Matador de Goblins

Matador de Goblins – Vol. 07 – Cap. 02.2 – Corta-Barba Vai Para o Rio Sulista

— Eu, uh… Comprei o que indicaram, mas… Devo mesmo usar isso?

— É mesmo impressionante, né? Os humanos pensam nas coisas mais interessantes. Só pensei que poderia parecer legal.

— Isso está na última moda até na capital. Foi só recentemente que expor os braços e pernas tornou-se algo popular.

— Tenho a ligeira suspeita de que isso vai ficar um pouco pequeno…

Houve um jato de água e as vozes das quatro garotas correram lindamente pela margem do rio.

Era o dia após o anterior, e os cinco aventureiros e duas acompanhantes estavam em uma jangada. A embarcação tinha uma vela branca e o vento a empurrava suavemente rio acima.

O comércio não era especialmente frequente entre a aldeia dos elfos e a cidade da água. Os habitantes da floresta eram orgulhosos demais, com pouco interesse em dinheiro e menos ainda em quaisquer bugigangas que os humanos pudessem produzir. E quando os dois lados não podiam atender às necessidades mútuas, o comércio não podia florescer.

Em vez disso, a maioria dos barcos do rio tinha como destino as aldeias pioneiras que ficavam ao longo de suas margens. Muito poucos deles iam mais para o sul, rumo à floresta dos elfos.

Claro, existem exceções…

— Se eu soubesse que viajaríamos de jangada, poderia ter ficado em casa!

— Conseguimos pegá-la emprestada, isso já é o suficiente.

Eles já tinham passado por várias aldeias e o sol estava começando a chegar ao seu auge. Tinham acabado de comprar um pouco de pão dos fazendeiros do último assentamento marcado no mapa às margens do rio, e o Anão Xamã estava reclamando.

Enquanto pegava um dos pedaços de pão com manteiga passada, Matador de Goblins disse:

— O que há para reclamar?

— Você é um homem surpreendentemente calmo, Corta-Barba.

— É mesmo?

— Poderia dizer que sim… Aqui, Escamoso.

— Ah, muito obrigado.

O Lagarto Sacerdote estava manobrando a jangada com golpes hábeis de uma estaca. Acomodou a embarcação em uma eclusa e soltou um suspiro sibilante.

Eclusas são dispositivos projetados para regular a diferença no nível da água entre um canal e um rio natural. Ao se dirigir de montante para jusante, a água na eclusa seria reduzida gradualmente até a altura de jusante. Isso significava que, independentemente do que estivesse navegando, haveria de esperar um pouco. Um momento perfeito para comer alguma coisa.

O Lagarto Sacerdote enfiou o pão na boca, revirando os olhos.

— Mmm. Mas, pensando bem, parece que minha língua se acostumou com os produtos daquela fazenda, de forma que agora os desejo.

— Ha ha ha ha ha ha! Bem, olha só quem virou um gourmand! E aí, Corta-Barba? E quanto a você?

— Se for comestível, é o suficiente — disse suavemente Matador de Goblins, olhando ao redor.

Ele estava olhando para Vaqueira, que estava sentada ao lado das outras mulheres, arrancando pedaços do pão para comer. Ela também olhou em sua direção, e seus olhos se encontraram por um breve instante.

— Talvez eu não queira dizer isso… — acrescentou Matador de Goblins e, em seguida, olhou para as mãos. Ele estava talhando um pouco de madeira com uma faca, preparando alguma coisa. Algumas coisas, aliás. Era uma estaca pequena com uma ranhura estranha entalhada; a outra coisa parecia mais com uma lança afiada. Quando terminou com a coisa ranhurada, o Matador de Goblins colocou sua lâmina na ponta do objeto mais longo.

Enquanto trabalhava, pegou o pão que segurava em uma das mãos e o enfiou preguiçosamente pelo visor.

— Ei, olhe essas maneiras! — exclamou Vaqueira. — Mastigue a comida direito.

— Sinto muito — respondeu ele, lançando um olhar em direção dela e empurrando o pão um pouco mais devagar. Então olhou para baixo e retomou o trabalho.

— Sheesh — resmungou ela, mas o Anão Xamã sorriu e olhou para o que Matador de Goblins estava fazendo.

— Isso aí é uma lança? — Ele pegou um dos objetos, interessado.

Era uma lança de madeira simples, nada de especial. Não tinha nem uma ponta adequada.

