Mushoku Tensei: Reencarnação do Desempregado

Mushoku Tensei: Reencarnação do Desempregado – Vol. 03 – Cap. 02 – Os Superds

 

Quando acordei, já estava de noite.

Um céu negro cheio de estrelas se entendia acima de mim. Sombras lançadas por uma chama dançavam no chão. Conseguia ouvir os estalidos da madeira queimando. Parecia que estava dormindo ao lado de uma fogueira, embora não lembrasse de ter feito uma, ou mesmo de montar um acampamento.

A última coisa que lembrava… era do céu mudando de cor abruptamente, e uma onda de luz nos engolindo.

Ah, então teve aquele sonho. Não foi muito agradável…

— Gah! — Um choque de medo me percorreu assim que olhei para meu corpo. Felizmente, não era aquele monte de banha inútil que eu costumava ser. Estava de volta à forma jovem, porém forte, de Rudeus. Vendo isso, minhas memórias do passado começaram a sumir aos poucos, e uma onda de puro alívio tomou conta de mim.

Para o inferno com aquele tal de Deus-Homem. Por um minuto, senti como se tivesse voltado aos velhos tempos. Parecia que ainda ficaria algum tempo neste mundo. Obrigado deusa. Eu tinha um monte de coisas que ainda queria fazer. Como projetar meu status de “Feiticeiro”, por exemplo.

Quando me sentei, minhas costas doeram; estive estirado no chão. Tudo aos meus arredores mais próximos era terra seca e erosada. Pelo que pude ver, não havia quase nenhuma vegetação. Não havia sequer insetos? Não ouvi nada, salvo o som do fogo.

O local realmente estava quieto. Senti como se qualquer barulho que fizesse iria ser engolido pelo total silêncio noturno. Não conseguia lembrar de nenhum lugar parecido; afinal, o Reino Asura era coberto de pastagens e florestas. Aquela onda de luz branca fez isso?

Não, não. De acordo com o Deus-Homem, fui teletransportado. Presumivelmente, este era o Continente Demônio. Uma terra completamente nova e desconhecida. De alguma forma, aquela luz me enviou… Espere.

E quanto a Ghislaine e Eris?!

Meu primeiro instinto foi pular e começar a procurá-las. Mas assim que comecei a me mover… notei uma garota adormecida no chão, logo atrás de mim, agarrando minha camisa com uma mão.

Seu cabelo vermelho vivo era inconfundível. Era Eris. Eris Boreas Greyrat – a garota para a qual estive dando aulas particulares em Fittoa. Por enquanto vou pular a história em segundo plano, mas tenho ensinado leitura e aritmética por três longos anos. No começo ela foi como um desastre natural: mimada, violenta e totalmente fora de controle. Mas consegui passar por alguns eventos complicados, como resgatá-la de possíveis sequestradores e ensinar a dançar antes de sua festa de aniversário. Eventualmente, ganhei tanto sua confiança quanto respeito.

Claro, ela ainda me socava e chutava todos dias. Ela simplesmente era assim.

— Hm… — Por algum motivo, Eris tinha algum tipo de capa dobrada sobre ela. Eu estava deitado apenas com minhas roupas, mas… ah, bom. O princípio de “primeiro as damas” provavelmente fora aplicado.

Meu cajado, Aqua Heartia, também estava jogado no chão atrás dela. Eris tinha me dado de presente em meu décimo aniversário, há apenas alguns dias. De qualquer maneira, pelo visto a garota não tinha qualquer lesão externa. Foi um alívio.

E onde está Ghislaine?

Ghislaine Dedoldia era nossa instrutora de esgrima e guarda-costas pessoal de Eris. Ela era uma mulher fera terrivelmente hábil que me ensinou o básico de seu estilo em troca de uma educação rudimentar. Seu cérebro supostamente era “feito de músculos” e ela definitivamente estava ficando para trás nos estudos… mas em uma emergência assim, seria muito mais útil do que eu. Era possível que tivesse feito o fogo e coberto Eris com aquela capa.

