esquadrão de Busca e Resgate provavelmente era mais bem informado sobre Fittoa do que qualquer outra pessoa.
Em seguida, procurei informações sobre os monstros nativos da área de Millishion.
Pelo visto, o nível de ameaça deles não era comparável ao das criaturas do Continente Demônio. Os mais comuns eram as Locustas Gigantes, que eram basicamente um tipo de gafanhoto superdesenvolvido; o Coelho Fatia-Carne, um coelho carnívoro; e a Pedronhoca, que não passava de uma minhoca supercrescida. A maioria dessas coisas não representava qualquer perigo para ninguém.
Também tendiam a ser muito pequenos, pelo menos em comparação com as feras do Continente Demônio. Naquela terra árida, monstros várias vezes maiores que os humanos eram comuns. Até os Coyotes Pax, que havíamos caçado até ficarem à beira da extinção (isso é um pouco de exagero), tinham mais de dois metros; e os Lobos Ácidos tinham mais de três. Quanto às Grandes Tartarugas, um espécime comum podia ter uns oito metros, e as maiores podiam ter até vinte. Os monstros que surgiram durante a estação das chuvas na Grande Floresta também eram quase do tamanho de um homem adulto.
Claro, tamanho não é documento, mas a massa corporal e o peso das coisas seriam, por si só, uma arma. Ao todo, os monstros ao redor de Millishion eram fracos e insignificantes.
Ainda bem. Assim tínhamos uma coisa a menos com o que se preocupar.
Depois de ouvir o suficiente sobre os monstros, levei algum tempo para pensar em como poderíamos melhorar a opinião dos moradores locais sobre o povo Superd.
Infelizmente, parecia que nosso trabalho seria difícil.
Por um lado, havia uma facção política proeminente em Millishion que defendia a “expulsão” dos demônios. Os líderes desse grupo eram associados aos Cavaleiros do Templo, uma das ordens militares sagradas da Igreja Millis. Eles declaravam em voz alta que todos os demônios deveriam ser inteiramente banidos do Continente Millis.
Entretanto, não estavam no poder do continente, pelo menos não no momento. O atual papa pertencia a uma facção mais poderosa que clamava pela coexistência com os demônios; como resultado, os Cavaleiros do Templo não podiam tomar medidas ativas para os expulsar. No entanto, se um demônio causasse problemas na cidade, eles correriam ansiosamente para assediar todos os envolvidos. Apesar de sua fraqueza política, muitas vezes se safavam tomando medidas agressivas em nome da “justiça” ou da “ordem pública”.
Se Ruijerd anunciasse publicamente que era um Superd e começasse a fazer trabalhos ao redor de Millishion, os Cavaleiros do Templo com certeza tornariam nossas vidas em existências miseráveis em um instante. Pelo visto, esse povo tinha olhos e ouvidos por toda a cidade.
Nesse caso, talvez pudéssemos trabalhar de outro jeito.
Com isso em mente, peguei uma tarefa de rank B que a Guilda tinha acabado de colocar no quadro de avisos. Pelo visto, havia um monstro furioso em algum vilarejo local e que precisava ser exterminado. O lugar era próximo o suficiente para que pudéssemos cuidar de tudo em apenas um dia de viagem.
Desta vez, nosso alvo seria um Tigre Folha. Era um monstro nativo das regiões ao sul da Grande Floresta, mas por alguma razão ele havia vagado até o lugar para fixar residência nesta área.
Tigres Folha tinham peles verdes com manchas marrons. Isso permitia que se misturassem perfeitamente com a vegetação. Por serem difíceis de ver e frequentemente se moverem em pequenos bandos, eram considerados monstros de rank B. No entanto, aquele que procurávamos estava sozinho e sua camuflagem seria inútil naqueles campos abertos. Provavelmente representaria uma ameaça inferior a um Lobo Ácido comum. Eu o classificaria, no máximo, como rank D. Quando estávamos no Continente Demônio, eu teria pulado de alegria se encontrasse um trabalho tão fácil no quadro de avisos.
Nós três avançamos sem nem pensar. E assim que chegamos, um grande gato verde estava saindo do vilarejo com uma galinha na boca.
Ele nos notou e largou seu prêmio para rosnar em nossa direção, mas Eris apenas disse: “Vou cuidar disso”, correu até ele e cortou a coisa ao meio.
Missão completa! Huh, mas que rápido.
As pessoas da aldeia nos ofereceram seus mais sinceros agradecimentos. O tigre tinha recentemente matado muitos rebanhos e atacou vários fazendeiros da região.
