A casa Kirib, localizada no Bloco Dois de Rikarisu, era um prédio grande, de um único andar, com quatro entradas separadas.
Os que moravam lá estavam longe de ser ricos, mas não eram tão desesperadamente pobres quanto os que moravam nas favelas da cidade. Pelos padrões do Continente Demônio, eram típicas pessoas da classe trabalhadora.
Três figuras sombrias – duas pequenas e uma grande – estavam atualmente se aproximando do lugar.
Caminhando corajosamente ao longo da rua, fizeram o seu caminho para uma das múltiplas entradas do edifício, indiferentes aos olhares daqueles ao seu redor.
— Olá, senhorita! Viemos da Guilda dos Aventureiros! — O jovenzinho do grupo bateu à porta, chamando em voz alta o morador lá de dentro.
Havia algo de perturbador nisso. Nenhum dos aventureiros da cidade era tão educado assim. Eles formavam um grupo de natureza rude e bruta.
Mesmo assim, a gentileza da voz do menino aparentemente enganou o residente local. A porta se abriu com um rangido e uma garota com talvez sete anos saiu lá de dentro. Sua longa cauda semelhante à de um lagarto e sua distinta língua bifurcada a marcaram como um membro da raça Houga.
Os olhos da menina se arregalaram ao ver seus três visitantes incomuns, mas o menino sorriu alegremente para ela.
— Olá! Prazer em conhecer. Esta é a residência da Senhorita Meicel, correto?
— Hã? U-uhm…
— Ah, perdão. Senhorita, meu nome é Rudeus. Rudeus do Fim da Linha.
— F-Fim da Linha…?
Essa garota, Meicel, obviamente conhecia esse nome. Todos conheciam a história dos monstruosos guerreiros Superds que lutaram ferozmente durante a Guerra de Laplace, há 400 anos, massacrando aliados e inimigos. E todos sabiam que o “Fim da Linha” era o mais forte e mais maligno de seu bando. Foi dito que ninguém que o encontrou viveu para contar história. Mesmo aqueles que apenas o viram de longe, falavam que mal conseguiram escapar com vida. Seu nome despertava o terror nos corações de todos os residentes do Continente Demônio; mesmo aventureiros musculosos que se gabavam de poder matar qualquer monstro com apenas uma das mãos, estremeceriam só de ouvir seu nome ser mencionado.
Mas Meicel também sabia como o Fim da Linha supostamente era, e esse garoto baixinho não correspondia em nada à sua descrição.
— Atendemos seu pedido na Guilda esta manhã, senhorita. Estamos aqui para encontrar seu mascote perdido. Gostaria de solicitar os detalhes, caso tenha tempo.
O nome Fim da Linha era, por si só, assustador, e as outras duas pessoas atrás do garoto eram um pouco intimidadoras. Mas ele falou com tanta educação que seria difícil sentir medo. E, pelo jeito, eram aventureiros que realmente aceitaram o trabalho que ela postou.
— Por favor… Encontre a Mii.
— Ah, então o nome do seu mascote é Mii? Achei o nome muito bonito, se é que posso dizer.
— Eu mesma coloquei.
— Ah, sério? Bem, você claramente tem um talento especial para nomear as coisas, senhorita.
Esse elogio rendeu um sorriso tímido ao garoto.
— Agora então… acha que poderia nos contar um pouco sobre Mii?
Meicel descreveu a aparência de seu mascote, explicou que havia desaparecido há três dias, acrescentou que não tinha voltado para casa, esclareceu que geralmente voltava quando ela o chamava e mencionou que provavelmente estava com fome, pois não tinha recebido comida. Foi um monólogo infantil e desconexo. Um adulto típico poderia ter revirado os olhos diante do balbuciar da garota e dado as costas no meio da conversa; mas o jovem aventureiro a ouviu com um sorriso, acenando com a cabeça encorajadoramente após cada frase dita com sinceridade.
— Entendido, senhorita. Iremos rastrear Mii agora mesmo. Fique tranquila, você está em boas mãos com o Fim da Linha!
O menino fechou a mão em um punho e ergueu o polegar para cima; por algum motivo, os outros dois atrás dele fizeram o mesmo. Meicel não entendeu muito bem, mas mesmo assim os imitou.
Balançando a cabeça com prazer, o garoto se virou e começou a se afastar. A garota encapuzada que estava atrás dele o seguiu; mas o homem mais alto do grupo agachou-se na frente de Meicel para dar um tapinha gentil em sua cabeça.
— Você tem minha palavra, encontraremos seu mascote, Meicel. Seja paciente e espere um pouco mais.