— Não sou habilidoso o bastante para que minhas flechas penetrem a água. E uma jangada não tem pedras para pegar e jogar. Preciso de uma arma de longo alcance. — Matador de Goblins pegou uma das armas e a segurou contra a luz, inspecionando o trabalho. Aparentemente, achou insatisfatório, já que voltou a talhar. — É bom estar preparado — disse ele bruscamente. — Mais do que o habitual.

— Ahh. Entendo o que você quer dizer. Ouvi sobre os rumores. — Anão Xamã largou a lança com um olhar azedo e se sentou na jangada. Puxou a tampa da jarra em seu quadril, tirou um copo de sua bolsa e ofereceu uma dose de vinho de fogo ao Matador de Goblins. Um aroma forte de álcool exalou do copo. O Matador de Goblins balançou a mão em recusa, o Anão Xamã então tomou tudo em um único gole.

— Embarcações afundadas… Não acha que são apenas acidentes?

— Seria melhor não assumir isso. Assim como sempre.

Eram tantas as embarcações que seguiam rio acima. A maioria era de aventureiros, ou um punhado de mercadores que receberam o favor dos elfos. Caçadores, talvez, ou gente que trabalha com cura. Alguns apareciam em busca de cavernas e ruínas, ou para coletar ervas raras ou partes de animais com a indulgência dos mestres da floresta.

Haviam subido o rio em jangadas e não desceram. Isso, por si só, não era necessariamente surpreendente. O único motivo pelo qual alguém sabia que os barcos afundaram era porque os elfos, em sinal de boa vontade, mandaram os restos das embarcações de volta.

Houve quem disse, em voz baixa e sem qualquer prova, que os elfos talvez estivessem as afundando.

— Podem ser goblins — disse Matador de Goblins com segurança, olhando para Alta Elfa Arqueira. Ela estava enfiando o pão com manteiga (não a refeição mais refinada) na boca, as orelhas compridas balançando para cima e para baixo.

— Mmm. Comer em algum lugar novo é o melhor. — Ela estufou as bochechas igual um esquilo, um gesto do qual a Sacerdotisa não pôde deixar de rir.

— Verdade. Eu mesma morei no Templo, então sei o que você quer dizer.

— Da última vez que estive aqui, caminhei ao longo das margens. Ir de barco é novidade para mim.

Ou melhor… de jangada. Ela girou o dedo indicador em um círculo no espaço.

— Certo — concordou a Sacerdotisa, colocando um pouco de pão na boca, mastigando delicadamente e engolindo. — Esta margem?

— Sim, ela mesma.

Já fazia mais de seis meses desde que as duas se banharam naquela fonte termal, olhando para as estrelas.

— Bem, há alguma história para contar? — perguntou Garota da Guilda solicitantemente, inclinando-se.

A Sacerdotisa e a Alta Elfa Arqueira se entreolharam com expressões de pensamentos exagerados.

— Uma história? Hmm.

— De que história ela poderia estar falando?

Não era exatamente um segredo para guardar para si mesmos, mas era uma memória valiosa o suficiente para agir como se fosse importante.

A Alta Elfa Arqueira balançou as orelhas alegremente. A Garota da Guilda lançou-lhe um olhar desconfiado.

— Terei que me certificar de questioná-la direito a  respeito disso em sua próxima entrevista.

— Ei, isso é abuso de autoridade, não é?

A Garota da Guilda tinha lidado com muitas pessoas como a Alta Elfa Arqueira, então a piada não perturbou sua máscara de seriedade.

— Que trágico, servir tão lealmente e ainda assim ter aventureiros guardando segredos de mim!

Tendo dois mil anos de idade (e isso é duas vezes mil), a Alta Elfa Arqueira deveria estar igualmente impassível, mas, em vez disso, rangeu os dentes de frustração.

— Aww, mas eu também quero ouvir — disse a Vaqueira, batendo palmas. — Quero ouvir todo tipo de coisa sobre a vida fora da cidade!

— Huh. Bem, nesse caso… Foi antes de eu conhecer Orcbolg…

E, assim, a interjeição da Vaqueira se tornou o pretexto para uma história de aventuras.

Com o canto do olho, Matador de Goblins podia ver as mulheres amigavelmente conversando. As orelhas de Alta Elfa Arqueira balançavam e ela gesticulava sem parar; a Vaqueira ouvia com um sorriso. A Garota da Guilda sussurrava sobre os segredos dos bastidores da Guilda e a Sacerdotisa de olhos arregalados.