Afastei-me de minha aluna adormecida e comecei a procurar por minha mestra. Na mesma hora, vi alguém sentado perto do fogo, alguém que não havia percebido antes.

Mas não era Ghislaine. Era um homem.

Ele estava me encarando, imóvel e em silêncio, como se me avaliando. Congelei como um coelho sob o olhar de um predador.

Apesar do meu choque, tentei o meu melhor para analisar o homem calmamente. Ele não parecia estar cauteloso com nossa presença. Na verdade, era mais como… hmm. Como poderia explicar? Algo em sua linguagem corporal me lembrou o modo como minha irmã costumava se aproximar lenta e timidamente de um gato sempre que queria fazer carinho no animal.

Ele estava preocupado com a possibilidade de assustar essas crianças que encontrou? Isso parecia indicar que não havia hostilidade.

Mas assim que comecei a respirar aliviado, minha mente captou alguns detalhes preocupantes. Seu cabelo era verde esmeralda, sua pele branca como porcelana e ele tinha algo tipo uma joia vermelha incrustada bem no meio da testa. Também havia uma enorme cicatriz ao longo de seu rosto. Seus olhos eram penetrantes, suas feições severas; mesmo à primeira vista, parecia um homem perigoso.

Só para esclarecer, havia uma lança com três pontas caída ao seu lado.

Quando eu era bem novo, uma garota chamada Roxy me ensinou a usar magia, me ensinou muitas coisas valiosas e transformadoras. Uma das coisas que me ensinou dizia respeito a uma certa raça de demônios – os Superds. Eu me lembrava perfeitamente de suas palavras, mesmo agora.

Não fale com um Superd. Nem mesmo chegue perto deles.

Eu queria ficar de pé, agarrar Eris e sair correndo sem controle.

Mas consegui conter essa vontade no último instante.

O conselho do Deus-Homem surgiu em minha cabeça: Confie nele e faça o que puder para ajudá-lo.

Eu não tinha absolutamente nenhuma razão para confiar naquela autointitulada divindade, claro. Tudo o que ele me disse disparou algum alarme, e agora me deixou nesse lugar com essa pessoa incrivelmente suspeita. Como poderia confiar nele? Esse cara estava gritando que era um Superd. Roxy havia explicado em detalhes como eles eram terríveis e violentos.

Talvez algum tipo de deus quisesse que eu o ajudasse. Certo, tudo bem. Mas em quem eu deveria confiar? Em um personagem suspeito que encontrei em um sonho, ou em minha amada mestra, Roxy?

Roxy, claro. Não precisava nem considerar a questão. O que significava que já deveria estar fugindo.

Então, mais uma vez… talvez fosse por isso que um “conselho” foi, em primeiro lugar, necessário. Se não fosse por aquele sonho, provavelmente já teria fugido. Mas mesmo se de alguma forma conseguisse escapar, o que deveria fazer depois?

Olhei para os arredores por uma segunda vez.

Estava escuro; e era tudo completamente desconhecido. E a terra erosada ao meu redor estava coberta por enormes rochas. Se acreditasse na palavra do Deus-Homem, então este era o Continente Demônio. Isso significaria que estava muito longe de casa.

Pensando bem… Tive outro sonho antes, embora quase tenha o esquecido após aquela memorável conversa com o Deus-Homem. Eu estava voando pelo mundo em uma velocidade avassaladora. Passei por montanhas enormes, mares sem fim, florestas densas e vales profundos. Talvez não tenha sido um sonho; talvez realmente tivesse sido teletransportado. A conversa sobre ser o Continente Demônio parecia cada vez mais plausível.

E, claro, eu não sabia onde estava no continente. Se fugisse de imediato, estaria vagando sem rumo no meio de uma terra enorme e desconhecida.

No final, não tive muitas escolhas. Mesmo se eu e Eris pudéssemos fugir desse homem, acabaríamos perdidos e abandonados no meio do nada. Claro, sempre havia a possibilidade de encontrarmos um vilarejo próximo assim que o sol nascesse. Mas valia a pena apostar tudo nessa possibilidade?