Ele tinha uma grande cicatriz no rosto; havia uma joia em sua testa; e seu cabelo era de um azul estranho e desbotado. Foi um pouco assustador olhar para o seu rosto… mas sua mão era quente e gentil.
Meicel acenou com a cabeça.
— C-certo. Estarei esperando.
— Não se preocupe. Voltaremos antes que você perceba.
Enquanto o homem mais alto se levantava para ir embora, Meicel o chamou.
— Uhm… Qual é o seu nome, Senhor?
— Ruijerd — respondeu o homem, e então se virou e foi embora com os outros.
Corando um pouquinho, Meicel murmurou esse nome para si mesma.
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Ponto de vista do Rudeus
Nossa primeira reunião com um cliente foi, de modo geral, muito boa. Eu tinha acabado de imitar um vendedor que frequentemente passava pela vizinhança, batendo de porta em porta, na minha vida anterior, mas pareceu funcionar melhor do que o esperado. Era bom que os outros aventureiros rissem de nós, mas precisávamos que nossos clientes pensassem em nosso grupo, antes de qualquer coisa, como um de boas pessoas. Ou seja, precisávamos tratá-los com gentileza e educação.
— Vejo que você é capaz de desempenhar mais de um papel — disse Ruijerd enquanto saíamos vitoriosos. — Impressionante, Rudeus.
— O mesmo para você, Ruijerd. Sua parte no final foi simplesmente perfeita.
— Minha parte no final? Do que está falando?
— A parte em que você deu um tapinha na cabeça dela enquanto conversavam, é óbvio. — Aquilo foi totalmente improvisado. Até comecei a suar por um segundo lá, mas os resultados foram muito impressionantes.
— Ah, entendo. O que há de tão bom naquilo?
Talvez a parte em que ela estava olhando para você com o rosto todo corado? Vamos, cara! Eu teria ficado muito tentado a sequestrá-la se estivesse no seu lugar!
Entretanto, não seria uma boa ideia dizer isso para alguém que amava as crianças tanto quanto Ruijerd. Ele provavelmente passaria a próxima meia hora me repreendendo com severidade. Então, em vez disso, adotei um tom de voz brincalhão e cutuquei sua coxa com meu cotovelo, em tom de brincadeira.
— Heheh. Vamos, Chefe. Se você chamasse aquela garota com o mindinho, ela iria atrás! Eheheh…
Ruijerd sorriu em dúvida e negou, sua voz demonstrou um pouco de incerteza.
— Eheheh! Não seja tão modesto, Chefe! Se você forçasse um pouco mais, ela iria se derreter igual… Ai!
Fui rudemente interrompido por um tapa na cabeça. Virei-me para encontrar Eris fazendo beicinho para mim.
— Pare de rir assim! Aquela coisa estúpida de “Chefe” não era para ser só uma atuação?!
Aparentemente, ela não gostava muito da minha impressão maliciosa igual à de um canalha. Desde o sequestro, Eris passou a desprezar pessoas “vulgares”. De volta a Roa, fazia uma careta sempre que passávamos por alguém vestido igual a um bandido na rua. Eu só estava brincando com Ruijerd, mas acho que ela não achou muito engraçado.
— Foi mal por isso.
— Sinceramente! Você é parte da família Greyrat, não é? Não seja tão grosseiro!
Foi precisa muita força de vontade para não cair na gargalhada. Você ouviu isso, senhora? Eris acabou de me censurar por ser “grosseiro”! Sim, aquela Eris! A mesma mocinha que sentia necessidade de abrir todas as portas que encontrava pela frente aos chutes! Ela certamente ficou mais refinada ultimamente, não ficou?
Ainda assim… se ela quisesse dizer coisas assim para mim, não deveria primeiro parar de se envolver em brigas de bar com grupos de estranhos?
Hmm. Difícil de dizer. Com base no que vi de Sauros, será que enlouquecer e socar alguém na cara estava dentro dos limites de um comportamento aceitável..? Não, não. Certamente não…
Depois de pensar por um momento, percebi que não tinha ideia concreta de onde o “grosseiro” acabava e o “refinado” começava para os nobres Asuranos. Assim sendo, mudei de assunto.
— De qualquer forma, Ruijerd… acha que podemos encontrar o mascote dela?
Com base no que tínhamos ouvido da Meicel, Mii parecia ser um gato. Era preto e tinha sido o companheiro dela desde quando era muito jovem. Provavelmente também era um dos grandes. A garotinha esticou os braços para demonstrar seu tamanho; assumindo que não fosse exagero, Mii tinha que ser quase tão grande quanto um Shiba Inu adulto, o que era notável ao se tratar de um gato doméstico.