Normalmente, uma das ordens militares sagradas teria sido enviada para protegê-los. Mas apenas alguns dias atrás, aparentemente houve um grave incidente em que uma Criança Abençoada foi atacada nas proximidades. Sua escolta, uma unidade de Cavaleiros do Templo, foi quase totalmente exterminada; apenas seu capitão havia sobrevivido.
O capitão cavaleiro mal conseguiu proteger a Criança Abençoada. Mas ainda foi dispensado de seu posto como punição pelas graves perdas sofridas.
As ordens militares sagradas já estavam nervosas após uma recente série de sequestros de escravos, mesmo antes deste desastre. Essa notícia deixou tanto a Igreja Millis quanto seus cavaleiros em alvoroço. Como resultado, falharam totalmente em fazer qualquer coisa sobre um certo monstro perigoso de rank B. Por falta de opções melhores, os aldeões se voltaram para a Guilda dos Aventureiros.
Era uma história bem interessante. Mas não era como se isso tivesse muito a ver conosco.
Quando reuni todas as informações que consegui, parti para um pequeno experimento.
Para ser mais específico, contei aos moradores sobre os Superds. Expliquei que nosso amigo Ruijerd pertencia àquela tribo e que seu povo estava viajando por todo o mundo fazendo boas ações na tentativa de ganhar a amizade das outras raças.
— À primeira vista, um Superd pode parecer frio ou até hostil, mas é bastante fácil passar pela casca dura deles. Conseguem ver essa estatueta aqui, pessoal? Basta mostrar uma delas para um Superd e mencionar o nome de Ruijerd. A carranca assustadora deles vai se transformar em um sorriso feliz, e vocês vão virar melhores amigos para o resto da vida em um segundo!
Foi um ótimo discurso de vendedor, se é que posso dizer. Ainda assim, o chefe da aldeia parecia menos do que entusiasmado. Eles estavam gratos a Ruijerd, mas isso não era o suficiente para mudar seus pontos de vista sobre os demônios como um todo. E como seguidores da Igreja Millis, não estavam interessados em possuir uma estátua de um demônio. Com isso dito, empurrou a pequena estatueta de volta para minhas mãos.
Parecia que o experimento foi um fracasso. Esse provavelmente não era um problema que poderíamos contornar com tanta facilidade.
Uma estatueta de uma garota sexy talvez seria mais eficaz. Aah, e se eu fizesse uma versão feminina de Ruijerd?
Espera, não. Isso acabaria com todo o propósito da coisa.
— Eu não fazia ideia que você tinha feito tal coisa — disse Ruijerd, estudando a estatueta com admiração enquanto nós três marchávamos de volta para Millishion.
— Não é incrível? Rudeus é muito bom em fazer essas coisas! — Por algum motivo, Eris parecia muito orgulhoso por eu ter recebido a aprovação do homem.
Embora esta versão tenha sido rejeitada, minhas obras na verdade já tinham alcançado um bom valor de mercado. Afinal, tinham qualidade suficiente para ganhar a admiração de um certo Rei da Espada do povo-fera e de um príncipe de algum país estrangeiro.
Sim, de fato. A essa altura, eu já era praticamente um artesão real.
— Mas essa posição não é nada boa.
— Sim, a postura está toda errada. Você teria que se agachar muito mais…
Womp womp womp womp…1Womp womp womp womp…
Aqueles dois com certeza sabiam como acabar com o ânimo de alguém.
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Três dias depois – um dia antes do meu compromisso para jantar com Paul – percebi que não tinha nada para vestir e ir ao restaurante.
Não havia um código de vestimenta, e esta era apenas uma reunião de família. Ainda assim, as roupas que comprei no Continente Demônio pareciam um pouco gastas, então saí com Eris para fazer algumas compras.
Isso provavelmente se qualificava como um encontro, mas não era um dos mais emocionantes. Eris nunca estava muito motivada para comprar roupas e tendia a pensar que tudo estava “bom”. Achei que deveria aproveitar a chance para comprar algumas roupas novas para ela também. Desse ponto em diante, estaríamos viajando pelo território da humanidade, e, bem, a primeira impressão é a que fica. Eu queria, no mínimo, que estivéssemos bem vestidos para que as pessoas não nos tratassem com grosseria.
Meio que gostaria de pedir conselhos a uma amiga que soubesse algo sobre moda. Mas as únicas pessoas que eu poderia chamar de “conhecidos” nesta cidade eram aquele sujeito com cara de macaco e Vierra. Eu não tinha ideia de onde Geese estava e não era amigável o suficiente com Vierra para pedir um favor pessoal a ela.
No final das contas, decidi analisar as pessoas passando até ter uma noção das coisas. Eris e eu nos sentamos em uma rua e nos engajamos em observar a multidão que passava.
