Dor, Dor, vá Embora

Dor, Dor, Vá Embora – Cap. 08 – A Vingança Dela

Para ir direto ao ponto, passamos a tirar a vida de dezessete pessoas ao todo, incluídas as três primeiras.

A quarta vítima foi o ex-professor da turma da garota. Depois de matar o homem que, agora na casa dos sessenta anos, estava lutando contra um câncer de estômago, ela declarou:

— Vamos levar isso o mais longe possível.

E então a garota acrescentou mais treze pessoas das quais tinha profundo rancor e que não faziam parte do plano original.

Quanto aos relacionamentos, eram assim: Sete deles eram conhecidos do ginásio, quatro eram conhecidos do ensino médio, dois eram professores e havia quatro “outros”.

As estatísticas de gênero: Onze mulheres e seis homens. Como foram mortos: Oito morreram na mesma hora, quatro fugiram, dois tentaram conversar, três resistiram. Foram esses os resultados finais.

Nem tudo saiu exatamente como planejado. Na verdade, falhamos muitas e muitas vezes. Ao chegar ao décimo sétimo assassinato, nossos alvos fugiram cinco vezes, a polícia nos prendeu quatro vezes e sofremos ferimentos graves duas vezes.

No entanto, a garota “anulou” tudo isso. Não, nós não jogamos limpo. Abandonamos toda a responsabilidade e fizemos tudo do nosso jeito.

Pode até parecer que só estou falando de números. Mas se alguém falasse comigo logo depois que terminei de ajudar com o décimo sétimo assassinato, é assim que eu descreveria. Por volta do quarto ou quinto, cada uma das vítimas já não passava mais de um número.

Isso não quer dizer que nenhuma delas deixou qualquer impressão em mim. Ainda assim, não era quem estava sendo morto que era importante, mas sim cada ação da garota ao realizar isso.

Quanto mais enraizada sua raiva, quanto mais sangue derramado, maior sua relutância, e mais radiante era sua vingança. Essa beleza não me cansava, não importa quantas vezes eu visse.

Após a morte da décima vítima, o prazo de dez dias desde o adiamento do acidente já havia vencido.

E no décimo quinto dia, quando todas as dezessete estavam mortas, o efeito pareceu de alguma forma persistir.

Até a garota achou estranho. Considerei que, enquanto continuava sua vingança, surgiu um forte desejo de não morrer, e isso prolongou o adiamento.

Depois de completar o décimo sétimo assassinato em meio a um matagal de bordos vermelhos, a garota pegou minhas mãos e dançamos nas folhas que caíam, como bonecos em um relógio mecânico.

Quando vi seu sorriso inocente, senti que finalmente entendi a grandeza de ter realizado algo.

E quando o adiamento chegasse ao fim, aquele sorriso se perderia para sempre.

Achei isso tão horrível, tão horrível quanto perder as cores do mundo.

Fiz algo em que não havia como voltar atrás.

A essa altura, podia finalmente sentir uma enorme dor no peito.

Assim que a garota terminou de expressar sua alegria infinita, voltou aos seus sentidos e soltou minhas mãos, sem jeito.

— Você é a única pessoa com quem eu posso dividir minha felicidade, sabe… — murmurou ela.

— Me sinto sortudo por isso — respondi. — Isso totaliza dezessete, não é?

— Sim. Agora só falta você.

Empilhamos folhas secas sobre o décimo sétimo cadáver. A mulher alta e de nariz grande que minutos antes estava respirando foi uma das que se juntou à irmã da garota para abusar dela.

Nós a seguimos no caminho do trabalho para casa e a surpreendemos quando estava sozinha. A mulher parecia não se lembrar da garota que uma vez atormentou, mas no momento em que a garota puxou a tesoura, ela sentiu o perigo e fugiu.

A princípio, isso me levou a pensar que poderia ser um alvo difícil de lidar, mas quando ela escolheu escapar para o meio de um matagal se provou bem idiota. Poderíamos facilmente nos concentrar em seu assassinato sem nos preocupar em sermos vistos.

Uma coisa que me desapontou foi como a garota, rapidamente se tornando uma praticante de assassinato, acabou não se banhando em sangue ou encontrou resistência significativa.

Embora seus movimentos rápidos e sua precisão com a tesoura fossem lindos, era um pouco triste não vê-la mais suada e ensanguentada.

— Assim que estiver sem alvos para me vingar, duvido que terei uma vontade muito forte para manter meu adiamento em andamento — comentou ela. — Em essência, sua morte representará a minha.

— Quando você vai fazer isso?

— É melhor eu não demorar muito…Vou me vingar de você amanhã. Isso vai acabar com tudo.

— Entendo.

Apertei meus olhos quando vi a luz do sol ao oeste passando pelas árvores. Todo o matagal adotou um tom avermelhado, parecia até o fim do mundo.

E, de fato, para a garota, o fim do mundo estava se aproximando.

Foi nosso último jantar juntos. Sugeri fazer uma refeição em um restaurante chique, adequado para um dia de comemoração, mas ela prontamente recusou.

— Odeio lugares formais e não sei nada sobre boas maneiras — explicou ela. — Não quero ficar tão nervosa na nossa última refeição a ponto de não conseguir sentir o gosto da comida.