Não, claro que não. Eu sabia perfeitamente bem como seria difícil encontrar um caminho em algum lugar desconhecido.

Calma aí, cara. Respira fundo. Você não confia no Deus-Homem. Certo. Mas e esse homem? Preste atenção nele. Olhe a expressão em seu rosto. Ele está ansioso. Ansioso e um pouco resignado. Não deve ser um monstro desumano incapaz de sentir emoções, entendeu?

Roxy me disse para manter distância dos Superds, mas nunca encontrou um. Aprendi tudo a respeito de preconceito e discriminação enquanto estava em meu velho mundo e sabia muito bem como foi a caça às bruxas. Os Superds eram temidos, mas, talvez, só fossem mal interpretados. Roxy certamente não teve intenção de mentir para mim, mas havia uma chance de que estivesse errada.

Minha intuição gritava que esse cara não iria nos machucar. Não parecia tão desonesto e malicioso quanto o Deus-Homem. Em vez do aviso de Roxy ou do conselho do Deus-Homem, decidi confiar em meus próprios instintos. Não odiei ou temi o sujeito à primeira vista; sua aparência era um pouco… intimidante. Nesse caso, uma conversa não faria mal. Tomaria minha decisão com base no que aconteceria.

— Olá — falei.

Após uma longa pausa, ele respondeu com um breve “Oi”.

Por enquanto, tudo bem. Hmm. E agora?

— Você é um servo de deus ou coisa do tipo?

O homem inclinou a cabeça parecendo perplexo.

— Não tenho certeza do que você quer dizer com isso, mas encontrei vocês dois aqui depois de caírem do céu. Sei que crianças humanas são delicadas, então fiz essa fogueira para ficarem aquecidas.

Nenhuma menção ao meu amigo sem rosto, hein? Esse cara não era um enviado divino? Com base no que o Deus-Homem falou sobre suas motivações, talvez me assistir fosse apenas parte da diversão. Ver como as outras pessoas reagiriam a mim provavelmente seria tão interessante quanto. Nesse caso, esse homem realmente poderia ser confiável.

— Foi muito gentil da sua parte. Obrigado por ajudar.

— Garoto, você é cego…?

Bem, essa foi uma pergunta peculiar.

— O quê? Não, tenho uma visão perfeita, na verdade.

— Seus pais não te falaram sobre os Superds?

— Meus pais não, mas minha mestra me advertiu para ficar longe deles a qualquer custo.

O homem parou, depois falou mais lenta e cuidadosamente do que antes:

— Você está desconsiderando as palavras da sua mestra, sabe. — A pergunta não formulada ficou clara: Sou um Superd. Realmente está tranquilo com isso? O homem parecia surpreendentemente inseguro. — Você não está com medo de mim?

Não estou com medo, não. Mas estou um pouco desconfiado.

Não havia necessidade de falar isso em voz alta, claro.

— Acho que seria falta de educação temer um homem que acabou de me ajudar.

— Hm. Você fala coisas estranhas, criança. — Havia uma expressão de genuína perplexidade em seu rosto.

Não achei que tivesse dito nada particularmente estranho, mas, talvez, o Superd tenha dado como certo que qualquer um sairia correndo ao vê-lo. Aprendi um pouco sobre a Guerra de Laplace, o conflito de quatrocentos anos entre a humanidade e demônios que terminou há apenas um século. Eu sabia que os Superds foram evitados desde o fim do evento. O mundo estava lentamente se desfazendo de seus preconceitos contra outros tipos de demônios, mas os Superds com certeza eram um caso especial. Todas as outras raças pareciam detestá-los tanto quanto o povo japonês odiava os soldados americanos durante a Segunda Guerra Mundial. Foram retratados como algo semelhante à personificação do puro mal.

Sem meu conhecimento acerca de racismo que obtive em minha outra vida, provavelmente estaria gritando de terror.

