Se eu tivesse que descrever o vilarejo de Roxy em uma palavra, ela seria desamparado.
Havia menos de vinte famílias. Seria um pouco difícil descrever as construções; parecia que simplesmente cavaram na terra e cobriram o buraco com algo que parecia o casco de uma tartaruga. À primeira vista era óbvio que as técnicas arquitetônicas adotadas não eram tão avançadas quanto àquelas do Reino Asura. Então, mais uma vez, se levasse uma equipe de construtores Asuranos ao local, eles provavelmente não conseguiriam fazer nada melhor – não parecia haver nenhuma madeira para ser usada.
O pequeno campo de cultivo que avistei do lado de fora do portão era ladeado por filas de plantas murchas e encolhidas. Para ser honesto, parecia que estavam todas meio mortas. Era um tanto preocupante. O Dicionário do Tipo Demônio não incluía muitas informações sobre agricultura, infelizmente. Tudo que eu conseguia me lembrar era de uma breve menção a seus vegetais tenderem a ser “amargos e desagradáveis”.
Além das plantações, havia também algumas flores assustadoramente dentadas crescendo nos cantos do campo de cultivo. Elas tinham uma grande semelhança com as plantas mortais que eram conhecidas por se esconderem dentro de canos verdes em uma certa franquia de videogame; mas parecia plausível que fossem, na verdade, algum tipo de animal, dada a forma como rangiam suas presas feias e disformes. Presumivelmente, foram colocadas lá para proteger as plantações de animais famintos.
Perto da cerca do vilarejo, um grupo de jovens garotas se movia ativamente ao redor de uma fogueira. Parecia um bando de crianças do ginásio saindo para acampar, mas aparentavam estar focadas em cozinhar uma única e enorme refeição. Pelo visto, faziam suas refeições em uma enorme panela e depois distribuíam porções para todos os aldeões.
Quase não havia homens no local. Notei algumas crianças, na maioria garotos, brincando, mas fora Rowin e o ancião, os adultos eram todos mulheres. Os outros deveriam estar garantindo o jantar para o dia seguinte. Pelo que me lembrava, os homens cuidavam da caça em aldeias assim, enquanto as mulheres tomavam conta de casa.
— Que tipo de presa há para se caçar por aqui, Ruijerd? — perguntei.
— Monstros — respondeu.
A resposta provavelmente era sincera, mas parecia um pouco carente de detalhes – era como um pescador falando que come “peixe” para viver.
Ah, bem. Acho que só vou ter que pressionar um pouquinho mais.
— Uhm… Esses cascos no topo das casas também saíram de monstros?
— São de Grandes Tartarugas. Seus cascos são duros e sua carne deliciosa. Você pode até mesmo fazer cordas de arcos com os tendões delas.
— Então são os principais alvos de caça?
— São.
Uma tartaruga saborosa, hein? Era um pouco difícil imaginar uma enorme o suficiente para caber naqueles cascos. O que cobria a maior casa parecia ter pelo menos sessenta pés de comprimento.
Enquanto esse pensamento passava pela minha cabeça, Ruijerd e Rokkus entraram naquele prédio. Uma coisa parecia não mudar nunca, não importa onde eu fosse: o cara no comando sempre tinha a casa mais bonita.
— Com licença.
— O-obrigada por nos receber.
Murmurando algumas palavras ligeiramente educadas, Eris e eu também entramos.
— Uau…
O interior do local era muito mais espaçoso do que imaginei vendo do lado de fora. O chão era coberto de peles e as paredes decoradas com obras de arte coloridas; fogo ardia em uma lareira mais adiante no cômodo, iluminando todo o interior muito bem. Não havia quartos separados ou paredes; à noite, provavelmente só precisaria se enrolar em algumas peles e se aproximar do fogo. Notei um monte de espadas e arcos cuidadosamente encostados nas paredes externas. Certamente poderia dizer que era uma comunidade de caçadores.
Por algum motivo, as duas garotas que seguiram o ancião até o portão não nos seguiram para dentro do recinto.
— Bem, então, vamos ouvir sua história — disse Rokkus, sentando-se ao lado da lareira. Ruijerd sentou-se de frente para o ancião; então sentei-me de pernas cruzadas, ao lado do Superd. Olhei para trás, procurando por Eris, e a encontrei deslocada, parada ao lado da porta e sem saber o que fazer.
