O esconderijo que os dois encontraram era um depósito meio enterrado no subsolo. Deve ter sido onde algum plebeu uma vez guardou sua comida. O lugar inteiro estava começando a apodrecer, mas a familiaridade da estrutura parecia reconfortante para Vaqueira; ela começou a se acalmar.
— Os goblins já passaram por aqui — disse Matador de Goblins, vasculhando o conteúdo de um barril estilhaçado. Aparentemente, até os goblins se recusaram a comer joio. — Eles sentem que têm o luxo.
Os dois estavam protegidos do frio lá fora; o armazém dificilmente poderia ser chamado de quente, mas pelo menos os protegia do vento e da neve. Vaqueira sentou-se em um canto, exalando.
— Estaremos seguros aqui? — embora ela não tenha dito, em sua mente, ela acrescentou: pelo menos por enquanto.
— Não podemos ter certeza. — Matador de Goblins estava sentado ao lado da entrada, segurando a espada pendurada em seu quadril. Ele inclinava seu capacete de metal de vez em quando para ver o lado de fora. No momento, tudo o que podiam ouvir era o som da nevasca — Eles não são diligentes o suficiente para verificar um lugar uma segunda vez logo depois de já o terem invadido — ele parou e acrescentou — Mas… — lutando para não deixar o cansaço transparecer em sua voz — Esses são goblins com os quais estamos lidando.
— …Certo — Vaqueira acenou com a cabeça, abriu a boca, então fechou novamente.
Havia algo que ela queria dizer? Atrás do visor de seu capacete, Matador de Goblins moveu apenas os olhos para olhar para ela.
— O que é?
— Nada — Vaqueira disse, balançando a cabeça e oferecendo um sorriso fraco — Não se preocupe com isso.
— Entendo.
— …Ei.
— Sim?
— O que quer comer quando chegarmos em casa?
Matador de Goblins pensou por um momento, mas, para ele, não era preciso pensar muito — Guisado.
— Você realmente gosta dessa coisa, hein?
— Sim — ele acenou com a cabeça brevemente, então ficou em silêncio. Vaqueira olhou para ele e abriu a boca mais uma vez, mas novamente ela parou antes de falar. Ela não deveria falar, percebeu.
Haviam passos esmagando a neve, rápidos e sem hesitação, apenas audível sobre o vento.
Um goblin.
Ele se moveu virtualmente no mesmo instante em que a sombra caiu sobre a porta do armazém.
— GOROGB?!
Ele envolveu a boca do goblin, que estava dando um bocejo calmo e cortou sua garganta com sua espada desembainhada. Havia um gêiser sibilante de sangue escuro, o espirro de sangue chegando até o rosto de Vaqueira.
— Heek…?! — ela de alguma forma conseguiu suprimir seu grito; Matador de Goblins estalou a língua. Não era de forma alguma uma censura a ela, mas apenas a si mesmo. O mesmo se aplica ao que aconteceu a seguir.
O goblin, é claro, estava se esquivando de seu dever. Essa tarefa, porém, era encontrar os aventureiros. Ele tinha uma faca na mão.
Os goblins, como todos sabiam, não tinham o conceito de auto-sacrifício, de fazer qualquer coisa em benefício de seus camaradas. Se alguém se incomodasse em pesquisar a língua dos goblins, certamente não descobriria palavras para essas coisas. Este goblin em particular simplesmente golpeou com sua faca na agonia da morte. Apenas uma convulsão involuntária do corpo.
O movimento, porém, atingiu o barril apodrecido próximo e foi o bastante para destruí-lo. Os detritos empilhados no topo do barril caíram no chão com estrondo.
— Hrg…! — para Matador de Goblins, parecia o barulho de dados rolando.
Bem, para o inferno com os dados.
— Fique atrás de mim!
— Huh? Er… C-certo! — Vaqueira enxugou o sangue do rosto e se levantou rapidamente, fazendo o que ele disse. Ele chutou o cadáver para dentro do armazém, abrindo espaço para si mesmo. Vaqueira tremeu — Não vamos fugir…?
— Em um momento.
Ele agilmente puxou uma corda de sua bolsa de itens, amarrando-a em um ponto baixo na entrada. Então ficou ao lado da porta com sua espada em punho, respirando continuamente e contando os segundos.
Houveram gargalhadas e passos apressados… goblins.
— GOROBG! GOROBGGB…?!
— São dois!