O homem não falou nada. Ele jogou mais um galho no fogo que crepitava o tempo todo. Eris gemeu com o som e começou a se mover. Ela parecia estar no limite da consciência.

Espera. Isso não é bom. Ela definitivamente vai fazer um espetáculo. Preciso ao menos me apresentar antes que as coisas caiam em completo caos.

— Eu sou Rudeus Greyrat. Qual é o seu nome, senhor?

— Ruijerd Superdia.

Superdia era provavelmente o sobrenome em comum usado por todos os Superds. Era assim que as coisas normalmente funcionavam entre os povos demônios. Na maioria das vezes, apenas os humanos assumiam nomes de outras famílias, embora houvesse uma e outra exceção excêntrica entre as outras raças. Da mesma forma, o sobrenome de Roxy era Migurdia, de acordo com o Dicionário do Tipo Demônio que ela me enviou durante meu tempo como tutor de Eris.

— Bem, Ruijerd, acho que essa jovem vai acordar em breve. Às vezes ela faz muito barulho, infelizmente. Deixe-me pedir desculpas antecipadas.

— Não é necessário. Estou acostumado com isso.

Dada sua abordagem agressiva sobre a vida, havia um risco real de Eris dar um soco em Ruijerd assim que colocasse os olhos nele. Precisávamos ter uma conversa rápida assim que aparecesse uma chance. Esperançosamente, isso evitaria que as coisas se tornassem muito hostis depois.

— Perdoe-me. Vou me aproximar um pouco mais. — Olhando para Eris para confirmar que ela ainda não estava acordando, rodeei o fogo e me sentei ao lado de Ruijerd. De perto, podia ver suas roupas graças à fraca luz bruxuleante. Seu colete bordado e calças pareciam algum tipo de traje tribal – o tipo de coisa que nativos usariam.

Mais do que qualquer outra coisa, Ruijerd parecia desconfortável. Mas, honestamente, isso era muito menos desagradável do que o tipo de amizade intrometida do Deus-Homem. Falei:

— Sem querer mudar o assunto, mas onde estamos?

— Região Biegoya, no Nordeste do Continente Demônio. Não estamos muito longe do antigo Castelo Kishirisu.

— Ah. Entendi… — Uma vez eu tinha visto o Castelo Kishirisu em um mapa. Ficava muito, muito longe de Asura. — Por que será que caímos aqui?

— Se vocês não sabem, então não sou eu quem vai saber.

— Sim, suponho que não.

Acho que coisas estranhas podem acontecer quando estamos em um mundo com dragões e magia, mas…

Não parecia uma coincidência que tenhamos encontrado um personagem importante como o tenente de Perugius pouco antes do acontecimento. Por falar nisso, talvez o Deus-Homem também tivesse desempenhado algum papel naquilo. Se tivéssemos sido pegos de surpresa, seria um milagre termos continuado vivos.

— Bem, de qualquer forma, fico grato pela sua ajuda.

— Não precisa agradecer. Apenas diga de onde veio.

— Somos do Reino Asura, do Continente Central. Da Cidadela de Roa, que fica na Região de Fittoa, para ser mais específico.

— Asura…? Essa com certeza é uma terra distante.

— Com certeza.

— Não se preocupe. Consigo te imaginar de volta lá, são e salvo.

O Nordeste do Continente Demônio ficava no total oposto do mapa se comparado a Asura. A distância seria algo comparável entre uma viagem de Paris a Las Vegas. E, neste mundo, claro, não existia algo tão cômodo quanto um avião. Mesmo as viagens marítimas só seriam possíveis ao cruzar rotas específicas, de modo que qualquer viagem intercontinental exigia longos desvios feitos por terra.

— Você tem alguma ideia do que pode ter acontecido, garoto?

