Com o restante da consciência que ainda lhe sobrava, Mia permaneceu deitada, ela estava jogada na cama.
— Me sinto… muito mal.
Ela não tinha apetite e o seu almoço estava intacto. Sua mente só pensava naquele pesadelo. Ela queria acreditar que era apenas um pesadelo. Porém, a intensidade das memórias e a existência de um diário ensanguentado lhe sugeria outra coisa.
— Ugh…
Ela gemeu, rolando para o outro lado da cama. Depois gruniu e se contorceu novamente. Fez isso por um bom tempo, continuou pensando e pensando. Ela pensou e muito.
— Estou… com muita fome.
O seu estômago roncou. Já havia passado uma hora desde que ela recusou o almoço.
— Ah-hah — disse com uma batida delicada. — Me lembro de ter ouvido que doces são bons para refletir sobre as coisas..
Tendo o que classificou como uma ótima ideia, seu rosto se iluminou enquanto pulava da cama, correndo em direção a porta..
A família do imperador, incluindo Mia, vivia em um castelo conhecido como Palácio da Lua Branca. Seus corredores são adornados com pedras da lua verdes, douradas e brancas, com ornamentos luxuosos nas paredes. Ela caminhou por eles, apreciando a vista. Era um Império no auge do seu luxo, entretanto, ela sabia que estava à beira do seu declínio.
Em dado momento foi para uma das quatro salas de jantar do castelo, a sala de Jantar Noite Branca. Na grande sala de jantar havia um homem que a olhou de maneira perplexa.
— Princesa Mia! O que posso fazer para servi-la?
Ele era um urso em pessoa, com uma espessa e fofa barba. Os olhos de Mia ficaram surpresos quando ela o reconheceu.
Se me lembro bem … Esse é exatamente o chef que demiti.
No dia do seu aniversário de quatorze anos, ela demitiu o chef que continuava lhe trazendo vegetais para comer.
— Isso vai acontecer daqui dois anos…
— Errrr, o que disse?
— Ah, não é nada demais. Estou com fome, então queria algum lanche já preparado. Uma torta de moonberry seria maravilhosa.
— Aceito as suas desculpas, não posso trazer um lanche desses para Vossa Alteza logo após o almoço.
Havia um tom nostálgico em suas palavras que fez Mia sorrir apesar da recusa. Ocorreu a ela que ele era o único que recusava seus desejos assim. O chef que o substituiu simplesmente cozinhava tudo o que Mia pedia. E, no final, isso ficou chato. Sempre conseguir o que queria se tornava tedioso depois de um tempo.
— Bem, as sobras do almoço vão servir então. Poderia trazê-las?
— Ahn?
Por alguma razão o chef ficou em choque.
— Sim?
— Uh. Nada. Perdoe-me, vou trazê-las agora mesmo.
Depois de um tempo, uma variedade de comidas foi trazida para Mia. Tinha um pedaço de pão de aroma doce e suave; uma sopa feita com vegetais da estação; um grande pedaço de salmão vermelho marinado; e uma cesta de frutas.
— Ah, que nostalgia incrível — disse ela enquanto olhava a mesa de comida.
A sopa de vegetais, em particular, prendeu a sua atenção. Ela soltou um sorriso irônico pelos seus lábios enquanto afundava sua colher. Lá estavam eles, misturados com todos os ingredientes. Os tomates lua amarela que odiava.
Eu não suporto o gosto amargo deles.
Ela levantou sua colher com um pedaço de tomate lua amarela nela.
Devo dizer que isso parece, meio que… apetitoso.
Nisso, uma memória apareceu, trazendo de volta lembranças dela sendo forçada a comer na masmorra. Teve recordações do pão velho, mofado e tão duro que machucava seus dentes. Tinha um gosto de areia na boca. Vez e outra sua garganta fechava, recusando-se a engolir outra mordida. Às vezes, lhe traziam sopa. Ela era sempre escura e cinza, mas isso lhe deixava intrigada. As únicas coisas que superavam os vegetais eram as ervas daninhas, que eram realmente intragáveis. Ela não ligava para o gosto, na verdade isso pouco importava, só não queria que seu estômago doesse por vários dias. Quando ouviu sobre uma fome contínua e de como isso afetava a população, acreditou que o tratamento que recebia não era por necessidade, mas sim por desprezo. Ela até tinha provas; pois depois de ouvirem que ela odiava tomates lua amarela, não foi alimentada com outra coisa além deles.
Aquilo foi terrivelmente desagradável…
Conseguia se lembrar do cheiro cru quando levaram ao seu nariz. E da forma que foi forçada a abrir a boca e empurraram a sua garganta, lhe fazendo ter ânsia de vômito devido ao gosto amargo. Ela tremeu. As memórias lhe davam medo.
Puxando-se para fora dos seus pensamentos, voltou sua atenção para o tomate lua amarela em sua colher.
Comparado aos de antes, esse brilha…
Pensou em deixá-lo ali, mas curiosamente ela o comeu. Imediatamente, seus olhos se abriram.
— O chef! Tragam-no até mim!!
A empregada pulou de susto e perguntou com uma voz trêmula.
— V-Vossa Alteza? Algo está errado?
— Apenas traga o chef aqui!
O chef de cozinha, ao saber da situação, rapidamente apareceu.
— Tem algo que… A Vossa Alteza não gostou? — Disse ele com um sorriso de nervoso e as bochechas trêmulas
— O que… é isso?
Mia segurou a sua colher na altura do nariz do chef. Nela, estava um pedaço de tomate lua amarela.