Depois de um tempo, percebi que as roupas azuis pareciam um tanto populares no momento. Além disso, algumas pessoas usavam capas ou jaquetas, mas muitas outras nem se importavam com essas coisas. O clima local era bom o suficiente para que a maioria dos agasalhos fosse mais leve.
— Parece que azul está na moda, não é?
— Azul não combina com você, Rudeus.
Uau, mas que direta. Felizmente, eu não me importava muito com as tendências do momento.
— Então o que combina comigo?
— Você ainda tem aquele negócio que o Geese te deu, não tem? Aquilo combina.
Ela estava falando daquele colete de pele, não é? Mas aquilo ficava meio grande em mim. E era longo o suficiente para ficar parecendo com um casaco. Mas, ainda assim, não era nada desconfortável, então às vezes eu ainda usava. Principalmente nos dias mais frios.
— Aquilo não é ruim, mas acho que é um pouco grande para mim.
— Aham, imagino que sim. Então porque simplesmente não corta para ficar do tamanho certo?
— Mas aí seria um desperdício. Ainda sou um garoto em fase de crescimento, lembra?
Conversando casualmente, nós dois escolhemos algumas coisas para comprar. Não levamos muito tempo, então atribuí isso à nossa falta de interesse. Então, foi uma surpresa quando, no final, Eris escolheu um vestido preto bastante moderno com pequenas rosas brancas bordadas.
— Você realmente quer este, Eris?
— O quê…? Algum problema com isso?
— Não, não. Aposto que ficaria ótimo em você.
— Hmph. Sabe, não precisa ficar me bajulando.
Depois de pagar pelas compras, voltamos para a pousada.
E, finalmente, chegou o grande dia.
À tarde, avisei Ruijerd e Eris que jantaria com meu pai naquela noite.
— Fico feliz em ouvir isso — disse Ruijerd com uma expressão ligeiramente aliviada no rosto.
Eu consegui até mesmo ver a felicidade em seus olhos. Ao que parece, ele queria muito que eu deixasse esta cidade estando em boas relações com meu pai. Mas não era como se existisse algum motivo para se preocupar, é claro. Eu iria aproveitar esta oportunidade ao máximo para reforçar nossos laços familiares.
— Eu também vou! — anunciou Eris.
Virando-me, eu a encontrei olhando para mim em sua pose usual de braços na cintura.
— Uhhh…
— O quê? Algum problema com isso?
Se não fosse pelo outro dia, eu teria cedido imediatamente, mas Eris com certeza ainda sentia alguma hostilidade em relação ao meu pai. Isso, na verdade, não passava de eufemismo. Parecia que ela o odiava até na alma. Eu, de certa forma, entendia como a garota se sentia, mas já tinha decidido ser legal com Paul.
Se esse fosse o único problema, poderia levá-la comigo e fazer algumas tentativas para que os dois ficassem em melhores termos. Mas esse jantar seria nossa primeira refeição como família em muitos anos, sabe? E eu ainda não tinha corrigido as coisas com Norn. Além disso, falei que iria ao jantar sozinho.
— Eris, você se importaria de ficar aqui em vez de ir junto?
Considerando todas as coisas, eu queria que ela mostrasse um pouco de autocontenção. Carregar uma bomba no meio de um incêndio florestal violento não me parecia a melhor das ideias. Uma apresentação formal para a minha família poderia esperar até que ficássemos um pouco mais íntimos do que já éramos.
— Sim, eu me importaria! Também vou, entendeu?!
Como fui tolo. A palavra “autocontenção” não fazia parte do vocabulário de Eris.
— Ruijerd, você poderia dizer algo?
Quando me voltei para o Superd em busca de ajuda, encontrei-o com a mão no queixo, pensando. Seu olhar intenso mudou do meu rosto para o de Eris, e depois de volta para o meu.
— Você fez as pazes com seu pai, não fez? Então não deve ter problema. Leve ela junto.
Uau! Fui esfaqueado pelas costas! Este era o mesmo cara que socou Eris para impedi-la de atrapalhar da última vez?
Ah, bem. Dessa vez acho que teria que seguir a opinião da maioria.
— Bem, se você diz, Ruijerd…
— Hmph! E o que você esperava?
— Só uma coisa, Eris. Eu quero ficar em boas relações com meu pai, então por favor, seja educada com ele, tá bom?
— Certo…!
A julgar por seu tom de voz, a garota não tinha intenção de realmente manter essa promessa. Não foi lá muito reconfortante.
Depois, subi as escadas para colocar minhas roupas novas e fui para o restaurante como um novo eu (também conhecido como Novodeus). Eris foi junto, usando aquele vestido preto que compramos no outro dia.