— Só vamos sentar no chão? Mesmo dentro da casa?
— Sentamos no chão o tempo todo durante os treinos de esgrima, não?
— H-hmm. É, acho que você está certo.
Eris não era o tipo de pessoa que costumava ficar nervosa com essas coisas. Ela provavelmente ficou confusa com a diferença entre como as coisas funcionavam por aqui e o que aprendeu em suas aulas de etiqueta. Ao vê-la sentar no chão, fiquei um pouco preocupado que a garota pudesse acabar abandonando o conceito de “boas maneiras” no momento que voltássemos para casa.
Balançando um pouco a cabeça, me virei para encarar o Ancião Rokkus.
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Comecei falando meu nome, idade, profissão e local de residência, depois expliquei que Eris era minha aluna e filha de uma família nobre. Também deixei claro que fomos repentinamente enviados a este continente por eventos que estavam além de nosso controle.
Decidi não mencionar toda a coisa com o Deus-Homem. Não tinha como saber como o Migurd via aquela divindade específica, e a última coisa que precisava era ser marcado como o mensageiro de um deus maligno.
— Bem, é isso…
— Hrm — murmurou Rokkus, acariciando seu queixo com a expressão pensativa de um garoto do ginásio, parecia até estar pensando em algum exercício de álgebra complicado. — Entendo…
Enquanto esperávamos que ele tomasse alguma decisão, percebi que Eris estava começando a cochilar. Ela parecia cheia de energia há poucos minutos, mas talvez a caminhada tivesse finalmente cobrado seu preço. Não foi algo tão surpreendente – esse tipo de viagem era uma novidade para a garota, e parecia que ela não voltou a dormir depois de acordar na noite anterior. Provavelmente ficou a todo vapor.
— Eris, posso cuidar da conversa — falei. — Por que não tira uma soneca?
— Como poderia fazer isso…?
— É só se enrolar em uma das peles, acho.
— Mas não tem nenhum travesseiro.
— Ei, meu colo está livre — falei, batendo em minhas coxas e sorrindo.
— O-o que quer dizer com isso?
— Isso quer dizer que você pode descansar a cabeça nas minhas pernas.
— Sério…? Bem… obrigada.
Normalmente, ela teria feito um verdadeiro estardalhaço diante da sugestão, mas parecia que estava cansada demais para se importar. Sem hesitar, colocou a cabeça no meu colo. Por um momento, seu rosto ficou tenso e ela cerrou os punhos, mas assim que fechou os olhos, adormeceu em poucos segundos.
A garota devia estar realmente exausta. Aproveitei a oportunidade para acariciar os seus longos cabelos ruivos, e ela se contorceu um pouco enquanto dormia.
Após um momento, percebi que Rokkus estava me observando do outro lado. Havia um sorriso caloroso e brincalhão em seu rosto. Não pude deixar de me sentir um pouco constrangido.
— Uhm, o que houve…?
— Vocês dois com certeza parecem se dar bem.
— Ah, sim, é claro.
Dito isso, ainda estávamos no modo “fique longe”. A pequena senhorita tinha algumas ideias firmes sobre a coisa de castidade, e eu não estava disposto a desrespeitar isso.
— De qualquer forma… como está planejando voltar para casa?
Hmm. Ele foi direto para a mesma pergunta que Ruijerd abordou na noite anterior.
— Viajaremos a pé, conseguindo dinheiro conforme avançamos.
— Acha que duas crianças conseguirão ganhar o suficiente para se sustentar?
— Na verdade, estou planejando lidar com isso sozinho. — Não que eu fosse exatamente esperto, mas não poderia esperar que uma garota rica e mimada como Eris lidasse com a realidade em um momento assim.
— Eles não estarão sozinhos. — Ruijerd interrompeu. — Irei com eles.
Hmm. Definitivamente seria reconfortante ter esse cara ao nosso lado, mas aquilo sobre o Deus-Homem ainda me preocupava. Não importa o quanto eu quisesse confiar nele, provavelmente era melhor nos separarmos logo. Até onde sabia, o homem era como uma bomba-relógio.