Ela não poderia estar mais certa. Então, no final, pedimos bife em nosso restaurante familiar habitual, e torradas com um vinho parecido com refrigerante. Talvez por causa de sua expressão madura, desde que ela usasse as roupas certas, era possível vê-la como uma estudante universitária, então o garçom não disse nada sobre estar na idade para beber.

Enquanto pegava um montblanc para a sobremesa, a garota me informou:

— Nunca comi um montblanc antes.

— O que achou?

Ela fez uma careta.

— Não queria descobrir que existe algo tão delicioso assim tão tarde.

— Sei como você se sente. Eu gostaria de não ter aprendido tão tarde como é divertido comer com uma garota que eu gosto.

Ela gentilmente chutou minha canela em resposta. Mas eu sabia, por causa dos meus quinze dias de experiência, que a garota não estava com raiva, ela só procurava manter algum contato quando estava bêbada.

— Bem, para sua sorte, você será capaz de esquecer assim que meu adiamento terminar.

— Eu não disse que queria esquecer. Só queria ter descoberto antes.

— E é isso que você ganha por dirigir bêbado. Seu idiota.

— Você está certa — concordei.

Parecendo descontente, a garota colocou os cotovelos sobre a mesa e girou sua taça de vinho inutilmente.

— A diversão de comprar roupas, a diversão de cortar o cabelo, a diversão de ir a um centro de diversões, a diversão de beber e a diversão de tocar piano o dia todo… nunca quis descobrir nada disso.

— Certo, continue ficando mais zangada comigo. É graças a esse rancor que você vai me matar amanhã.

— Não se preocupe… Vou realizar a minha vingança. — Ela tomou um gole de vinho e engoliu lentamente. — Pode falar mole o tanto que quiser, mas foi você quem acabou com a minha vida. Nenhuma das coisas que fez por mim vai encobrir isso.

— Por mim tudo bem.

O momento para se preocupar já havia passado há dias. Agora eu estava ansioso pelo momento em que ela me apunhalaria com sua tesoura.

Era triste imaginar ser esfaqueado pela pessoa que eu amava, mas não era tão ruim considerando que, independentemente do motivo, eu seria, ao menos por um momento, a única coisa em sua mente.

O motivo pelo qual estava contente por ser morto não era porque via isso como uma expiação por a assassinar, nem porque queria assumir a responsabilidade por minha assistência em muitos assassinatos.

Eu só queria que ela se vingasse com sucesso de tantas pessoas quanto pudesse, e me ofereci para ser o último.

E, estritamente falando, eu não morreria. Só ficaria morto pelo tempo que o efeito do adiamento durasse.

Na linha do tempo principal – essa também não é uma descrição muito precisa, mas já que era tão usada em filmes e livros, resolvi adotá-la – a garota já estava morta, então nenhum “gato” ou “garras” existiriam para me matar.

Contanto que aquele outro eu não cometesse suicídio, eu continuaria vivendo.

No entanto, quem continuaria vivendo seria aquele que nunca conheceria a garota enquanto ela esteve viva.

Essa era a minha punição por uma morte acidental e ajudar em dezessete mortes intencionais, supus insolentemente.

— Eu só tenho uma pergunta…

— Sim? — respondeu ela, inclinando um pouco a cabeça.

— Se nosso encontro não tivesse sido do jeito que foi, o que você acha que teria acontecido?

— Vai saber… Pensar nisso é inútil.

Mas não pude deixar de imaginar. E se eu não a tivesse atropelado?

Fiquei pensando naquela noite. Depois de comprar cerveja no supermercado, beber e começar a dirigir, um deslize no volante me jogaria em uma vala e eu não conseguiria tirar o carro de lá.

Também não estaria com meu celular, então só teria que esperar na chuva até que um pedestre amigável aparecesse.

Então a garota apareceria. Por que uma estudante do ensino médio estaria andando naquele horário, naquele lugar, sem guarda-chuva e sozinha?

Embora achasse estranho, eu perguntaria:

— Ei, posso pegar seu celular emprestado? Como você pode ver, meu carro está preso.

Ela balançaria a cabeça e diria:

— Não tenho celular.

— Ah, que pena… Mas e aí, você não está com frio?

— Estou.

— Quer se aquecer dentro do carro?

— Não. Isso é muito suspeito.

— Pessoalmente, acho que você que é mais suspeita. Andando por aí em uma estrada vazia na calada da noite e sem guarda-chuva. Não se preocupe, não farei nada estranho. Pessoas suspeitas como nós deveriam se dar bem, certo?

A garota hesitaria, então, sem palavras, se sentaria no banco do passageiro, e nós dois dormiríamos.

Acordaríamos com o sol da manhã. Um caminhão estaria buzinando. Ele rebocaria o carro para fora da vala. Agradeceríamos ao motorista do caminhão.

— Acho que agora devia te levar para sua casa. Ou será que seria melhor ir para sua escola?

— Não posso fazer isso agora. E a culpa é sua.

— Entendo. Acho que fiz uma coisa ruim.

— Já que agora desisti de ir para a escola, por favor, dirija sem destino.

— Quer ir para algum lugar específico?

— Por favor, dirija aleatoriamente.

