Durante os Meses dos Demônios, as ruas, becos e alamedas de Forte Cancioneiro eram sempre desoladas e os ratos ali se encolhiam, escondendo-se em seus respectivos territórios . Eles estavam compartilhando a comida que havia sido armazenada no outono e esperando até que uma nova presa aparecesse quando o tempo melhorasse.
É assim que deveria ter sido.
— Merda! Por que eu tenho que passar por todo esse perrengue durante a tempestade de neve só para ouvir um maldito comício? — Dente de Cobra cuspiu amargamente no chão — Eu não dou a mínima para o que os Lordes vão fazer! Sobe essa porcaria de gola pra cima! — Ele disse a Joe, um garotinho que estava tremendo ao lado dele — Você vai morrer se pegar a peste fria.
— Ele não deveria ter vindo com a gente. — Girassol disse, franzindo a testa — Por que mandaram tudo isso de gente só pra pescar umas informações? Kanas fez isso de propósito!
— Deixa disso, né? E daí? Se ele fez de propósito, o que é que a gente pode fazer? — Garra de Tigre, um menino forte, disse com desaprovação — Ele é nossa fonte de comida.
Embora parecesse despreocupado, Garra de Tigre ainda acelerava o passo para andar na frente dos outros três. Por causa disso, Dente de Cobra sentiu que o vento frio estava diminuindo consideravelmente.
— Obrigado. — Joe sussurrou.
Quando estavam diante de Kanas, todos eles ficaram relutantes em dizer qualquer coisa.
Ratos também tinham níveis sociais. Reis estavam no topo e rabo no fundo. Diferentes níveis tinham lugares diferentes à mesa. Quanto a Kanas, ele não era nem rei nem rabo. Ele era o governante do Beco Sem-fim no distrito oeste da periferia.
Se a gente fosse chamar ele de alguma coisa, deveria ser uma cintura ou uma barriga. — Dente de Cobra pensou.
Não importava o que ele fosse, Dente de Cobra e seus amigos tinham que chamá-lo respeitosamente de chefe sempre que o encontrassem. Havia seis governantes como ele no distrito oeste, mas seu chefe, o rei do distrito, ainda permanecia desconhecido para Dente de Cobra.
Kanas tinha várias equipes de ratos e eles eram uma dessas equipes. A única maneira de ganhar mais favor do governante era mostrar que eram mais fortes e competentes do que as outras equipes. Infelizmente, como garotos de rua no beco, eles obviamente estavam em desvantagem em número e força. Mas, para Dente de Cobra, Garra de Tigre era diferente.
Ele é incrível! Come meio pedaço de pão duro todos os dias e ainda assim é todo troncudo e fortão. — Dente de Cobra pensou.
A razão pela qual a menina de cabelos castanhos, Girassol, pensava que Kanas estava aprontando algo para eles foi por causa de seu acidente anterior. Eles não levaram a bruxa que apareceu no beco para Kanas porque Dente de Cobra queria usar a habilidade dela para ganhar dinheiro antes de mais nada. Não muito tempo depois de saírem, eles inesperadamente encontraram o mandachuva da Família Madressilva e perderam a bruxa antes de ganhar dinheiro suficiente.
Por causa desse incidente, Kanas ficou extremamente zangado com eles. Ele pensou que se eles tivessem dado a bruxa para ele mais cedo, ele teria ganho muito mais vendendo-a aos nobres ou à igreja.
— É fácil falar! — Dente de Cobra disse com desprezo — E ele ia fazer o quê, vender ela por vinte e cinco peças de ouro pra igreja? Ué, e ele ia encontrar os padres onde? A igreja acabou e os nobres não dariam uma peça de ouro sequer a um rato! Ele seria morto ao invés de ser pago.
— Dente de Cobra es… está certo. — Joe concordou, ainda tremendo — Se ele realmente pensasse que a gente ia conseguir vinte e cinco peças de ouro com ela, ele teria nos jogado no Rio Vermelho.
— Kanas só poderia dar a bruxa ao rei do distrito oeste. Ele também precisaria se proteger da magia dela e ele não tem nenhuma Pedra de Retaliação Divina. — Dente de Cobra continuou — Ele tem é nojo da gente.
— Pare de dizer “vender”, a Papel é uma de nós! — Girassol deu um beliscão dolorido em Dente de Cobra — Você fala sobre ela como se ela fosse uma mercadoria! — De repente, ela parou um pouco e perguntou — Ei, você vendeu ela?
— Não, claro que não! — Dente de Cobra exclamou — Eu fiz o meu melhor para salvar ela, mas adivinha só? O cara era o lorde do forte.
— Será que ela está bem em Vila Fronteiriça? — Garra de Tigre suspirou.
— Como ela pode ficar bem? — Girassol bufou — Qual é a diferença entre ser um brinquedinho pro príncipe e um brinquedinho pros nobres?