O monstro que se aproximava tropeçou na corda e Matador de Goblins abaixou sua espada. Ele cortou a espinha do goblin, que nem mesmo conseguiu fazer barulho antes de ser reduzido a um pedaço de carne se contorcendo. Desta vez, Vaqueira não gritou, apenas ficou tensa, então ela estaria pronta para reagir na próxima vez que ele se movesse.
— Três!
O próximo goblin tropeçou também, e Matador de Goblins colocou sua lâmina cega através da medula oblongata* da criatura.
*(NT: Medula oblongata é a porção inferior do tronco encefálico)
Matar um goblin era bastante fácil, o problema era fazer isso indefinidamente.
Matador de Goblins deixou sua espada onde estava, pegando uma lança do novo cadáver. Outra silhueta encheu a porta, Matador de Goblins configurou sua arma instantaneamente.
— Quatro!
— GROGOBG?!
O goblin caiu sobre a corda e morreu com uma lança alojada nas costas. Matador de Goblins jogou fora o cadáver, com a lança protuberante e tudo, e soltou um suspiro.
— Eles parecem ter acabado.
Com a mão direita, ele já estava se movendo para puxar a espada do terceiro goblin morto. Ele deu uma sacudida para tirar o sangue, depois o enxugou em uma das tangas dos goblins, dando uma olhada crítica na lâmina. Ela resistiria a um pouco mais de uso.
— …Você acha que eles desistiram?
— Isso certamente seria mais fácil para nós — mas ele duvidou muito disso. Ele a informou disso desinteressadamente, sua mão esquerda segurando a dela — Vamos embora — disse ele. Em seguida, acrescentou — Não pare — ele parecia muito sério — Ou você vai morrer.
— O-ok…! — Vaqueira apertou sua mão — …Compreendo.
Matador de Goblins apertou ainda mais a mão dela, então disparou pela neve.
— GORG!
— GOROOGOR!!
Os goblins esperando por eles do lado de fora mostraram surpresa óbvia; os aventureiros se moveram mais rápido do que esperavam.
Vou mostrar a vocês.
Os goblins estavam tentando desesperadamente transportar uma panela fumegante de água fervente. Talvez alguém entre eles tivesse aprendido algo com a batalha anterior sobre assalto a fortificações.
— Cinco… seis, sete!
Os movimentos de Matador de Goblins eram precisos. Ele girou a espada em sua mão, revertendo o aperto, então a jogou longe.
— GOBG?! — um goblin com uma espada alojada no braço gritou e largou a panela sem se importar com as consequências.
— GOROGBBGB?!
— GRG?! GROGBB?!
Isso, é claro, resultou em três goblins se contorcendo de dor quando foram banhados com água fervente. Apesar de toda a neve ao redor deles, seus corpos incharam com queimaduras em um piscar de olhos. Não havia ajuda para eles. Matador de Goblins correu através da linha de goblins e agarrou uma boa e agora quente, clava.
Ele não precisava finalizá-los; eles morreriam sozinhos. Os goblins nunca ajudaram os seus.
Goblin Paladino.
Supondo que tal figura não estivesse presente.
— GROGOB!
— GOOGOBOGR!!
Os goblins vieram pressionando um após o outro enquanto localizavam Matador de Goblins e Vaqueira. Eles pulsavam de medo com a morte de seus companheiros, de raiva e ódio desses aventureiros que pensavam que poderiam fazer o que quisessem e de desejo pela jovem.
Em outras circunstâncias, ele teria matado todos eles. Se ele tivesse encontrado essa horda não em campo aberto, mas em um local seguro, em algum lugar confinado, haveriam várias maneiras de fazê-lo.
— Você ainda pode correr? — perguntou, e depois de pensar um momento, acrescentou — Está tudo bem em fechar os olhos.
— Estou… estou bem…! — Vaqueira disse entre respirações ofegantes, correndo desesperadamente atrás dele — Estou… pegando o jeito com isso…!
— Entendido.
Mas eles não tinham margem para erros. O que fazer? Ele precisava pensar. Em seu bolso. Pense.
Neve, goblins, edifícios em ruínas, água, lago, goblins, vigias. Bem, goblins, goblins e goblins.
— …!
Matador de Goblins decidiu e avançou. Não importa o que aconteça, ele tinha que distrair os goblins, mesmo que por um momento. Não era tão difícil de fazer isso.
— Escute!
— S-sim?!
— Na minha cintura. A adaga ali… pegue-a!
— Adaga…?! — ele podia sentir que ela procurava a adaga enquanto corriam — Uh… — ela parecia hesitante — Esta coisa de formato estranho…?!
— É isso! — Matador de Goblins atacou um goblin invasor com sua clava. Oito — Jogue em uma árvore!