Fiz o possível para evitar os becos escuros. Havia muitos sequestradores à espreita naqueles lugares, e às vezes eles podiam ficar um pouco violentos. Não havia qualquer razão para arriscar a boa condição de nossas roupas novas.
As avenidas principais também tinham seus perigos, é claro. Como era hora do jantar, algumas pessoas estavam comprando algo parecido com yakitori nas barracas ao ar livre. Se eu trombasse com alguma daquelas pessoas, o resultado com certeza seria trágico. E se um deles desse um encontrão com Eris, seu Soco Boreas provavelmente deixaria nós dois encharcados de sangue.
Como medida de precaução, mantive meu Olho da Previsão ativo. Constantemente tendo a visão de um segundo no futuro, então fui capaz de nos guiar em segurança, mesmo em meio à multidão. Me senti um pouco mal por usar uma habilidade tão poderosa para algo tão mundano, mas pelo menos chegamos ao nosso destino sem incidentes.
Toda aquela coisa sobre as “reservas” me deixou um pouco nervoso. No final das contas, porém, Millis Indolente era um lugar perfeitamente comum. Era um bar e restaurante independente, não parte de uma pousada; a maioria da clientela parecia ser de moradores locais relativamente respeitáveis. Quando dei meu nome ao garçom na entrada, ele guiou Eris e eu para a nossa mesa na mesma hora. O fato de que éramos dois passou despercebido. Paul já estava sentado à mesa com um sorriso estranho no rosto, junto com uma Norn aparentemente muito mal-humorada.
— Desculpa, me atrasei muito?
— Uh, nah… Sinto muito por isso, garoto. Shierra meio que, por algum motivo, ficou empolgada demais. Eu disse que o lugar de sempre estaria bom, mas…
— Não tem nada de errado em mudar as coisas de vez em quando, certo?
Comecei a puxar uma cadeira, então parei quando notei que Eris estava parecendo bastante mal-humorada. Tecnicamente, não foi a primeira vez que ela viu Paul, mas apresentar um ao outro poderia acabar sendo uma boa ideia.
— Um, Pai, esta é a Eris. Como eu disse no outro dia, ela é filha de Philip e parte dos Boreas…
— Ah. Claro, claro. — Me cortando bem no meio da frase, Paul se levantou e virou na direção de Eris. Ele se endireitou e colocou uma das mãos no peito, depois abaixou a cabeça, mas só um pouquinho. Foi um cumprimento treinado – não menos charmoso que o de Philip. — É um prazer conhecê-la, senhorita. Sou Paul Greyrat, pai de Rudeus.
Pega de surpresa, Eris tentou olhar para mim, mas não conseguiu quebrar totalmente o contato visual com meu pai.
— Uh, eu sou… E-Eris Greyrat… senhor. — A expressão em seu rosto ainda estava carrancuda. Mesmo assim, ela agarrou as pontas do vestido e fez uma pequena reverência estranha. Parecia que tinha perdido a chance de começar a gritar ou dar socos.
Eu tinha que admitir, fiquei impressionado com Paul. Pelo visto, ele aprendeu uma ou duas coisas sobre como lidar com garotas em seus anos como mulherengo.
Desde quando ele podia fazer um cumprimento daqueles…?
— Então tá bom. Por que não nos sentamos?
De qualquer forma, nosso jantar em família começou sem qualquer derramamento de sangue.
Eris e eu nos acomodamos em nossos assentos. No momento, ela estava se mantendo quieta, mas era óbvio que revelaria suas presas no mesmo instante em que as coisas tomassem um caminho ruim. Paul ainda parecia um pouco desconfortável. E quanto a Norn… Bem, ela nem mesmo tinha olhado na minha direção.
Resumindo, não era o melhor dos climas. Talvez levar Eris comigo realmente tenha sido um erro.
Parecia que eu não era o único que achava a situação um pouco estranha. Após alguns momentos de silêncio, Paul se virou para Norn com uma expressão preocupada no rosto.
— Vamos lá, criança. Seu irmão mais velho está aqui, viu? Por que não diz oi para ele?
— Não! Eu não quero jantar com um idiota que deu um soco no meu Papai!
Eris fez uma careta e começou a abrir a boca, mas Paul foi mais rápido.
— Não diga isso, criança. Às vezes o Papai merece levar um ou dois socos.
— Mas você não fez nada de errado! — disse Norn, estufando as bochechas numa adorável demonstração de indignação.
— Seu irmão mais velho e eu já fizemos as pazes, sabia? Isso não é verdade, Rudy?