— É mesmo né… mas olha só, você diz isso agora, mas quando você ver como os nobres vivem, vai querer desesperadamente ser um brinquedinho deles também. — Dente de Cobra disse e mordeu os lábios.
Quando chegaram à praça do Forte, os 4 foram pegos de surpresa. Várias centenas de pessoas cercavam um palco de madeira e havia até uma fogueira. Era uma cena rara em um dia de neve.
— Esse povo veio realmente ver o comício? — Garra de Tigre duvidou — Que tipo de truque os nobres querem jogar?
— Não pode ser uma boa notícia. — Dente de Cobra deu de ombros — Eu suponho que seja sobre pegar mais impostos ou pegar uns caras fortes aí pra ser patrulheiro, sei lá. Afinal, eles acabaram de sair de uma batalha, certo?
— Seja como for, não é da nossa conta. — Girassol disse — Vamos terminar isso rápido e chegar em casa mais cedo. Joe, vá até a fogueira e se aquece.
— Si.. sim!
Dente de Cobra andou pela multidão até a beira do palco. O homem lá em cima usava uma jaqueta grossa de algodão, um capuz de lã e um par de luvas de couro de veado. Dente de Cobra sentiu calor simplesmente olhando para ele. Isso era muito melhor do que ele usava, roupas velhas e sujas. Ele pensou em como seria ótimo se tivesse a chance de roubá-las, mas também sabia que isso era apenas sua imaginação. O brasão da Família Alce no manto do homem indicava sua identidade.
Um rato nunca poderia se dar ao luxo de ofender alguém das Quatro Famílias.
— Podem ir com o Joe para se aquecer também, deixa que eu cuido disso aqui. — Dente de Cobra disse para as outras duas crianças.
— Mesmo? — Garra de Tigre perguntou e levantou a sobrancelha um pouco.
— Claro, minha memória é boa demais. — Dente de Cobra apontou para sua cabeça — Eu me lembro de tudo, das palavras, das pessoas, até da raiva e do ódio!
— Pffft! — Girassol zombou — Olha só… ah, deixa pra lá, se você está dizendo, então eu vou. Ah… e obrigada. Vamos, Garra de Tigre.
— Mas você terá que me dar um pouco mais de jantar hoje à noite.
— Vamos ver. Eu nem sei se teremos comida hoje à noite! — Girassol disse, jogando as mãos para cima.
Depois que eles saíram, Dente de Cobra deu um tapinha em seu rosto gelado para se concentrar de volta no palco de madeira. A informação era inútil para um rabo de rato como ele, mas isso poderia significar oportunidades lucrativas para barrigas e reis de ratos. Infelizmente, mesmo que tivessem algum lucro, os rabos no fundo ainda não teriam quase nada.
— Meus concidadãos, aqui está uma declaração conjunta do Lorde da Região Oeste, o Príncipe Roland Wimbledon, o Conde da Família Madressilva, Shalafi Hull e o Lorde de Forte Cancioneiro, Petrov Hull. — O homem tomou um gole de sua cerveja quente e continuou a ler um pedaço de pergaminho em sua mão — A Prefeitura de Forte Cancioneiro irá abrir agora o mercado de grãos para o público. Qualquer cidadão que tiver grãos sobrando em casa poderá vendê-los livremente no mercado agora. Mas prestem atenção, por favor, a partir do próximo mês, qualquer venda não autorizada de grãos será considerada um crime, e somente a Prefeitura tem o direito de comprar e vender grãos! Se alguém for preso pela venda não autorizada de grãos, será severamente punido! A Prefeitura também receberá denúncias públicas sobre esse tipo de crime, e recompensará qualquer pessoa que oferecer informações corretas, valendo vinte e cinco peças de prata!
Dente de Cobra abriu a boca surpreso, pois nunca esperou ouvir notícias tão incríveis!
Os nobres querem proibir o comércio privado de grãos!
Além disso, os preços de compra e venda de grãos oferecidos pela Prefeitura são extremamente baixos. Quem vai vender grãos para eles a esse preço baixo? O preço do grão em Forte Cancioneiro já triplicou por causa da chegada antecipada dos Meses dos Demônios deste ano e é impossível cair antes que a neve termine. Se a Prefeitura vender grãos agora, não importa quanto, a nobreza e os comerciantes vão comprar tudo.
O Príncipe e o Lorde da cidade não pensaram nisso tudo, não? — Dente de Cobra pensou — Espere… se eles realmente proibirem o comércio privado de grãos, o que acontecerá conosco? — Dente de Cobra de repente estremeceu com esse pensamento — A maioria do povo compra quase todos os grãos no inverno da gente, dos ratos. Se esse decreto aí começar a valer, e de repente os nobres e comerciantes começarem a comprar todos os grãos… vai ser um desastre pra todos nós!
Tradução: JZanin
Revisão: Kabum
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