— Claro. Afinal, dei minha palavra à garota. — Com esta declaração promissora e decisiva, Ruijerd avançou, assumindo a liderança.
Ele se movia com confiança, mas eu ainda estava um pouco nervoso. Já sabia que ele tinha um poderoso radar para seres vivos embutido em sua testa, mas não poderia ser fácil rastrear um animal em específico dentro de uma cidade cheia deles.
— Você tem um plano ou algo assim?
— Os animais se movem de maneiras muito previsíveis, Rudeus. Olhe só.
Olhando para o chão, no local para o qual Ruijerd apontava, mal consegui distinguir o contorno de uma pequena pegada. Que impressionante. Nunca teria notado isso, mesmo em um milhão de anos.
— Então, se seguirmos essas pegadas, você acha que vamos encontrar?
— Não. Provavelmente são de um animal diferente. As patas do gato dela não seriam tão pequenas.
Verdade, isso parecia mais com a pegada de um gato comum ou até mesmo de um pequeno… embora eu suspeitasse que a garota estava exagerando um pouco no tamanho de Mii.
— Hm. Então…
— Parece que um gato diferente está abrindo caminho para o território de nosso alvo.
— O quê? Sério?
— Com certeza é o que parece. O cheiro do gato dela está desaparecendo, então outro apareceu.
Espere. Uh… ele realmente pode sentir os cheiros de marcação dos territórios ou algo assim?
— Por aqui.
Ruijerd aparentemente havia chegado a algum tipo de conclusão que não sentia necessidade de compartilhar conosco. Ele caminhou por uma rua lateral e eu calmamente o acompanhei. Parecia que estávamos progredindo, embora eu não tivesse certeza de como. Talvez fosse essa a sensação de ser o pobre velho e desinformado Doutor Watson.
Não se preocupe, pessoal! Temos o melhor detetive do continente no caso! Ele vai rastrear os criminosos com suas técnicas de investigação inigualáveis, derrubar todos com Baritsu ao estilo Demônio e arrancar uma confissão com algumas perguntas diretas! Abram caminho para o Grande Detetive Ruijerd!
— Achei. Provavelmente é este — disse Ruijerd, apontando para uma parte da rua. Eu não poderia dizer o que ele “encontrou” ou por que sentiu a necessidade de acrescentar um “provavelmente”. Não conseguia ver sequer a marca de uma pata.
— Me siga. — Ruijerd partiu de novo na mesma hora, avançando com firmeza.
Sem hesitar, ele nos conduziu por uma série de ruas laterais que pareciam ficar mais estreitas à medida que avançávamos. Parecia mais com o tipo de beco no qual alguém esperaria que um gato estivesse. Eu ainda não tinha ideia de que tipo de trilha Ruijerd estava seguindo, mas… parecia que até o momento estava indo tudo bem.
— Olhe só. Há sinais de uma briga bem aqui.
Paramos em um beco sem saída. Quaisquer “sinais” que Ruijerd encontrou lá, eram sutis demais para mim; não pude ver nenhuma mancha de sangue ou arranhões no meio da sujeira.
— Por aqui. — Virando as costas, Ruijerd voltou a assumir a liderança. Parecia que Eris e eu estávamos apenas o acompanhando em um passeio. Mas que serviço mais tranquilo, nada estressante.
Passamos por algumas ruas laterais, cruzamos uma avenida e entramos em outra rua lateral. Dali, entramos em um beco e passamos por outra rua lateral. E assim por diante.
Depois de nos movermos por algum tempo pelas ruas labirínticas mantendo uma boa velocidade, demos uma guinada repentina em uma parte muito diferente da cidade. Tudo parecia degradado e abandonado. Os edifícios eram crus, sem pintura e estavam em ruínas graças ao abandono. Alguns dos homens por quem passamos nos lançaram olhares ameaçadores; havia pessoas deitadas ao longo da rua, e muitas das crianças estavam vestidas em trapos imundos.
Parecia até que estávamos em uma favela. Mas a mudança não foi gradual. Era mais como se tivéssemos tropeçado e caído no lugar. Dentro de instantes, fiquei em um estado de alerta máximo.
— Eris, fique pronta para desembainhar sua espada a qualquer momento.
— Por quê…?.
— Só por segurança. Além disso, fique de olho nas pessoas que cruzarmos pela rua que podem tentar te seguir.
— Uh… certo!
Pareceu que alertar Eris para levantar sua guarda também foi uma boa ideia. Provavelmente não estávamos em perigo real, já que Ruijerd continuava por perto, mas não queria que escorregássemos graças à complacência. Nós dois realmente devíamos nos proteger.