Ah, cara. Ele ia mesmo jogar a batata quente no meu colo, hein? Bem, talvez essa fosse uma espécie de oportunidade. Uma oportunidade de demonstrar minha inteligência e charme!
— Ah, com certeza — falei com um sorriso. — Quer que a gente se beije e prove isso?
— Hã?!
— Hein?
Por algum motivo, o que eu falei não foi lá muito bem visto. Na verdade, eu não poderia culpar o cara. Eu também não queria dar um beijo nele. Talvez pudéssemos esquecer que aquilo foi dito.
— Uh, de qualquer maneira… nós dois já voltamos a ser amigos, Norn. Por que você também não faz as pazes com seu irmão mais velho?
— Não mesmo!
Paul afagou a cabeça de Norn enquanto ela fazia beicinho. Seu cabelo dourado era realmente bonito. Ele me lembrava o de Zenith. Pensando bem, ela costumava ficar de mau humor sempre que algo a incomodava. Será que Norn tinha herdado esse hábito de sua mãe?
Depois de se submeter aos carinhos de Paul por um tempo, a criança se virou abruptamente para me encarar. Ela teve que inclinar a cabeça para trás apenas para me olhar no rosto, então o efeito geral foi mais adorável do que intimidante.
— Papai está se esforçando muito mesmo.
Já que este comentário parecia ser dirigido a mim, respondi o mais gentilmente que pude.
— Aham. Eu sei que está.
— Ele não beija nenhuma garota nem nada do tipo!
— Escutei sobre isso. Sinto muito por ter duvidado dele.
— E ele também é sempre bem legal comigo! — Os olhinhos de Norn se encheram de lágrimas. Merda, será que eu disse algo maldoso? Por favor, não comece a chorar, criança… — O Papai parece que está sempre querendo chorar!
Perturbados pela óbvia angústia de Norn, Paul e eu nos entreolhamos com incerteza.
— Espera, isso é sério?
— Uh, bem, às vezes…
— Sinto muito por ele!
Nenhum de nós tinha nada a dizer sobre isso.
— Como você pôde bater nele daquele jeito? Você é muito malvado!
Olhando para o rosto de Norn, tive que lutar contra a vontade de soltar um suspiro longo e pesado. Paul e Norn foram teletransportados juntos. Isso era tudo que eu sabia. Ela ficou muito doente durante a jornada de volta para Fittoa e quase foi atacada por monstros várias vezes ao longo do caminho.
E foi seu pai quem a protegeu de todos aqueles perigos.
Com a ausência de sua mãe, empregada e irmã, e seu coração explodindo de ansiedade, Paul era a única pessoa em quem ela podia confiar. Por anos, ele foi a única família que Norn teve.
E então um estranho apareceu do nada, derrubou-o e começou a socá-lo no rosto. Isso seria o suficiente para traumatizar a maioria das crianças de sua idade.
— Norn, olha. Aquilo foi tudo minha…
— Está tudo bem, Pai.
Se ela fosse um pouco mais velha, nós três poderíamos ter encontrado uma maneira de conversar sobre isso. Na idade dela, porém, isso provavelmente seria impossível. Paul e eu cometemos erros e tiramos conclusões precipitadas; havíamos nos reconciliado reconhecendo nossas falhas. Mas não dava para esperar que uma criança entendesse isso.
— Norn ainda é muito jovem. E se eu estivesse no lugar dela, acho que também não perdoaria um idiota que começasse a te socar.
Era triste que Norn me odiasse, mas não havia muito que eu pudesse fazer a respeito. Só precisaríamos conversar um pouco no futuro. Quando ela ficasse mais velha, eu tinha certeza de que ela entenderia. O tempo não é um recurso infinito, mas pode curar pelo menos algumas feridas.
— Não, não está tudo bem. — Entretanto, ficou claro que Paul não estava de acordo com meu plano. — Vocês dois podem ser os únicos irmãos que restaram, sabiam? Quero que vocês sejam bons um para o outro.
Quando o sentido dessas palavras foi absorvido, franzi a testa para meu pai.
— Isso é um pouco agourento, não acha?
— Sim, você está certo… Foi mal.
Bem, isso não era nada bom. A cada segundo o clima ficava mais pesado. Parecia que era hora de mudar o assunto.
— A propósito, Pai, o que há de bom aqui? Hoje não tive tempo para almoçar, então estou morrendo de fome.
Não foi a transição mais suave, claro, mas Paul pareceu entender o que eu estava fazendo. Com um sorriso tenso, ele entendeu a deixa.