Depois de passear alegremente pelas estradas rurais durante o dia todo, eu iria me separar da garota.

E então riria, pensando que o dia foi estranho.

Alguns dias depois, nos encontraríamos novamente. Eu pararia o carro, ela entraria sem dizer nada e não iria para a escola.

— Bem, como devemos desperdiçar o dia?

— Por favor, dirija aleatoriamente, senhor sequestrador.

— Sequestrador?

— Estranho, então.

— Nah, acho que sequestrador é melhor.

— Não é?

Então, iríamos nos encontrar quase que semanalmente. Tendo encontrado um meio maravilhoso de recreação, ajudaríamos um ao outro a se reabilitar de nossos males.

Anos se passariam, e a garota iria passar do ensino médio para a graduação, e eu seria reintegrado à sociedade e encontraria um emprego de meio período.

Mesmo assim, iríamos dirigir todas as sextas-feiras à noite.

— Você está atrasado, senhor sequestrador.

— Sinto muito por isso. Vamos.

Que relacionamento ideal e absurdo. Mas mesmo se tivéssemos nos conhecido dessa forma, embora eu pudesse possivelmente ter me aproximado dela, decerto não me apaixonaria.

Acompanhando sua vingança, senti que a compreendi profundamente. Mas isso podia ser uma impressão tendenciosa.

Naquela noite, acordei com uma pressão na parte inferior do estômago. Alguém estava sentado em cima de mim. Meus cinco sentidos, sonolentos e entorpecidos, voltaram um de cada vez.

Primeiro foi a audição. Conseguia ouvir a chuva caindo no telhado. Em seguida foi o tato. Senti uma rigidez nas costas e na nuca; descobri que escorreguei do sofá e estava dormindo no chão.

E havia algo afiado contra o meu pescoço. Nem precisei pensar para perceber que era a tesoura de costura da garota.

Quando ela disse “amanhã”, aparentemente quis falar do momento em que a data mudasse.

Meus olhos se acostumaram com a escuridão. A garota não estava usando pijama, mas sim seu uniforme de sempre. Assim que percebi isso, senti a realidade de que, sim, esse era o fim.

Senti que tudo estava voltando ao normal.

— Você está acordado? — perguntou ela debilmente.

— Sim — respondi.

Não fechei meus olhos. Queria ver como ela encerraria sua vingança.

Eu não conseguia distinguir a expressão que ela tinha, já que estava escuro. Mas sua respiração e seu tom me disseram que provavelmente não estava tremendo de prazer, e que seu rosto também não estava distorcido pela raiva.

— Vou fazer algumas perguntas — disse ela. — Como última confirmação.

Um vento repentino soprou, bagunçando todo o apartamento.

Ela fez sua primeira pergunta:

— Você me ajudou durante esses quinze dias para expiar suas ações. Certo?

— Mais ou menos — respondi. — Embora, ao fazer isso, eu apenas tenha aumentado os meus crimes.

— Você alegou que se apaixonou por mim enquanto eu me vingava. Isso é verdade?

— É. Duvido que possa fazer você acreditar, mas…

— Não quero nada além de “sim” ou “não” — interrompeu ela. — Você quer que eu te mate porque, de acordo com seu objetivo de expiação, quer que eu me vingue de tantas pessoas quanto puder. Correto?

— Correto. — Estritamente falando, eu não queria morrer, mas se essas fossem minhas únicas opções, então estava mais perto de um sim.

— Entendo. — Ela pareceu aceitar minhas respostas.

Erroneamente acreditei que essas perguntas que a garota estava me fazendo eram para se assegurar de que eu realmente buscava a conclusão a que estávamos prestes a chegar, justificando meu assassinato.

Pensei que quanto mais eu dissesse “sim”, mais isso iria empurrá-la para continuar com sua vingança.

O questionamento chegou ao fim. Meu coração disparou; estava acontecendo.

Minha mente estava clara e a sensibilidade de meus sentidos aumentou rapidamente. Senti até o ligeiro tremor provocado pelas emoções da garota chegando à ponta da tesoura. Lenta, mas seguramente, sua hesitação foi embora.

Eu poderia dizer que sua convicção estava aumentando. A ponta da tesoura avançou, embora apenas alguns milímetros. O estímulo aos meus receptores de dor levou minha atenção ao máximo.

O medo da morte e a antecipação da beleza disso fundiram-se como uma droga entorpecendo meu cérebro, causando uma inundação, envolvendo-me em um êxtase desconhecido que me fez querer gritar.

Meu corpo estremeceu profundamente. Isso mesmo, fure direito, torci. Ponha fim a tudo isso com essa tesoura. Dê o golpe final neste cadáver ambulante que mereceu a morte por vinte e dois anos.

Era uma pena que não pude ver sua expressão no escuro. Ela ficaria feliz quando o sangue do meu pescoço espirrasse em seu rosto? Ou com raiva? Ou triste? Ou vazia? Ou talvez ela não sentisse…

— Com certeza posso entender seu pensamento — disse ela. — E é por isso que não vou te matar. Me recuso a fazer isso. — A garota afastou a tesoura do meu pescoço.

Não consegui entender o que estava acontecendo.