— Bem, esta é… uma sopa… feita com vegetais da estação…
O jeito em que os seus olhos estavam transpareciam uma certa ignorância mas não era essa sua pergunta.
— Deixe-me refazer minha pergunta. O que — disse ela, colocando a colher no rosto do chef — é esse vegetal?
O chef era um pouco mais alto que Mia, então ela teve de ficar na ponta dos pés e esticou seu braço para lhe mostrar a colher. Eventualmente, a percepção de que Mia não iria recuar estava clara.
— Eu acho que isso… é tomate lua amarela Vossa Alteza.
As empregadas que estavam por perto lançaram olhares preocupados em direção ao chef.
— Impossível! Isso… Isso é um tomate lua amarela?
Ela começou a desacreditar do objeto em sua colher. Sua mão começou a tremer e lentamente ela o levou à boca. Havia uma doçura suave escondida junta a uma sensação picante, mas era refrescante. Cozido com a suavidade correta, derreteu em sua língua e deixou para trás um único sabor que demorou a sair de sua boca.
Alguma coisa havia mexido com ela.
Ela colocou outra colher de sopa na boca, depois outra, seus movimentos eram lentos, parecendo que estava em transe. Memórias encheram a sua mente. Se lembrava do gosto cru, mas nada disso estava ali. Cada gole era uma mistura do passado e do presente – de lembranças e da realidade. Ela pegou o pão e deu uma pequena mordida. Um aroma suave, doce e refrescante, encheu seu nariz. Por um momento, o mundo parou em um grande silêncio. Depois, um suspiro escapou de sua boca e o silêncio foi quebrado.
— Esse pão… Sempre foi macio desse jeito?
Algo atingiu a mesa com um respingo gentil. Ela piscou e olhou para baixo. A mesa estava molhada. Depois disso, viu lágrimas escorrendo por suas bochechas.
— V-Vossa Alteza! O que aconteceu? É algum problema com a minha comida? — Perguntou o chef, o pânico estava eminente em sua voz.
Mia se virou para responder, mas suas bochechas cheias de comida, produziram barulhos estranhos ao invés de palavras. Além disso, ela se engasgou com um pedaço de comida, seu rosto ficou vermelho enquanto sacudia os braços.
— Está muito bom, chef. Você é incrivelmente habilidoso.
Ela sorriu para o chef, o qual continuava nervoso.
— Estou muito honrado, Vossa Alteza. No entanto, a sopa de hoje foi feita com a intenção de realçar o sabor natural dos ingredientes, não posso garantir todos os créditos a mim sobre a sopa.
— Oh? É só isso? Bem… tome por exemplo, os tomates lua amarela. Eles não têm um sabor mais picante? Pelo que me lembro, esse sabor é desagradável — Disse ela, lembrando-se de quando era forçada a comê-los na masmorra. Eram duros, amargos, e de vez em quando podres. Aquilo era definitivamente terrível.
— Ah, bem… — O chef sorriu enquanto esfregava o queixo. — Se cozidos de maneira errada, os tomates lua amarela ficam com o gosto que a Vossa Alteza disse. No entanto, esses foram cozidos por três dias seguidos. Desde que a quantidade correta de calor seja usada, eles podem ser preparados por qualquer pessoa.
— Interessante. Se eles são tão difíceis de preparar, nós não podemos simplesmente evitar comermos eles…?
— Definitivamente não. Eles são importantes para a saúde de Vossa Alteza. Nós servos, nos preocupamos com a saúde da família real.
O chef pressionou sua mão contra o peito e deu uma reverência profunda. Mia sempre achou essas demonstrações de respeito como algo natural, mas não era bem assim. Não depois da revolução que derrubou o império e trouxe a sua ruína pessoal, ao menos nenhum mostrou respeito a ela. Ela sabia disso e permitiu que seus lábios se curvassem em um sorriso suave.
— Você não sabe o quão agradecida estou por seus esforços.
—… Ahn?
Escutar a honesta gratidão de Mia deixou o chef em estado de choque. Com a sua boca aberta, ele deu vários passos para trás, ainda sentindo o impacto do que tinha acabado de ouvir. Nunca imaginou ouvir essas palavras de uma princesa tão teimosa.
…Nesse ponto, não seria tão difícil deduzir como Mia se comportava.
O chef olhou para Mia de uma maneira que era reservada para pessoas que faziam façanhas com magia, por exemplo, voar dez metros no ar. Depois de várias piscadas de descrença, ele conseguiu a resposta que procurava..
— E-eu… Eu estou honrado, Vossa Alteza.
Isso não foi o suficiente, mas já era algo. Ele esfregou o queixo e completou.
— C-Claro isso pode ser um problema de custos… Esses alimentos preparados hoje eram da mais alta qualidade. O que custaria cerca de um mês de trabalho para as pessoas comuns…
— Meu Deus, é verdade isso?
Falar de custos e gastos nunca teve sentido para Mia. Ela sempre foi mimada desde pequena, vivendo uma vida de luxo onde bastava um simples olhar, e todos os seus desejos seriam realizados. Nunca se importou com o quanto suas refeições ou estilo de vida custavam, nem mesmo quanto um cidadão comum ganhava por mês. Como de costume, seria natural para ela ignorar os comentários do chef. Mas ela não fez isso.
Você sabe o quanto custa para alimentar a realeza?
Pe-Pelas luas?! O que foi…
Uma voz familiar soou. Era alguém das suas memórias.