Com esse pensamento em mente, coloquei a mão no bolso interno da camisa e agarrei com força a minha bolsa de dinheiro. Eu não tinha muito a perder, mas ainda seria um desastre se alguém o roubasse.
— Tch…
Às vezes, um dos caras de aparência mais rude por quem passávamos olhava ameaçadoramente para Ruijerd, mas quando ele olhava de volta, tendiam a estalar a língua e desviar o olhar. Nesse tipo de bairro, pessoas capazes de dar um bom soco provavelmente inspiravam mais respeito do que aventureiros.
— Ruijerd, o gato realmente veio para cá?
— Veremos.
Essa resposta não foi lá muito reconfortante. Não estávamos apenas vagando sem rumo, certo?
Não, não. Ruijerd só está agindo como sempre, calado. Tenho certeza de que nos colocou no caminho certo. É melhor continuar me convencendo disso.
Acabamos andando pelas favelas por algum tempo, mas eventualmente Ruijerd parou na frente de um determinado prédio.
— Bem aqui.
Um lance bruto de escada, à nossa frente, conduzia até uma porta estranha. Parecia a entrada de algum bar underground frequentado por roqueiros punks que gostavam de cortes de cabelo esquisitos. Mas não havia nenhuma música alta saindo de lá, nem caras carecas com óculos escuros parados na porta para ficar de olho na clientela.
Por outro lado, havia um cheiro forte de animal vindo lá de dentro – o tipo de cheiro que qualquer um poderia sentir ao passar por um pet shop de grande porte.
Em um sentido menos literal, dava para quase sentir o cheiro de crime no ar.
— Quantas pessoas estão lá dentro, Ruijerd?
— Nenhuma. Mas há um grande número de animais.
— Então tudo bem. Vamos? — Se não havia ninguém lá dentro, então não havia razão para hesitar.
A porta no final da escada estava trancada, naturalmente, mas eu a abri sem muitas dificuldades ao usar um pouco de magia da Terra.
Dando uma olhada rápida ao redor da área, para ter certeza de que ninguém estava olhando, entrei, esperei Ruijerd e Eris me seguirem, e então fechei e tranquei a porta pelo lado de dentro. Parecia que éramos ladrões ou algo do tipo.
À primeira vista, tudo o que pude ver foi um corredor longo e escuro se estendendo à nossa frente.
— Eris, pode ficar de olho na nossa retaguarda?
— Sem problemas.
Ruijerd provavelmente saberia se alguém entrasse atrás de nós, mas não faria mal tomar um pouco de cuidado em excesso.
Nós três entramos mais adentro no prédio, com Ruijerd mais uma vez na liderança. Uma única porta no final do corredor principal se abria para uma pequena sala, com outra porta na extremidade oposta. Ao passarmos pela segunda porta, um coro ensurdecedor de gritos de animais encheu o ar no mesmo instante.
Tínhamos chegado à sala mais aos fundos do prédio. Estava repleta de gaiolas.
Havia incontáveis animais trancados ali – gatos, cães e uma grande variedade de criaturas que eu nunca tinha visto antes, todos amontoados em um espaço do tamanho de uma sala de aula do ensino médio.
— O que é isso? — perguntou Eris com a voz trêmula.
Meus primeiros pensamentos foram mais ou menos iguais… mas também me ocorreu que, dado o número de animais no local, havia uma boa chance de que aquele que estávamos procurando estivesse nesse meio.
— Ruijerd, o gato está aqui?
— Sim — respondeu na mesma hora. — É aquele.
Ele estava apontando para algo que parecia muito com uma pantera negra.
A coisa era enorme. Absolutamente enorme. Devia ser duas vezes maior do que aquilo que Meicel indicou com os braços.
— U-uh, tem certeza de que é aquele?
— Com certeza é. Olhe a coleira.
A besta tinha, de fato, uma coleira. E o nome “Mii” estava, de fato, impresso nela.
— Uau. Acho que… é mesmo o nosso gato, hein?
Tínhamos, tecnicamente, cumprido com nossa tarefa. Assim que tirássemos a pantera da gaiola e a arrastássemos de volta até a garotinha, teríamos terminado.
Sendo assim, uh… o que faríamos com todos os outros?
Havia alguns deles com coleiras ao redor do pescoço ou pulseiras nas pernas, e alguns tinham até nomes gravados em seus pingentes. Em outras palavras, um monte desses animais eram obviamente animais domésticos. Eu também notei uma enorme e descuidada pilha de cordas e coisas que pareciam focinheiras em um canto do cômodo. As cordas, em particular, pareciam sugerir que algum tipo de captura massiva estava ocorrendo.
Será que alguém estava roubando animais de estimação exóticos pela rua e vendendo-os para outras pessoas? Parecia um esquema perfeitamente plausível.