— Ei, o que é isso? Você vai mesmo perder a coragem agora? — perguntei provocativamente. Mas a garota não deu atenção a isso e jogou a tesoura na cama.

— Matar alguém que está desesperadamente desejando pela morte não é nada vingativo, não é? — disse ela, ainda sentada sobre mim. — Não vou conceder o seu maior desejo… Essa é a minha vingança.

Então, percebi o que ela queria dizer com “última confirmação”. Não estava tentando determinar se seu assassinato seria justificado, mas como seria sem sentido me matar.

— Então, se isso cumpre a sua vingança… — murmurei —, por que o seu adiamento não terminou?

— Simplesmente ainda não acabou. Não precisa se preocupar; eu vou morrer. Não deve demorar muito para que os restos da minha vontade se esvaiam.

A garota levantou-se tristemente, ajeitou as mangas do casaco e os vincos da saia e se afastou de mim em direção à porta da frente.

Eu queria me levantar e correr atrás dela, mas minhas pernas não se moviam. Só poderia ficar deitado no chão e vê-la partir.

Quando ela chegou à porta, lembrou de algo e parou. Então se virou e voltou.

— Há uma coisa pela qual preciso te agradecer — sussurrou. — Apesar de todas as feridas no meu corpo, você me chamou de “linda”. Não sei se você estava sério, mas… ainda assim, fiquei feliz.

Ela ficou de joelhos ao meu lado e cobriu meus olhos com a mão. Com a outra mão, segurou meu queixo.

Seu cabelo macio roçou meu pescoço. Como se estivesse me fazendo respiração boca a boca, e seus lábios suavemente tocaram os meus.

Não sei quanto tempo o momento durou.

Nossos lábios se separaram, e ela afastou a mão que estava me vendando e saiu.

Em vez de se despedir, falou:

— Sinto muito.

Pela primeira vez em dez dias, deitei-me em uma cama vazia e fechei os olhos.

Me sentindo perdido, peguei a tesoura que a garota jogou de lado. Coloquei a ponta abaixo do meu queixo e respirei continuamente.

Não precisei procurar nenhum método adequado. Eu sabia o que apunhalar e como, sabia quanto tempo levaria para morrer – depois que ela me mostrou isso tantas vezes, eu sabia.

Senti a lâmina em meu pescoço. Minha mente foi acalmada por aquele ritmo contínuo. De repente, me lembrei de ter ouvido que, quando as pessoas morriam, escutavam tudo até o momento final. Os outros sentidos morreriam, mas a audição duraria até pouco antes da morte.

Se apunhalasse minha própria artéria, meus sentidos desapareceriam e eu morreria ouvindo nada além do som de gotas de chuva.

Temporariamente abaixei a tesoura e peguei o reprodutor de música. Queria pelo menos decidir o som que acompanharia o fim da minha vida.

Colocar uma música barulhenta e inadequada parecia mais propícia para a minha morte do que uma música triste que lamentasse isso.

Coloquei Can’t Stand Me Now1Ouça clicando aqui. dos The Libertines’ no máximo, então mais uma vez me joguei na cama e peguei a tesoura.

Lamentavelmente, ouvi três músicas e não fiz nada. Não imaginei que iria começar a curtir a música.

Vamos, controle-se. Nesse ritmo você vai ouvir o álbum inteiro. E depois? “O próximo álbum?”

Tudo bem, só mais uma música. Assim que a próxima música acabar, vou acabar com essa minha vida ridícula.

Mas quando a quarta música estava prestes a terminar, alguém bateu na porta da frente.

Ignorando-a para me concentrar na música, escutei ela sendo aberta.

Escondi a tesoura debaixo do travesseiro e acendi a luz.

A estudante de artes, entrando sem permissão, apertou o botão de stop do reprodutor de música.

— Você está incomodando a vizinhança.

— São apenas gostos diferentes — falei brincando. — Então você trouxe um CD para substituir o meu?

A estudante de artes olhou ao redor do quarto e perguntou:

— Onde está aquela garota?

— Foi embora. Acabou de ir.

— Na chuva?

— Sim. Esgotei as boas graças dela.

— Huh. Que pena.

Ela pegou um cigarro e o acendeu, oferecendo-me também. Peguei e coloquei na boca, e a estudante acendeu para mim.

Isso era mais forte do que eu estava acostumado, era quase como os que Shindo costumava fumar, então comecei a engasgar. Seus pulmões deviam estar completamente pretos.

— Cadê o cinzeiro? — perguntou ela.

— A lata vazia. — Apontei para a mesa.

Depois de terminar seu primeiro cigarro, ela começou um outro quase na mesma hora.

Deve ter vindo para dizer algo, supus. Ficar chateada com o barulho é só uma desculpa.

Acho que uma vez ela me disse isso. Que era terrivelmente ruim em dizer o que estava pensando.

Então provavelmente estava pensando em algo, porque queria dizer algo importante para mim.

Ao terminar três cigarros, ela finalmente falou:

— Se eu fosse uma boa amiga sua, provavelmente diria que você deveria ir atrás dela agora. “Ou então vai se arrepender por toda a vida”, ou coisa do tipo. Mas como sou uma mulher astuta e inteligente, não vou dizer isso.

— Por que não?