Assim sendo… exatamente como deveria recusar esta oferta?
Antes que eu pudesse pensar em qualquer coisa, o Ancião Rokkus expressou sua própria desaprovação.
— E de que serviria isso, Ruijerd?
— O que quer dizer? — Ruijerd respondeu carrancudo. — Vou manter os dois em segurança e levá-los de volta para casa.
Rokkus suspirou.
— Mas você não pode entrar em nenhuma cidade, pode?
— Uh…
Espera, o quê? Ele não pode… entrar em cidades?
— Pense no que poderia acontecer se você se aproximasse de uma cidade com essas crianças. Ainda lembra do que aconteceu cem anos atrás, não lembra? Quando os soldados te perseguiram e formaram um esquadrão para te caçar?
Cem anos atrás…?
— Bem, sim… — gaguejou Ruijerd. — Mas… eu poderia simplesmente esperar do lado de fora…
— E não saber nada do que acontecerá com esses dois do lado de dentro? Assim não vai manter ninguém em segurança — disse Rokkus, balançando a cabeça, exasperado.
Pelo visto, os Superd eram tão temidos e odiados no Continente Demônio quanto em Asura. Realmente formaram um esquadrão inteiro para caçar um único homem? Isso parecia… um tanto exagerado. Fazia pensar até que ele era um monstro furioso.
— Se alguma coisa acontecer com eles do lado de dentro…
— Sim? O que você faria?
— Entraria para resgatá-los, mesmo se tivesse que matar todos os moradores. — Os olhos do homem estavam mortalmente sérios. Ele não estava exagerando; eu poderia dizer que realmente quis falar cada uma de suas palavras.
— Você perde o juízo quando tem alguma criança envolvida — murmurou o ancião. — Parando para pensar nisso… conseguiu ganhar nossa confiança depois de resgatar um jovem de um monstro cruel, não foi?
— Foi.
— Já fazem cinco anos? Ah, como o tempo voa…
Suspirando, Rokkus balançou a cabeça, cansado. Eu sabia que o homem estava do meu lado, mas, de qualquer maneira, fiquei um pouco irritado. Ele simplesmente exalava a mesma aura daqueles garotos irritantes e precoces do ginásio, expressando sua exasperação com as estupidezes dos adultos.
— De qualquer forma, Ruijerd – realmente acha que pode alcançar seu objetivo adotando meios tão violentos?
— Hm… – Ele grunhiu, franzindo a testa.
Seu objetivo? Isso parecia importante, então decidi me intrometer.
— Seu objetivo? Qual é, Ruijerd?
— É muito simples — disse Rokkus. — Ele quer convencer a todos que os Superd não são os monstros perversos que pensam ser.
Com esforço, consegui evitar de deixar um: “Bem, não vai rolar” escapar. O preconceito sistemático não é o tipo de coisa que as pessoas podem simplesmente superar, não importa o quanto tentem. Que inferno, uma única criança não poderia nem mesmo impedir sua turma de intimidar alguém, e o ódio pelos Superds aparentemente se espalhou pelo mundo todo. Digo, até a pequena e ousada Eris gritou ao ver Ruijerd. A humanidade e as raças de demônios tinham certeza de que eles eram malignos; como poderia convencer todos do contrário?
— Uhh, bem… é verdade que os Superds atacaram amigos e inimigos durante a guerra? — Me aventurei timidamente.
— Espera! Aquilo não…
— Eu sei que os rumores podem ter fugido do controle, mas parece que há uma boa razão para que todos tenham medo de…
— Não! Aquilo não é verdade! — Ruijerd gritou, de repente me agarrando pela frente da minha camisa; seus olhos ardiam de raiva.
Senti que comecei a tremer. Ah, merda…
— Fomos vítimas do complô de Laplace! Os Superds não são uma raça de bestas monstruosas!
O-o que diabos? Pare de gritar comigo, cara. Você está me enlouquecendo aqui. Merda, não consigo parar de tremer. O que é isso de complô, afinal? Esse cara acredita em teorias da conspiração ou o quê? E aquele Laplace viveu há tipo, quinhentos anos atrás, certo?
— U-uh, o que exatamente o Laplace fez?