— Você tem certeza?!
— Sim!
Ele não disse mais nada, mas podia sentir a torção de Vaqueira, isso foi o suficiente. Ele ergueu a clava e jogou em um goblin descuidado o suficiente para chegar perto. Acertou a criatura na testa e deixou seu pescoço torcido em uma direção bizarra.
— Nove!
Assim que Matador de Goblins enfiou a mão em sua bolsa de itens, ele ouviu Vaqueira exclamar — Oi… yaaah!
A lâmina cruel com sua forma de cruz dobrada fez um som de ganido enquanto girava no ar. Ela esculpiu um arco que os goblins seguiram com seus olhos e ouvidos. Eles estavam rindo, onde ela pensou que estava jogando? Que tola. Cackle, cackle.
Ele já sabia de tudo isso. Vaqueira nunca teve nenhum treinamento. Ela não poderia acertar nada, mesmo que tentasse.
E então a faca atingiu a raiz de uma árvore. Algo grande e imóvel, fácil de encontrar.
— Estamos pulando!
— Huh?! Ei, espere, isso é… Não, não…!!
Ele podia ouvir Vaqueira objetando. Ainda assim, ele saltou.
A neve caiu estrondosamente dos galhos da árvore que a adaga havia atingido. Quando tudo acabasse, os goblins teriam passado do riso para o piscar de olhos.
Para onde eles foram? eles estariam pensando, mas os goblins nunca adivinhariam. Eles rapidamente culpariam um ao outro pela fuga dos aventureiros, e uma discussão feia se seguiria.
É claro, é claro.
Nenhum deles pensaria em olhar no poço ali perto.
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— Heek?! — Vaqueira exclamou quando seu corpo encontrou a água fria de cortar a respiração.
Ela piscou rapidamente, no entanto. No entanto, não foi tão ruim quanto ela pensava, na verdade estava mais quente dentro do poço do que fora dele. E…
— Eu posso respirar?
— É um anel de respiração.
O orador estava por perto, suas palavras confusas ainda mais do que o normal pela água.
Era ele.
Ele a estava segurando, apoiando seu corpo enquanto flutuava na água. Vaqueira endureceu um pouco com a realização, se perguntou se deveria se afastar, mas então relaxou quando ela se acomodou em seu abraço. Teria sido embaraçosamente infantil lutar e, nessa situação, também tolo. Ela ergueu os olhos para o capacete dele à queima-roupa e inclinou levemente a cabeça.
— Um anel…?
— Eu coloquei no seu dedo.
Agora que ele mencionou, ela notou o anel brilhando vagamente em sua mão direita, a que ele estava segurando antes. Deve ser o que a está mantendo segura aqui neste poço. Ela teve a estranha sensação de que todo o seu corpo estava rodeado por uma bolha. Ela ainda estava molhada, no entanto; seu cabelo e roupas flutuavam suavemente.
Ela olhou para cima e viu um círculo de céu, vacilante e distante, distorcido pela água.
Eles estavam em um poço. Ela registrou o fato de novo, entendeu que eles haviam se metido nisso.
— Entendo — disse ela, bolhas saindo junto com suas palavras e flutuando em direção ao céu — …Claro, teria sido bom se você tivesse me contado antes de pularmos.
— Desculpe — disse ele. — Não havia tempo.
— Estaremos seguros aqui?
— Eu não sei — quando ele respondeu, bolhas escaparam das frestas de seu visor. Elas pareciam um pequeno sinal de incerteza — Cobri o som do nosso salto e eles não nos viram. Nossas pegadas logo serão apagadas pela neve. Rastrear-nos será difícil. — Ele listou os fatores um por um, para ela, quase parecia que ele estava orando e então acrescentou suavemente: — Provavelmente.
— …
— Estamos lidando com goblins. Eles não são muito capazes, mas podem ter sorte. É sempre uma possibilidade.
— …E se eles nos encontrarem?
— Com sorte, eles vão pensar que nos jogamos para a morte em desespero.
Duvido que notem os anéis. Com isso, Vaqueira olhou para sua própria mão.
Eles tinham anéis combinando. Vaqueira era uma simples camponesa; ela não sabia quanto valiam essas coisas. Pecuária, plantações: isso era o que ela conhecia, mas este era um anel mágico. Devia ser muito valioso.
Mesmo assim, o anel que ele comprou para ela naquele festival valia mais para ela.
— É difícil procurar por cadáveres em um poço. A menos que aquele monstro, seja lá como era chamado, ordene…
Ele estava usando uma armadura, a água estava gelada, trazê-los levaria tempo. Os goblins se oporiam, isso levaria ainda mais tempo.