— Hmm. Por que não? — Sem nenhuma lógica de conexão, ela disse em uma pausa para o cigarro: — O inverno está chegando. Sabe, eu nasci no sul. Mesmo quando nevava, era raro que continuasse por dois dias. Então, fiquei surpresa quando passei pelo meu primeiro inverno aqui. Depois que a neve se acumula, você não volta a ver o solo até que a primavera chegue. E graças a esta imagem da neve como um material branco, puro, leve e fofo, o peso das pilhas de neve, o medo de andar em estradas geladas, como a neve parece rocha vulcânica quando exposta aos gases de escapamento e assim por diante… foi um pouco decepcionante.

Não me peguei pensando “o que ela está fazendo?” Esta era apenas a melhor maneira da garota estranha se expressar.

— Mas mesmo assim, quando neva muito à noite, e um trator me acorda de manhã, e abro minha janela embaçada para olhar a rua, é sempre um espetáculo para se ver. É como se o mundo fosse coberto por uma nova camada de branco. E, por outro lado, quando volto para casa à noite, tremendo, também é ótimo tomar uma xícara de café cheio de açúcar.

Ela parou ali.

— Isso é tudo que direi… Se ainda quiser se encontrar com o ceifador, não vou te impedir.

— Certo. Muito obrigado.

— Sério, olhe para você e Shindo, por que todos os caras com quem faço amizade vão embora tão rápido?

— Acho que só as pessoas que começam a pensar em morrer entendem o seu charme.

— Isso não me deixa muito feliz — disse ela, rindo e em conflito. — Ei, eu sempre quis te perguntar. Você nunca segurou minha mão porque simplesmente não tem interesse em mim? Ou isso foi por cortesia ao seu querido Shindo que partiu?

— Vai saber. Não faço ideia. Talvez eu tenha me resignado a nunca fazer o que ele queria.

— Obrigada, essa é uma resposta que me deixa feliz… Acho que me sinto um pouco melhor.

Ela estendeu a mão. Provavelmente só estava preocupada com minhas feridas.

— Pode pelo menos me dar um último aperto de mão?

— Claro, com prazer. — Estendi minha mão. — Tchau, uh…

— Saegusa — disse ela, segurando minha mão. — Shiori Saegusa. Primeira vez usando meu nome corretamente, hein, Mizuho Yugami? Eu gosto desse tipo de relacionamento descompromissado.

— Obrigado por tudo, senhorita Saegusa. Também achei nosso relacionamento muito confortável.

Ela prontamente soltou minha mão. Eu também não queria prolongar as coisas, então me virei de costas.

Abotoei meu casaco, amarrei minhas botas com força e abri a porta enquanto segurava um guarda-chuva.

— Ficarei sozinha quando você partir — disse a senhorita Saegusa por trás de mim.

A tática tradicional seria ir a lugares onde imaginava que a garota poderia ter ido.

Mas isso não era necessário. Eu já sabia onde ela estaria. Ela me deixou algumas pistas.

Pensei em tudo de forma ordenada.

A primeira pista que encontrei foi quando comprei as passagens para entrar no trem. Minha carteira foi adulterada; os cartões foram organizados de forma diferente. Nem precisei pensar se era obra da garota.

Meu primeiro pensamento foi que ela tinha pego dinheiro o suficiente para gastar durante o tempo restante. Mas, verificando com cuidado, não encontrei um único iene faltando e minha conta bancária e cartões de crédito estavam intactos.

Depois de considerar várias possibilidades, decidi o seguinte: Ela estava procurando por algo que eu possuía e verificou minha carteira porque era provável que estivesse lá.

A segunda pista foi o “sinto muito” que ela disse. Um pedido de desculpas dirigido à pessoa que a matou.

Para que servia aquele pedido de desculpas? Ela havia explicado claramente o motivo para o “obrigada”: “Apesar de todas as feridas no meu corpo, você me chamou de “linda”. Não sei se você estava sério, mas… ainda assim, fiquei feliz.”

Mas não deu nenhuma explicação para o “sinto muito”. Não havia nenhuma maneira de que simplesmente não achasse que valia à pena explicar. Afinal, eu estava quebrando a cabeça tentando descobrir.

Talvez a garota tivesse um motivo para não explicar, mas pelo menos queria saber seus sentimentos antes que ela partisse. Portanto, aquilo provavelmente não acabava apenas com “sinto muito”.

A terceira pista tinha sido dada há quatro dias. Enquanto a garota tomava banho, pensei em continuar escrevendo minha “carta não enviada” para Kiriko, então abri a gaveta, mas a carta parcialmente escrita havia sumido.

Não prestei muita atenção naquilo, mas – não tendo dúvidas de que a garota tinha lido – por que ela não colocou de volta onde estava?

No meu quarto, totalmente vazio e a não transmitindo nenhuma sensação além daquela de ser “organizado”, perder algo era simplesmente impossível. Mesmo assim, nunca mais vi aquela folha de carta.

A menos que quisesse me provocar e esconder em uma caixa de CD ou entre os livros, ou jogá-la no lixo, apenas uma possibilidade restava: Ela ainda estava com a carta.

Depois de pensar até esse ponto, pensei em todos os dias que passaram desde que a conheci. O quebra-cabeça foi simples.