— Retribuiu nossa lealdade com traição!
O aperto de Ruijerd em minha camisa começou a afrouxar. Estendi a mão e bati em seus braços algumas vezes, silenciosamente pedindo para me soltar; ele logo obedeceu. Mesmo assim, pude ver que suas mãos tremiam de fúria.
— Aquele homem… aquele homem maldito!
— Se importa de contar a história toda, Ruijerd?
— É uma longa história.
— Bem, tenho muito tempo.
A história que Ruijerd me contou descreveu o lado oculto da história deste mundo.
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O Deus Demônio Laplace era conhecido como um herói que uniu as raças de demônios, conquistando os direitos que a humanidade havia há muito negado. Os Superds se aliaram sob a bandeira de Laplace logo no início de sua campanha. Eles possuíam uma excelente agilidade e capacidade de perceber a presença dos inimigos. Além disso, sua força de batalha era incomparável. Eles serviram como uma das forças pessoais de Laplace, especializando-se em emboscadas e ataques na calada da noite. Graças ao “terceiro olho” em suas testas, sempre estavam cientes de tudo que acontecia nos arredores. Era impossível pegá-los de surpresa ou evitar seus ataques mortais.
Em outras palavras, eram um grupo de elite. Na época, a palavra “Superd” era falada com respeito e admiração por todo o Continente Demônio.
Mas então veio a Guerra de Laplace.
Nos estágios intermediários do conflito, quando os demônios começaram a invadir o Continente Central, o Deus Demônio convocou seus guerreiros portando um certo tipo de arma – uma que mais tarde viria a ser conhecida como Lança do Diabo. Ele ofereceu essas lanças como presentes aos seus soldados. Eram muito parecidas com os tridentes que os Superds empunhavam em combate, mas eram pretas como azeviche; mesmo à primeira vista, ficava claro que havia algo de sinistro nelas.
Naturalmente, alguns dos guerreiros se opuseram ao seu uso, insistindo que a lança de um Superd era seu coração e alma – que nunca poderiam deixar suas armas de lado por algo amaldiçoado. Mas era um presente de Laplace, seu mestre. No final, Ruijerd – o líder do grupo – ordenou que seus soldados usassem as novas lanças, por pura lealdade ao Deus Demônio.
— Hm? Você disse Ruijerd?
— Sim. Naquela época eu era o líder dos guerreiros Superd.
— E quantos anos você tem…?
— Perdi a conta depois dos quinhentos.
— Uh, certo… — O dicionário de Roxy mencionou algo sobre os Superds terem tanta longevidade? Bem, tanto faz.
De qualquer forma, o grupo jogou suas velhas lanças no chão, em qualquer lugar, e começou a usar as Lanças do Diabo em batalha. Essas novas armas eram extremamente poderosas; elas amplificaram as capacidades físicas de seus portadores em várias vezes, anularam os efeitos das magias dos humanos e aumentaram ainda mais os já aguçados sentidos dos Superds.
Eles agora eram quase invencíveis. Mas, em troca, foram sendo gradualmente transformados. Quanto mais sangue suas novas lanças provavam, mais corruptas suas almas ficavam.
Os guerreiros nem perceberam o que estava acontecendo com eles. Perderam a sanidade aos poucos, nenhum seguiu um ritmo diferente dos outros, e, assim, ninguém percebeu como eles, ou aqueles ao seu redor, estavam mudando.
Com o tempo, isso resultou em tragédia.
Os Superds perderam a capacidade de distinguir amigos de inimigos e começaram a atacar todos indiscriminadamente – fossem jovens ou velhos. Não mostraram misericórdia para mulheres ou mesmo para crianças. Não mostraram misericórdia para ninguém.
Ruijerd ainda lembrava claramente daqueles dias. Em pouco tempo, os demônios começaram a chamar os Superds de traidores da causa, e espalhou-se entre os humanos a notícia de que eles eram “demônios sedentos por sangue”.
Naquela época, Ruijerd e seus companheiros sorriam alegremente diante desses insultos, considerando-os o maior dos elogios. Os Superds estavam cercados de inimigos, mas suas lanças amaldiçoadas os tornavam uma força temida. Cada guerreiro de seu bando lutava com a força de mil homens; nenhum exército poderia esperar superá-los. Rapidamente se tornaram a unidade de combate mais temida de todo o mundo.