Eu não tinha ideia sobre existir alguma lei específica sobre esse tipo de coisa neste mundo, mas tinha que ser algum tipo de crime… Quer dizer, era, no mínimo, uma forma de roubo.
— Mm… — De repente, Ruijerd virou a cabeça em direção à entrada.
Eris reagiu quase na mesma hora.
— Alguém entrou atrás de nós.
Os animais faziam tanto barulho que eu, pessoalmente, não ouvi nada. Deixando Ruijerd de lado, estava genuinamente impressionado por Eris ter notado.
Mas, assim sendo, o que faríamos a respeito disso? Não demoraria muito para que passassem pela entrada. Correr seria uma opção? Não, realmente não – a única saída era por aquele corredor.
— Certo. Acho que teremos que capturá-los.
Eu realmente não considerei a opção de apenas conversar para apaziguar as coisas. Afinal, havíamos invadido aquele lugar como um bando de ladrões. Parecia ser a cena de um crime, mas ainda havia a possibilidade de ter algum propósito legítimo, o que nos tornaria os criminosos no local.
Agora, precisaríamos levar essas pessoas sob custódia. Se fossem mocinhos, poderíamos persuadi-los a não falar sobre isso e, se fossem bandidos, poderíamos socá-los até que prometessem não contar nada a ninguém.
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Poucos minutos depois, eu estava de pé sobre três pessoas – dois homens e uma mulher – que estavam inconscientes no chão, jogados em um canto do cômodo.
Depois de prendê-los com algemas que fiz usando magia da Terra, joguei um pouco de água em seus rostos para acordá-los. Um dos homens imediatamente começou a ganir e a uivar, então prontamente o amordacei com um pano que estava jogado por perto.
Os outros dois ficaram quietos, mas acabei também os amordaçando. Era melhor ser justo e imparcial com esse tipo de coisa.
— Hm…
Com tudo isso feito, me peguei pensando em uma certa questão: Como exatamente isso foi acontecer?
Quer dizer, tínhamos pego um simples trabalho de rank E para encontrar um gato perdido. Não era nada tão dramático. Ruijerd disse que poderia lidar com isso, então eu o fiz assumir o comando e acabei seguindo-o até uma espécie de favela. Na referida favela, invadimos um prédio repleto com toneladas de animais. Nesse ponto, nos encontramos levando várias pessoas em cativeiro… o que não tinha absolutamente nada a ver com o que queríamos fazer.
Isso só podia ser culpa do Deus Homem, certo? Ele obviamente previu que isso aconteceria.
Mas que dor de cabeça. Eu realmente deveria ter escolhido outro serviço.
De qualquer forma, vamos dar uma olhada cuidadosa em nossos cativos…
Homem A:
Pele laranja. Olhos compostos iguais aos de uma mosca, sem parte branca. Era meio nojento de se olhar. Foi o único que começou a gritar igual a uma cigarra quando os acordei. Ele parecia um sujeito rude… o tipo de cara que se daria bem em uma briga de bar.
Tinha certeza de ter visto uma foto de sua raça no dicionário de Roxy, mas não conseguia lembrar de como se chamava. Sua saliva era aparentemente venenosa; lembro que me questionei se poderiam ao menos se beijar.
Homem B:
Este tinha uma cabeça de lagarto, com forma e coloração ligeiramente diferentes do Cara de Cobra que encontramos no portão da cidade. Dadas suas características reptilianas, era difícil ler sua expressão. Mas eu podia ver inteligência em seus olhos, e isso me deixou desconfiado.
Mulher A:
Outra do tipo insectóide. Sua cabeça parecia com a de uma abelha, mas eu ainda poderia dizer que ela estava muito assustada no momento. Acho que seu rosto também se enquadrava na categoria de “nojento”, mas sua silhueta era formosa, o que basicamente anulava os pontos negativos.
Certo. Não faremos nenhum progresso se eu ficar aqui só olhando para eles. É hora para uma conversinha… Não, não, vamos ser honestos. Será um interrogatório.
Mas por quem começar? Quem cuspiria a informação com mais boa vontade, a mulher ou um dos homens? A mulher com certeza estava com medo. Se eu a ameaçasse um pouco, havia uma chance de que me contasse tudo na mesma hora.
Então, só para recordar, as mulheres eram conhecidas por mentir. Algumas delas eram perfeitamente capazes de dizer bobagens ridículas e incoerentes para se livrarem de problemas. Certo, provavelmente nem todas as mulheres eram assim, claro, mas minha irmã mais velha com certeza era. Costumava me deixar com tanta raiva que eu sentia dificuldades para descobrir o que era realmente verdade.