Minhas memórias foram distorcidas.

Por que ela odiava ser chamada de “Akazuki”? Por que seus velhos “colegas de classe” eram uma mistura de alunos do ensino médio e universitários? E como me perguntei desde o início, por que ela estava andando sozinha sem um guarda-chuva naquele lugar desolado no dia em que a atropelei?

Mas, sério, por que demorei tanto para notar algo tão simples?

Algumas das pistas, conscientemente ou não, foram deixadas para trás pelas próprias mãos da garota.

Ela deveria ter conseguido esconder caso quisesse, mas deixou evidências de ter mexido na minha carteira. E disse “sinto muito” ao sair.

Ela havia deixado apenas uma pista que conduzia à verdade.

Se a senhorita Saegusa não tivesse batido na porta, eu teria enfiado a tesoura na garganta sem nunca perceber. Eu precisava agradecê-la. Na verdade, ela me ajudou em mais de um momento.

Mas não me arrependi de como acabamos nos separando. Esse final anticlimático foi perfeito para o nosso relacionamento, tenho certeza.

Sem carro, peguei um trem e três ônibus até meu destino.

O terceiro ônibus ficou preso no trânsito no meio do caminho. Havia um acidente na chuva e vi caminhões de bombeiros e carros de polícia passando pela pista oposta.

Disse ao motorista que estava com pressa, paguei a passagem, desci lá mesmo e caminhei ao lado da fila de carros congestionados.

Na parte inferior de uma encosta havia uma área de várias centenas de metros inundada, e a água da parte mais profunda batia apenas nos meus joelhos.

Nesse ponto, botas de chuva não serviriam de nada. De qualquer forma, minhas botas bem amarradas ficaram cheias de água. Minhas roupas molhadas roubaram o calor do meu corpo.

O frio e a atmosfera fizeram meu dedo mindinho ferido começar a doer. E graças ao vento que batia de lado, o guarda-chuva não servia para nada.

Logo veio um vento forte e, quando agarrei a alça do guarda-chuva com força, ele quebrou.

Agora inútil, joguei-o para o lado da estrada e caminhei sob a chuva tão forte que mal conseguia manter os olhos abertos.

Depois de caminhar por cerca de vinte minutos, finalmente escapei da área inundada. Veículos de emergência cercavam um caminhão de tamanho médio virado e uma perua extremamente danificada.

Cada giro das sirenes iluminava as gotas de chuva e o solo úmido, deixando toda a área vermelha. Buzinas de carros ecoavam na direção do engarrafamento.

Quando virei em uma esquina, um estudante do ensino médio andando de bicicleta com um guarda-chuva na mão quase me atropelou. Ele me notou bem a tempo e pisou no freio, então os pneus escorregaram, fazendo ele e a bicicleta caírem.

Perguntei se ele estava bem, mas o estudante me ignorou e saiu pedalando.

Depois de me virar para vê-lo ir embora, voltei a andar.

Eu sabia exatamente o quanto ainda precisaria caminhar para chegar até a garota.

Porque seria na cidade onde nasci.

Todo o parque estava inundado, brilhando com a luz do sol da manhã que espiava entre as nuvens. Eu podia ver apenas um único banquinho de madeira, parecendo flutuar na água.

A garota estava sentada lá. Naturalmente, estava encharcada. Ela estava usando a jaqueta de náilon que eu emprestei por cima do uniforme. Um guarda-chuva quebrado estava encostado ao banco.

Marchei através das poças para me aproximar dela por trás e cobri seus olhos com minhas mãos.

— Consegue adivinhar quem é? — perguntei.

— Não me trate como uma criança…

Ela agarrou minhas mãos e as puxou para baixo, para perto de seu plexo solar. Pendi para frente e assumi uma postura para abraçá-la por trás.

A garota me soltou depois de alguns segundos, mas eu gostei da posição e a mantive.

— Isso me traz memórias — falei. — No dia do acidente, sentei-me no banco em que você está agora durante o dia todo, e fui banhado pela chuva. Eu estava tentando me encontrar com alguém… Não, essa não é a maneira certa de se dizer. Eu estava unilateralmente esperando pela chegada de Kiriko.

— Do que você está falando?

Eu sabia que ela estava se fingindo de boba. Então, continuei falando.

— Na sexta série, por causa do trabalho do meu pai, tive que trocar de escola. No meu último dia na minha antiga escola, estava prestes a voltar para casa, me sentindo muito sozinho, quando uma garota falou comigo. Ela se chamava Kiriko Hizumi. Embora quase nunca tivéssemos conversado, quando estávamos para nos separar, ela me disse que queria que fôssemos amigos. Suponho que qualquer um teria feito aquilo por ela; já que só queria alguém que morasse longe para trocar correspondências. E eu simplesmente achei seu pedido difícil de recusar – no início, não estava realmente interessado na ideia.

                “Mas…, à medida que continuávamos a nos corresponder, percebi que nossos pensamentos eram quase assustadoramente semelhantes. Concordávamos em tudo que discutíamos. Ela entendia sentimentos que eu considerava impossíveis de transmitir a qualquer pessoa, exatamente da maneira que eu queria que fossem entendidos. Não demorou muito para que nossas correspondências, que começaram de forma tão despretensiosa, se tornassem algo pelo que eu deveria viver.”