Entretanto, isso não significava que também não sofriam perdas. Agora eram um inimigo odiado tanto pelos humanos quanto demônios, foram forçados a suportar batalhas quase ininterruptas, fosse dia ou noite. Lenta, mas continuamente, seus números começaram a diminuir.
Ainda assim, nenhum deles questionou o caminho que estavam seguindo. Em sua loucura, o pensamento de morrer em batalha resultava apenas em felicidade.
Depois de algum tempo, um boato chegou ao bando dos Superds, era algo falando sobre uma de suas aldeias estar sob ataque – a aldeia natal de Ruijerd, mais especificamente. Era uma armadilha destinada a atraí-los para sua ruína, mas, neste ponto, nenhum deles estava lúcido o suficiente para suspeitar de qualquer coisa.
Os guerreiros voltaram para casa pela primeira vez em algum tempo… e começaram a atacá-la.
Foi simples. Encontraram pessoas, então precisavam matá-las.
Ruijerd assassinou seus pais, esposa, irmãs e, finalmente, seu próprio filho. Seu filho ainda era jovem, mas estava treinando para se tornar um guerreiro. Foi algo longe de ser uma batalha equilibrada, mas, em seus momentos finais, o menino conseguiu quebrar a lança negra de seu pai.
Naquele instante, o agradável sonho de Ruijerd acabou e um pesadelo começou. Havia algo duro e crocante em sua boca. Percebendo que era o dedo de seu filho, ele cuspiu, horrorizado.
A primeira coisa em que pensou foi suicídio, mas afastou isso de sua mente. Havia algo que simplesmente precisava fazer antes de morrer – precisava destruir um inimigo, a qualquer custo.
Nesse ponto, a vila dos Superds estava totalmente cercada por um exército de demônios enviado para exterminá-los. Apenas dez dos soldados de Ruijerd continuavam vivos. Quando receberam as Lanças do Diabo pela primeira vez, era um bando com quase duzentos guerreiros ousados e valentes. Agora era apenas um punhado de sobreviventes, e estavam todos acabados. Alguns perderam um braço, outros o olho ou até mesmo a joia na testa; mas, mesmo assim, feridos e em números muito menores, olhavam beligerantemente para a força de mais de mil homens que os rodeava.
Iriam todos morrer. E morreriam em vão.
Ruijerd arrebatou as Lanças do Diabo das mãos de seus companheiros e as quebrou. Um por um, os outros voltaram a si, seus olhares agressivos deram lugar a chocadas expressões de descrença. Muitos começaram a chorar desesperados, lamentando o assassinato de suas famílias. Ainda assim, nenhum pediu para retornar ao estado de transe; eram feitos de um material mais resistente do que isso.
Juntos, juraram vingança contra Laplace. Ninguém culpou Ruijerd pelo acontecido. Não eram mais assassinos estúpidos, nem guerreiros orgulhosos; eram criaturas caídas e arruinadas, com apenas vingança como motivo para viver.
Ruijerd não sabia o que havia acontecido com os outros dez, mas suspeitava que estavam mortos. Sem o poder das Lanças do Diabo, os Superds não eram nada mais do que soldados excepcionalmente eficazes.
Eles não tinham escolha a não ser usar quaisquer tridentes que pudessem encontrar, em vez daqueles com os quais se acostumaram ao longo de anos de batalha. Assim sendo, nenhum deveria ter sobrevivido. De alguma forma, Ruijerd conseguiu romper o cerco inimigo e escapar. Mas foi gravemente ferido na batalha e passou os próximos três dias à beira da morte.
A única coisa que carregou consigo foi o tridente de seu filho – com o qual o garoto morto quebrou a Lança do Diabo e salvou seu pai.
No final, depois de vários anos escondido, Ruijerd conseguiu sua vingança. Enquanto três heróis lutavam contra o Deus Demônio Laplace, ele apareceu para ajudá-los, conseguindo acertar um golpe em seu inimigo odiado.