Então talvez eu deva começar com um dos homens.
Que tal o Homem A? Ele era o mais corpulento do grupo e tinha uma cicatriz no rosto… Parecia ser o melhor lutador dentre eles. E também estava, no momento, agitado. Provavelmente não era a ferramenta mais afiada à disposição, a julgar pela maneira como gritava: “Quem diabos são vocês?” e “Tire essas malditas algemas de mim!” antes de ser amordaçado.
Ou o Homem B? Era difícil ler muito de sua expressão, mas ele parecia estar observando nós três com bastante cuidado. Isso indicava que não era estúpido. E se não era estúpido, provavelmente tinha algumas boas mentiras planejadas com antecedência, caso algo assim acontecesse.
Então, decidi ir com o Homem A.
Seria mais fácil manipular alguém que já perdeu a calma. Com a dose certa de estímulo e provocação, ele provavelmente cometeria algum deslize e me contaria tudo que eu queria saber. E, bom, se não funcionasse, poderíamos sempre tentar com os outros dois.
— Tenho algumas perguntas e quero que você responda.
Quando removi a mordaça do Homem A, ele olhou ferozmente para mim… mas não disse uma palavra.
— Se você nos contar o que queremos saber, não precisaremos ser duros co… bluh?!
No meio da minha frase, o cara simplesmente me chutou. Me agachei para falar com ele, então o golpe me fez perder o equilíbrio. Lançado para trás, rolei pelo chão, parando apenas quando a parte de trás da minha cabeça bateu na parede. Estrelas brilharam em meu campo de visão.
Ai! Droga!
Sério, quão estúpido era aquele cara? Por que chutaria alguém que já o capturou? Ele não devia ter sequer considerado o que poderia acontecer se nos deixasse com raiva.
— Hã? E-ei, o que… Pare com isso!
Era a voz de Eris. Saltei, cego pelo pânico. O Homem A escapou de suas algemas enquanto eu estava pensando sobre as coisas e, de alguma forma, tomou Eris como refém, antes mesmo que Ruijerd pudesse reagir?
— O qu…
Não, Eris estava bem. Entretanto, o mesmo não poderia ser dito sobre o Homem A. Ruijerd enfiou a lança na garganta do cara. A garota estava apenas olhando, com os olhos arregalados graças ao choque.
Ruijerd torceu seu tridente para o lado enquanto o puxava para trás; o sangue formou um arco no ar e espirrou contra a parede. A força girou o Homem A por um momento antes de ele cair de cara no chão. Sangue escorria de sua garganta. Uma mancha escura rastejou lentamente por suas costas, e uma poça vermelha se espalhou embaixo dele. O fedor metálico que se estabeleceu era nauseante.
Com uma contração muscular final e reflexiva, ele parou de se mover.
Estava morto. Morreu sem dizer uma única palavra. Ruijerd o assassinou a sangue frio.
— O q… Por quê… Por que o matou?! — perguntei, consciente do fato de que minha voz estava vacilando.
Não foi a primeira vez que vi uma pessoa morrer. Afinal, Ghislaine matou para salvar a mim e a Eris. Mas dessa vez foi de alguma forma diferente. Por alguma razão, eu estava tremendo. Por alguma razão, eu estava com muito medo.
Por quê? O que me assustou tanto?
O fato de um homem ter morrido? Ridículo. Pessoas morriam o tempo todo neste mundo, pelos motivos mais triviais existentes. Eu estava bem ciente disso.
Talvez fosse apenas porque nunca tinha visto, pessoalmente, isso acontecendo de tão perto? Mas, nesse caso, por que não reagi assim quando Ghislaine matou aqueles homens durante o incidente do sequestro?
— Porque ele chutou uma criança — disse Ruijerd, sua voz calma e indiferente.
Falou como um homem respondendo à pergunta mais óbvia do mundo.
Ah, certo. Agora entendi. Não estou com medo porque acabei de ver alguém morrer. Estou com medo… porque Ruijerd matou aquele homem… sem pensar duas vezes… só porque ele me chutou.
Fiquei com medo de Ruijerd.
Roxy me alertou, não alertou? “Há muitas diferenças entre o que é comumente aceito na cultura humana e na cultura dos demônios, então você pode não saber quais palavras desencadearão uma explosão…” Então, o que eu faria se Ruijerd algum dia voltasse sua ira contra mim?
O homem era forte; tão forte quanto Ghislaine, ou até mesmo mais. Seria possível derrotá-lo com minha magia? Eu provavelmente poderia pelo menos lutar. Trabalhei em várias estratégias para lutar em pé de igualdade, treinando com especialistas em combate próximo.