— Bem, uhm… o céu começou a brilhar de repente, então alguém chamado Almanfi, o Radiante1No volume licenciado da tradução americana houve uma mudança neste termo, devido à troca de tradutor dos volumes. Anteriormente foi traduzido como “Arumanfi, o Brilho”, entretanto, agora o termo foi atualizado pelo outro tradutor. Manteremos a atualização., apareceu na nossa frente e disse que tinha aparecido para acabar com a anormalidade. Ainda estávamos conversando com ele quando uma onda de luz clara e brilhante nos engoliu. A próxima coisa que percebi foi essa fogueira.

— Almanfi…? Então Perugius está envolvido? Então a situação deve ser realmente grave. Você tem sorte por ter sido apenas teletransportado.

— Sim. Se aquilo fosse algum tipo de explosão, estaríamos todos mortos.

Percebi que Ruijerd não ficou muito surpreso com toda a história sobre Perugius. Talvez não fosse tão incomum que o lendário herói aparecesse de vez em quando.

— A propósito, Ruijerd… já ouviu falar de um Deus-Homem?

— Desome? Não me soa familiar. É o nome de alguém?

— Deixa pra lá. Não é importante. — Não parecia que ele estava mentindo para mim, e eu não conseguia imaginar o homem vendo uma necessidade para mentir.

— De qualquer forma… Reino Asura, hein?

— Tudo bem, eu não te pedirei para nos levar até lá. Se puder nos acompanhar até a cidade mais próxima, acho que…

— Não. Um guerreiro Superd nunca volta atrás em sua palavra. — As palavras de Ruijerd foram firmes, sua voz transbordando um orgulho teimoso. Foi o suficiente para me fazer querer confiar nele, esquecendo completamente do conselho do Deus-Homem.

Agora, entretanto, precisava continuar cético.

— Mas estamos falando sobre uma jornada para o outro lado do mundo.

— Criança, não se preocupa com isso. — Assim, o homem estendeu a mão e timidamente deu um tapinha na minha cabeça. Vi alívio sendo expressado em seu rosto quando não tentei me afastar.

Será que esse cara gostava de crianças? Ainda assim, não estávamos falando sobre uma caminhada de volta para casa que acabaria em dez minutos. Eu não poderia aceitar suas promessas logo de cara…

— Pense assim — disse o homem —: Você sabe a língua daqui? Tem algum dinheiro? Conhece as estradas?

Ah. Huh. Nem tinha pensado nisso, mas… Estivemos falando na Língua Humana o tempo todo, e este homem demônio estava respondendo fluentemente. Que interessante.

— Na verdade posso falar a Língua do Deus Demônio. E também sou um mago competente, então posso conseguir algum dinheiro. Se nos levar até uma cidade, vou descobrir o que preciso fazer. — Queria direcionar a conversa para uma recusa educada, se possível. O próprio Ruijerd podia até ser confiável, mas eu não gostava da ideia de as coisas acontecerem exatamente como desejado pelo Deus-Homem.

Se minhas palavras cuidadosas o machucaram, o homem não deixou transparecer.

— Entendo. Pelo menos permita-me protegê-los. Abandonar crianças sozinhas abalaria a honra dos Superd.

— Bem, não gostaria de desonrar um povo tão orgulhoso.

— Não se preocupe. Já fizemos isso pessoalmente.

Eu ri um pouco enquanto Ruijerd curvava os lábios ligeiramente para cima. Ao contrário do sorriso vazio e perturbador do Deus-Homem, havia um genuíno calor por trás do seu sorriso.

— De qualquer forma, amanhã de manhã vou te levar até a aldeia onde costumo ficar.

— Certo.

Eu não tinha confiado naquele autoproclamado deus, mas este homem era diferente. Não faria mal dar uma chance a ele. Pelo menos até chegar àquela aldeia.

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Um pouco depois, Eris abriu os olhos.

Sentando-se reta, olhou ao redor, sua expressão cada vez mais ansiosa. Depois de um momento, seus olhos encontraram os meus e vi um brilho de alívio em seu rosto.

Um instante depois, ela notou o homem sentado ao meu lado.

— Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaah!! — Gritando como uma banshee, Eris caiu para trás e tentou se levantar para correr. Mas suas pernas cederam e ela voltou a gritar. — Nããããããããão!