Mas, claro, a derrota de Laplace não seria o bastante para reparar o dano feito. Desprezados e perseguidos, os Superds sobreviventes foram expulsos de suas aldeias e espalharam-se pelo mundo. Para ajudá-los a escapar de seus perseguidores, Ruijerd foi forçado a matar mais dos demônios com os quais já havia se aliado. Naqueles primeiros anos após a guerra, os ataques ao seu povo foram verdadeiramente brutais e ele batalhou com a mesma violência.
Agora Ruijerd já não via outros Superds há quase trezentos anos. Ele não sabia se sua espécie havia sido completamente exterminada ou se conseguiram sobreviver e formar uma nova aldeia em algum lugar escondido.
— Laplace é o culpado por tudo, é claro. Mas também sou responsável pela desgraça que causei ao meu povo. Mesmo sendo o último da minha espécie, quero que o mundo saiba a verdade.
Com sua história contada, ele voltou a ficar em silêncio.
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Suas palavras foram simples e diretas. Nunca pensou em nossas emoções. Entretanto, Ruijerd havia transmitido seu arrependimento, raiva e amargura perfeitamente. Ou tudo era verdade ou o homem era um ator incrivelmente talentoso.
— Que história horrível — murmurei, tentando organizar meus pensamentos.
Se acreditássemos nas palavras de Ruijerd, os Superds não eram de tribos inerentemente sanguinárias. Não estava claro por que Laplace deu as Lanças do Diabo a eles, mas talvez o Deus Demônio estivesse planejando os usar como bode expiatório para quaisquer crimes cometidos por exércitos assim que a batalha chegasse ao fim.
Que coisa mais vil de se fazer.
Os Superds tinham sido sinceramente leais a Laplace. Teriam dado suas vidas caso fossem pedidas. Traí-los com tanta crueldade parecia desnecessário.
— Certo. Vou te ajudar como eu puder.
Uma vozinha dentro de mim sussurrou uma objeção: Você realmente está em posição para ajudá-lo? Que tal se concentrar em salvar sua própria pele? Esta viagem vai ser muito mais difícil do que você imagina.
Não foi o suficiente para impedir que minha boca se movesse.
— Não sei ao certo, mas, talvez, ter uma criança humana ao seu lado te ajude a descobrir novas possibilidades.
Claro, eu não estava agindo assim por pura compaixão. Também tínhamos a ganhar com esse acordo, ao menos em alguns aspectos. Ruijerd era um lutador poderoso – alguém no mesmo nível dos três heróis lendários – e estaria nos oferecendo sua proteção. Pelo menos com ele por perto, não seríamos mortos por algum monstro aleatório enquanto seguíamos para nosso próximo destino.
Sua presença tornaria as coisas na estrada mais fáceis e mais difíceis quando chegássemos a uma cidade. Contanto que encontrássemos uma maneira de contornar a questão em cidades, ele seria um excelente aliado. Além de ser forte, era impossível emboscá-lo ou pegá-lo furtivamente, mesmo à noite; isso tornaria muito mais fácil o ato de evitar bandidos ou ladrõezinhos nas cidades desconhecidas.
Além do mais… embora fosse apenas minha intuição, tive a sensação de que o homem era basicamente incapaz de mentir. Parecia seguro confiar nele.
— Farei o que puder por você, Ruijerd — falei. — É uma promessa.
— Uh… obrigado — respondeu, parecendo mais do que surpreso. Será que ele percebeu a suspeita em meu olhar sumindo?
Bem, tanto faz. Decidi confiar em você, certo? Mordi a isca, chumbada e anzol.
Na minha vida anterior, costumava rir de histórias alheias tristes o tempo todo… mas, por algum motivo, esta realmente me tocou. Se o homem estava de alguma forma me enganando, não faria diferença. Pela primeira vez senti vontade de confiar estupidamente em alguém.
— Mas, meu garoto, os Superds realmente…
— Está tudo bem, Rokkus. Vou descobrir alguma coisa. — Ruijerd nos protegeria na estrada e eu o protegeria nas cidades. Esta seria uma relação de mútuo benefício. — Vamos partir amanhã, Ruijerd. Ficarei feliz em ter você conosco.
Havia apenas uma coisa sobre isso que me deixava um pouco ansioso…
Bem, parecia que eu estava fazendo exatamente o que o Deus Homem queria.
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