Por alguma razão, muitas pessoas em minha vida se encaixavam nessa categoria… incluindo Paul, Ghislaine e Eris. E Ruijerd era provavelmente o mais forte deles. Era difícil para mim dizer, com alguma segurança, que poderia derrotá-lo. Mas se fosse, desde o começo, uma luta de vida ou morte, havia muitas coisas que eu poderia tentar.
Mas e se ele fosse atrás de Eris? Será que conseguiria protegê-la?
Não. Sem chances.
— V-você não pode matar alguém só por isso!
— Por que não? O homem era mau. — Ruijerd arregalou os olhos diante de minha objeção. Ele parecia genuína e totalmente perplexo.
— Bem… — Como eu poderia explicar isso? Exatamente o quê eu esperava de Ruijerd em um momento assim?
Em primeiro lugar, por que matar aquele homem era um problema?
Meu senso de moralidade simplesmente não seguia um padrão. Quando eu era um perdedor recluso, bufava com desdém para frases enfadonhas como “matar é errado.” Inferno, não senti quase nada quando meus próprios pais morreram. Eu sabia que as coisas iam ficar difíceis para mim, mas, ao mesmo tempo, minha atitude geral era igual à de um Garoto Cristal: “Para o inferno com essa merda, seu idiota! Estou ocupado batendo punheta!”
Seria desnecessário dizer que se eu tentasse alimentar Ruijerd com algum argumento ético pré-fabricado, ele soaria fraco e pouco convincente.
— Olha, há… uma razão muito boa… você não deve sair por aí matando as pessoas.
Certo, fiquei muito abalado. Vamos reconhecer isso. Estou meio que pirando, mas ainda vou pensar nisso.
Em primeiro lugar, por que eu estava tremendo? Porque estava com medo. Porque vi Ruijerd, que sempre me pareceu um cara tão bom, matar um homem sem nem piscar.
Pensei que os Superds fossem um povo pacífico que foi simplesmente mal compreendido. Mas esse claramente não era o caso. Eu não sabia sobre sua tribo como um todo, mas, ao menos Ruijerd era um assassino. Ele vinha matando seus inimigos desde a era da Guerra de Laplace; este assassinato foi apenas mais um acaso de uma longa, longa lista. Não poderia dizer com certeza que o homem nunca viraria sua lança para Eris ou para mim. Eu não era o tipo de pessoa honesta e de coração puro que poderia ganhar o respeito de Ruijerd. Algum dia, de alguma forma, provavelmente acabaria despertando seu lado ruim.
Faria parte ficar com raiva de mim. Visto que tínhamos maneiras diferentes de pensar, às vezes nossas opiniões divergiam – isso era simplesmente inevitável. Provavelmente entraríamos em brigas vez ou outra.
Dito isso, não planejava lutar contra ele até a morte. Não importa a situação, nossos desacordos não poderiam resultar em violência. Eu tinha que fazer Ruijerd entender isso… aqui e agora, antes que fosse tarde demais.
— Por favor… ouça com atenção, Ruijerd.
O problema era que eu ainda não conseguia encontrar as palavras certas.
O que deveria fazer? Como poderia fazê-lo entender? Deveria apenas implorar para não matar ao menos nós dois?
Agora você está sendo apenas estúpido.
No outro dia, convenci Ruijerd de que eu era um guerreiro, lutando com ele como um igual. Não estava sob sua proteção; era seu camarada. Não poderia começar a suplicar neste momento. Um curso de ação baseado em um “pare com isso” também não iria funcionar. Precisava pensar em algo que realmente o convencesse, ou isso seria completamente inútil.
Pense, cara. Para começo de conversa, por que Ruijerd está com você? Quer que todos saibam que os Superds não são realmente demônios sedentos por sangue. E se ele sair por aí matando as pessoas, só vai piorar a reputação da sua raça.
Isso… parecia certo. Foi a mesma razão pela qual falei para evitar brigas com outros aventureiros. O público já tinha uma péssima impressão de seu povo; não importa quantas boas ações fizesse para mudar isso, todo o seu progresso iria por água abaixo se vissem Ruijerd cometendo um assassinato. Todos voltariam a acreditar nas suposições acerca de sua raça.
Certo, era por isso que ele não podia matar pessoas. Não queríamos que todos tivessem a impressão de que os Superds eram uma tribo de bestas irracionais, certo?
— Se você continuar matando as pessoas, a reputação do Superds ficará ainda pior.
— Mesmo se as pessoas que eu matar forem más…?
— Não importa quem. Se você estiver matando alguém, isso será um problema. — Eu estava agora falando deliberadamente e escolhendo minhas palavras com cuidado.