— Hm, vejamos. Eles têm um ensopado de frutos do mar muito saboroso, usam peixe fresco do mar do sul. Ah, e a carne também é boa. Criam muito gado nas fazendas por aqui, sabe? Na verdade, a carne tem um gosto bem diferente do tipo Asurano, especialmente porque costumam fazer cozida. Dá um sabor bem rico e gostoso.
— Ah, preciso provar isso. Toda a carne do Continente Demônio era nojenta.
— Você disse que comiam basicamente carne de Grande Tartaruga, não é? Bem, a maioria dos monstros tem um gosto muito desagradável.
A conversa estava finalmente começando a ganhar força, mas Norn ainda estava com a cara virada. Ela só respondeu quando Paul perguntou alguma coisa, se recusando a até mesmo olhar em minha direção. eu já estava meio que conformado com isso, mas ainda meio que doía, sabe?
Claro, isso era a mesma coisa que eu tinha feito com Paul há alguns dias. Parando para pensar naquilo, acabei me sentindo muito mal.
E, a julgar pela maneira como Eris olhava para Norn, ela também não estava muito satisfeita com essa atitude. Eu realmente não queria que isso se transformasse em uma briga, mas… era melhor deixar as coisas estarem.
— Ah, claro. Tem uma coisa que eu queria te perguntar, Pai.
— Hã? O que é?
— Você conhece alguém chamado Gash Broche?
— Uh, não… Onde você ouviu esse nome?
Aproveitei a oportunidade para contar a Paul sobre a carta de Ruijerd e o amigo misterioso que a escreveu para nós. Fiz uma cópia grosseira do emblema no selo de cera, então peguei e mostrei a ele.
— Uma ovelha, um falcão e uma espada, hein? Parece o brasão da família de um paladino. Mas acho que nunca ouvi o nome Gash Broche. Mas não é como se eu estivesse familiarizado com todos os nobres de Millis ou coisa do tipo.
— Entendo… Você acha que Shierra pode saber algo sobre ele?
— Hmm, não sei. Depois vou perguntar para ela.
Descobrir que ele nunca tinha ouvido falar do sujeito não foi reconfortante, mas teríamos que esperar para ver.
Com esse tópico passado, Paul e eu voltamos a conversar sobre qualquer coisa que vinha à mente. Por fim, chegamos ao assunto do meu décimo aniversário.
De acordo com Paul, os monstros na floresta fora de Buena Village ficaram muito mais ativos cerca de um mês antes do acontecimento. Paul e Zenith estavam tão ocupados tentando colocar a situação sob controle que simplesmente não tiveram tempo para se preocupar com meus presentes. Finalmente conseguiram limpar a floresta, um dia antes do meu aniversário, mas quando estavam se preparando para me enviar algumas coisas, a Calamidade aconteceu.
Enquanto ouvia tudo isso, Eris fez beicinho e franziu as sobrancelhas. Pensando bem, ela tinha ficado bem triste quando descobriu que Paul não iria àquela festa.
— Só por curiosidade, o que você planejava me enviar?
— Ia te dar um par de manoplas. Me senti um pouco culpado, já que tinha acabado de encontrá-las nos fundos de nosso armazém, mas eram itens mágicos encontrados no fundo de um labirinto. Aquelas coisas eram leves como penas. Nunca couberam em mim, mas achei que serviriam em você, Rudy.
— Sério mesmo? Eu não sabia que você tinha uma coisa dessas.
— Aham. Zenith disse que o dela era um segredo, mas às vezes eu via Lilia olhando para uma caixinha trancada com um sorriso no rosto. Acho que também era para você.
— Uma caixa? — Agora ele me deixou curioso. O que será que tinha dentro daquela coisa? Mas não era como se fizesse algum sentido pensar nessas coisas. Seja lá o que fosse, já era.
Depois disso, de alguma forma chegamos ao assunto da família de Zenith. Eles eram evidentemente bem conhecidos entre a nobreza Millis e tinham uma história de produção de muitos cavaleiros talentosos e justos. Infelizmente, meus avós deserdaram Zenith quando ela saiu de casa, então no começo não ficaram muito entusiasmados em ajudar na procura.
Mas mudaram de opinião assim que deram uma olhada em Norn. Este mundo era diferente do outro que eu conhecia em muitas coisas, mas, pelo visto, uma netinha fofa tinha os mesmos efeitos em todos os lugares.
— Hmm. Será que te ajudariam mais se eu ficasse aqui?
— Uh, acho que isso não funcionaria…
— É, você tem razão. — Por eles, eu poderia tentar agir como uma criancinha inocente, mas minha verdadeira natureza com certeza começaria a aparecer com o passar do tempo. Isso não valia o risco.
Pouco depois desse papo, o garçom finalmente trouxe nossa comida para a mesa.