O Matador de Goblins recolheu as mais ou menos dez varas mais afiadas que preparou, colocando suas ferramentas de marcenaria de volta ao cinto.

— Quando a eclusa abrir, vou assumir o seu lugar.

— Muito bem — respondeu o Lagarto Sacerdote, batendo o rabo para baixo. O empurrão resultante disso na jangada provocou gritos das mulheres.

Quando a eclusa finalmente se abriu, a jangada fluiu com a água para um vale.

— U-Uau…

Quantas luas seriam necessárias para cavar um pedaço de terra como este? O rio, em si, era como uma cicatriz deixada pelo tempo. A ravina era quase como uma placa gigante de rocha, agora em várias camadas. A montanha devia existir desde a Era dos Deuses, e o rio estaria trabalhando neste lugar por todo esse tempo.

As rochas eram tão grandes que às vezes bloqueavam o sol, projetando suas sombras diante delas; entre elas, ouvia-se o borbulhar do rio e o sopro do vento.

Isso explicava tudo. Era por isso que a aldeia dos elfos às vezes era chamada de uma terra à parte, “o país das sombras”. Não parecia fazer parte do reino mortal.

— Isso é incrível…! — exclamou Vaqueira, olhando para as pedras maciças enquanto a jangada passava por elas. Todos entendiam como ela se sentia. Havia muitas coisas no mundo que estavam além de qualquer uma de suas fantasias.

— Minha casa é logo ali — disse a Alta Elfa Arqueira, de pé na jangada, sem qualquer sensação aparente de perigo e estufando um pouco o peito. — O que acham? Mesmo os anões nunca construíram algo assim!

— Você está certa, Orelhas Compridas, não procuramos competir com o trabalho dos deuses. Nosso objetivo é o domínio do martelo e do cinzel. — Ele coçou a barba e acrescentou, adotando um sorriso malicioso: — E acho que os elfos também não construíram isso.

— Hrrrmn! — As orelhas de Alta Elfa Arqueira curvaram-se para trás e ela acertou o anão, assim como de costume.

Todos ao redor estavam acostumados com isso, e ninguém deixou que isso os distraísse da paisagem. A Sacerdotisa soltou uma variedade de ruídos inarticulados, piscando sem parar.

— Isso é incrível…

— Li sobre isso nos documentos da Guilda, mas ver em primeira mão é ainda mais incrível — disse a Garota da Guilda.

— Verdade mesmo. — A Vaqueira balançou a cabeça. — É de tirar o fôlego, hein?

— Ei…

O que você acha? Ela estava prestes a dizer isso, mas as palavras nunca saíram pelos seus lábios.

Quando se virou para perguntar, o encontrou de pé na parte de trás da jangada, olhando para muito além dos limites do vale.

— O que está achando? — perguntou o Matador de Goblins suavemente, com a mão no leme.

O Lagarto Sacerdote pensou, fazendo seu estranho gesto de juntar as mãos, seus olhos constantemente varrendo a área.

— Hmm. Acima ou abaixo, talvez.

— Concordo.

— Isto não é um oceano. Em um rio, é improvável que encontremos um kraken.

— Kraken — repetiu o Matador de Goblins. — O que é isso?

Lagarto Sacerdote rolou os olhos.

— Diria que acima.

— Entendido.

Este era um lado dele que ela nunca tinha visto. Ele parecia igual a sempre, mas de alguma forma diferente. Vaqueira colocou a mão em seus seios salientes para acalmar o coração.

— Ah…

Ela engoliu um pouco de saliva. Mas, quando estava prestes a tentar dizer algo mais, a voz clara de Alta Elfa Arqueira a interrompeu.

— Espera!

A patrulheira já tinha uma flecha em seu arco. Os aventureiros se entreolharam uma vez e entraram em ação.

A Sacerdotisa agarrou seu cajado com firmeza, enquanto o Anão Xamã começou a vasculhar sua bolsa de catalisadores. O Lagarto Sacerdote agarrou uma presa de dragão em sua mão, e o Matador de Goblins, com uma mão ainda no leme, abaixou os quadris.

— Acho que é melhor tirarmos a vela. Me dá uma mão — disse o Anão Xamã, apertando os olhos enquanto olhava para o sol.

— Ah, sim, já vou… — disse Sacerdotisa, indo até ele.