Ele estava resmungando para si mesmo até que, com outra explosão de bolhas, ele cuspiu — A sorte decidirá nosso destino, não temos outra escolha.
— Da frigideira para o fogo, hein? — Vaqueira sussurrou e então sorriu de orelha a orelha — Mas sabe?! Por mim está tudo bem — ela descansou a cabeça contra o couro duro de sua armadura. O peito dela estava tão perto do dele, ainda assim, ela tinha certeza de que ele não sentiria as batidas de seu coração. Ela não queria que ele pensasse que ela estava com medo — Eu sei o quão duro você está trabalhando por nós dois.
— Se não der em nada, então foi inútil — ele parecia estar descartando seus próprios esforços — Tenho certeza de que meu professor poderia ter pensado em algo pelo menos um pouco melhor.
— Mas seu professor não está aqui agora. Você está — antes que ele pudesse protestar, ela continuou — Você é quem está me resgatando.
— …É assim mesmo?
— Uh-huh.
— Entendo.
Bom. Vaqueira acenou com a cabeça, então afundou ainda mais em seus braços. Ela se mexeu, de forma que suas costas estavam contra o peito dele, e olhou para cima. Ela gostaria de ter visto as estrelas ou a lua ou qualquer coisa, mas o céu ainda estava no mesmo tom cinza chumbo e era quase meio-dia. Se eles realmente iam morrer aqui juntos, era um lugar terrivelmente prosaico para fazer isso.
Acho que pelo menos ele não consegue ver meu rosto.
Sempre era ela quem não conseguia vê-lo. Às vezes, era melhor ficar escondido.
— …Hum e de qualquer maneira… Me desculpe. Peço desculpas.
— Por quê?
— Bem, quero dizer — ela coçou a bochecha, sem saber o que dizer — Eu tenho sido um fardo.
Não houve pausa antes de ele responder — Não — Vaqueira olhou para ele e piscou — Você não poderia ser.
— …Não?
— Não.
— Entendo — disse ela, mais pequenas bolhas flutuando de seus lábios — Entendo.
Com um último “Sim” ele ficou em silêncio. Vaqueira também não disse nada, olhando para o céu, flocos de neve dançaram, formando padrões na água que ela podia observar de baixo. Não era um céu estrelado, mas, bem, era melhor do que nada.
— Você não está… cansado?
— Não.
— Está tudo bem… você pode ir dormir — Vaqueira puxou seu cabelo, espalhado na água. Aqui embaixo, a cor parecia diferente, diferente do vermelho usual e, apesar das circunstâncias, ela achou engraçado. De repente, uma memória veio a ela, deles brincando juntos em um rio próximo quando eram jovens. Deve ter sido no verão, não no inverno — Não vamos a lugar nenhum por um tempo, vamos?
— … — ele grunhiu em algum lugar do fundo de sua garganta — Eles podem jogar uma pedra sobre nós.
— Se tudo o que temos que fazer é ficar de olho acima de nós, eu posso fazer isso.
Ele parecia muito relutante, mas depois de não muito tempo, Vaqueira o sentiu soltar um suspiro profundo e as bolhas subiram.
— …Por favor, faça isso.
— Certo.
Vaqueira mudou para que ele pudesse relaxar. Ela chutou a água, seu corpo se retorcendo como se estivesse em uma dança, de modo que ela ficou encostada na lateral do poço, de frente para ele. A parede era feita de pedra dura e fria. Muito mais do que a armadura dele.
— … — Vaqueira olhou para cima, então lançou um olhar para ele. Seu capacete estava ligeiramente inclinado para a frente e ele parecia já estar cochilando. Era compreensível: ele não tinha parado de se mover desde ontem, não tinha parado de vigiar e pensar.
— Ei — Vaqueira sussurrou, tão baixinho que ela não iria perturbar seu sono. Mais algumas bolhas escaparam dela — …Você quer ir para casa?
Ela não perguntou onde. Ela também não estava procurando uma resposta.
Ele não disse nada, pelo tempo suficiente para que ela pensasse que ele estava realmente dormindo, mas então respondeu — Sim — sua voz parecia a de um recém-nascido dizendo sua primeira palavra — Eu quero.
Entendo. Vaqueira acenou com a cabeça. Ela apertou os joelhos no peito, ficando redonda como uma bolha e flutuou ali, olhando para o círculo do céu.
Ela realmente desprezava os goblins.
Tradução: Nero
Revisão: Flash
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