— Certo, vamos lá — disse Paul enquanto segurava seu garfo no ar. — Hmm, pelo que começo…?
— Isso parece apetitoso — murmurou Eris, estudando toda a variedade com olhos brilhantes. Sério, seria mais fácil acreditar que ela era a filha de Paul do que eu. Então, novamente, Paul e Philip eram primos, então isso talvez não fosse tão bizarro.
Em qualquer caso, parecia uma oportunidade de ouro para melhorar um pouco a imagem que Norn tinha de mim.
— Pai, suas maneiras são…
— Pare com isso, Papai! Você tem que orar antes de comer!
Nós dois falamos quase que ao mesmo tempo. Norn olhou para mim com surpresa, mas se virou, mal-humorada, um segundo depois.
— Ha ha. Tá bom, crianças.
— Tá, tá…
Paul coçou a cabeça com tristeza e Eris parecia um pouco relutante, mas os dois se recostaram nas cadeiras por um momento. Nós quatro começamos a fazer uma breve oração ao estilo Millis. Tudo isso envolvia juntar as mãos e fechar os olhos por alguns segundos.
Eris e eu não éramos crentes, e Paul provavelmente também não, mas isso fazia parte das boas maneiras à mesa deste mundo. Quando em Roma, já sabe, né? Seguimos os procedimentos sem reclamar.
Por algum motivo, parecia que o humor de Eris e Norn melhorou um pouco após isso.
Nós apreciamos nossa comida enquanto conversávamos sobre nada lá muito importante. E, claro, Paul e eu continuamos conversando. Norn nunca olhou na minha direção e, por sua vez, Eris ficou em silêncio. Paul começou a tentar trocar algumas palavras com ela, mas as ondas de hostilidade que a garota emitia eram fortes o suficiente para que ele sempre pensasse melhor. Isso provavelmente foi sábio da parte dele, já que resolveu não cutucar a onça com vara curta.
— Hmph, acho que ele se manteve sob controle desta vez — murmurou ela, bem baixinho, quando saímos do restaurante juntos.
Eu nem queria pensar sobre como ela poderia ter reagido se Paul tivesse gritado comigo, muito menos se tivesse me dado um soco. Mas como não aconteceu nada disso, sua vontade de o matar podia ter até sumido – ou ao menos diminuído.
Ao menos por esse ponto de vista parecia que tudo tinha se saído bem.
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Nossa semana em Millishion chegou ao fim em pouco tempo.
No dia de nossa partida, fomos até o portão do Distrito dos Aventureiros. Tínhamos acabado de carregar nossas coisas na carruagem e estávamos nos preparando para sair quando Paul apareceu para se despedir.
— Ei, Rudy. Tem certeza de que não quer ficar mais um pouco?
Por mais que eu apreciasse o convite, já era meio que tarde demais para isso.
— Tenho certeza de que seria bom, mas se não partirmos, podemos acabar ficando aqui por um ano inteiro sem fazer nada.
— Mas você e Norn ainda nem fizeram as pazes.
— Teremos tempo suficiente para cuidar disso quando encontrarmos as outras três.
Além do mais, isso não era só sobre mim. Olhei para Eris. Ruijerd a agarrou pela nuca como uma medida de precaução, mas ela ainda estava erguendo os punhos para Paul. Talvez eu tivesse superestimado a capacidade dela de seguir em frente.
— E eu não sou o único que quer ver a família, sabe?
— Certo, claro. Mas a família Boreas provavelmente…
— Não vamos falar sobre isso — falei, dando um corte no que Paul ia falar. — É possível que Philip e Sauros estejam esperando por nós quando voltarmos para Fittoa, sabe? Pode ser que a notícia ainda não tenha chegado.
— Certo. Aham, isso é verdade. Mas, sabe, Rudy… — Paul parou por um momento, seu rosto ficando sério. — Você realmente não deveria ficar muito otimista quanto a isso. Mesmo se os dois estiverem vivos, não há como dizer o que pode acontecer com eles depois de um desastre dessa escala.
— O que quer dizer com isso?
Paul abaixou um pouco a voz.
— O irmão de Philip, James, está ocupado tentando salvar seu próprio pescoço. Há uma chance de ele jogar toda a culpa por essa bagunça em um deles.
Uau.
Eu não tinha pensado nisso antes, mas até que parecia plausível. Sauros era o lorde de Fittoa, e Philip era o prefeito de Roa; ambos ocupavam importantes cargos de autoridade. Mesmo se conseguissem voltar para casa, poderiam ser considerados responsáveis pela perda massiva de vidas e propriedades que foi causada pela Calamidade.