O Matador de Goblins, trabalhando diligentemente no mastro, olhou para as duas jovens.

— Abaixem-se e cubram a cabeça com panos. — Sua voz estava afiada.

— Ah, uh, c-certo, claro…! — Vaqueira rapidamente acenou com a cabeça. Ela vasculhou seus pertences, puxando um pano.

— Aqui, rápido! — A Garota da Guilda parecia igualmente nervosa com a sua própria roupa.

As duas se amontoaram sob a cobertura, tentando ocupar o mínimo de espaço possível. Cada uma delas podia sentir a outra tremendo, mas talvez fossem elas mesmas.

Mas não sabiam. Essa ignorância era a maior companheira enquanto se encolhiam de mãos firmemente dadas.

O Lagarto Sacerdote ficou acima delas para protegê-las.

— Das margens…? — perguntou ele.

— Provavelmente — respondeu Alta Elfa Arqueira. — Tem alguma coisa vindo. M-Muitas coisas! — Ela puxou a corda do arco, suas orelhas balançando para cima e para baixo sem parar, buscando captar qualquer som.

Um instante depois, ouviu-se o uivo dos lobos e uma saraivada de pedras choveu no vale.

Ó Mãe Terra, abundante em misericórdia, pelo poder da terra conceda segurança para nós que somos fracos!

Primeiro, Sacerdotisa invocou um milagre, agarrando-se ao seu cajado.

Como a Mãe Terra poderia falhar em proteger sua devotada discípula? Uma barreira invisível surgiu em torno da jangada. As pedras e gravetos que se aproximavam ricochetearam nela, bump, bump, bump, provocando respingos ao cair na água.

O suor escorria pela testa de Sacerdotisa.

— S-Se não ficar pior, talvez possamos…

Assim que deixou esse murmúrio escapar, porém, o som do assobio de uma flecha gelou o seu coração. O que quer que estivesse acontecendo nas margens, era claramente algo inteligente.

As figuras se aproximaram do cume. A Alta Elfa Arqueira se ajoelhou, com seu arco pronto e seu olhar afiado.

Uivos animalescos. Gemidos. O barulho de pés, não de cascos. Suas orelhas compridas se mexeram para cima e para baixo, captando cada som existente.

Ela já tinha visto esses inimigos antes. Conhecia o som. Já havia os confrontado no passado. Eram…

— Goblins…?!

Cavaleiros goblins.

Assim que teve um vislumbre de seus rostos cruéis, ela gemeu.

— Achei que deveríamos estar na sua terra natal! — gritou o Anão Xamã.

— Bem, s-sinto muito!

— Então eram goblins — disse Matador de Goblins calmamente, jogando um pau para o Lagarto Sacerdote. — Pegue o leme.

— Entendido! — Com sua força, Lagarto Sacerdote seria capaz de empurrar um pouco a embarcação. Não era provável que houvesse uma luta corpo-a-corpo, de qualquer forma.

O Lagarto Sacerdote afundou aquele pau no rio e a jangada avançou, embora aos poucos.

— Seus fedorentos…! — A Alta Elfa Arqueira puxou seu arco suavemente, mesmo com o tremor da embarcação, disparando uma flecha quase de imediato. Aquilo passou pela barreira divina que os protegia, perdeu velocidade e depois caiu em direção ao cume.

— GORRB?!

Quando um dos goblins foi desmontado – ou deslocado – caiu e soltou um grito abafado. O corpo quicou duas vezes enquanto caía, colidindo com a jangada e fazendo-a tremer.

— Eeek?!

— Eep…!

A Garota da Guilda e a Vaqueira lutaram para suprimir seus gritos sob a cobertura.

Não bastava que o cadáver silencioso tivesse uma flecha nele cravado; sua cabeça estava aberta e jorrava um sangue escuro. Não importa quantas histórias de aventura alguém pudesse ter lido ou escutado, ver uma morte tão brutal, ainda mais de perto, era diferente.

— Qual é o problema? — perguntou o Matador de Goblins. Ele puxou a flecha do cadáver e deu um chute implacável, jogando-o no rio. Soou um barulho alto e o cadáver sumiu de vista.

Vaqueira observou-o desaparecendo. Então, com a mão ainda firme na da Garota da Guilda, disse com uma voz ligeiramente estridente:

— E-Estamos bem…

— Bom. — Matador de Goblins deu uma breve olhada na direção delas, então jogou a flecha para Alta Elfa Arqueira. — Não sei se podemos acabar com eles. Afrouxe as pontas de suas flechas.