A garota estava em um estado de completo pânico. Mas não estava se debatendo violentamente, ou até mesmo tentando rastejar para longe. Só ficou deitada onde tinha caído, tremendo de tanto terror, gemendo e gritando a plenos pulmões.

— Não! Não, não, não! Por favor, por favor, não! Ghislaine! Ghislaine, socorro! Ghislaine! Por que você não aparece?! Nãããão! Eu não quero morrer! Não quero morrer! Sinto muito! Sinto muito, Rudeus! Sinto muito por ter te arrastado para isso! Eu sou uma covarde! Agora nunca mais vou conseguir… m-manter minha promessa! Aaah… ah… Waaaaaaah!

Depois de continuar por um bom tempo, a garota finalmente se encolheu em posição fetal e começou a balbuciar coisas incoerentes. Apenas olhar para ela fez eu sentir um arrepio na espinha. Não acredito que ela está tão apavorada…

O que quer que alguém pudesse dizer sobre ela, Eris sempre seria considerada uma garota de temperamento forte e confiante. Desde que ela quisesse, poderia tomar o mundo. Sempre tentou atravessar todos os obstáculos em seu caminho; como se fosse uma lei, primeiro socava e falava depois.

Será que… eu entendi errado? Encontrar um Superd era literalmente uma sentença de morte?

Um pouco inquieto, olhei para Ruijerd.

— Essa é a reação normal — disse.

Isso não pode ser sério.

— Então o estranho aqui sou eu?

— Sim, você está agindo de uma forma bastante estranha. Mas…

— Mas?

— Não posso dizer que me importo.

O rosto do homem era um retrato da solidão. Senti uma pontada de genuína simpatia.

Me levantei e caminhei até minha aluna encolhida. Eris se contraiu de medo quando meus passos se aproximaram; me agachei ao seu lado e comecei a suavemente acariciar suas costas. Revivi as memórias de uma outra vida, de uma época em que minha avó me confortou exatamente da mesma maneira.

— Vamos, tudo bem. Não precisa ficar com medo.

— Hic… Claro que preciso! A-aquele homem é um Superd!

Eu ainda não entendia por que ela estava tão apavorada, sério. Digo, era a Eris – a garota que atacava Ghislaine sem temor, uma verdadeira Rei da Espada. Pensei que ela não tivesse medo de nada.

— O que há de tão assustador nele?

— E-ele é um Superd, seu estúpido! Eles… Eles comem crianças! Enquanto elas ainda estão vivas! Hic.

— Hm. Não acho que isso seja verdade.

Virei para Ruijerd para confirmar e ele corajosamente concordou.

— Não, nós não comemos crianças.

É, realmente achei que não.

— Escutou isso, Eris?

— M-mas… Mas eles são demônios! Demônios!

— Sim, isso é verdade. Mas, felizmente, ele fala a Língua Humana muito bem.

— Olha, não é esse o ponto, entendeu?! — Levantando a cabeça do chão, Eris olhou para mim com fogo ardendo em seus olhos.

Bem melhor. Essa sim é a Eris que conhecemos e amamos.

— Hmm, tem certeza que quer erguer a cabeça assim? Talvez ele não te coma se você ficar encolhida no chão.

— Argh! P-para de tirar sarro de mim! — Claramente enfurecida com minha provocação, Eris me lançou outro olhar, então virou a cabeça para fazer o mesmo com Ruijerd… então voltou a tremer.

Aquilo em seus olhos eram lágrimas de verdade? Que bom que ela não estava naquela sua pose de costume. Seus joelhos provavelmente estariam tremendo sem parar.

— P-prazer… em conhecer, s-senhor. Eu sou… E-Eris B-Bo-Boreas… Greyrat! — Apesar de tudo, a garota ainda conseguiu gaguejar e expressar um cumprimento educado. Foi meio cômico, especialmente após ela o fuzilar com o olhar. Porém, pensando bem, tomar a iniciativa de se apresentar nunca era má ideia quando estava se conversando com um estranho. Alguém me ensinou isso há muito tempo.

