Império Tearmoon – Vol. 01 – Cap. 20 – Desperdiçando Suor e Sangue

 

Um grande barco de luxo, capaz de transportar duas dúzias de carruagens, boiava na superfície de um lago. Anne olhou para cima, observando o enorme navio, e coçou a cabeça:

— Hm, por que eles simplesmente não construíram uma ponte até a ilha, Princesa Mia? Quero dizer, entendo a razão de usarem um barco para levar as pessoas, mas acho que eles não precisam levar as carruagens também…

— Aparentemente, eles usavam uma ponte antes, mas havia muitos conflitos com a burocracia rígida de checar documentos e confirmar acompanhantes.

Pontes, não importa o quão grande ou abundantes fossem, sempre atrasariam o trânsito. Elas eram o motivo dos engarrafamentos. Além do mais, todos os estudantes da academia chegavam de carruagem no mesmo dia, então era inevitável que ocorresse congestionamento. Além disso, os que andavam nessas carroças eram todos filhos e filhas de aristocratas e desconheciam o conceito de “esperar”. Uma intriga entre essas pessoas poderia acarretar em algum pobre supervisor perdendo a cabeça. Ao mesmo tempo, aumentar a largura e a quantidade de pontes até que os congestionamentos desaparecessem era completamente inviável, considerando o quão pouco elas eram usadas.

— Escutei que mesmo depois de começarem a usar barcos para transportar os alunos, ainda assim, houve uma ocasião em que uma discussão aconteceu sobre o lugar onde estavam suas respectivas cabines.

As crianças da nobreza e realeza eram, no geral, muito orgulhosas. Jamais deixariam alguém de menor escalão ocupar uma cabine superior à deles, e muito menos uma maior. O vasto número de condições que tinham de ser consideradas ao atribuir as cabines fazia todo o processo ficar muito desgastante para quem fosse fazê-lo.

— É muito estúpido brigar por uma coisa dessas… Hmph.

Mia acabou sua declaração nitidamente zombando e dando de ombros para enfatizar que ela nunca sequer pensaria em fazer algo do tipo. O fato de que ela fez questão de imaginar uma linha do tempo na qual alguém idêntico a ela, e que soava exatamente como ela, fazendo um escândalo sobre quem teria a carruagem carregada antes, era, nesse caso, totalmente sem sentido. Além disso, sua bochecha definitivamente não estava tremendo de raiva.

Anne, obviamente, era alheia a esses detalhes. Sua mente estava cheia de pensamentos como: Wow, a Princesa Mia é tão incrível, ela é um ótimo exemplo a seguir, os quais apenas serviram para fortalecer sua lealdade à sua princesa.

Eventualmente, elas chegaram ao porto. Ao desembarcarem, se despediram do motorista da carruagem e da corte de guardas que as acompanharam durante a jornada.

— Caros cavaleiros, sua assídua escolta foi muito apreciada. Vocês devem agora retornar. Rezo para que tenham uma viagem segura até casa.

O capitão dos guardas imperiais curvou sua cabeça.

— Sim, Vossa Alteza. Nós e todo o império, desejamos a você o melhor. Que Deus esteja ao seu lado em sua nova vida na academia.

Mia agradeceu-lhe mais uma vez enquanto lembranças passadas voltavam à memória. Durante a revolução, com a maior parte do exército imperial fugindo ou recuando, um único grupo de guerreiros se manteve firme em seu dever. Os guardas imperiais — aqueles que ela olhava agora mesmo — lutaram até o fim para protegê-la. No fim, todos escolheram pela lealdade ao invés da própria vida.

Em outras palavras, eram exatamente o tipo de amigos úteis que ela precisava se dar bem. Por causa disso, fez questão de tratá-los com máximo respeito.

— Sua alteza…

— Por acaso ela…

A expressão de alguns guardas mudou um pouco. Alguns tinham lábios trêmulos. Se ouviu o som de uma fungada. Não era culpa deles, de verdade. Todos ficaram um pouco emotivos na primeira vez. Afinal de contas, todos os cavaleiros presentes nunca haviam escutado palavras de apreço vindas de sua princesa.