— Astuto como sempre — disse ela, cansada, puxando a ponta da flecha que ele atirou em sua direção. Mesmo que a cabeça não fosse de metal, se ficasse alojada ao corpo, faria com que a ferida apodrecesse e espalharia doenças pelo ninho. Era um truque clássico do Matador de Goblins, mas o tipo de coisa que Alta Elfa Arqueira não aprovava muito.

— Yah…! Hah!

Mesmo assim, a corda de seu arco disparou várias vezes, enviando uma saraivada de flechas no cume. Três tiros, dois gritos. Sem quedas. A Alta Elfa Arqueira estalou a língua. Ao seu lado, o Matador de Goblins pegou uma das lanças e prendeu um objeto de pedra na haste de madeira.

O Lagarto Sacerdote soltou um som de admiração.

— Um lançador de lança — disse ele. — Que coisa familiar essa que você tem.

— Conhece?

— Era bastante comum entre os guerreiros da minha aldeia.

O povo lagarto valorizava o combate corpo a corpo acima de tudo; achavam até as mais simples das armas de longo alcance desagradáveis. E atirar, o que quer que fosse, era algo em que os humanos se destacavam. Os estilingues dos Rheas também não eram nada a se desprezar, mas eles costumam não gostar de combates. E, sim, o Anão Xamã usava uma funda, mas sua magia e seu machado eram suas principais armas.

— Será que vai alcançar? — perguntou o Anão Xamã.

— Facilmente — respondeu o Matador de Goblins, com uma única palavra.

— Pois bem…! — O Anão Xamã tirou uma garrafa de algum tipo de líquido da sua bolsa. Ele abriu a tampa e despejou algo parecido com suco de pêssego no rio. Enquanto isso, deixou sua consciência vagar. — Venham, ondinas, o banquete está servido; venham e cantem e dancem e brinquem!

O jato d’água assumiu a forma de uma bela donzela, e eis que o rio começou a correr para o outro lado.

Não… Não todo o rio. Apenas a água onde a jangada descansava deu a volta. Este era um Espírito de Controle.

— Eu talvez não controle isso direito! — gritou o Anão Xamã, olhando para a água. — Não consigo muita velocidade com isso!

— É o bastante — disse o Matador de Goblins, e então mandou sua lança voando.

Aquilo cortou o céu com uma velocidade anormal. E foi seguida por um grito terrível – não de um goblin, mas de um dos lobos que montavam.

— Temos pouco, mas a sorte pode nos ajudar — cuspiu Matador de Goblins, preparando a próxima lança. — Não sei quantos goblins são. Não podemos matar todos eles.

— Posso dizer que temos uma opção — disse o Lagarto Sacerdote. Ele ainda estava manobrando a jangada e montando guarda sobre a Vaqueira e a Garota da Guilda. — Milorde Matador de Goblins, podemos considerar escapar do inimigo no lugar de massacrá-lo?

— Isso não me agrada. Mas… — Matador de Goblins preparou o próximo disparo em seu lançador e enviou-o voando em direção ao cume, tudo com um movimento de seu braço. Aquilo desapareceu de vista e, um momento depois, um grito soou.

—  GOORARB…?!

O goblin caiu das costas de seu lobo e caiu do penhasco. O cadáver fez um estrondo ao cair na água.

— Teremos que resolver isso depois de escapar… — Assim contavam dois. O Matador de Goblins pegou a próxima lança. — Como está a nossa defesa?

— De algum jeito… Aguentando! — respondeu Sacerdotisa, levantando seu cajado e se posicionando com toda a ousadia que tinha na jangada. Toda a defesa de seu grupo estava sobre seus ombros magros e delicados. Os deuses forneceram o milagre da barreira invisível, mas era a prece da Sacerdotisa que o manteve.

Os ataques eram implacáveis e, enquanto isso, sua respiração ficou mais pesada e suas pernas começaram a ceder. Era completamente impressionante que ela pudesse fazer três dessas súplicas enervantes aos céus em um único dia.

— Uhh…!

Mesmo assim, estava chegando perto de seus limites. A barreira enfraqueceu assim que ela soltou um suspiro. A garota respirou fundo e se forçou a respirar mais uma vez. Ela forçou os pés na jangada e as mãos no cajado.