Seu corpo estava frio. Porque ela esteve esperando por mim na chuva, sabe-se lá por quantas horas. Seu rosto estava pálido e sua respiração pesada.

— Um dia, cinco anos depois de começarmos a nos corresponder, Kiriko escreveu que queria que nos encontrássemos e conversássemos pessoalmente. Fiquei contente. Ela queria saber mais sobre mim e queria que eu soubesse mais sobre ela. Esse fato, pelo menos, realmente me encheu de alegria.

— Mas você não foi encontrá-la… — disse ela. — Não é?

— Exatamente. Não havia nenhuma maneira de eu me encontrar com Kiriko. Não me lembro da hora exata, mas logo depois de entrar no ensino médio, comecei a mentir nas minhas cartas. E não foram uma ou duas mentirinhas. Para não dizer mais, eu estava vivendo de forma miserável. Não queria escrever as verdades, já que não queria decepcionar ou ser alvo da piedade de Kiriko. Então fingi ter uma vida perfeitamente saudável e gratificante. Se eu não tivesse feito isso, pensei que iríamos parar de trocar cartas.

Ao explicar isso, comecei a me perguntar se esse teria sido realmente o caso. Será que escrever cartas sobre minha vida solitária em um colégio onde eu simplesmente não conseguia me encaixar seria mesmo uma razão para parar de nos corresponder?

Bem, não dava mais para descobrir.

— Mas aquele esforço desesperado se tornou a minha ruína. A garota em quem eu mais confiava no mundo inteiro me disse que queria me encontrar pessoalmente, e se eu respondesse ao seu pedido, todas as minhas mentiras viriam à tona. Eu sabia que Kiriko me odiaria se soubesse que tipo de pessoa estava por trás do meu véu de mentiras. No momento em que ela descobrisse que tudo que eu escrevi por anos era mentira, começaria a me desprezar. Infelizmente, desisti de me encontrar com ela. E nunca mais enviei cartas. Eu não sabia o que escrever. Foi assim que nosso relacionamento terminou… Claro, desistir de um hábito de cinco anos foi difícil. Me recusando a parar, continuei escrevendo cartas, só para me consolar, e nunca as enviei. Lenta e calmamente escrevi cartas que ninguém iria ler.

Tirei meus braços do redor dela e dei a volta no banco para me sentar ao seu lado.

Ela tirou algo da bolsa e me entregou.

— Vou te devolver isso.

Era a carta que escrevi e não enviei para Kiriko. Então estava com ela.

— Pelo que ouvi até agora — comentou —, sua história sobre estar neste banco no dia do acidente, esperando pela senhorita Kiriko, não parece lógica.

— Foi a morte do meu amigo que deu início às coisas. Nós nos conhecíamos desde o ensino médio. Ele era um cara em quem eu podia confiar, então acabei contando para ele como menti e enganei aquela garota, e sobre como parei de responder as cartas quando fiquei perto de ser descoberto. Então, cerca de um mês antes de morrer, ele me disse: “Você deveria se encontrar com Kiriko Hizumi.” Ele não tinha dúvidas de que seria uma coisa positiva para a minha vida. E era raro que sugerisse algo assim.

Sim, Shindo sempre odiou dar conselhos às pessoas ou ouvir os problemas delas. Da mesma forma, odiava receber conselhos ou pedir aos outros para que ouvissem seus problemas.

Ele odiava a tendência de aceitar qualquer coisa favoravelmente, mesmo que fosse feito de boa vontade, mesmo se aquilo não passasse de baboseira infundada. Aquilo seria como assumir uma responsabilidade enorme, e enquanto ele não tivesse a confiança de que poderia lidar com o problema, sentia que não deveria dizer palavra alguma sobre a vida de outras pessoas – essa era a opinião de Shindo.

Então, para ele me dar um conselho real que valesse à pena chamar de conselho, devia ter levado o assunto muito a sério, ao menos em seus padrões.

— Então decidi enviar uma carta pela primeira vez em cinco anos. Escrevi que se ela estivesse disposta a me perdoar, deveria vir me encontrar no parque perto da escola primária que nós costumávamos frequentar.

Levantei uma das minhas pernas para cruzá-las, criando uma ondulação na água que refletia o céu brilhante.

Os galhos das árvores desolados e o céu tão sem nuvens como se tivesse desistido de tudo me fizeram sentir que o inverno estava se aproximando rapidamente.

— Esperei o dia todo, mas Kiriko não apareceu. Aquilo não foi algo sem sentido. Eu ignorei completamente as cartas que ela continuou enviando depois que parei de responder; de repente, dizer “Eu quero me desculpar” só depois que meu amigo morreu, e esperar por uma resposta, seria abusar da minha sorte. Eu sabia que ela não precisava mais de mim, e isso me deixou infeliz. Então fugi para o álcool. Comprei uísque na loja no caminho de volta do parque e comecei a dirigir logo após beber. E então te atropelei.

Peguei um cigarro e o isqueiro no bolso. O isqueiro a óleo acendeu sem problemas, mas o cigarro molhado tinha um gosto terrivelmente amargo.