Com a tarefa de proteger a família real, esses eram guerreiros de excelência. As vezes tinham que descobrir ameaças — tentativas de assassinato, por exemplo — antes mesmo de acontecerem. Contudo, não importava o quão fiéis fossem em seus trabalhos, no fim das contas, ainda era um trabalho. Mesmo que estivessem dispostos a arriscar a vida em razão do dever, suas mortes e feridas não tinham importância para aqueles a quem eles protegiam. Era o propósito deles. Estavam apenas fazendo o seu trabalho. Não tinha nada de errado com isso. Era assim que as coisas funcionavam.

E mesmo assim, essa jovem princesa diante deles demonstrou preocupação pelo seu bem-estar. Ela disse que rezaria para que tivessem uma viagem de volta segura. Não era muito, mas comoveu cada um deles. Ao partirem para a capital, as palavras de Mia ressoavam em seus corações, fortalecendo sua lealdade à pequena mestra.

— Então, agora… Devemos partir também — disse Mia, virando seu olhar para o palco que iria decidir o seu destino, a Academia Saint-Noel.

A ilha no lago onde a Academia Saint-Noel se situa tem todas as instalações necessárias para funcionar como uma cidade independente. Era, na prática, uma cidade universitária. Inúmeras lojas estavam alinhadas nas ruas, oferecendo um pouco de tudo, desde lojas de vestimentas até forjas, joalherias e papelarias. Também não faltavam restaurantes. Além disso, para garantir a satisfação da população de alta-classe da ilha, todos eram da maior qualidade. Isso significava que, para Anne, todos os estabelecimentos exalavam uma aura que era o oposto de receptiva.

— Uauuu… — Ela disse em um tom que era uma mistura de surpresa, admiração e aversão. — Aqui tem muitas lojas que são assustadoras demais para entrar…

Mia deu uma risadinha da reação de Anne.

— Eu concordo, mas só é assim na rua principal. Existem diversas outras lojas que têm os preços mais em conta. A academia também tem sua própria loja, que vende a maioria dos itens do cotidiano por preços bem acessíveis. 

Ufa, que alívio. Posso ir lá para comprar as coisas que preciso para mim mesma.

— Sendo assim, começando amanhã, gostaria de conduzir uma pesquisa minuciosa de cada uma das lojas dessa área.

— …Hã?

— Em particular, gostaria que você fizesse uma lista de todas as lojas que possuem itens de qualidade com preços acessíveis — disse Mia, agindo como se fosse o pedido mais normal do mundo.

— M-Mas, Princesa Mia, e a sua mesada? Você disse que vão te mandar mais do que o necessário para cobrir tudo que possa precisar…

— Mandarão. E você está certa. Algumas despesas são de fato necessárias para manter a imagem do Império. Entretanto… — Mia olhou para todas as lojas ao redor dela e franziu a testa. — Existe um tempo e um local adequado para gastar, e não é aqui. Minha mesada vem de impostos, e prefiro não desperdiçar com algo que vem do sangue e suor…

— Princesa Mia…

A voz de Anne tremeu de emoção enquanto ela olhava para Mia sussurrando baixinho para si mesma.

— Suor e sangue não devem ir pro lixo. Eles absolutamente não devem…

Para Mia, não era uma metáfora; como usava o dinheiro dos impostos, tinha um efeito direto no sangue e suor dela, mais especificamente, na quantidade que derramaria. Cada moeda perdida era mais um passo em direção à guilhotina, e ela não tinha intenção nenhuma de ver aquela maldita coisa mais uma vez.

— Vou pedir para que mandem metade da minha mesada para o Ludwig. Tenho certeza que ele fará bom uso.

De repente, Mia congelou.

— Princesa Mia?

— Meu De… Isso é… — murmurou com seus olhos fixados em uma figura distante.