— Vou lançar mais um…! Me consigam algum tempo!

— Por favor. — O Matador de Goblins ergueu seu escudo para bloquear uma pedra que atravessou a barreira.

Galhos, pedras, rochas, e até mesmo algumas flechas. Uma coleção heterogênea de projéteis bateu e acertou a jangada, fazendo-a guinar para um lado e para o outro.

— Hrm…! — O Lagarto Sacerdote deu um empurrão com o pau, mandando a jangada ligeiramente para trás, mas a corrente que varria a embarcação era como uma onda violenta.

— Wah?! Pfft!

— Ah, ah não…!

A água encharcou os panos em que a Vaqueira e a Garota da Guilda se escondiam, provocando ainda mais gritos. Elas corriam o risco de se afogar sob a proteção, mas se agarraram uma à outra e se seguraram.

A Garota da Guilda deu um aceno rápido para o Matador de Goblins, que olhou na direção delas, e também piscou várias vezes. De repente, havia uma considerável quantidade de detritos – galhos, seixos e outros destroços – na jangada. Os goblins jogaram isso tudo neles? Não, não podia ser.

Uma olhada na água ao redor revelava um grande número de lascas e pedaços de madeira flutuando, e até mesmo barris inteiros à deriva.

— Hrrgh… Ah!

O Lagarto Sacerdote lutou com todas as forças para controlar a direção da jangada, mas acabaram colidindo com um barril, fazendo com que a embarcação tremesse violentamente. Outra onda acertou os aventureiros, encharcando-os e inundando a embarcação.

— Ah…

Foi então que a Garota da Guilda viu algo branco e brilhante: um crânio humano passando direto por ela.

Tentou pegá-lo com a mão ainda trêmula, mas quando estendeu a mão, ele foi sugado para baixo da água e desapareceu.

Ela o viu silenciosamente desaparecendo. Logo, deu lugar a uma visão de pilhas flutuantes de lixo, presos com cordas.

— Isso p-pode ser ruim — disse ela com a voz trêmula. — Acho que pretendem afundar a jangada!

O terrível gargalhar dos goblins enchia o vale, ecoando loucamente.

— GRRROB! GOORRB!

— GROBR!! GOOORRRB!!

Não havia necessidade de enfrentarem os aventureiros pessoalmente para matá-los. Poderiam apenas virar o barco, ou enchê-lo de lixo até que afundasse.

Sim, virar a jangada seria uma solução. Os goblins podiam rir e apontar enquanto aquelas pessoas tolas se afogavam; se alguém sobrevivesse, poderiam se divertir atacando lá do alto.

Agora estava claro o que havia acontecido com os barcos que foram para este lugar e não voltaram.

— Gah! É barulhento e atrapalha…! — A Alta Elfa Arqueira, frustrada, varreu uma das pilhas de entulho com a perna, chutando um monte de água, mas não conseguindo qualquer efeito perceptível.

Os goblins tinham que simplesmente continuar jogando pedras e escombros lá de cima.

O Anão Xamã, igualmente frustrado, fez uma série de gestos misteriosos.

— Vou mandar minha ondina tirar esses troços da jangada — falou —, então dê alguns tiros com o seu arco ou coisa assim!

— “Ou coisa assim”?! O que você quer dizer com “ou coisa assim”?!

O lindo espírito dançou na jangada. Seus movimentos sensuais varreram as rochas e demais detritos, empurrando-os para o rio corrente.

Nesse ponto, estavam todos encharcados, da cabeça aos pés, mas a jangada continuava de alguma forma estável. Isso não significava, entretanto, que poderiam relaxar. Foram causados muitos danos, e os destroços foram empilhados sob a água, tornando muito mais provável que virassem.

— Então aprenderam com a eclusa… — murmurou Matador de Goblins, disparando uma terceira lança.

Ela não se preocupou em olhar o que aconteceu. Haveria um grito, ou então não.

Os goblins estavam astutamente se escondendo ao longo da borda do penhasco, seguindo sobre os lobos para manter o ataque. O rio serpenteava entre obstáculos proeminentes. Não havia teto, mas isso…

— É como se tivéssemos entrado no ninho deles — disse o Matador de Goblins calmamente. Ele usou uma de suas lanças para quebrar uma flecha alojada em seu escudo.