Eu não sabia exatamente o que isso significaria. Mas, no mínimo, era difícil imaginar que voltariam a seus antigos papéis e retomariam seu poder. Na verdade, não seria tão surpreendente se alguém mandasse assassinos atrás deles. Isso impediria o irmão de Philip de usá-los como bodes expiatórios, tornando muito mais fácil encurralá-lo na política.
— Se as coisas ficarem feias, apenas certifique-se de manter a pequena senhora segura. Algumas pessoas podem falar um monte de merda sobre os “deveres da nobreza”, mas você não tem que dar atenção a isso.
— Claro — falei, balançando a cabeça com a expressão mais séria que pude fazer. — Tomarei cuidado, Pai.
Paul sorriu com orgulho e acenou com a cabeça.
— Ah, a propósito, falei sobre aquela carta com Shierra. Ela também nunca ouviu falar sobre o cara.
— Entendo…
— Mas ela falou que ele provavelmente não é ninguém perigoso.
— Então tá bom. Você se importaria de agradecê-la por mim?
Paul balançou a cabeça por um momento. E então, finalmente, se virou e falou com a garotinha que estava parada atrás dele.
— Vamos, Norn. Diga tchau ao seu irmão mais velho.
— Não quero…
Norn não saiu de onde estava, escondida atrás de seu pai. Entretanto, estava espiando com metade do rosto à vista. Mas que adorável. Eu me peguei me perguntando se ela cresceria e se tornaria uma beldade igual sua mãe.
— Não sei quanto tempo vai demorar, Norn, mas vamos nos encontrar de novo algum dia.
— Não quero.
Até o final, minha irmã se recusou a me olhar no rosto. Sorrindo sem jeito, voltei para nossa carruagem.
E assim, nosso grupo deixou a cidade de Millishion para trás.
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Ponto de Vista do Paul
E, bem assim, Rudeus voltou à estrada.
O garoto continuava tão impressionante quanto sempre. Ele bolou todos os seus planos em um momento, então colocou tudo em ação na mesma hora. Elinalise uma vez me disse que eu estava “correndo com a minha vida”, não foi? Então gostaria de saber o que ela diria ao dar uma olhada nele.
Se os dois algum dia se encontrassem poderia ser divertido, mas… talvez não fosse uma ideia lá muito boa. Sim. A última coisa que eu queria era acabar como o sogro daquela mulher.
Assim que cheguei a essa conclusão, alguém me deu um tapa no ombro. Virei-me para encontrar um homem com cara de macaco sorrindo para mim.
— E aí, Paul. Já se despediu do seu filho?
— Geese… — Eu estava grato a esse idiota; mais grato do que poderia expressar em palavras. Se não fosse por ele, provavelmente nunca teria feito as pazes com Rudeus. — Cara, te devo uma.
— Ei, não esquenta!
Nesse ponto, percebi que Geese estava vestido para pegar a estrada.
— Mas, e aí, o que há de errado com você? Vai para algum lugar?
— Aham. Ainda não sei para onde, mas há muitos lugares que vocês ainda não visitaram, certo?
Demorei um pouco para entender o que ele estava dizendo. Geese continuaria procurando por minha família. Isso foi um choque, francamente. De todos os membros do meu antigo grupo, Geese foi o que mais sofreu depois da separação. Ele não era um lutador, mas um pau para toda obra sem nenhuma especialidade real. Nenhum outro grupo o aceitaria, e ele não era forte o suficiente para lidar com trabalhos difíceis sozinho. O homem foi forçado a deixar a vida de aventureiro para trás. Ele tinha todos os motivos do mundo para se ressentir de mim, até mesmo para me odiar.
— Por que você está… fazendo isso, Geese? Por que está se esforçando tanto para encontrá-los?
Geese contraiu os cantos da boca em seu costumeiro sorriso irônico.
— É só por boa sorte. — E com aquela “explicação” tipicamente enigmática, se virou e foi embora.
Coloquei minhas mãos em meus quadris e o observei partir com um sorriso irônico no meu rosto. O homem tinha muitas ideias sobre sorte e nenhuma delas fazia muito sentido para mim. Mas, desta vez, eu não estava exatamente reclamando.
— Então tá bom!
Assim que Geese desapareceu de vista, me abaixei e coloquei Norn em meus ombros. Do nada, comecei a explodir de tanta energia e motivação.
Comecemos pelo começo – tínhamos que garantir que a operação de realocação de refugiados ocorreria sem problemas. E uma vez que isso fosse feito, eu sairia em busca do resto da minha família. Não importava as circunstâncias.
Com minha resolução firmemente fixada em meu coração, voltei para a cidade.
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