— Entendo. Agora meio que entendo — disse a garota.

— E essa é a minha história. Agora é a sua vez.

Ela colocou as mãos sobre os joelhos e olhou para o banco descascado enquanto se perdia em pensamentos.

— Diga, Mizuho… — Ela usou meu nome. — Você sabe por que a senhorita Kiriko não apareceu neste parque no dia do acidente?

— É isso que vim perguntar — respondi.

— O que eu acho — prefaciou ela com cautela—, é que a senhorita Kiriko partiu para o lugar designado. No entanto, levou um tempo considerável para tomar a decisão de fazer isso. Desta vez, foi ela quem teve um motivo para não se encontrar com você. Na verdade, ela não conseguiria te encarar. Por outro lado, saber que depois de cinco anos de silêncio, a pessoa que ela pensava que havia há muito se esquecido dela ainda queria vê-la, deve ter feito ficar feliz o suficiente para chorar. Depois de pensar muito em suas opções, a senhorita Kiriko decidiu que iria se encontrar com o senhor Mizuho.

Ela parecia estar falando com o tom mais indiferente que conseguia. Como se estivesse negando às suas palavras a chance de mostrar qualquer emoção.

— No entanto, sua decisão foi um pouco tardia demais. Ela saiu de casa, ainda com o uniforme da escola, depois das 19 horas do dia prometido. Além disso, estava chovendo sem parar, então os ônibus e trens não estavam funcionando direito. No final das contas, foi por volta da meia-noite que chegou ao destino. Naturalmente, não havia ninguém no parque. Ela se sentou no banco, sendo banhada pela chuva, e lamentou sua própria tolice. Ela finalmente entendeu o quanto tinha esperado para se reunir com o senhor Mizuho. Por que ela sempre cometia esses erros? Por que se preocupava com coisas inúteis e negligenciava o que era mais importante? A senhorita Kiriko, em um estado de estupefação, começou a marchar de volta por onde viera.

E eu sabia melhor do que ninguém o que aconteceu com Kiriko depois disso.

Ela e eu nos reunimos da pior maneira que alguém poderia imaginar.

Além do mais, nenhum de nós havia percebido isso.

— Há uma coisa que eu não entendo — ponderei. — O que você quis dizer com “não conseguiria me encarar?”

— Este não é o lugar apropriado para explicar isso…

Kiriko colocou as mãos nos joelhos e se levantou com dificuldade. Fiz o mesmo.

— Por enquanto vamos voltar ao apartamento. Tomaremos banhos quentes, colocaremos roupas secas, comeremos comida saborosa, dormiremos bem e depois iremos a algum lugar apropriado para falar sobre a verdade.

— Certo.

Kiriko e eu mal conversamos no caminho de volta.

Seguramos as mãos frias um do outro, e eu caminhei lentamente para acompanhar o seu ritmo.

Deveria haver muito o que conversar, mas ao se reunir de fato, parecia que as palavras não eram mais necessárias. O silêncio que tudo compreendia era reconfortante e ninguém pretendia preenchê-lo com palavras desnecessárias.

Depois de cochilarmos juntos por algumas horas na cama do apartamento, pegamos o ônibus frágil da estação para o “lugar apropriado”, chegando quando o sol estava começando a se pôr.

Era um parque de diversões no topo de uma montanha. Depois de comprar os ingressos e passar por uma entrada com um boneco-coelho vestindo jaqueta, nos deparamos com um espetáculo de fantasias desbotadas.

Atrás das arquibancadas e bilheterias, um carrossel e um balanço giratório, pude ver atrações como uma roda-gigante enorme, um pêndulo gigante e uma montanha-russa.

Havia um monte de barulho proveniente das atrações ao meu redor, além de gritos estridentes. Grandes caixas de som espalhadas pelo parque tocavam uma música toda feliz e alegre, e eu ouvia o som de uma velha orquestra mecânica entre as atrações.

Apesar de ser um dia chuvoso, havia uma multidão enorme. Estava perfeitamente dividido entre famílias e casais.

Kiriko olhou para tudo com nostalgia, segurando minha mão. Eu também caminhei pelo parque de diversões que certamente nunca tinha visitado antes com uma sensação de familiaridade. Talvez eu tenha estado aqui, senti.

Ela parou em frente à roda-gigante.

Depois de comprar apenas as passagens que precisávamos em uma máquina automática, fomos para os bancos.

Quando olhamos para o parque, uma das luzes que brilhava na escuridão se apagou. Devia ser a lâmpada perto da fonte. Isso foi apenas o começo; embora certamente ainda não fosse hora de fechar, as luzes continuaram se apagando uma a uma.

O parque estava desaparecendo. E, ao mesmo tempo, senti algo que havia perdido dentro de mim retornando lentamente.

A magia está desaparecendo, percebi.

O adiamento do acidente estava acabando e, ao mesmo tempo em que a morte chegava para Kiriko, tudo o que ela havia adiado estava voltando ao normal.

Quase todas as luzes se apagaram. O parque de diversões que antes florescia agora era como um mar de tinta preta.

Quando os bancos alcançaram o topo da roda-gigante, minhas memórias voltaram.

 


 

Tradução: Taipan

Revisão: PcWolf

 

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