— Ó Mãe Terra, abundante em misericórdia…

Tudo isso acontecia bem na frente dos olhos de Sacerdotisa. Seus joelhos ainda tremiam, e não apenas por causa das difíceis preces.

Ela estava com dificuldades para respirar. Sua língua parecia tropeçar entre as palavras que mal conseguia pronunciar. Sua cabeça girou e sua visão ficou turva. Seus dedos mal podiam se mover; mas isso era tudo que podia fazer para segurar seu cajado.

Como eu vou…?

Como deveria invocar a Proteção e manter a segurança de todos? Essa era a sua única pergunta. Essa era a única coisa que poderia fazer.

O que mais poderia fazer? Como poderia vê-los seguros, longe deste lugar?

Seus dentes batiam; ela apertou a mandíbula para impedi-los. E lembrou de memória após memória. Fechou os olhos e as afastou.

— Ah…

Naquele momento, uma luz brilhou em sua mente, assim como uma premonição dos céus.

Sacerdotisa abriu os olhos. Seus lábios trêmulos formaram uma prece, como se guiados por algo que não fosse ela. Ergueu o cajado.

— Ó Mãe Terra, abundante em misericórdia, por favor, por sua mão reverenciada, purifique-nos de nossa corrupção!

Os deuses eram grandiosos.

A Mãe Terra desceu do céu, sua mão varrendo a água e tornando-a limpa.

Em todos os lugares que a luz tocava, a água passava a ficar límpida, toda a sujeira desaparecendo. Além disso, muitas coisas sujas no rio foram limpas e desapareceram.

— Uau…! — A Alta Elfa Arqueira piscou, suas orelhas se mexendo. Ela ficou impressionada ao ver os efeitos do milagre Purificação com seus próprios olhos. — Você realmente tem os seus momentos, hein?

— Eu não. A Mãe Terra… Embora ela possa ser um pouco rígida. — gemeu Sacerdotisa, o esforço de se conectar diretamente com o divino dando-lhe uma terrível dor de cabeça. — Por favor… Agora!

— GRR?!

— GOORB?!

Os goblins ficaram naturalmente agitados com essa reviravolta. A armadilha que prepararam com tanto cuidado foi desfeita por algo que sequer entendiam.

Suas vozes feias ecoaram enquanto a confusão surgia entre eles.

Estava longe de Matador de Goblins deixar uma chance dessas passar.

Um goblin se inclinou para ter uma visão melhor do rio; uma lança atravessou a sua mandíbula, indo direto para a parte de trás de sua cabeça. Ele caiu na água enquanto soltava um jato de sangue – e seu cadáver então sumiu, purificado pela Mãe Terra.

— Eventualmente, teremos que encontrar o ninho e destruir — disse o Matador de Goblins.

— Tem razão.

— Com prazer! — Mesmo enquanto empurrava a jangada ao longo da corrente da ondina, Lagarto Sacerdote deixou a boca bem aberta. Encheu seus pulmões com uma respiração profunda, a respiração do wyrm que governa todas as coisas. — Bao Long, honrado ancestral, governante do Cretáceo, tomo emprestado agora o teu terror!

O Rugido do Dragão ecoou pelo vale.

Os Goblins não eram os únicos que sentiam medo de dragões; todas as coisas viventes os temiam.

— GOORBGROB?!

— GRORB!!

A tagarelice dos goblins se misturava aos uivos assustados de seus lobos. Cavaleiros goblins continuavam sendo goblins. Sequer eram cavaleiros especialmente talentosos.

Tentaram e não conseguiram acalmar as montarias; os lobos literalmente fugiram com o rabo entre as pernas. Alguns dos goblins foram jogados no chão; outros agarraram-se desesperadamente aos animais em fuga. Bateram todos em uma lamentável retirada.

Os aventureiros continuaram vigilantemente observando o cume por alguns minutos. Contra o som do riacho corrente, usaram o pau para manter a jangada em movimento.

Por fim, passou uma hora, depois duas e, finalmente, o vento que soprava pelo vale ficou mais quente.

Estavam flutuando em direção a uma grande floresta escura, uma floresta de velhas árvores que existiam por milhares ou talvez dezenas de milhares de anos.

A Sacerdotisa agarrou o seu cajado, pedindo à Mãe Terra para aliviar a sua ansiedade.

Estavam quase fora do vale. Isso significava que logo estariam no reino dos elfos.

 


 

Tradução: Taipan

 

Revisão: Gabs

 


 

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