— Eu não entendo, Rudeus.
— Quando um Superd mata alguém, não é visto da mesma forma que as outras pessoas. É o equivalente a ser morto por um monstro.
Com isso, Ruijerd franziu o cenho por um instante. Acho que parecia que eu estava falando mal de seu povo.
— Eu ainda não entendo. Por que esse seria o caso?
— Todo mundo pensa em você como parte de uma tribo de demônios cruéis. Pensam que vocês são maníacos que matam igual respiram, até mesmo diante da menor das provocações.
Certo, isso parecia duro… mas, mais uma vez, era realmente o consenso geral. Nosso objetivo era mudar isso.
— É fácil sair por aí dizendo às pessoas que os Superds não são monstros de verdade. Mas se você provar que os rumores são falsos por meio de suas ações, pode começar a mudar a mentalidade das massas.
O homem não respondeu.
— Por outro lado, vai estragar tudo se começar a matar pessoas. Todo mundo vai presumir que, o tempo todo, estavam certos sobre sua raça.
— Mas isso não é verdade.
— Isso realmente não está te dando nenhuma idéia, Ruijerd? Já ajudou algumas pessoas e começou a ficar amigo delas, apenas para vê-las se virarem contra você?
— Já…
Neste ponto, eu podia sentir meu argumento finalmente sendo compreendido.
— Bem, o negócio é o seguinte. Se você não matar ninguém de agora em diante…
— Sim?
— Todos vão perceber que os Superds são pessoas normais e racionais.
Isso era realmente verdade? Apenas abster-se de matar seria o suficiente para convencer as pessoas deste mundo de que sua tribo era razoável?
Não era hora para se pensar nisso. De qualquer forma, eu não estava errado. Ruijerd obviamente matou muitas pessoas. A população em geral pensava que os Superds eram, por natureza, assassinos. Mas se ele parasse de matar, teríamos a chance de mudar suas mentes.
Era bastante lógico, não era?
— Se você se importa com sua tribo… não mate mais ninguém, Ruijerd. Nem uma única pessoa.
Normalmente, seria necessário fazer julgamentos sobre essas coisas. Matar pode ser normalmente errado, mas, em certas circunstâncias, poderia ser justificado ou até mesmo necessário. Mas eu não conhecia os padrões pelos quais os residentes deste mundo faziam esses vínculos, e os critérios pessoais de Ruijerd eram provavelmente… extremos. O homem não dava margem para erro e era difícil saber onde traçava seu limite. Nesse caso, era mais simples e seguro proibi-lo de matar de uma vez por todas.
— E se ninguém estiver olhando? Também não estaria tudo bem?
Tive que lutar com uma enorme vontade de esconder a cara com as mãos. O que ele era, um garoto da escola primária? Esse cara realmente já estava vivo por mais de 500 anos?
— Você pode pensar que ninguém está olhando, mas, de qualquer maneira, as pessoas veem as coisas.
— Não há mais ninguém neste prédio, eu lhe garanto.
Ah, merda. Certo. Ele tem esse olho estúpido no meio da testa.
— Ainda havia alguém observando, Ruijerd.
— De onde?
Bem aqui, cara.
— Eris e eu vimos a coisa toda, não vimos?
— Hm…
— A partir de agora, por favor, não mate mais ninguém. Não queremos sentir medo de você.
— Certo…
No final, eu basicamente recorri à abordagem do “pedido com lágrimas nos olhos”. Minhas palavras não soaram lá muito convincentes, nem mesmo para mim. Ainda assim, Ruijerd assentiu, e isso era tudo que importava.
— Obrigado, Ruijerd.
Baixei a cabeça para ele em agradecimento e percebi que minhas mãos tremiam.
Calma. Esse tipo de coisa acontece o tempo todo. Respiiiire fundo.
— Hoo… haa… hoo… haa… — Estava sendo difícil me acalmar. Meu coração não queria desacelerar. Lancei um olhar para Eris, me perguntando como ela estava lidando com tudo isso; para minha surpresa, não parecia nem um pouco assustada. O olhar em seu rosto basicamente dizia: “Você me assustou um pouco, mas acho que um pedaço de lixo como aquele merecia morrer.”
Certo, talvez ela não estivesse realmente pensando em algo tão cruel. Mas estava em sua pose típica: braços cruzados, pés bem separados, queixo erguido. Se a garota estava abalada, fazia o possível para não deixar transparecer.
E aqui estava eu, pirando diante de todos. Mas que patético.
Minhas mãos finalmente pararam de tremer.
— Muito bem. Vamos voltar ao interrogatório?
Tentando ignorar o cheiro de sangue ainda pairando no ar, me forcei a sorrir.
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