— Eris Boboboreas Greyrat, é? Vocês, humanos, começaram a criar uns nomes bem peculiares, pelo visto.

— Não, não! É Eris Boreas Greyrat! Eu só gaguejei um pouco, foi só isso! Olha aqui, que tal você se apresentar, hein?!

Um instante após parar de gritar com ele, o rosto de Eris ficou pálido. Parecia que, por um momento, ela tinha esquecido com quem estava falando.

— Claro. Perdão. Eu sou Ruijerd Superdia.

Quando Ruijerd respondeu com calma, uma expressão de alívio surgiu no rosto de Eris, então logo apareceu um sorriso confiante e arrogante. Parecia que ela tinha decidido, um pouco tarde demais, que não tinha nem um pouco de medo do homem.

— Viu? Ele não é tão ruim. Você pode fazer amizade com qualquer pessoa, desde que possa se comunicar com ela.

— Sim! Isso mesmo, Rudeus. Honestamente, minha Mãe é uma mentirosa!

Então foi Hilda quem falou sobre os Superds para ela? Fiquei um pouco curioso sobre as histórias que Eris tinha ouvido. Deviam ser horríveis.

A reação dela foi relativamente compreensível. Eu provavelmente teria surtado se encontrasse um Teke ou um Namahage2São fantasmas (youkais) do folclore japonês. na vida real.

— O que a Senhorita Hilda te contou sobre os Superds?

— Ela sempre disse que iriam aparecer para me comer, a menos que fosse para a cama na hora certa.

Ah, então eles eram como o clássico bicho-papão deste mundo, hein? Mais ou menos como o Homem-Fique-Longe no Japão.

— Bem, este Superd não parece a fim de nos comer. Podemos nos gabar por fazer amizade com ele assim que voltarmos para casa, não acha?

— Ah. V-você acha que o Vovô e a Ghislaine vão ficar impressionados…?

— Claro.

Olhei para Ruijerd. Havia uma ligeira expressão de surpresa em seu rosto. Até agora, tudo bem.

— Sabe, acho que o Ruijerd está um pouco sozinho. Ele provavelmente concordaria em ser seu amigo caso você pedisse.

— M-mas…

Realmente achei que tinha tratado isso de forma bem infantil, mas Eris parecia um pouco hesitante. Pensando bem, ela realmente não tinha “amigos”, tinha? Eu provavelmente estava meio deslocado nessa categoria…

Então não era de se admirar que estivesse tão envergonhada. A garota só precisava de mais um empurrãozinho.

— Não é verdade, Ruijerd?

— Hã? Er, claro. Eu ficaria muito feliz, Eris. — O homem demorou um pouco, mas eventualmente entendeu a deixa.

— B-bem, se você insiste! Suponho que serei sua amiga!

 

 

 

A visão de Ruijerd curvando a cabeça para ela foi o suficiente para derrubar a última das defesas de Eris. Tudo era tão simples com ela. Isso me fez achar que fui meio ridículo por pensar tanto nas coisas. Então, mais uma vez, acho que alguém precisava compensar sua impulsividade.

— Nossa. Tudo bem então. Acho que vou descansar mais um pouco, se não se importarem.

— Mas que diabos, Rudeus? Já vai dormir?

— Sim. Estou cansado, Eris. Muito cansado.

— Sério? Bem, que pena. Então boa noite.

Me enrolei no chão e Eris gentilmente colocou a capa que a cobria sobre mim. Presumivelmente, pertencia a Ruijerd. Por algum motivo, eu realmente estava completamente exausto.

Quando estava quase caindo no sono, captei alguns trechos da conversa que vinha da direção do fogo.

— Garota, você não tem mais medo de mim?

— Estou bem. Rudeus está comigo.

Certo. Vou levar Eris para casa em segurança, ao menos isso. Não importa o quê.

Pensando assim, deixei-me afundar no mundo da inconsciência.

 


 

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